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Assim como Flaubert enunciou a seus contemporâneos o enigmático

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Academic year: 2021

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EDITORIAL

A ssim como Flaubert enunciou a seus contemporâneos o enigmático

“Emma sou eu” e Proust tira um mundo de dentro das memórias (involuntárias) de uma xícara de chá, a ficção machadiana narra um mundo que se aborda desde um ângulo muito particular: é desde um “olhar oblíquo e dissimulado”, ao modo de sua Capitu, que Machado escreve e o leitor avança sobre um tempo e um espaço também transversos. A entrada na modernidade com os contrastes e choques das passagens (aqui, Benja- min entra no diálogo), do rural x urbano, da Monarquia à República, do clás- sico à polca, do Rio dos cortiços à aspiração de cidade de avenidas largas e arejadas (ao exemplo da transformação de Paris), e, em especial, do con- traste entre um contexto de origem colonial e escravocrata que busca, em alguma medida, o alinhamento com a metrópole européia, ao mesmo tempo em que trata de pensar a saída do modelo.

Pelas passagens que Machado vai construindo, a fantasia, os ele- mentos que percorrem o imaginário social vão encontrando lugar e constitu- indo travessias e vertigens, via a ironia que, por sua vez, também configura uma escrita da obliqüidade. O “sentido em lampejo” do chiste (à vizinhança da ironia), a dimensão da surpresa e o prazer do jogo neste movimento impli- ca o sujeito, o inconsciente e o Outro. Constelação de elementos solidários com os caminhos não lineares e diagonais do dizer de Lacan – de que o inconsciente só se entrega assim “meio de lado”.

Celebramos com este número do Correio a profunda marca que Ma-

chado de Assis inscreve em nossa cultura, ao seu modo de “saber fazer com

o vazio”, e que ele compartilha com seus leitores produzindo assim nova

passagem, transmissão que um escritor pode realizar para muito além do

tempo de sua escrita.

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

CONGRESSO DA APPOA ANGÚSTIA Dias: 14, 15 e 16 de novembro de 2008 Local: Centro de Eventos Plaza São Rafael

Endereço: Avenida Alberto Bins, 514 – Porto Alegre, RS - Brasil

É impossível desconhecer a angústia. Ela se enlaça com o mais pre- cioso do sujeito: a vida ou a morte, o mais íntimo e o mais incompreensível.

Há muito que nossa cultura lida com ela, representando-a desde as artes, passando pela religião, a filosofia e as ciências mais diversas. Sem falar na literatura, na qual o “Estranho” (Das Unheimliche) é uma de suas figurações mais fortes. Nesta, a ficção nos traz narrativas em que o estrangeiro e o familiar põem em questão todas as dimensões de certeza. A conhecida an- gústia, assim, revela sua face indecifrável.

A psicanálise, por sua vez, buscou encontrar uma forma singular de escutar e interpretar este “afeto que não engana”, onde a palavra silencia à falta de uma simbolização possível. O próprio Freud transformou sua teoria da angústia ao longo de mais de 30 anos, em um trabalho de permanente atualização. Ele começou por considerá-la como um afeto e reação natural frente a uma situação real de perigo, passando por situar a angústia de castração, até sua derradeira tese de 1926, na qual considerava a angústia como sinal de alerta do Eu: um aviso interno de que algo não vai bem, ame- açando sua estrutura.

Jacques Lacan, para conceituar o objeto do desejo em seu retorno a Freud, subverte a posição do analista e afirma que este afeto primordial tem um objeto: ele é o mesmo que organiza o desejo. Porém, enquanto o objeto sempre falta no desejo, na angústia é a falta simbólica que falta. Assim, desejo e angústia enlaçam-se na trama do sujeito.

Trabalhar a temática da angústia e suas implicações na clínica e na cultura nos possibilitou dois anos de leituras e discussões – que passaram

pela literatura psicanalítica, médica, filosófica, literária, assim como por es- tudos de casos clínicos, das políticas públicas, da história e da sociedade atual. A preparação do tema, em grupos de estudos, jornadas diversas e publicações de textos, culminam, enfim, com este Congresso. Nosso obje- tivo é ampliar o debate, dialogando com outras áreas da ciência e da arte, com psicanalistas de outros estados e países e com todos os que deseja- rem participar.

PROGRAMA Sexta-feira 14/11/2008 8h30 – Credenciamento e inscrições 9h - Abertura

MESA 1

Coordenação: Ligia Gomes Víctora

Conferência: “Actualidade” da angústia. Robson de Freitas Pereira (APPOA/

RS) MESA 2

Coordenação: Liz Nunes Ramos

Angústia de castração e inveja do pênis pós-maternidade. Julieta Jerusalinsky (APPOA/SP)

Angústia na psicanálise de crianças. Alba Rita Flesler (EFBA/BsAs-ARG) 14h – MESA3

Coordenação: Liliane Froemming

Aprendizado, cooperação e competição no trabalho. Paul Singer (SENAES/

DF)

A psicanálise na economia solidária. Jorge Broide (APPOA/SP)

Cultura, economia e política. Enéas Costa de Souza (APPOA/RS)

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

MESA 4

Coordenação: Carmen Backes

Uma carta perdida. Maria Cristina Poli (APPOA/RS)

Angústia e desejo: afinidades eletivas. Sidnei Goldberg (APPOA/SP) As depressões e a experiência do tempo. Maria Rita Kehl (APPOA/SP)

Lançamentos de livros

Sábado – 15/11/2008 9h – MESA 5

Coordenação: Rosane Monteiro Ramalho

A potência iconoclasta do objeto a: psicanálise e utopia. Edson Luiz André Sousa (APPOA/RS)

“Esta velha angústia”. Maria Ida Baptista Fontenelle (APPOA/DF)

“É não sem e não é sem”. Charles Elias Lang (APPOA/AL) MESA 6

Coordenação: Fernanda Breda

Rasura e angústia: a função do velamento do corpo. Ana Costa (APPOA/RS) Frida Kahlo: pincel da angústia. Eliana dos Reis (APPOA/NY-EUA)

14h – MESA 7

Coordenação: Diana Lichtenstein Corso

Angústias contemporâneas. Rosane Monteiro Ramalho (APPOA/RJ/RS) Angústia: Sujeito e Grupo. Jorge Valadares (FIOCRUZ/RJ.)

A angústia da dança adolescente. Ângela Lângaro Becker (APPOA/RS) MESA 8

Coordenação: Nilson Sibemberg

Isso é suportável? A clínica psicanalítica diante dos estados extremos de angústia. Mário Eduardo Costa Pereira (UNICAMP/SP)

Angústia e cérebro: há algum diálogo possível entre psicanálise e neurociências?

Benilton Bezerra Júnior (Medicina Social/UERJ) MESA 9

Coordenação: Ester Trevisan

Conferência: Relação da angústia com o gozo sexual. Gérard Pommier (FEP/

Paris-FR)

Domingo – 16/11/2008 9h - MESA 10

Coordenação: Lúcia Alves Mees

Do Resto ao Lixo – a corrosão do desejo na era da reprodutibilidade técnica.

Jaime Betts (APPOA/RS)

O homem sem qualidades, mesmo. Élida Tessler (Artes/UFRGS)

A banda de Mahler e o violino sinistro. Elaine Starosta Foguel (APPOA/BA) 14h – MESA 11

Coordenação: Lucy Linhares da Fontoura

A economia da angústia. Roséli Maria Olabarriaga Cabistani (APPOA/RS) Reflexões sobre a inibição. Ricardo Goldenberg (APPOA/SP)

MESA 12

Coordenação: Marieta Luce Madeira Rodrigues

Vértigo: fascínio e perturbação na ficção machadiana. Lúcia Serrano Pereira (APPOA/RS)

Figuras da angústia em Borges. Luis Augusto Fischer (Letras/UFRGS) Criaturas imperfeitas procuram um pai. Mário Corso (APPOA/RS) MESA 13

Coordenação: Robson de Freitas Pereira

Conferência: A angústia e a orientação do sujeito. Isidoro Vegh (EFBA/BsAs- ARG)

Encerramento: Lúcia Serrano Pereira (Presidência/APPOA)

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

INSCRIÇÕES E INFORMAÇÕES:

NO SITE OU NA SECRETARIA DA APPOA.

Datas-limite p/ inscrição:

Até dia 15/09 c/ desconto Até dia 15/10 c/ desconto Em três parcelas:

15/09; 15/10 e 15/11 Após dia 15/10

INFORMAÇÕES E INSCRIÇÕES:

• * Estudantes de graduação e formados até dois anos, mediante apresenta- ção de certificado ou comprovante de matrícula em curso superior na Secre- taria da APPOA.

• Horário de funcionamento da Secretaria da APPOA: de segunda a quinta- feira, das 13h30min. às 21h30min e às sextas-feiras, das 13h30min às 20h

• Inscrições mediante depósito bancário, para Banco Itaú, agência 0604, conta-corrente: 32910-2. Neste caso, enviar, por fax, o comprovante de paga- mento devidamente preenchido, para a inscrição ser efetivada.

• Inscrições pelo site www.appoa.com.br após efetuar a inscrição pelo site, enviar por fax ou por e-mail o comprovante de pagamento devidamente pre- enchido.

• As vagas são limitadas.

Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA

Endereço: Rua Faria Santos, 258 – Bairro Petrópolis – Porto Alegre – RS Telefones: 51 33332140 e 33337922 Site: www.appoa.com.br

Apoios:

Plaza Eventos Presenta multimídia Le Bistrot

Gráfica Metrópole Associados

APPOA

Estudantes e Recém-formados*

Profissionais

120,00 130,00 170,00

140,00 150,00 180,00

3 X 50,00 3 X 60,00 3 X 75,00

180,00 190,00 250,00

Agência de turismo:

BMZ

Fone: 51 3321 1133

www.bmztur.com.br

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SEÇÃO TEMÁTICA

SUBVERSÕES MACHADIANAS

Enéas Costa de Souza

M achado não é um revolucionário e nem um reacionário. Ele é um subversivo. O que significa ser um subversivo? Alguém que revolve, que revira, que desmancha, que arruína, que perturba, que transtor- na, que desordena, que destrói, que corrompe algo do social. Age com apuro e se infiltra com primor nas idéias, na moral, nas instituições, nos ideais, nas tradições, nos gêneros literários. Neste artigo, num desenho ligeiro, pro- curamos evidenciar algumas das suas subversões, tratamento aplicado, quase como serpente, no plano de múltiplas realidades sobre as quais colocou o seu veneno. Só que subversivo para Machado não é aquele que faz alarde da subversão, não é aquele que é uma dinamite. A sua subversão se sabe a um ácido que lentamente faz desabar a solidez de uma estrutura consolidada.

Pode-se dizer que ela tem um método inigualável que se chama ironia. E nesse sentido, o ato irônico é algo muito mais poderoso do que o ato de um agitador e de um terrorista. Machado está longe destes tipos e destas sub- versões. Sua subversão é outra. A eficiência do seu gesto não é imediata, tem parte com a duração, conduz a um efeito mais retardado e avança com o espichar do tempo.

Machado usa como arma a pólvora da palavra. Vem dela as nuances da narrativa, a transformação de um gênero, o sublinhar de alguns persona- gens, a fustigação de diversos comentários. Seus gestos são sutis e maci- os, mas prolongados, como os dos gatos que dormem ao sol de uma varan- da. Provocam deliciosas frutas de humor como se anunciadas por um refina- do gourmet. Só que são gestos tão comuns que se fazem estranhos, que salientam nas coisas o mais estrangeiro e que incitam, de repente, a um insólito mal-estar. Quase sem se sentir, acusamos instalada a subversão.

Machado faz do romance um atrevimento experimental. E nos deixa como herança um ponto final exemplar: há que dar-se conta sobre o sentido da vida, há que alcançar uma renovação do pensar sobre o mundo. E sempre,

sempre, viajando no ritmo sacudido de sua prosa onde resplandece a ale- gria. Contra o fixo, o movimento; contra os ideais, a sua desmontagem;

contra o velho, a metamorfose: contra a tradição, a ironia.

O ROMANCE COMO METAMORFOSE

O gênio de um artista é introduzir no repertório de sua arte um deslizamento que perturba a normal formatação histórica. Convém que se diga que é mais precisamente uma ruptura, uma ambicionada transmutação.

Quando, na literatura, o romancista é um criador, a forma tem que ver com o modo de narração; com os personagens; com o desenvolvimento e encade- amento dramático das cenas; com a continuação e ruptura destas e dos capítulos. O romance forma um todo, mesmo que devorado por uma abertu- ra, ou por fissuras que rompem a unidade por todos os lados. As suas partes se canalizam para um desdobramento através de um jogo, de uma constru- ção e de um ritmo de palavras que alimentam a melodia das frases e a arquitetura dos capítulos. Percebemos, no que toca a Machado, toda essa contundência criativa em “Brás Cubas”, em “Quincas Borba”, em “Dom Cas- murro”, em “Esaú e Jacó” e no “Memorial de Aires”.

A forma se traduz num efeito diferente, ela navega no inabitual e se envolve no incômodo – no Unheimlich nos falaria Freud. Com isso libera o detonador de uma obra estrangeira – que altera ou põe em causa, redimensiona ou dinamiza, imediatamente, os padrões estéticos dos seus leitores. Foi o que fizeram, entre outros, Cervantes, Balzac, Stendhal, Baudelaire, Dostoievsky, Proust e Joyce, por exemplo. Neste travelling de gênios, cabe o nome de Machado. Mas atenção: saímos da literatura brasileira, temos que ler Machado em face da história da literatura. Não devemos nos deixar apequenar “pelo nosso complexo de vira-lata”, imagem crítica de Nelson Rodrigues, e reduzir os nossos autores à faixa diminuta da praia da literatura brasileira. Guimarães Rosa, por exemplo, entra neste time. Carlos Drummond Andrade também. Porque eles se confrontam com outros cimos de grandeza.

E se vocês lerem Machado minuciosamente, verão com quem ele se mede a cada estágio de seus romances. Fala com Luciano de Samósata,

SOUZA, E. C.

DE

. Subversões machadianas.

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SEÇÃO TEMÁTICA

com Aristóteles, com Voltaire, com Pascal, com Montaigne, com Rabelais, com Diderot, com Goethe, etc. Ou seja, ele se quer dialogando, refletindo, produzindo cenas, pensamentos e reflexões, em conversa com autores do cenário mundial. O seu intertexto voa pelo ambicioso. Seguramente também trata de autores que escrevem em português, Alencar, Almeida Garret, ou mesmo Eça de Queiroz. Mas ele sai e se afasta desta pequena idéia de Antonio Cândido que fala da literatura brasileira como um ramo da portugue- sa que é uma literatura pobre da Europa. Ora, que me perdoe nosso excep- cional Antonio Cândido, mas isso vem do complexo citado acima. Ou seja, é pensar a literatura na hierarquia do poder histórico e na sua expressão soci- ológica. Como se a compreensão e a dimensão do humano fossem somente efeitos destes aspectos. Não, o que importa, o que se deseja, é olhar a literatura dos grandes autores, enfrentar o grande prêmio, encarar a Fórmula Um. E Machado sempre disputou a Fórmula Um. Basta só ver “Dom Cas- murro”. Seu parâmetro é “Otelo” de Shakespeare e se sai brilhantemente.

Vamos nos deter só num personagem, Desdêmona, por exemplo. Ela não tem a mesma envergadura que Capitu, nem em termos de sofrimento e de infortúnio, nem nos moldes de solução e de resultado. E mais, o infinito silêncio de Capitu, vindo do seu ostracismo europeu, fulmina Bentinho num eterno luto. A densidade humana daquilo que rasga Capitu e Bento Santiago é mais dilacerante – pelo prolongamento dos destinos dos dois persona- gens, embora com menos impacto – do que o efeito do estrangulamento de Desdêmona e do suicídio de Otelo. No mínimo ao apresentar uma outra faceta do tema, Machado é ouro na análise da trágica brasilidade do século XIX.

DO FRAGMENTO COMO A NOVA FORMA

Machado é uma espécie de Calder, aquele escultor dos móbiles. De um modo geral, o que se percebe, nos trabalhos dos dois artistas, é que há um fio que articula e passa por núcleos, peças e fragmentos, compondo um todo cosido com pedaços singulares, mas dando feição de desatado. Pois olhemos qualquer romance da maturidade de Machado, de “Brás Cubas” ao

“Memorial de Aires”. Vemos lá aquela leveza estrutural que vem dos capítu-

los pequenos, da frase ágil na armação de idéias, de sugestões, de metáfo- ras, de citações, de pequenas histórias agregadas. Ou seja, um desnucamento do romance realista, que busca a identificação do leitor com uma história grudada à ação dos personagens; um romance continuado, ação puxando ação, dourada de descrição de cenas e espertezas de co- mentários, no mais das vezes na posição divina, como diria Sartre.

Em Machado, ao contrário. Uma tentativa sempre de romper com os enlaces e, principalmente, com os enlaces narrativos do drama. Surgem e formam os interstícios e as entrelinhas, vêm então os comentários, as refle- xões metodológicas, as sentenças filosóficas, que às vezes até são neces- sárias à história. Não que os ditos machadianos não estejam absolutamente integrados no romance, mas eles não estão integrados de modo necessário à intriga. Muitos contemporâneos como o historiador Capistrano de Abreu – e Machado registra isso em Brás Cubas – externaram a estranheza, a su- posta desconfiança crítica, a dúvida literária, perguntando se o autor teria escrito um romance. Mas quem sabe estas manifestações significam outra coisa, a estupefação pela audácia daquele que inova e inventa.

O romance desajeitado de Machado pára em pé, se sustenta, defor- mando a forma tradicional do romance, com a estrutura internamente rompi- da, fingidamente quebrada em fragmentos, mas que tem um liame quase invisível que a comanda. Para inventar o novo romance, Machado fulminou a estrutura compacta, praticamente sem furos, sumamente unitária, retorcen- do a ordem temporal das cenas e introduzindo comentários colados à intri- ga. Sua opção pelo fragmento foi indispensável para expressar a profundida- de do seu pensamento, absolutamente moderno, atingindo duradouramente o contemporâneo, mas também intempestivo, por isso propositadamente ocidental, com validade universal.

DA FILOSOFIA E DO ROMANCE

Se olharmos pelos cânones ocidentais, e vermos Machado dentro da

sua obra, descobre-se uma audácia mais velada do artista. Ele não se quer

apenas romancista de um país afastado do centro do mundo. Muito pelo

SOUZA, E. C.

DE

. Subversões machadianas.

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SEÇÃO TEMÁTICA

contrário. Sua audácia é total. Primeiro, quer cumprir a tarefa política de colocar na arte, o país, tornado independente, no rol dos países civilizados.

Essa é a sua tarefa de escritor. A tarefa da emancipação política é com as classes sociais. E os romances mostram uma decepção, a melancolia em verdade, que é a falência na idealização dos homens e da sociedade. Só que ele responde com a ironia e a alegria. Segundo, e por conseqüência, inaugu- rar neste país uma literatura que seja mais que uma literatura de uma socie- dade e de uma nação, que seja uma literatura universal, que seja uma litera- tura inventiva no contexto das outras literaturas, que adentre a história dos homens. Terceiro, ao encenar o Segundo Império e o início da República, Machado faz uma análise crítica da sociedade, como a história da época talvez não tenha sabido vislumbrar. A melhor interpretação histórica talvez seja o romance. Quarto, na tradição histórica portuguesa, onde a pobreza de cultivo da filosofia é a de uma parreira sem uvas, o pensar das condições antropo-ontológicas do homem vem por meio da arte. Atravessa a poesia, o romance, o ensaio, etc. A audácia de Machado, ponto altamente renovador, o rebentar de uma onda, é reivindicar explícita, mas inaudivelmente para a maioria dos críticos, que o seu vôo é pilotar o romance, mas também a filosofia. Uma filosofia no estilo do aforismo. Por isso, se temos Xavier de Maistre, Sterne, no entanto temos também Pascal, Montaigne. E a sua filo- sofia é herdeira do campo dos autores do fragmento, herdeira dos pré- socráticos, herdeira do teatro de Luciano, herdeira da filosofia de Pascal e Montaigne. Assim, o romance de Machado é filosofia. E a sua filosofia só tem uma condição: expressar-se como romance. Estamos antes de Borges com ele, a filosofia é uma forma de literatura.

DA ORDEM E DAS DIMENSÕES DO PENSAR

Tive um amigo das cercanias do mundo filosófico que me dizia: uma obra é o que dá o sentido às coisas. Sempre pensava: a arte se ilumina em cima do vazio, na vizinhança do abismo. Assim fala Nietzsche através do seu vasto bigode secular. Pois, um escritor romancista põe em marcha um pensamento no modo como consuma a ordem na sua obra. Só que quando

digo ordem não estou querendo dizer rigidez, um bloco de pedra, pois pode existir nesta ordem uma certa indisciplina, um tal desmanchar que lembra uma busca de associações livres. E é aí que um texto pode ser subversivo, revolucionário. Não falo de um engajamento direto como arte política, mas uma política de arte que faz da decomposição da ordem a sua sugestão, a sua proposição, o seu “fármacos”, palavra grega que se pode traduzir por remédio e veneno. Machado é isso, o seu pensar como romancista (e como filósofo), ao construir a forma do romance, inocula tanto o veneno como o remédio.

Inocula o veneno porque ele corrói as entranhas do romance tradicio- nal e destapa a natureza da classe dominante brasileira – patrimonial, capi- talista, escravista, hipócrita, isolacionista, ociosa, burladora. Uma socieda- de dedicada ao esporte da predação. Pense o leitor no que foi feito de Marcela, de Rubião, de Capitu, de Dona Plácida, de Flora. Mas, inocula o remédio, porque encarando a traição humana como dimensão social, busca o cômico no interior do trágico. Fertiliza com a flor hilária a melancolia que eventual- mente traz o cinismo ou o ceticismo. Porque Machado pensa através do romance a condição antropológica e ontológica dos homens – a de um ser separado, logo em desamparo, sobretudo no seu horizonte subjetivo e histó- rico. As palavras da narração levam à construção de imagens que realçam seu pensamento. São imagens tecidas de frases, que embora simbólicas expandem um tônus forte do imaginário, porque se as palavras são feiticei- ras, as imagens são intensas e marcantes. A dialética do Simbólico e do Imaginário, balizada pelo Real, provocam na sua dosagem em fragmentos, em poções, o seu verdadeiro poder mágico. Lê-se, então, um romance que pensa e que faz pensar. Mas, só para quem quer, porque Machado esconde o veneno na carapaça da fluência prazenteira e vistosa.

O QUARTETO DA NARRAÇÃO

Há um tema que pode interessar muito aos psicanalistas. Trata-se

da relação de Machado com o leitor. Como sempre ele tem uma estratégia

ardilosa, um giro sutil, para expor a posição do problema no contexto do

SOUZA, E. C.

DE

. Subversões machadianas.

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SEÇÃO TEMÁTICA

romance. O começo é a certeza de que há um quarteto nesta relação. Na proposição da escrita está intimamente inscrita uma diferença original, marcada pelo contraste entre o autor e o narrador. Com esta distinção, o romancista revela que narrar é como olhar o mar, narrar é partir de um ponto de vista que não é o seu. Ou seja, o narrador é um personagem integrado à história, que tem a sua visão, a sua concepção, a sua relação com os de- mais personagens. Mesmo um narrador em terceira pessoa, na sua aparen- te imparcialidade, não consegue superar esta notória divergência entre as duas figuras em exame.

Instalado o narrador como figura inaugural do romance, há um segun- do ponto a notar: a sua relação com o leitor. A posição de Machado é notável nesse ponto. Em primeiro lugar, há um quesito substancial: o leitor está geralmente explicitamente colocado dentro da história. O narrador, com uma arte de generosa especiaria, o atrai constantemente para o primeiro plano da história. Sob certo ponto de vista, ele é um personagem extremamente im- portante, porque é sacudido, mexido, zombado, maltratado, jogado furiosa- mente como um personagem, diríamos assim preconceituoso. Preconceituoso por ser um leitor comum, aquele que acredita num romance tradicional, aquele que tem as idéias da sociedade dominante.

Sintetizando tudo o que já dissemos sobre Machado e sua arte e sua filosofia e a posição do leitor, não podemos deixar de registrar essa passa- gem, que nos atinge como um vôo de águia. “(...) Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem. Pois lá iremos. Todavia, importa dizer que este livro é escrito com pachorra, com a pachorra de um homem já desafrontado da brevidade do século, obra supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora mesmo austera, logo brincalhona, cousa que não edifica nem destrói, não inflama nem regala, e é todavia mais do que passatempo e menos que apostolado” (Memórias Póstumas de Brás Cubas, Obras Completas, I, Rio, Editora Nova Aguilar, 1979, pág. 516).

Com essa passagem, pomos na roda um outro leitor, o leitor implícito, o leitor real, aquele que está lendo o livro, que se mete em múltiplas posi- ções de identificação na obra. É ele quem se identifica com a história, com o personagem principal, com personagens secundários, que tem a crença que o narrador estabelece para ele. Um leitor que assina um contrato com o narrador, definido por este próprio narrador (e pelo autor). E que de um modo geral cumpre regularmente. Trata-se de um leitor confiável, fiel, um leitor submisso, sem nenhuma capacidade de distanciar-se. E aqui chegamos ao ponto decisivo: o modo como o leitor se relaciona com o livro, o mergulho sem mais recuo no mundo criado pelas palavras do romance.

CONTRA A LEITURA EMBEVECIDA

Queremos, então, como um rastreador, detectar a suprema arte de Machado. O que ele faz é exatamente isso: através do seu método exem- plar, a ironia, vai provocando uma progressiva distância do leitor real ao narrador, uma viagem para soltar as identificações múltiplas e possíveis do texto. É por isso que, ao final de “Brás Cubas”, o leitor pode ter uma distân- cia do personagem principal e achá-lo cínico. Diante da sagacidade narrativa da história de Bentinho, que começa o texto como Dom Casmurro, o leitor pode ter uma possível diferença com as opiniões do narrador e vê-lo como o advogado competente que tenta narrar astutamente uma história onde ele é um criminoso legal. E com essa manobra maravilhosa, Machado provoca no leitor implícito um choque brutal, uma sacudida eficaz, um efeito de distanciamento (Verfrendungeffeckt) que ficaria célebre com Bertold Brecht no teatro.

Mas, não se pense que a narrativa do romance falseie a lógica do

romance. Pelo contrário, o domínio de Machado é de tal ordem que o desen-

volvimento dramático é perfeitamente plausível, iluminado, com a diferença

que seu método sendo a ironia, o que ele introduz na narrativa é a força

básica da vida: a ambigüidade. Ou seja, essa impossibilidade de saber a

verdade das situações, porque elas contêm sempre um grau de incerteza,

de mistério, de obscuridade, de hesitação, de dúvida. O leitor é como um

SOUZA, E. C.

DE

. Subversões machadianas.

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SEÇÃO TEMÁTICA

motorista que dirige um carro e que acaba de encontrar a verdadeira estrada, o ambicionado sentido destas realidades. Então, o método narrativo de Ma- chado fica plenamente exposto: de um lado, um narrador que vem submetido à potencialidade da ironia, e de outro, um narrador que, como efeito dessa ironia, expressa fortemente na narrativa, a diferença entre autor e narrador, que fala para um leitor explícito sobre as nuances da intriga que narra. Põe a história em termos de ambigüidade e tenta atingir o leitor real para provocar aquilo que é próprio do homem, o dar-se conta das armadilhas da ilusão romanesca. Este método tem uma eficácia fantástica, articula a tentativa de provocar uma desmontagem na construção imaginária que a sociedade, que os homens (narrador, personagem, leitores, etc.), constroem e tentam sim- bolizar, para anular o impacto do efeito do Real.

E o que Machado nos traz por intermédio de sua façanha narrativa é a irrupção deste Real, sobre os múltiplos efeitos da morte, do desastre amoro- so, das fraturas pessoais, das crises que ele provoca nas consolidações ideológicas da sociedade brasileira, como já dissemos, capitalista, mercan- til, patrimonial, escravista. O notável nesta arte é que a ironia permite traçar a trajetória do romance e conduz a narrativa vertiginosamente tanto para a emergência do Unheimlich, do estranho, do lado estrangeiro das coisas, como para a exigência de perceber a presença desta coisa opaca, sem palavras, que é o Real. Nesse sentido, o rumor das palavras assopra outra expressão para ele, uma expressão que os gregos nomeavam como trágico.

O Real é o trágico, com a única diferença que na Grécia está unido aos deuses e ao divino; e no trágico contemporâneo está vinculado simplesmen- te a sua inexorável irrupção. Machado se coloca diante da devastação deste emergir, quando apela metaforicamente para a deusa Pandora, com a sua cesta de bens e males. E deste destroçar faz do seu romance um conjunto de subversões, das quais a principal navega inexoravelmente para abalroar o ato de leitura. O desejo de escrever leva a um ato de subversão que ejeta o leitor do ambiente embevecido pelas palavras e pela ficção. O tiro é mortal:

no quarteto autor/ (narrador), (leitor interno)/leitor real, abre-se a distância do fogo que queima: a hora do pensar crítico.

QUINCAS BORBA: “SOU LIVRE, DEVO TUDO AO DOUTOR” 1

Luís Augusto Fischer 2

P ara os que começam a conhecer a extraordinária obra de Machado de Assis, os romances mais importantes parecem ser “Memórias póstumas de Brás Cubas” (1881) e “Dom Casmurro” (1900). O ro- mance “Quincas Borba” (1891) figura num modesto segundo plano, como que à sombra dos dois mais famosos, junto com “Esaú e Jacó” (1904) e

“Memorial de Aires” (1908), senão junto com o restante da obra, encoberto por um “etc.” irremediável.

É uma injustiça. De fato, a história de Rubião merece figurar entre as mais interessantes criações do gênio da literatura de língua portuguesa que foi Machado de Assis. Como nos mais famosos romances, também aqui as coisas se complicam para o leitor iniciante ou ingênuo, aquele que quer resumir o comentário a uma frase e parece querer sempre responder a ques- tões simples e diretas como “Qual é afinal a história?”. A história é a de Rubião (contada num ritmo brincalhão que se aproxima das “Memórias pós- tumas de Brás Cubas”, se bem que pode ser a história de um negociante inescrupuloso e sua parceira, unidos para trapacear um cidadão honesto e ingênuo – num esquema muito próximo de “Dom Casmurro”!); mas todo um universo de personagens será analisado, toda uma época brasileira será examinada. Para perceber isso, porém, é preciso entender alguns detalhes, que vamos agora comentar.

1

Publicado aqui apenas em parte, este texto pode ser encontrado na íntegra no livro “Macha- do e Borges e outros ensaios sobre Machado de Assis”, de Luís Augusto Fischer. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2008.

2

Doutor em Letras e professor de Literatura Brasileira na UFRGS. É autor de “Literatura Brasileira - Modos de usar” (ensaio), “Quatro negros” (novela) e “Dicionário de porto- alegrês”, entre outros.

FISCHER, L. A. Quincas Borba...

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SEÇÃO TEMÁTICA

UM – O NARRADOR

Machado de Assis, como se sabe, foi um revolucionário. Ele teria chegado ao ponto mais alto do romance brasileiro apenas com seu domínio de linguagem e talvez com alguns bons personagens; mas foi na técnica narrativa que ele realmente deixou sua marca na renovação do panorama de sua geração.

Entre os grandes romances, os da chamada segunda fase, predomi- na a narração em primeira pessoa, estratégia evidente em “Memórias póstu- mas”, em “Dom Casmurro” e em “Memorial de Aires”. Em “Esaú e Jacó”, se trata de uma história contada pelo mesmo Conselheiro Aires do último ro- mance, que comparece ali como personagem, mas o enunciado do relato aparece em terceira pessoa – o que resulta numa equação complexa e inte- ressante, que não seguiremos.

Finalmente, o caso de “Quincas Borba”. Aqui temos a única narração puramente feita em terceira pessoa, por uma voz que não participa da histó- ria. Mas esta voz narrativa se identifica claramente como o autor das “Memó- rias póstumas de Brás Cubas”, isto é, o próprio Machado de Assis, como aparece na abertura do capítulo 4. Tem cabimento isso?

É uma das tantas brincadeiras, das invenções de Machado de Assis. O que ele ganha com isso? Num nível simples, a resposta é: o leitor se obriga a lembrar ou até a consultar o romance anterior, que conta uma parte anterior da história de Joaquim Borba dos Santos, o Quincas. Num nível mais sofisticado, pode-se verificar outro ganho, outro rendimento estético: é que fazendo essa identificação explícita, Machado causa o que se chama de “estranhamento”.

Para nossos efeitos, pode-se definir “estranhamento” como o efeito de desacomodar o leitor mediante a alteração de uma das regras combina- das para o jogo. No caso de um romance do século 19, espera-se que a voz narrativa que se apresenta em terceira pessoa mantenha a ilusão de reali- dade que o leitor vai criando ao penetrar na história narrada. Ao mudar essa espécie de pacto com o leitor, a narração produz um sentido de desconfian- ça, de dúvida, até de perplexidade – de estranhamento: aquilo que era para ser familiar e convencional vira uma esquisitice.

Machado joga esse jogo com muita freqüência. Vejamos o exemplo a abertura do livro, primeiras linhas do primeiro capítulo, exemplarmente con- vencionais da manutenção deste pacto com o leitor:

“Rubião fitava a enseada – eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à ja- nela de uma grande casa em Botafogo, cuidaria que ele admira- va aquele pedaço de água quieta;”

E logo após esse trecho já o narrador altera um pouco essa placidez:

“Mas, em verdade, vos digo que pensava em outra coisa. Cotejava o passado com o presente. Que era, há um ano? Professor. Que é agora?

Capitalista.”

A alternância entre uma narração objetiva, focada no assunto e nos personagens, e uma narração não-objetiva, dispersiva e brincalhona, será a tônica de todo o romance “Quincas Borba”. Isso já deve nos alertar para a tensão entre a terceira pessoa, que domina sintaticamente o relato, e essa intromissão da voz narrativa: uma tensão entre objetividade e dispersão, que desacomoda o leitor o tempo todo.

Vejamos outro exemplo. No capítulo 28, depois daquele longo flashback que se inicia no capítulo 4 ao 27, Rubião está pensando no quanto sofre por gostar de Sofia, que é casada, se dá bem com o marido e, portanto, parece inacessível a ele, e vai soltar o cachorro que herdou do falecido filósofo. O brincalhão Quincas fica feliz com a chegada de amigo, e o narrador transita de um relato “sobre o cachorro” para o relato “a partir do ponto de vista do cão”:

“Aqui fareja, ali pára a coçar uma orelha, acolá cata uma pulga

na barriga, mas de um salto galga o espaço e o tempo perdido,

e cose-se outra vez com os calcanhares do senhor. Parece-lhe

que Rubião não pensa em outra coisa, que anda agora de um

lado para outro unicamente para fazê-lo andar também, e recu-

FISCHER, L. A. Quincas Borba...

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SEÇÃO TEMÁTICA

perar o tempo em que esteve retido. Quando Rubião estaca, ele olha para cima, à espera; naturalmente, cuida dele; é algum projeto, saírem juntos ou coisa assim agradável. (...) A vida ali não é completamente boa nem completamente má. Há um moleque que o lava todos os dias em água fria, usança do dia- bo, a que ele não se acostuma.”

Não é usual que um cachorro seja protagonista de cena, em romance de registro realista; mas Machado inventa até isso, fazendo seu narrador penetrar na percepção do próprio Quincas Borba.

Mais um exemplo ainda, do capítulo 69, o narrador volta a nos surpre- ender, causando aquele efeito de estranhamento por um outro motivo. Como se sabe, uma das regras da narração realista daquele tempo é a onisciência, a capacidade de saber tudo o que se passa em toda parte e em todos os tempos (passado, presente e futuro), com todo e qualquer personagem, seja em suas ações ou em sua intimidade psicológica. O narrador realista de terceira pessoa sabe mais do que cada personagem, porque pode dizer o que vai acontecer com ele dias depois e pode relatar o que se passa em suas reações ainda nem compreendidas pelo próprio personagem. Pois bem:

Machado faz seu narrador “não saber” coisas que ele, pela convenção realis- ta, “deveria saber”.

A cena é aquela em que Carlos Maria está declarando seu (pseudo) amor por Sofia, enquanto os dois valsam lindamente, à vista do enciumado Rubião e da prima Maria Benedita. Sofia, manejando aquela hipocrisia bur- guesa de quem sabe que está sendo cortejada, mesmo sendo casada, e mantém a pose, é surprendida por uma declaração explícita do conquistador Carlos Maria. Sofia só consegue murmurar um “Oh!”, nada mais. Aí vem o narrador dizer o seguinte, sobre o jeito da cortejada mulher:

“Com espanto? Com indignação? Com medo? São muitas perguntas a um tempo.”

Quer dizer: estamos na mão de um narrador de terceira pessoa mas não onisciente, que parece gostar de causar espanto no leitor, de vez em

quando brincalhão (como no capítulo 112). Um narrador pouco confiável, em suma, ainda que não seja tão espalhafatoso quanto a voz de Brás Cubas nem tão obsessivo quanto a lógica fria de Bento Santiago.

DOIS – O TEMPO

Outra fator de interesse em “Quincas Borba” é o modo como o tempo é relatado no romance. Em termos bastante amplos, a história contada man- tém uma trajetória linear, que começa em 1867 e acaba em 1871. Os fatos relatados respeitam essa ordem. Mas há uma série de peculiaridades.

Uma delas, que não é invenção de Machado mas pertence ao mais antigo legado da arte de narrar, é aquilo que ficou conhecido pela expressão inglesa flashback , que literalmente significa “iluminar para trás”, e se popu- larizou por causa do cinema. Trata-se daquela interpolação de um relato do passado no meio do fluxo do presente da história. O narrador de “Quincas Borba” usa bastante esse expediente. Às vezes se trata de um longo trecho, como o que foi mencionado antes, entre os capítulos 3 e 27; e às vezes se trata de um simples recuo para explicar algum antecedente da cena em curso, como no capítulo 57, que conta a história de Camacho. Um flashback importante acontece no capítulo 47, que relembra o episódio já antigo, de um enforcamento a que Rubião assistiu, depois de hesitar bastante (e que adi- ante será retomado, para comentário).

Mais inventivo ainda é outro aspecto do tempo, o ritmo. Ao longo do relato, o leitor fica meio atordoado com a sucessão das ações, em parte por causa delas mesmo, em parte porque o ritmo da narração é muito variado, oscilando de maneira assustadora. Começa que os capítulos apresentam tamanho enormemente diferente entre si. Há capítulos de uma frase, como o 114 (com apenas 15 palavras), mas há outros com páginas e páginas.

O ritmo da passagem do tempo em si também varia bastante. Do

capítulo 1 ao 50, tudo se passa no mesmo dia, o domingo em que Rubião fita

a enseada e pensa em Sofia, com aquele longo flashback mencionado; em

outros momentos, o narrador simplesmente avisa que se passou um largo

tempo – 15 dias, no capítulo 54, ou 8 meses, no capítulo 69. Em outros

FISCHER, L. A. Quincas Borba...

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momentos ainda, o tempo é psicológico: os capítulos 74 e 75 se passam quase exclusivamente na memória de Carlos Maria, quando ele rememora a declaração feita a Sofia.

Assim, pode-se dizer que o estranhamento que o narrador causa no leitor é reforçado por este manejo oscilante do tempo, que anda meio aos solavancos, com intensidades diferentes em variação aleatória, reforçando o desconforto e obrigando, por isso mesmo, à desacomodação do leitor.

SOBRE ESAÚ E JACÓ

Ana Costa

E saú e Jacó” é o penúltimo romance escrito por Machado de Assis, que joga com seu “narrador incerto” – como se expressa Lucia Perei ra –, entremeando lugares e tempos. Supostamente o narrador é o Conselheiro Aires, sendo anunciado no início do romance de que o mesmo teria deixado sete cadernos, descobertos depois de sua morte, e que com- punham seus diários: os seis primeiro numerados em romanos e o sétimo com a designação de “último”. Na abertura de “Esaú e Jacó” se anuncia que o romance que se começa a ler é este “último”, escrito por Aires. Primeiro paradoxo proposital: o que era último foi publicado primeiro, porque na reali- dade o último romance de Machado será o “Memorial de Aires”, composto pela construção das memórias do Conselheiro – o que seriam os seis cader- nos iniciais. No entanto, o narrador de “Esaú e Jacó” não é o mesmo de

“Memorial de Aires”: o relato deste último é como uma escrita de memórias.

Em “Esaú e Jacó” o narrador é um terceiro – “testemunha dos fatos”, como o autor gosta de propor – que toma também Aires como personagem. Ou seja, o suposto autor (Aires) é também personagem que está sendo narrado, du- plicado numa condição de testemunha dos acontecimentos. Pode-se aven- tar a hipótese de que Machado tenta brincar com seu próprio destino, desdo- brando seu último ato literário em dois tempos: no primeiro (“Esaú e Jacó”), o lugar de testemunha, um dos efeitos que sua literatura produz, tanto em relação aos costumes, quanto à História do Brasil; no segundo (“Memorial de Aires”), a memória como ficção. Pensando na função de testemunha, não concordo com algumas análises que propõem que o romance “Esaú e Jacó”

seria resultante da indecisão política de Machado. Mesmo que se o possa pensar calcado na própria experiência, a obra ultrapassa em muito as esco- lhas individuais, ou mesmo as idiossincrasias do autor.

A alusão direta do título do romance diz respeito a uma história bíbli- ca, do Antigo Testamento, que envolveu o casal Isaac e Rebeca. Como Rebeca

COSTA, A. Sobre Esaú e Jacó.

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era estéril, Isaac implorou a Jeová que lhe concedesse filhos. Concebendo gêmeos e sentindo-os lutar em seu útero, ela interroga a Deus que respon- de: “duas nações há no teu ventre, dois povos nascidos de ti, que se dividi- rão; um povo será mais forte do que outro e o mais velho servirá ao mais moço”. Na história bíblica, o ponto da disputa envolve a progenitura. Esaú – o mais velho – era preferido do pai. Foi assim que Rebeca e Jacó (que era o preferido da mãe) trapacearam e a progenitura acaba sendo dada a Jacó, o que provoca ódio e disputas.

Como na Bíblia, o romance também trata da história de gêmeos rivais, que disputam e brigam desde o útero. No entanto, o que se ressalta não diz respeito à briga pela progenitura. O que se ressalta é o tema do duplo, do idêntico. Nesse “idêntico”, Machado vai aproximá-los da mãe, mantendo o pai como provedor, à distância. E aqui se desenrola um palco de “entre ce- nas”: os amores privados se entrelaçam às paixões públicas. A ironia machadiana explode com as razões públicas, nessa “imixção” com o priva- do. Os gêmeos Pedro e Paulo defenderão, respectivamente, o Império – Pedro, seu defensor, permanece no Rio de Janeiro – e a República – de cuja defesa se incumbirá Paulo que, por seu turno, receberá sua formação em São Paulo, para onde se desloca, na história de nosso País, um eixo do poder. Como não poderia deixar de ser, Pedro se forma em medicina e Paulo em direito. Como também não poderia deixar de acontecer, apaixonam-se pela mesma mulher. Machado relata com ironia a antecipação desse evento por uma suposta leitora que o estaria interpelando:

“Eis aqui entra uma reflexão da leitora: “Mas se duas velhas gravuras os levam a murro e sangue, contentar-se-ão eles com a sua esposa? Não quererão a mesma e única mulher?”

O que a senhora deseja, amiga minha, é chegar já ao capítulo do amor ou dos amores, que é o seu interesse particular nos livros... Franca- mente, eu não gosto de gente que venha adivinhando e compondo um livro que está sendo escrito com método.” (p. 910)

Com esse preâmbulo, o autor vai introduzindo a personagem Flora,

que, como as principais personagens femininas machadianas, é capturante.

Começa descrevendo os pais de Flora, para situá-los como políticos de oca- sião. A mulher cuidando de que o marido estivesse sempre no poder, não interessando convicções políticas. Machado parece sugerir que a indecisão de Flora resulta um pouco dessas posições de seus pais:

“Quem a conhecesse por esses dias, poderia compará-la a um vaso quebradiço ou à flor de uma só manhã... Já então possuía os olhos grandes e claros, menos sabedores, mas dotados de um mover particular, que não era o espalhado da mãe, nem o apagado do pai, antes mavioso e pensativo, tão cheio de graça que faria amável a cara de um avarento. Põe-lhe o nariz aquilino, rasga-lhe a boca meio risonha, formando tudo um rosto compri- do, alisa-lhe os cabelos ruivos, e aí tens a moça Flora.”

A imagem “a flor de uma só manhã” – que também faz referência ao nome próprio “Flora” – contrasta com outra: “a flor eterna” que Aires carrega- va na lapela. Machado parece compor nesses personagens um certo contraponto, que se arma como trama, que se arma como enredo, mas que coloca em causa o trabalho de um impossível. Esse impossível Machado vai desdobrando na construção dos costumes e histórias do Brasil, na passa- gem Império/República. Cada personagem realiza como imagem – logo, como narrativa de vida – algo que nesse momento problematizou os lugares e ideais sociais. Eles são construídos para transmitirem ao leitor muito mais que as impotências cotidianas, que resultam das indefinições subjetivas de cada um em relação ao seu desejo. Eles são construídos para transmitirem o ponto no qual se conjugam sujeito e laço social.

A instabilidade da amarração do laço social, que se traduzia como

instabilidade político-institucional na sociedade narrada, parece ter dado

margem ao que de pior as fragilidades humanas podem produzir. Em condi-

ções assim evidencia-se um certo retorno do que em psicanálise se designa

como “originário”, onde o sujeito fica confrontado com absolutos, sem medi-

COSTA, A. Sobre Esaú e Jacó.

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ação. Esse retorno diz respeito não tanto aos dramas e querelas que nos inibem, ou mesmo angustiam, dentro do desenrolar normal do cotidiano, mas às condições mesmas de enunciação. Ou seja, diz respeito às condi- ções necessárias para que cada um de nós possa tomar a palavra falando em nome próprio. Tentemos desdobrar um pouco isso.

Pode parecer tão evidente e natural nossa ação corriqueira de tomar a palavra, mas esse ato é bastante complexo e determinado por questões das quais não temos consciência. Por exemplo: para que falemos o princípio básico é o de supormos que seremos escutados. Mesmo que não sejamos escutados por nosso interlocutor da ocasião, precisamos falar em nome de alguma coisa – esse “algo” que nos dá a certeza de que podemos falar, mesmo quando não somos escutados num determinado momento qualquer.

Se essas condições antecipadas da necessidade de falar não estiverem constituídas (psiquicamente) podemos emudecer, nas diferentes formas de mutismo sintomático. Então, falar em nome de “algo” é um ato de afirmação que nos permite tomar a palavra, dirigindo nossas escolhas. E aqui acontece uma coisa curiosa: originariamente, na nossa infância de exercícios de re- presentação – na nossa infância de palavras – o ato de afirmação se dá por um movimento de negação. Isso porque, na nossa infância de palavras, nós as deixamos entregues ao nosso Outro cuidador, esse que nos ensinou a falar. Assim, o movimento de diferenciação, em relação a esse Outro, se dá primeiro como negação, como um primeiro “não é eu”. Então, veja-se como é curioso, para afirmar “eu”, precisamos dizer primeiro “não é eu”.

Estas questões de relações com a linguagem trazem as possibilida- des de compartilhar diálogos entre psicanálise e literatura. Ou seja, a psica- nálise – tal como a entendo – não se propõe a analisar psicologias, nem do autor, nem dos personagens. É pelos jogos de linguagem e posições enunciativas – o narrador, por exemplo – que poderemos tecer nossos diálo- gos.

Retomando o romance, desde o ponto em que o deixamos, temos Flora e Aires como contrapontos. E contrapontos na questão fundamental que acabo de situar: os caminhos tomados por cada um a partir da impossi-

bilidade de afirmação da própria posição. É dessa maneira que Machado caracteriza os dois personagens. Aires resolve a impossibilidade pela arte de corresponder ao que o outro espera: ou seja, afirma desde a imagem do outro do espelho. É reconhecendo em Flora algo de sua irresolução que ele a observa e lhe dá o adjetivo de “inexplicável”. E aqui nos encontramos com a personagem Flora, que surge como uma resolução literária da impossibili- dade de afirmação. Flora, apaixonada pelos gêmeos, vê o mesmo no duplo e o duplo no mesmo. Impossibilitada de escolher, aprisionada no vazio de si mesma, que a ausência de diferenciação provoca, ela sucumbe e morre.

Todo esse movimento de ausência de centro, de indiferenciação, do excesso do “duplo”, da afirmação pelas bordas e da dupla negação como índice de afirmação, é o movimento de construção dessa obra por Machado. Assim, a leitura da obra nos leva à experiência da impossibilidade de afirmação, colo- cada nas próprias construções da linguagem machadiana. Ou seja, a obra não usa a linguagem como uma ferramenta de observação de uma realidade que quer demonstrar e fazer surgir perante nós. Na obra, a linguagem é a própria experiência da situação que está sendo transmitida. Assim, apesar da “cor local”, do contexto específico de um tempo histórico, do drama sin- gular das personagens, a obra de Machado é atemporal e universal. É a produção da linguagem como produção da experiência que ela visa.

Por esse caminho vamos encontrar inúmeras pérolas. Uma delas en- carnada por Natividade, cujo nome já nos indica a redução à sua função – ser A MÃE. Natividade, diferente de Flora, mesmo que complementar, não preci- sa escolher entre Pedro e Paulo. Pelo contrário, ela trata sempre de uní-los, consternando-se com qualquer índice de discordância entre ambos. É assim com a leitura de uma carta de Paulo louvando a abolição da escravatura, quando ela acha uma frase que pode ofender ao imperador: “emancipado o preto, resta emancipar o branco”. Machado expressa essa ausência de cen- tro de referências com a seguinte construção:

“Não atinou que a frase do discurso não era propriamente do

filho; não era de ninguém. Alguém a proferiu um dia, em discur-

COSTA, A. Sobre Esaú e Jacó.

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so ou conversa, em gazeta ou viagem de terra ou de mar. Ou- trem a repetiu, até que muita gente a fez sua. Era nova, era enérgica, era expressiva, ficou sendo patrimônio comum.

Há frases assim felizes. Nascem modestamente, como a gen- te pobre; quando menos pensam, estão governando o mundo, à semelhança das idéias. As próprias idéias nem sempre conser- vam o nome do pai; muitas aparecem órfãs, nascidas de nada e de ninguém. Cada um pega delas, verte-as como pode, e vai levá-las à feira, onde todos as têm por suas.”

Nesse trecho encontramos o fundamento da reversão da experiência que a escrita do romance vai propor. Isso se coloca na passagem de um

“Esaú e Jacó” da tradição bíblica, que trazia a referência da progenitura, o que implicava falar em nome do pai a partir de um patriarca, para o descentramento, na nossa experiência, das referências da fala. É a experi- ência desse descentramento que Machado transmite, trazida pelas constru- ções de linguagem. Uma delas é a enunciação pelas bordas, nunca afirman- do de forma direta, como na descrição de Flora: ao escrever “alisa-lhe os cabelos ruivos”, ele contrasta pelo menos duas imagens – liso e ondulado – que ali permanecem na definição do cabelo da personagem. Ou mesmo na experiência do duplo, quando o que se expressa é essa soldagem do “dois”, definindo-se mutuamente por contrastes. Nesse sentido, cada um não se define senão a partir do outro. Também se expressa na dupla negação, onde a colocação de dois “não”s, relativos a uma mesma questão, permite uma afirmação. Essas construções encontram seu ápice a partir da personagem Flora e sua “fusão, difusão, confusão” na relação com os gêmeos, nas suas alucinações:

“Esse fenômeno não creio que possa ser comum. Ao contrário, não faltará quem absolutamente me não creia, e suponha in- venção pura o que é verdade puríssima. Ora, é de saber que, durante a comissão do pai, Flora ouviu mais de uma vez as

duas vozes que se fundiam na mesma voz e mesma criatura...

Quando ouvia os dous, sem os ver, a imaginação acabava a fusão do ouvido pela da vista, e um só homem lhe dizia palavras extraordinárias.

Tudo isto não é menos extraordinário, concordo. Se eu consul- tasse o meu gosto, nem os dous rapazes faria um só mancebo, nem a moça seria uma só donzela. Corrigiria a natureza desdo- brando Flora. Não podendo ser assim, consinto na unificação de Pedro e Paulo.”

Mais adiante, o delírio se faz poesia e o que era negação da experiên- cia, na impossibilidade de afirmação de uma escolha, torna-se afirmação poética na narrativa:

“Dito o fenômeno, é preciso dizer também que Flora, a princí- pio, achava-lhe graça. Minto; nos primeiros tempos, como es- tava longe, não lhe achou nada; depois, sentiu uma espécie de susto ou vertigem, mas logo que se acostumou a passar de dous a um e de um a dous, pareceu-lhe graciosa a alternação, e chegava a evocá-la com o propósito de divertir a vista. Afinal nem isto era preciso, a alternação fazia-se de si mesma.”

Para finalizar, deixo-os com o início do romance. Duas irmãs sobem um morro para consultar uma adivinha – a cabocla do Castelo – a respeito do destino dos gêmeos. Seus nomes: Natividade e Perpétua. Ou poderíamos dizer Vida e Morte? Na mediação de ambas – vida e morte – a sabedoria do oráculo, na descrição da cabocla Bárbara, como ponto de enunciação de enigma do feminino. Nisso Machado também foi brilhante: deixa-nos a expe- riência do prazer e da vertigem na maravilhosa descrição do feminino como enigma. Bárbara, ou mesmo Flora, não chegam a ser uma Capitu, mas, em todo caso, nos fazem a vida como poesia:

COSTA, A. Sobre Esaú e Jacó.

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SEÇÃO TEMÁTICA

“Bárbara entrou... Era uma criaturinha leve e breve, saia borda- da, chinelinha no pé. Não se lhe podia negar um corpo airoso.

Os cabelos, apanhados no alto da cabeça por um pedaço de fita enxovalhada, faziam-lhe um solidéu natural, cuja borla era suprida por um raminho de arruda. Já vai nisto um pouco de sacerdotisa. O mistério estava nos olhos. Estes eram opacos, não sempre nem tanto que não fossem também lúcidos e agu- dos, e neste último estado eram igualmente compridos; tão compridos e tão agudos que entravam pela gente abaixo, revol- viam o coração e tornavam cá fora, prontos para nova entrada e outro revolvimento. Não te minto dizendo que as duas sentiram tal ou qual fascinação.”

SINGULAR OCORRÊNCIA (A NOSTALGIA DA LAMA) 1

Lucia Serrano Pereira

D ois amigos conversam perto da Igreja da Cruz; um aponta ao outro a mulher de preto que entra na igreja, e trata de narrar-lhe o episódio.

Agora, diz ele, ela deve estar pelos quarenta e seis; conservada, comentam. Hoje deve chamar-se Maria de tal, na época florescia com o nome de Marocas... Linda, “não era costureira, nem proprietária, nem mes- tra de meninas; vá excluindo as profissões e lá chegará”

2

.

Andrade, ele segue, um rapaz de 26 anos na época, seu amigo, era

“meio advogado, meio político”, casado com uma mulher bonita, afetuosa (e resignada). No diálogo, o outro pergunta “– Apesar disso, a Marocas...?” Ao que o personagem-narrador responde rapidamente: “É verdade, dominou-o”

3

. E conta como se deu o encontro: Marocas vinha pela rua, no Rocio

4

, Andrade se alvoroça com a aproximação da mulher bonita; ela faz como quem procu- ra algo na rua, parando e olhando. Detém-se perto de Andrade e, com vergo- nha e medo, estende a ele um pedacinho de papel, perguntando onde ficava o número que ali estava escrito; Andrade deu as explicações, “ela cortejou com muita graça; ele ficou sem saber o que pensasse da pergunta”

5

(assim como eu estou, comenta o amigo que escuta a narrativa).

Era simples, Marocas não sabia ler, mas Andrade não se deu conta, na ocasião. À noite foi ao Ginásio, estava dando a “Dama das Camélias”, ele

1

Fragmento da tese de doutorado em Letras-Literatura Brasileira, UFRGS, 2008; texto a ser publicado no livro “O conto machadiano: uma experiência de vertigem, psicanálise e ficção”

, em edição da Cia de Freud, setembro 2008.

2

ASSIS, Joaquim M. Machado de. “Singular ocorrência”. In: ASSIS, Joaquim M. Machado de.

Obra Completa. Volume II. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1997. p. 390.

3

Ibidem, p. 390.

4

O Rocio era como se chamava, familiarmente, a atual Praça Tiradentes no Rio de Janeiro.

5

ASSIS, Joaquim M. Machado de. “Singular ocorrência”. In: ASSIS, Joaquim M. Machado de.

Op. Cit., p. 390.

PEREIRA, L. S. Singular ocorrência...

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vê Marocas que chora como criança, no último ato. Foi o suficiente, ao final de quinze dias amavam-se loucamente; ela dispensa os outros namorados (e havia “alguns capitalistas” bem bons); passa a viver para ele. Andrade, por sua vez, se faz professor, ensinando Marocas a ler e escrever. Nosso narrador convive com o casal, mas vai aos feriados com Andrade e, claro, com a família do amigo.

Marocas, ao despedir-se, recordou a comédia que ouvira algu- mas semanas antes no Ginásio – Janto com minha mãe – e disse-me que, não tendo família para passar a festa de S. João, ia fazer como a Sofia Arnoult da comédia, ia jantar com um retrato; mas não seria o da mãe, porque não tinha, e sim o do Andrade.

6

Andrade, presente ao comentário, “Pegou-lhe na cabeça com ambas as mãos, e, paternalmente, pingou-lhe o beijo na testa”

7

.

Dela só tem elogios, diz da modéstia da moça que só aceita o neces- sário para suas despesas, pensa até em encontrar uma casa para ela “em algum arrabalde” assim que tenha dinheiro. O amigo reforça a idéia – já ouviu falar que ela andou empenhando as jóias para pagar a costureira. Ora, o amante fica comovidíssimo. Volta do feriado, Andrade deixa a família na Lapa e vai ao trabalho. Pouco depois do meio dia, ele encontra Leandro, um tipo meio reles e vadio, ex-agente de outro advogado. Leandro lhe pede um di- nheiro, Andrade cede, nota que Leandro está muito risonho e resolve pergun- tar o motivo. “O Leandro piscou os olhos e lambeu os beiços”

8

.

Aqui a narrativa do episódio faz um pequeno break , volta ao presente, os dois (o narrador-personagem e o amigo atual) vendo Marocas (agora Ma-

ria) saindo da Igreja, elogiam sua beleza, seu porte de duquesa. O que narra comenta “–Não olhou para cá; não olha nunca para os lados. Vai subir pela Rua do Ouvidor...”

9

. Volta à narrativa: Leandro diz a Andrade dizendo do acontecimento extraordinário da noite anterior; o encontro no Rocio com uma dama vestida com simplicidade, bonita, vistosa de corpo, que caminha atrás dele, e que “ao passar rentezinha a ele fitou-lhe muito os olhos, e foi andando, devagar, como quem espera”

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. Leandro achou que, apesar da sim- plicidade, ela era demais para ele, mas ela insistiu, “Foi andando; a mulher, parada, fitou-o outra vez, mas com tal instância, que ele chegou a atrever-se um pouco; ela atreveu-se o resto...” Ah! Um anjo! E que casa, que sala rica!

Cousa papa-fina. E depois, o desinteresse...”

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. Leandro diz ainda: “–Era na Rua do Sacramento, número tal...”

Andrade se desespera, não acredita, Leandro afirma a veracidade dos fatos, Andrade, ferido, propõe pagá-lo em vinte mil-réis para ir à casa da moça e confirmar tudo em sua presença. Vão, acontece a cena, Marocas empalidece ao ver Leandro que confirma ser aquela a moça, “com voz sumi- da, porque há ações ainda mais ignóbeis do que o próprio homem que as comete”

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. Andrade fica fora de si, “ela rojou-se-lhe aos pés, agarrou-lhe as mãos, lacrimosa, desesperada, ameaçando matar-se; e ficou atirada ao chão, no patamar da escada; ele desceu vertiginosamente e saiu”

13

.

Voltando ao diálogo dos dois amigos: “Na verdade, um sujeito reles, apanhado na rua; provavelmente eram hábitos dela? – Não. – Não?”

14

.

Andrade procura o amigo, tenta fugir à realidade, mas esta vinha a ele, a palidez de Marocas, a sinceridade de Leandro. O narrador-personagem diz

“Quanto a mim, cogitava na aventura, sem atinar com a explicação. Tão

6

ASSIS, Joaquim M. Machado de. “Singular ocorrência”. In: ASSIS, Joaquim M. Machado de.

Op. cit., p. 391.

7

Ibidem, p. 391.

8

Ibidem, p. 392.

9

Ibidem, p. 392.

10

ASSIS, Joaquim M. Machado de. “Singular ocorrência”. In: ASSIS, Joaquim M. Machado de.

Op. cit., p. 392.

11

Ibidem, p. 392.

12

Ibidem, p. 393.

13

Ibidem, p. 393.

14

Ibidem, p.393.

PEREIRA, L. S. Singular ocorrência...

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SEÇÃO TEMÁTICA

modesta! Maneiras tão acanhadas!” O outro responde: “–Há uma frase de teatro que pode explicar a aventura, uma frase de Augier, creio eu: ‘a nostal- gia da lama’. – Acho que não, mas vá ouvindo”

15

.

O conto caminha para a conclusão, Marocas desaparece, a criada pede ajuda a Andrade, por fim a encontram no outro dia profundamente aba- tida em um hotelzinho barato. Caíram nos braços um do outro, nada se explicou, Andrade a instalou em uma casinha no Catumbi, ainda tiveram um filho que morreu aos dois anos. Depois de algum tempo, morre Andrade, Marocas pôs luto, se considerou viúva. Passam-se os anos e os dois ami- gos terminam o diálogo:

– Pois senhor, é curioso. No meio de uma paixão tão ardente, tão sincera... Eu ainda estou na minha; acho que foi a nostalgia da lama.

– Não: nunca a Marocas desceu até os Leandros.

– Então porque desceria naquela noite?

– Era um homem que ela supunha separado, por um abismo, de todas as suas relações pessoais; daí a confiança. Mas o acaso, que é um deus e um diabo ao mesmo tempo... Enfim, cousas!

16

Singular ocorrência, o título do conto, se diz como algo de certa ma- neira trivial, como uma curiosidade, mas que ao mesmo tempo, no recorte, vai circunscrever um enigma que envolve os dois homens – o Outro sexo, suas hipóteses, e uma interrogação que não se resolve preto no branco. É como um comentário en passant que a cena se arma, na circunstância de ver a mulher que entra na igreja, enquanto “se joga conversa fora”, na rua.

Fala-se de Andrade e Marocas.

A lembrança vai ao tempo em que Andrade além de “meio advogado, meio político” (o que já chama atenção sobre uma certa vacilação das posi- ções às quais ele responde) é apresentado, pela lógica que Machado impri- me, como “meio casado” – tinha uma mulher bonita, afetuosa e, aí o detalhe discreto no contraste: “resignada”. Por que resignada? Machado nos leva a adicionar mais um elemento na série dos meios, lógico, “meio mulherengo”.

Marocas, por sua vez, é dita econômica e suficientemente em uma palavra: ela “florescia”. Flor que rapidamente se alinha no suposto sugerido da camélia; assim como Margarida Gautier, a Dama das Camélias, ela tem a origem na promiscuidade e na prostituição: “...vá excluindo as profissões e lá chegará”. Esses poucos traços destacados de um e de outro são suficien- tes para dar o tom do encontro; fica claro que Andrade já se apresentou, em seu alvoroço, antecipando a aproximação daquela mulher bonita, na rua, como aquele que estaria sensível à abordagem, e, nesse sentido, é ele quem se oferece à Marocas; ela, nesse primeiro momento, faz o exercício de seu ofício, mapeia, e, mais do que se oferecer, efetivamente o escolhe. O drama dentro do conto. Encena-se a Dama das Camélias, no teatro do Rio, ambos assistem, ele a observa: ela chora, se identifica. A história se delineia, Marocas será devotada a Andrade como Margarida a Armando, com todos os sacrifíci- os, dispensando os bons capitalistas que a sustentam, merecendo a pureza do beijo na testa. É como Margarida que empenha todos os seus bens, os diamantes, devolve os cavalos comprados a crédito, vende sua linda capa, tudo para pagar suas dívidas e deixar a “vida anterior”. Marocas, por sua vez, penhora suas jóias para pagar a prosaica conta da costureira, também em silêncio, sem queixa. Margarida, apesar de todas as renúncias, sabe muito bem o seu lugar: “[...] quero tomar-lhe o coração, nunca hei de lhe tomar o nome. Há coisas que uma mulher não apaga de sua vida, Nichette, e que dariam ao marido o direito de censurá-la”

17

. A “Dama das Camélias”, impor-

15

Ibidem, p. 393.

16

ASSIS, Joaquim M. Machado de. “Singular ocorrência”. In: ASSIS, Joaquim M. Machado de.

Op. cit., p. 395.

17

DUMAS FILHO, Alexandre. A dama das camélias. São Paulo: Brasiliense, 1965. p. 56.

PEREIRA, L. S. Singular ocorrência...

(19)

SEÇÃO TEMÁTICA

tante lembrar, estreou em Paris em 1852, e fez sucesso no Rio de Janeiro, em 1856. Segundo Gledson

18

, a regeneração por amor da cortesã Margarida Gautier suscitou, na época, vários contra-ataques, dos quais a peça de Émile Augier foi um dos mais conhecidos. Em Augier

19

, ”la nostalgie de la boue”

tem a ver com a personagem Olympe Taverny, ex-cortesã, que casa com um conde, mas que por tédio ou “nostalgia da lama”, retoma seus antigos rotei- ros.

Duas posições antagônicas, marca João R. Faria, em seu texto “Sin- gular ocorrência teatral”

20

, onde examina o conto na relação às três peças em movimento, na intertextualidade. Em Dumas, a virtude que pode ser en- contrada e resgatada da “lama”; em Augier, se trata da posição conservado- ra, com a qual Machado não concorda

21

, enunciada na peça pela voz do marquês que afirmará que um pato levado a um lago de cisnes inevitavelmen- te sentindo falta de seu charco, voltará a ele. Otto Maria Carpeaux faz tam- bém o assinalamento da diferença entre Dumas e Augier; dizendo que este previne os pais contra o perigo das aventuras eróticas para os filhos, o que poderia corromper a família, enquanto Dumas Filho fazia a defesa da “liber- dade erótica dos filhos contra as convenções rigorosas da família francesa, das quais a ’prostituta virtuosa’ se torna a vítima”

22

.

Em “Singular ocorrência”, um elemento a mais: a moça não era uma cortesã nos moldes europeus, ligada à riqueza e ao luxo que circulam nas altas rodas, e sim uma prostituta pobre em sociedade de origem colonial e escravocrata. Os lugares na circulação social estão bem delimitados, é pa- cífico que o feriado de Andrade é com a família; Marocas aceita o fato com humor – vai jantar com o retrato – e sem nenhuma reivindicação. Ele como- ve-se com a situação de Marocas, apontada pelo amigo (em conversa, con- fortavelmente entre os seus, nas festas da família, bem claro), ali aparece a solução devida, o lugar merecido a ser coroado com... uma casinha no arrabalde.

O bom equilíbrio se perde quando irrompe a simultaneidade dos funci- onamentos, as “faces” bem separadas apresentam o moebiano de seu movi- mento: repentinamente tudo se desorganiza. O que era da ordem da promis- cuidade estava confinado pela ordem temporal, era coisa do passado; reapa- rece ali no tempo onde nada é reivindicado por Marocas, mas que produz um intervalo, o tempo do feriado, uma volta a mais que permite que o avesso entre em cena.. Os lugares ocupados por cada um entram em vertigem:

Andrade que era tão amoroso e protetor (dentro dos contornos possíveis de sua circunstância) não economiza na crueldade; Leandro representado no sumidouro da voz que atesta o efeito da ação que o confirma em um lugar reles; Marocas em desespero se desgarra pela cidade, como se deixando morrer de dor, indo para um lugar qualquer em abandono, depois de ter se deixado tomar pelo circuito de um gozo que a fez repetir pontualmente o passeio pelo Rocio. Disso, do gozo, não se tem dúvida, Marocas escolhe Leandro porque não pode escapar disso que acontece disparado por um olhar, pelo “olhar intenso”, nada a ver com romance. Leandro fica perplexo, abalado com o desinteresse dela ao final. Não se tratava mesmo de Leandro, mas sim de “um” Leandro, um que permitisse que algo outro emergisse, essa face que se supunha “separada” do mundo de Marocas com Andrade por um abismo.

Machado realiza no conto a experiência da coexistência, e nisso a desarticulação da suposta dupla face. Ela reúne a mulher pura que o amor

18

Nota de John Gledson. In: ASSIS, Joaquim M. Machado de. Contos: uma antologia. Vol. II.

São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 51.

19

A peça de Augier, em questão, se intitula Le marriage d’Olympe, tendo sido traduzida para o português em 1857. A partir da pesquisa realizada por John Gledson sabemos que a peça foi proibida pela censura naquela época; mais adiante, em 1880, foi representada no Rio, com sucesso.

20

FARIA, João. “Singular ocorrência teatral”. In: Revista da USP de junho, julho, agosto de 1991, p. 161.

21

Segundo João Roberto Faria o Casamento de Olympia foi comentado por Machado de Assis em uma crônica escrita em 8 de janeiro de 1860, onde ele estabelece diálogo entre esta e as idéias de Dumas filho.

22

CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental, vol. V. Rio de Janeiro: Alhambra, 1978. p. 2124.

PEREIRA, L. S. Singular ocorrência...

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