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Estud. av. vol.18 número50

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Academic year: 2018

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ESTU DO S AVANÇADO S 18 (50), 2004 311 LÓ VIS MO U RA era uma personalidade

transitiva, se é que se pode usar tal ex-pressão para definir a sua admirável capaci-dade de ser, simultaneamente, sem emba-ralhar os limites, branco e negro, militante e intelectual, historiador e sociólogo, jorna-lista e cientista social.

Do ponto de vista racial, ele era mestiço, resultado de duas linhagens: uma nórdica, outra afro. Embora seus traços revelassem muito mais a sua ascendência branca, ele preferiu assumir-se como negro. E foi co-mo tal que participou ativamente de todas as iniciativas que buscavam alterar as con-dições desfavoráveis do negro na sociedade brasileira, entre as quais ganha relevo o Movimento Negro Unificado (MNU ), no início da última década de 1980.

Embora autoconfessadamente negro e militante, nunca permitiu que a sua refle-xão intelectual fosse, de alguma forma,

contaminada por tais características. Esta foi uma das lutas admiráveis de Clóvis Moura: a luta pela objetividade científica e a luta para não trair, por assim dizer, seus compromissos políticos com a gente que ele elegera como sendo a sua gente.

Sua derradeira contribuição foi o Dicio-nário da escravidão negra no Brasil, a ser publicado brevemente pela Edusp.

Clóvis Moura, como que prevendo a sua morte, que ocorreria às vésperas do Natal, solicitou-me, há alguns meses que, pelo menos, lhe desse a conhecer o prefácio que a seu pedido eu fizera e que transcrevo a seguir:

Clóvis Moura é um cientista social bri-lhante e disciplinado que sempre correu por fora da academia – solto, livre, nas fran-jas da interdisciplinaridade –, ainda que a academia brasileira tenha constantemente solicitado a sua presença em eventos,

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último legado de Clóvis Moura

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Clóvis Steiger de A ssis Moura (1925-2003) em seu escritório em 1961.

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ESTU DO S AVANÇADO S 18 (50), 2004 312

ferências, seminários e, especialmente, em exames de teses na qualidade de professor “notório saber”, título que há anos lhe foi outorgado pela Universidade de São Paulo. E, assim, trabalhando nessa nesga não-institucional, onde as costumeiras dificul-dades de pesquisador aumentam, consi-deravelmente, Clóvis Moura foi construin-do, ele com ele, nos recantos de sua rica biblioteca, vasta e notável obra – histórica e sociológica – sobre a saga heróica do negro-escravo e do negro-quase-cidadão na sociedade nacional. Todos os estudiosos da questão racial brasileira estão familiari-zados com seus livros, cujos títulos cons-tam obrigatoriamente das bibliografias dos estudos que vão surgindo, por se constituí-rem em referências indispensáveis às refle-xões científicas sobre essa temática a um só tempo tão apaixonada e tão apaixonante.

Como que coroando essa extensa traje-tória intelectual, o historiador Clóvis Mou-ra presenteia-nos, agoMou-ra, com o seu

Dicio-n ário da escravidão Dicio-n egra Dicio-n o Brasil,

elaborado, solitariamente, ao longo de trinta anos. Casualmente, esse estudo parece vir compor uma tendência intelec-tual-editorial que se observa atualmente entre nós, de se publicarem dicionários sobre aspectos ou temas específicos da vida nacional. Tais são os dicionários de sobre-nomes, gêneros, fotografias, filosofia, fatos e personagens de períodos históricos brasileiros etc. Embora expressando o momento atual de preocupações por essa espécie de literatura, esses dicionários transcendem as históricas questões de lín-gua para se constituírem em inventários de conhecimentos críticos a respeito de te-mas negligenciados pelos registros de uma historiografia linear, ortodoxa.

O dicionário elaborado por Clóvis Moura desenha-se, admiravelmente, nesse painel. O fôlego de historiador, já testado em seus numerosos livros, está presente nas

centenas de verbetes (alguns são verda-deiras teses) que não apenas sistematizam e complementam o que se sabe sobre o regime escravocrata, mas trazem informa-ções que irão permitir ao leitor formar uma opinião mais nuançada a respeito desse sistema de exclusão – humana, social e cultural – que dominou, soberano, durante quase quatro séculos da história brasileira. O autor trabalha com dois mundos que se complementam, embora quase sempre se distanciem num jogo dialético inerente ao próprio sistema. De um lado, o Brasil escravocrata, com seu arcabouço jurídico-legal a legitimar o escravismo e as suas pas-sagens históricas – simpáticas e não-simpá-ticas ao regime –, com seus atores sociais mais expressivos e seu esquema de poder senhorial hegemônico, quase sempre sinô-nimo de mundos dos brancos. De outro lado, o Brasil escravizado, constituído de negros anônimos, que constroem a nação com seus braços, lutam, a seu modo, pela sua emancipação e pela dissolução do regi-me servil, enquanto preservam, criam ou recriam os elementos culturais que iriam mais tarde, séculos depois, dar a marca do que viria a ser a chamada e aclamada cultura brasileira. Jornada difícil para autores que, como Clóvis Moura, se propõem a resgatar e dar visibilidade a fatores e atores sociais fugi-dios, apagados que foram das cenas histó-ricas privilegiadas pela historiografia con-vencional.

É como se Clóvis Moura trabalhasse com o direito e o avesso da história para, a partir daí, dar ao leitor uma visão mais orgânica e mais crítica desse cruel período da sociedade brasileira, cujas marcas se prolongam até os dias atuais.

Referências

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