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DO CAMPO À CIDADE: MODERNIZAÇÃO URBANA EM TERRA LAVRADA, DE ACÁCIO RIBEIRO VALLIM

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DO CAMPO À CIDADE: MODERNIZAÇÃO URBANA EM TERRA LAVRADA, DE ACÁCIO RIBEIRO VALLIM

Ewerton de Freitas Ignácio (UEG – Anápolis)

ewertondefreitas@uol.com.br

INTRODUÇÃO

Paulista de São João da Boa Vista, Acácio Ribeiro Vallim, além de médico, dedicou-se à tarefa de criar obras literárias, dentre as quais se destaca o romance Terra lavrada, publicado em 1972, cujo enredo circunstancia a história do surgimento de um povoado às margens da ferrovia Sorocabana, presumivelmente em fins do século XIX, uma vez que não há uma menção direta ao tempo cronológico mas narram-se eventos ligados às primeiras revoltas ocorridas no estado de São Paulo no primeiro quartel do século XX. Com a cotidiana chegada de pessoas interessadas em cultivar a terra ou se dedicar ao comércio urbano, rapidamente o povoado passa a cidadela e, logo depois, já se configura como uma cidade próspera e promissora, a cidade de Araçaí.

Lida nessa perspectiva, a história do surgimento e do crescimento de Araçaí parece metaforizar, de modo extremamente positivista, o processo de modernização urbana que se verificou, em meados do século XX, em muitas cidades brasileiras. Não obstante, não se deve esquecer – embora isso seja mencionado na obra por meio de tintas rápidas, sem maiores problematizações – de que o crescimento e desenvolvimento tecnológico da cidade retratada em Terra lavrada só possível à custa de muito sofrimento por parte dos indígenas habitantes da região do rio Paranapanema, na divisa entre São Paulo e Paraná, que foram efetivamente dizimados, sendo as matas em que viviam, e da qual retiravam o seu sustento, transformadas em pastagens e em espaço para a produção cafeeira.

OBJETIVOS

1) Estudar o modo como se efetivam as relações entre campo e cidade no romance Terra lavrada, de Acácio Ribeiro Vallim;

2) Averiguar as relações entre campo e cidade no romance supracitado;

3) Analisar a representação das modulações de um processo de modernização urbana que a cidade e seus habitantes vivenciam;

METODOLOGIA

A partir do momento em que se deu a aprovação do projeto de pesquisa, as atividades circunstanciadas no “cronograma de execução” começaram, imediatamente, a serem desenvolvidas. Para tanto, fizeram-se necessárias algumas leituras teóricas, uma vez que se trata da análise de uma obra que não se valida sem o apoio de uma bibliografia teórica específica.

Dessa forma, para a consecução dos objetivos da pesquisa, quais sejam analisar a maneira pela qual o espaço rural dialoga com o contexto urbano em Terra lavrada, foi pensada e posteriormente aplicada a seguinte metodologia: leitura atenta da obra em

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análise, após o que se procedeu ao início da pesquisa bibliográfica, por meio de cuja execução nos foi possível compreender e assimilar a corpus teórico da pesquisa.

Num segundo momento, deu-se a aplicação da teoria assimilada ao estudo da obra em análise. Ressaltem-se, nesse sentido, os seguintes autores, cujas obras servem como embasamento teórico-crítico à análise do romance em estudo: Osman Lins, com Lima Barreto e o espaço romancesco (1978) e a Antonio Dimas, com Espaço e romance (1997), obras que tratam da representação espacial de narrativas em prosa. Renato Cordeiro Gomes, com Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana (1994) e Fernando Cerisara Gil, com O romance da urbanização (1999), textos que versam sobre a questão da legibilidade do urbano por meio da leitura de textos ficcionais. Lewis Mumford, com A cidade na história (2004), Bárbara Freitag, com Cidade dos homens (2002) e Raquel Rolnik, com O que é cidade (1988), obras que versam tanto sobre a cidade como constructo histórico-social quanto em sua dinâmica socioeconômica e cultural, o que implica sua relação tanto com a literatura quanto com a cultura de um modo geral.

Além das obras supracitadas, para o maior entendimento das relações – às vezes conflituosas – entre campo e cidade, foi de grande valia o estudo de O campo e a cidade na história e na literatura (1989), de Raymond Williams. Embora o autor justifique suas considerações tendo por base essencialmente obras de autores ingleses, as relações campo/cidade/literatura/constituição do sujeito são passíveis de serem verificadas em outros países, o que tornou o estudo dessa obra de capital importância no contexto deste trabalho.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Raquel Rolnik assevera que, com o decorrer do tempo, a cidade deixou de se restringir a um aglomerado de construções para significar, de modo mais abrangente, a “predominância da cidade sobre o campo”. (2004, p. 12).

Segundo a estudiosa, ainda, esse processo de desenvolvimento urbanístico tende, cada vez mais, a se apropriar do espaço como um todo, transformando em urbana toda a sociedade.

Esse apontamento implica a percepção de que, para além de fenômenos como êxodo rural, crescente modernização e vertiginoso crescimento urbano, haveria também um tipo de “urbanização” na mentalidade das pessoas que habitam em áreas rurais, na medida em que aspectos antes tidos como caracteristicamente urbanos, graças às conquistas e feitos da modernização, começaram a atingir o campo.

Nesse sentido, a distância entre o urbano e o rural se atenua sensivelmente nas últimas décadas: é possível, na contemporaneidade, acompanhar e desfrutar de benesses no campo que, antes, só se verificavam em meio a um contexto citadino.

Não obstante essa constatação, campo e cidade ainda representam pólos em cujas diferenças se notam aspectos já assinalados no decorrer dos séculos: assim, desde as sátiras de Juvenal ao modo de vida citadino, os idílios de Teócrito ou as Bucólicas de Virgílio, dois séculos depois, passando pelo bucolismo convencional dos árcades e pelo apego à natureza dos românticos – entendido, aqui, também como nostalgia de uma sociedade pré-capitalista (LÖWY & SAYRE, 1994) –, ainda que resguardadas as diferenças entre tais modos de se entrever a configuração do campo, na relação entre bucólico e anti-bucólico (WILLIAMS, 1989) ainda se verificam qualificativos como local de paz, de sossego e de descanso aplicados ao campo, e lugar de perversidade, de ganância, de violência e de ostentação como expressões qualificativas da urbe.

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No que diz respeito à abordagem desse tema no romance a que nos propomos estudar, é válido observar que a relação cidade versus campo espelha, em termos ficcionais, um processo histórico-social de parte do Brasil, na medida em que a cidade de Araçaí representa muitas outras cidades que surgiram/se desenvolveram a partir da criação de ferrovias que, por sua vez, passaram a desempenhar a mesma missão que os rios desempenharam (e ainda desempenham) no passado: interligando espaços, promovendo trocas, intercâmbios, desenvolvimento e, não raro, degradação do meio ambiente.

Abordam-se, no enredo, desde o confronto direto com os indígenas – primeiros habitantes da região – até o confronto entre famílias locais, confrontos esses movidos por ganância, desejo de exercer, sem rivais, o poder, bem como alude-se, embora sem críticas, ao impacto que o crescimento/desenvolvimento urbano acarreta, em termos de mudanças relativas ao modus vivendi de seus habitantes.

Interessante notar que, na narrativa, o único confronto entre índios e brancos não se dá necessariamente pela posse da terra, ao contrário: à medida que as fazendas abertas pelos brancos vão avançando floresta adentro, as aldeias vão migrando, reentrando mais e mais pela mata fechada. Esse único confronto ocorre em razão do rapto de Maria, a única filha de Alfredo Carneiro, um dos muitos que chegaram em Aracaí com o propósito de fundarem fazendas de lavoura cafeeira.

Tendo recebido um indígena, o moço Deretá, em suas terras, as mesmas que pouco antes compunham o território indígena, Alfredo Carneiro passa a oferecer ao rapaz caiuá pinga e goiabada, as quais ele devora com afoitamento. Como o súbito desaparecimento de Maria e de seu irmão pequeno – filho caçula de Alfredo – coincide com o fim das visitas quase diárias de Deretá, o fazendeiro em embrenha-se mata adentro e, após um dia de caminhada, chega a tempo de presenciar, a uma distância segura, o batismo de seu filho pelos indígenas, o qual consistia no fato de a criança ser lançada ao rio, após o que vários índios adultos pulavam atrás e, quem a resgatasse da água, seria, aos olhos de Alfredo Carneiro, o “padrinho” (1972, p. 72).

O preço que os índios pagam pelo rapto de Maria e de seu pequeno irmão é muito alto: todos são mortos, a tiros, porretadas e facadas, numa madrugada sangrenta, por Alfredo Carneiro e por seus homens. Mas a semente indígena já havia sido plantada em Maria: a filha do fazendeiro estava grávida do cacique, e o filho, chamado Turiaçu em homenagem ao pai, conforme o desejo da mãe, foi alçado, pelo desejo de seu avô materno, à condição de único herdeiro de todo o seu patrimônio: “Turiaçu será o dono de tudo isso. Os meus filhos podem procurar estabelecer fundações mais distantes; uma para cada filho. Agora serei administrador do meu neto” (1972, p. 89).

Enquanto os índios são dizimados e a cada dia mais expulsos de suas terras – pois quase diariamente mais árvores eram derrubadas para cederem espaço à lavoura e à pecuária – o crescimento urbano de Araçaí é alavancado por comerciantes, comerciários, profissionais liberais e todo tipo de pessoas que decidem se mudar para uma cidade cujo crescimento prometia grandes chances de êxito financeiro para aqueles que se dispusessem a se mudar para a nova cidade em formação.

Paula da Cruz Landim, em Desenho de paisagem urbana: as cidades do interior paulista (2004), afirma que as cidades paulistas surgidas às margens da ferrovia obedecem a um certo princípio de homogeneidade, uma vez que se verificam, nelas, incrementos urbanos comuns, como a “Praça da Estação” ou o “Largo da Estação”, a partir da qual a cidade passava a se expandir.

Nesse contexto, a ferrovia, além de se constituir como forma de escoamento da produção local, representava investimentos diretos nas próprias cidades, com a

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construção das vilas dos seus operários – cujos salários eram gastados no comércio local – e, ainda, funcionava como meio de comunicação da cidade com o restante do estado e, por extensão, com o resto do mundo1.

Embora em todo o decurso da narrativa Araçaí continue a crescer de modo inexorável, a história não se finda retratando a cidade em seu estado de – presumível – metrópole. A partir da metade da obra, o narrador, num tipo de lapso narrativo, se “esquece” de continuar se referindo a Araçaí para se referir à cidade de São Paulo, cidade para onde se mudara Stanislau Gervis, um imigrante húngaro que havia feito fortuna em Araçaí. A partir desse instante, o eixo narrativo é deslocado a todas as atenções do narrador incidem sobre o lar caótico formado pelo milionário Stanislau e por sua ex-secretária e atual esposa, Maria Lúcia.

A “mensagem” que o narrador deseja transmitir, então, é: dinheiro em excesso não significa plenitude pessoal, e filhos mimados podem usar drogas – morfina – e, em decorrência disso, até morrerem, como acontece com o filho mais velho de Stanislau e Maria Lúcia.

A narrativa se encerra, então, com o registro de uma – pueril – visão sobre o progresso material do homem e da cidade, uma de suas realizações:

O inesperado aconteceu; o trem elétrico corta imponente e belo a paisagem trabalhada pela agro-pecuária da “Terra Lavrada” com amor e dignidade, por entre vales e montes, ligando cidades, unindo corações, espargindo civilização e conforto, oferecendo ao turismo belezas naturais sucessivas; quedas d’água e lagos que espelham a natureza ao redor. Momento glorioso! (VALLIM, 1972, p. 214).

Ao final da obra, como se verifica, o narrador parece não se dar conta de algo que ele mesmo havia circunstanciado, por ocasião da narração dos conflitos abertos entre índios e brancos: o progresso nem sempre significa civilização e conforto ou, pelo menos, não significa isso para todos; e o que se denomina de “terra lavrada”, se por um lado significa fartura e produção de grãos, cana e gado, por outro significa degradação do meio ambiente, alteração dos ciclos naturais das estações do ano e das águas, além de completa dizimação dos povos indígenas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em Terra lavrada, como se verificou, narra-se a transformação de um vilarejo em cidade grande, e de como Araçaí – a cidade que um dia foi vilarejo e antes da ferrovia era apenas a floresta – passa a se configurar, com a presença e o prolongamento da ferrovia, como um importante pólo de desenvolvimento social e econômico.

Note-se que, em termos de construção narrativa, a instância narrativa registra os fatos com tinta leve e, em alguns momentos, de forma até pueril, na medida em que parece não aprofundar considerações sobre o impacto ocasionado por uma cidade que cresce, de modo vertiginoso, sem quaisquer planejamentos estratégicos em relação ao seu entorno. Não obstante, ressalte-se que, à época da publicação do romance em

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Interessante observar que, na atualidade, a ferrovia não ocupa mais um lugar de destaque na cidade, mas, sim, representa um entrave ao trânsito de pedestres e automóveis, tanto que, na maioria das cidades paulistas, o antigo traçado ferroviário foi redirecionado, passando a conformar o anel ferroviário que não mais atravessa a cidade, e sim a contorna.

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análise, 1972, o crescimento vertiginoso das cidades ainda não era problematizado, em termos de impactos socioambientais, com a mesma contundência que o é nos dias atuais.

Outro ponto a se destacar é que esta obra é praticamente desconhecida da crítica literária brasileira, assim como seu autor: um médico paulista que se dedicou às letras (publicou dois romances, uma tese de doutoramento, alguns livros de memória), mas que permaneceu desconhecido de grande parte da crítica e do público leitor. Nesse sentido, esta pesquisa, além de analisar as maneiras por meio das quais campo e cidade se dialogam no interior de Terra lavrada e, por extensão, como esses dois espaços se dialogam na ficção brasileira, permitiu, por meio desse resgate, uma revisitação/revalorização de um autor olvidado e de uma obra desconhecida por grande parte do público e da crítica especializada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainard. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

DIMAS, Antonio. Espaço e romance. 2. ed. São Paulo: Ática, 1978.

FREITAG, Bárbara. Cidade dos homens. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002. GIL, Fernando Cerisara. O romance da urbanização. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

LANDIM, Paula da Cruz. Desenho de paisagem urbana: as cidades do interior paulista. São Paulo: Editora UNESP, 2004.

LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.

MORAES, José G. V. de. Cidade e cultura urbana na primeira república. São Paulo: Atual, 1994.

MUMFORD, Lewis. A cidade na história. Trad. Neil R. da Silva. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

PANKOW, Gisela. O homem e seu espaço vivido: análises literárias. Campinas: Papirus, 1988.

ROLNIK, Raquel. O que é a cidade. São Paulo: Brasiliense, 1988.

VALLIM, Acácio Ribeiro. Terra lavrada. Ed. Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais: São Paulo, 1972.

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