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A busca da salvação entre a escrita e o corpo

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Academic year: 2021

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Thiago de Abreu e Lima Florencio

A busca da salvação entre a escrita e o corpo

Nóbrega, Léry e os Tupinambá

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamento de História da PUC-Rio.

Orientadora: Profª Eunícia Barros Barcelos Fernandes

Rio de Janeiro Setembro de 2007

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Livros Grátis

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Thiago de Abreu e Lima Florencio

A busca da salvação entre a escrita e o corpo:

Nóbrega, Léry e os Tupinambá

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamento de História do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profª. Eunícia Barros Barrcelos Fernandes Orientadora Departamento de História PUC-Rio

Profº Ricardo Augusto Benzaquen de Araujo Departamento de História

PUC-Rio

Profª. Luciana Villas Bôas Departamento de Letras UERJ

Profº João Pontes Nogueira

Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais PUC-Rio

Rio de Janeiro, 14 de setembro de 2007.

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universidade, da autora e do orientador.

Thiago de Abreu e Lima Florencio Graduou-se em História pela PUC-Rio em 2003. Trabalhou como pesquisador e ator do CATAC (Centro de Antropologia do Teatro do Acre) entre 2001 e 2003, um projeto da Secretaria de Cultura do Governo do Estado do Acre. Especializou-se em História da África e do Negro no Brasil pela UCAM (Universidade Cândido Mendes) em 2004, tendo defendido a monografia “Cangoma me chamou – a música na (re)construção da identidade negra no Brasil”.

Ficha Catalográfica

CDD: 900

Florencio, Thiago de Abreu e Lima

A busca da salvação entre a escrita e o corpo : Nóbrega, Léry e os Tupinambá / Thiago de Abreu e Lima Florencio ; orientadora: Eunicia Barros Barcelos Fernandes – 2007.

118 f. ; 30 cm

Dissertação (Mestrado em História)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

Inclui bibliografia

1. História – Teses. 2. História social da cultura. 3. Escrita. 4. Corpo. 5. Salvação. 6. Nóbrega. 7. Léry. 8. Tupinambá. I. Fernandes, Eunícia Barros Barcelos. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de História. III. Título.

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Aos meus pais, Sergio e Sonia, pela distância sempre tão próxima.

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À minha orientadora, professora Eunícia Fernandes, com quem tive o prazer de iniciar esta aventura teórica, desde a monografia de graduação. Além de sua competência e dedicação, que me estimularam a percorrer os caminhos da dissertação com mais segurança, é uma pessoa de grande sensibilidade, e mais: um sorriso largo.

Ao professor Ricardo Benzaquen, com quem muito aprendi, desde a graduação e, principalmente, no período inicial da dissertação, quando pode me orientar. Sou muito grato por sua atenção e cuidado nas leituras de meus textos.

À professora Luciana Villas Bôas, que me conduziu, com sua sensibilidade e precisão, a tecer reflexões mais profundas nesse complexo universo teórico. Participar do grupo de estudos ao qual ela me encaminhou, foi fundamental para o refinamento desta dissertação.

À Christina Osward, com quem aprendi sobre a França Antártica e me cedeu, além de material bibliográfico, sua atenção e carinho. As tardes do grupo de estudos foram apetitosas, não só pelas conversas, mas também pela agradável casa e um bolo especial que sempre nos aguardava.

À Sheila Hue, outra integrante do grupo que, com sua paixão pelos quinhentistas, sempre nos trouxe informações preciosas e muito contribuiu com comentários, sugestões e estímulo.

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Cavalcanti e Cecília Martins. Ao departamento de História, especialmente à Anair, Cleuza, Edna e Cláudio. Ao CNPq e à PUC-Rio, pelos auxílios concedidos, sem os quais este trabalho não poderia ter sido realizado.

À Beatriz Ramos, que me estimulou as descobertas interiores.

Ao Fernando Werneck, foi um privilégio ter recebido a revisão precisa de um escritor de sua estirpe.

Ao Pedro Villas Bôas, pelas corridas sempre saudáveis, nossos ‘exercícios espirituais’ que foram fundamentais para que eu não perdesse a razão ao longo desse processo.

Ao João Alberto, pelo carinho, pelos florais e pelos toques do caboclo tupinambá.

Ao Sílvio, da selva Botafogo.

Aos do CATAC, aos do Acre: Clemilson, Raquel, Ney, Isis, Samirra, Rodrigo e Ju e Neuza.

Aos amigos de já dez anos de História: Jerônimo Motta, Flavio Kactuz, Alex Nietzsche, Meca, Ana Paula, Mirela, Fabíola, Érica, Gil Conti, Ive Cunha, Sartori, Murilo Meihy. E aos novos: Alessandro Ventura, Janaína Oliveira, Joana Saraiva, Daniel Pinha e Cassia Miranda.

À memória do Xará, com quem aprendi a jogar sinuca e torcer pelo meu time.

À Rádio Mec, onde trabalhei e que acompanhou minhas madrugadas de inspirações.

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espécie: Janjão, Clarinha e a vindoura Helena.

E à Tá, que aqui está. Sempre. É quem torna o leito navegável.

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Florencio, Thiago de Abreu e Lima; Fernandes, Eunícia Barros Barcelos. A busca da salvação entre a escrita e o corpo. Nóbrega, Léry e os Tupinambá. Rio de Janeiro, 2007. 118p. Dissertação de Mestrado – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

A proposta da dissertação é analisar como o Tupinambá se inscreve no universo da salvação do jesuíta Manuel da Nóbrega e do calvinista Jean de Léry, tendo como referência o jogo discursivo que se estabelece entre a escrita desses autores e o corpo ameríndio. Nas Cartas do Brasil (1549-1560) e na Histoire d’un

voyage fait en la terre du Brésil (1578), pode-se verificar, respectivamente, que

Nóbrega e Léry viajaram ao Novo Mundo engajados no âmbito das Reformas religiosas do século XVI. Entretanto, estes textos são diretamente marcados pela experiência dos autores com os Tupinambá. Tendo em vista a posição central que ocupa o corpo na sociedade Tupinambá e as preocupações teológicas, acentuadas pelas Reformas, sobre a relação entre corpo e salvação, a dissertação afirma a construção de uma representação ambígua e diferenciada do corpo ameríndio no universo da salvação do jesuíta e do calvinista. Identifica-se uma polarização entre a escrita desses autores e a nudez ameríndia, que teria servido como contraponto para a edificação das narrativas exemplares da salvação desses religiosos.

Palavras chave

Escrita; Corpo; Salvação; Nóbrega; Léry; Tupinambá.

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Florencio, Thiago de Abreu e Lima; Fernandes, Eunícia Barros Barcelos. La recherche du salut entre l’écriture et le corps. Nóbrega, Léry et les Tupinambás. Rio de Janeiro, 2007. 118p. Dissertation de Master – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Le propos de cette dissertation est d’analyser l’insertion du Tupinambá dans l’horizon du salut du jésuite Manuel da Nóbrega e du calviniste Jean de Léry, en ayant comme référence le jeu discursif qui s’établit entre l’écriture des auteurs et le corps amérindien. Dans les Cartas do Brasil (1549-1560) et dans l’Histoire d’un

voyage fait en la terre du Brésil (1578), nous pouvons vérifier, respectivement, que

les voyages de Nóbrega et de Léry au Nouveau Monde sont compris dans le contexte des Réformes religieuses du seizième siècle. Néanmoins, la rédaction de ces textes est directement affectée par l’expérience des auteurs avec les Tupinambás. En vue de la position centrale du corps dans les sociétés Tupinambás et des problèmes théologiques concernant la relation entre le corps et le salut, suscités au cours des Réformes religieuses, la dissertation affirme la construction d’une représentation ambiguë et differenciée du corps amérindien dans l’horizon du salut du jésuite et du calviniste. Il s’agit de mettre en évidence la polarisation entre l’écriture de ces auteurs et la nudité amérindienne, qui semble servir comme contre-épreuve de l’édification des récits exemplaires du salut de ces religieux.

Mots- clés

Écriture; corps; salut; Nóbrega; Léry; Tupinambá.

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1. Introdução 12

2. A salvação entre a escrita e o corpo 19

2.1.A salvação e o outro 19

2.2. O jogo entre a escrita e o corpo 27

3. O exilado e o missionário: o corpo e a salvação nas reformas religiosas 33

3.1. Léry: exílio e corte 33

3.2. Pragmatismo jesuítico: o missionário e a continuidade 47

4. Nudez: os dois corpos do Tupinambá 58

4.1. “Papel branco” ou “boca infernal”? Nóbrega e a conversão 58

4.2. “Filho de Cam” ou “nobre selvagem”? O calvinista e a nudez do Tupinambá 74

5. A escrita e a salvação 84

5.1. Nóbrega e as cartas 84

5.2. Léry: a escrita e a eleição 96

6. Considerações finais: o “índio bestial” e o “bom selvagem” 105

6.1. O corpo domado: Nóbrega e o Plano Civilizador (1558) 107

6.2. O corpo estetizado: Léry e a inocência perdida 109

7. Referências bibliográficas 113

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Cá poucas letras bastam, porque é tudo papel branco e não há mais que escrever à vontade.

Padre Manuel da Nóbrega, Cartas do Brasil, Salvador [Baía] , 10 de agosto de 1549.

Mas são estes tão carniceiros de corpos humanos, que sem excepção de pessoas, a todos matam e comem (...) Este gentio é de qualidade que não se quer por bem, senão por temor e sujeição, como se tem experimentado (...) Os que mataram a gente da nau do Bispo se podem logo castigar e sujeitar (...)Desta maneira cessará a boca infernal de comer a tantos cristãos (...)

Padre Manuel da Nóbrega, Cartas do Brasil, Baía, 8 de maio de 1558

Tanto os homens como as mulheres estavam tão nus como ao saírem do ventre materno, mas para parecem mais graciosos, tinham o corpo todo pintado e manchado de preto.

Parece-me mais verossímil que descendam de Cam (...) tanto é que vendo-os assim vazios e desprovidos dos bons sentimentos de Deus, minha fé (a qual, Graças a Deus, sustenta-se alhures) não foi abalada. (...) Há grande diferença entre as pessoas iluminadas pelo Espírito Santo e as Santas Escrituras e os indivíduos abandonados à cegueira dos seus sentidos. Eu estou muito mais confirmado na garantia e na verdade de Deus.

Jean de Léry, Viagem à terra do Brasil, 1580.

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Introdução

O corpo do prisioneiro é amarrado pela cintura. Antes de ser abatido com um único golpe de tacape, o guerreiro cativo profere as palavras de seu discurso final. Um dos tópicos recorrentes desse discurso é exaltar a valentia dizendo quantos antepassados da tribo que o mantém cativo já estiveram em suas mãos. : “sim, sou muito valente (...) venci os vossos pais e os comi”1. Os nomes dos ‘pais’ devorados estão inscritos, por meio de escarificações, no corpo do guerreiro, que agora é um prisioneiro.

Ele está prestes a ser devorado. E seu nome será inscrito ao corpo do guerreiro que o capturou. Sem ter um novo nome marcado em sua pele, fruto do aprisionamento de um cativo, o jovem tupi não está apto a se casar e ter filhos2. Quanto mais nomes inscritos ao corpo, maiores as chances do bravo guerreiro ter acesso à aventurança, como nos lembra o jesuíta Manuel da Nóbrega: “Sua bem-aventurança hé matar e ter nomes, e esta é sua glória por que mais fazem.”3.

Enquanto o jovem guerreiro se inscreve ao Tempo social da comunidade por meio da escarificação de um nome inimigo em seu próprio corpo, o restante da tribo compartilha, por meio do ritual antropofágico, os nomes ancestrais inscritos nesse corpo adversário. A vingança do inimigo é o que move o Tempo tupinambá, e tal vingança se expressa numa relação entre a palavra e o corpo ou, como diz Viveiros de Castro, em um “duplo esquematismo, verbal e canibal”4.

A palavra e o corpo: a tribo devora o contrário, com exceção do guerreiro que o capturou. Este tem a palavra do inimigo a ser gravada em seu corpo. Antropofagia, escarificações e tatuagens: é na relação com o inimigo, pelo duplo esquematismo palavra/corpo, que se produz uma relação entre o passado e o futuro. “O corpo é uma memória” – como nos lembra Pierre Clastres, em sua análise das inscrições corporais

1 LÉRY, J., Viagem à terra do Brasil, p. 96.

2 VIVEIROS DE CASTRO, E., O mármore e a murta, p. 228.

3 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil, Diálogo sobre a Conversão do Gentio, p. 249. 4 VIVEIROS DE CASTRO, E., O mármore e a murta, p. 238.

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indígenas5 – e a memória tupi é fabricada nessa relação potencial entre a palavra e o corpo. O corpo é, portanto, o lugar privilegiado de produção da memória tupi.

Março de 1549. A Companhia de Jesus – que compunha a armada do primeiro Governador-Geral do Brasil, Tomé de Souza – aporta nas terras da América portuguesa. Liderada pelo padre Manuel da Nóbrega, a Companhia tinha como finalidade primordial a conversão do gentio. A serviço da Coroa portuguesa e do Papado, o jesuíta se insere no mundo como um agente integrador, cujo princípio fundamental é a união de todos no corpo místico da Igreja. Como demonstra em suas primeiras cartas, Nóbrega parece bem otimista quanto aos resultados iniciais de sua missão. Já em agosto de 1549, ao se referir aos Tupinambá, ele afirmava: “Cá poucas letras bastam, porque é tudo papel branco e não há mais que escrever à vontade”6.

O corpo tupinambá é destituído de sua memória, pois seria, aos olhos do jesuíta, um ‘papel branco’ para se ‘escrever à vontade’. Reduzido ao grau zero da nudez, esse corpo funciona como um suporte da salvação do jesuíta: é por intermédio do ‘papel branco’, aberto aos sinais da escrita, que Nóbrega fundamenta sua presença enquanto missionário de Deus que deve inscrever o gentio ao corpo místico da Igreja. Fevereiro de 1557. Oito anos após a chegada de Nóbrega, a nau em que estava o jovem que integrava a primeira missão calvinista ao Novo Mundo, Jean de Léry, aporta nas terras do Novo Mundo. O viajante observa atentamente os “primeiros selvagens que eu via de perto” e expõe suas impressões iniciais: “Tanto os homens como as mulheres estavam tão nus como ao saírem do ventre materno, mas para parecem mais graciosos, tinham o corpo todo pintado e manchado de preto”7.

O corpo se destaca nessa primeira descrição que Léry faz do selvagem. Um corpo que é, por um lado, reduzido à nudez natural de quem acaba de sair do ‘ventre materno’ mas, por outro, coberto por sinais de tinta preta. Que sinais seriam esses? Segundo Léry, tal tinta é usada apenas para que eles se pareçam ‘mais graciosos’. Depossuída de sua força simbólica, torna-se um mero motivo carnavalesco, um gracejo. Pergunta-se então: tal tintura preta seria realmente o jenipapo que marca na

5 CLASTRES, P., A sociedade contra o Estado, p. 201.

6 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil, Salvador [Baía] , 10 de agosto de 1549. 7 LERY, J. Voyage fait en la terre du Brésil, p. 60. (tradução minha).

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carne o tempo social do Tupinambá? Ou não seria a tinta da própria escrita do pastor calvinista, que se apropria do corpo alheio, tornando-o a superfície em branco de sua própria história. A primeira descrição que Léry faz do ameríndio parece estabelecer, de imediato, uma relação simbólica entre a escrita do protestante e a nudez do corpo ameríndio.

Esta dissertação analisa a representação do corpo ameríndio no universo da salvação do jesuíta Manuel da Nóbrega e do calvinista Jean de Léry. Tendo com fio condutor a dimensão escatológica desse encontro, procura-se destacar as diferentes formas pelas quais ambos os autores constituíram suas narrativas da salvação por intermédio do corpo tupinambá. Foram analisadas as Cartas do Brasil, escritas entre os anos de 1549 e 1560, pelo primeiro jesuíta que esteve no Brasil, o Padre Manuel da Nóbrega; e o livro Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil8 (1578), do

pastor calvinista Jean de Léry, que viveu na França Antártica no ano de 1557.

Parece haver um desejo similar, tanto do jesuíta quanto do calvinista, de transformar as escarificações do corpo ameríndio na escrita de seus respectivos testemunhos da salvação. Ambos parecem ocupados em reduzir esses corpos à condição do papel branco. Esse processo de depossessão da memória tupi passa necessariamente pela apropriação de seu corpo. As marcas de seu Tempo devem apagar-se para que se inscrevam, por intermédio da escrita missionária, as palavras do verdadeiro Deus.

Influenciado pela leitura do livro de Michel de Certeau, A escrita da História, procurei esmiuçar a relação simbólica que parece constituir-se entre a escrita desses autores e o corpo tupinambá. A hipótese central do trabalho pressupõe que a salvação, tanto do jesuíta quanto do calvinista, constituiu-se a partir do Tupinambá, e que se estabeleceu uma polarização entre a escrita dos autores e o corpo ameríndio. Tal hipótese deriva do princípio de que a escrita tem um papel determinante na busca da

8 Esta dissertação utilizou a segunda edição do livro Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil,

publicada no ano de 1580. A versão em português só foi utilizada quando não se via problemas de tradução que pudessem comprometer o texto original.

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salvação dos religiosos, enquanto que a salvação do Tupinambá habita seu próprio corpo.

Além disso, é importante ressaltar que o jesuíta e o calvinista representam grupos religiosos distintos e opostos, inseridos no contexto de fragmentação religiosa de meados do século XVI. Nesse período, as discussões teológicas sobre a relação entre o corpo e a salvação ocupavam posição central, pois as diferentes práticas litúrgicas, derivadas dessas discussões, tornaram-se um importante elemento de diferenciação dos grupos religiosos.

Assim, procura-se analisar as diferentes representações da nudez ameríndia no universo da salvação de Nóbrega e Léry, tendo em vista a polarização que parece ocorrer entre a escrita dos religiosos e o corpo tupinambá. Essa polarização refletiu-se numa descrição ambígua do Tupinambá. Diante de um mundo marcado pela discórdia religiosa e pelas perseguições às heresias – estimuladas pelas polêmicas teológicas sobre práticas referentes à relação entre o corpo e a salvação – o corpo dessa nova humanidade, revelado em sua nudez, foi assimilado de diferentes formas.

Voltemos à nossa aventura à beira-mar, em meados do século XVI, para compreender como se caracteriza a ambigüidade descritiva do corpo ameríndio. Em fevereiro de 1557, quando a nau em que estava o calvinista Jean de Léry chegou às terras do Novo Mundo, o jesuíta Manuel da Nóbrega já havia peregrinado, por mais de sete anos, da Bahia ao sertão de São Vicente, pregando ao gentio e fundando aldeamentos e colégios pelo caminho.

Enquanto Léry vivia o alumbramento da visão dos ‘primeiros selvagens que eu via de perto’, Nóbrega voltava a Salvador para apresentar, ao recém chegado Governador-Geral Mem de Sá, o esboço daquilo que se tornaria o seu novo plano de

conversão: o Plano Civilizador (1558). Desiludido com a persistência dos “maus

costumes” do ameríndio, Nóbrega já não era mais, a essa altura, aquele missionário exaltado que via no corpo pagão um espelho de sua própria redenção, o ‘papel branco’ em que se poderia ‘escrever à vontade’.

Já em fins de 1557, enquanto os Tupinambá do Recôncavo Baiano – cada vez mais resistentes às imposições do Governo-Geral e à catequização jesuítica – estavam

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prestes a viver aldeados sob a “nova lei” do Plano Civilizador, os Tupinambá da Baía de Guanabara acolhiam os calvinistas “exilados” da França Antártica, que por discordâncias religiosas com seu comandante Villegagnon, fugiram do forte Coligny para viver entre os índios. Vinte anos mais tarde, após viver o horror dos massacres religiosos de São Bartolomeu, Léry publica um livro sobre sua experiência no Novo Mundo. A memória a posteriori desse refúgio entre os Tupinambá evidencia a exaltação do ameríndio, que se apresenta como ideal de renovação da fé diante da crise religiosa européia.

O resultado final das experiências do jesuíta e do calvinista com os Tupinambá é bem distinto. Nóbrega irá justificar um novo método de conversão do ameríndio, fundamentado na sujeição destes a um severo e brutal controle sobre seus corpos. ‘Desta maneira cessará a boca infernal de comer a tantos cristãos’, escreve ele em 1558. A narrativa de Léry, por sua vez, evidencia a exaltação nostálgica do Tupinambá, muitas vezes descrito como um povo vivendo ainda um estado de pureza edênica, em meio à natureza verdejante e ilimitada do continente americano: “Lamento muitas vezes não estar entre os selvagens, nos quais como amplamente demonstrei, observei mais franqueza do que em muitos patrícios nossos com rótulos de cristãos”9. Nota-se que o corpo tupinambá oscila entre os estados de pureza natural e de bestialidade.

Ora um ideal de renovação, visto enquanto possibilidade concreta de retorno a uma Verdade original, ora o símbolo da heresia de povos que não aceitam a fé de Cristo. A ambivalência do Tupinambá parece constituir-se com o sentido de se afirmar a identidade do próprio grupo religioso.

Portanto, para compreender as diferenças descritivas de Nóbrega e Léry sobre o corpo ameríndio, procurou-se mapear, em um primeiro momento, o contexto histórico de meados do século XVI. Nesse momento, as transformações advindas dos descobrimentos marítimos e da expansão do sistema colonial, conjugaram-se aos problemas teológicos suscitados pelas Reformas religiosas. Destacou-se a exacerbação dos anseios salvacionistas, resultantes desse contexto de transformações históricas, atentando para uma diferenciação básica: enquanto o jesuíta busca sua

9 LÉRY, J., Viagem à terra do Brasil, p. 250.

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salvação no Novo Mundo pela conversão do gentio, o calvinista deseja criar um refúgio protestante, longe das perseguições católicas, para garantir a salvação de sua comunidade.

A segunda parte esmiúça as diferentes motivações que levaram o jesuíta e o calvinista ao encontro do Tupinambá. Procurou-se evidenciar tais diferenciações pela análise do problema do corpo e da salvação no período das reformas religiosas. Afirmou-se, assim, que o testemunho do calvinista – marcado pelo duplo corte, oceânico e semiológico – se constitui enquanto narrativa de exílio. O jesuíta, por outro lado, imerso no contexto de expansão ibérica, lançou-se ao Novo Mundo como um novo Apóstolo de Cristo que procura transformar o “gentio” em mesmo, ou seja, estabelecer a continuidade do mundo cristão pela América através da conversão.

A terceira parte analisa a descrição ambivalente da nudez ameríndia, tendo em vista o jogo discursivo que se estabelece entre a escrita e o corpo tupinambá. Procurou-se demonstrar que a ambigüidade descritiva do outro pode ser entendida por meio da relação triangular estabelecida entre católicos, protestantes (ou hereges) e Tupinambá. Além disso, tendo em vista a questão da corporalidade, procurou-se demonstrar até que ponto a linguagem corporal jesuítica favoreceu o processo de

conversão dos Tupinambá.

A quarta parte analisa as diferentes formas pelas quais se organizam as

narrativas da salvação de Nóbrega e Léry, por meio da demonstração de que os

princípios norteadores da escrita católica se aproximam muito mais dos valores ligados ao corpo do que aqueles que marcam as bases da escrita em Léry.

Por fim, procura-se mostrar as transformações ocorridas na representação do Tupinambá a partir das diferentes experiências dos religiosos no Novo Mundo. Nóbrega propõe um novo método de conversão que aproxima o poder secular da atividade missionária: os ameríndios que recusassem receber a fé do pregador seriam tratados como escravos adquiridos em guerra justa pelos colonos. A sujeição do corpo tupinambá ao castigo do açoite e ao medo da escravização garantiria ao jesuíta o sucesso de sua conversão. Por outro lado, Léry anuncia, em sua exaltação do ameríndio, o posterior mito oitocentista do “Bom selvagem”. O corpo ameríndio, ao

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invés de sujeito a castigos e decapitações, torna-se o modelo de pureza natural. Em seu corpo desenha-se a nostalgia das origens, o saudosismo de uma nudez perdida.

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2

A salvação entre a escrita e o corpo

2.1

A salvação e o outro

A principal premissa deste trabalho considera que é por intermédio da experiência e representação do outro – nesse caso, o Tupinambá – que Nóbrega e Léry irão edificar, através da escrita, suas narrativas exemplares da salvação10.

De 1549, momento em que Nóbrega chega ao Brasil, até 1560, quando põe em prática um novo plano de conversão do gentio, percebe-se uma transformação na forma do jesuíta representar o ameríndio e se relacionar com este. A percepção inicial de que os índios eram como “papel branco em que se poderia escrever à vontade”11 transformou-se paulatinamente na imagem do “índio bestial”, que começa a prevalecer no decorrer da experiência missionária. Tal transformação na forma de representar o outro condiz com a adoção de novas práticas e atitudes face ao Tupinambá.

Jean de Léry, por sua vez, chegou à França Antártica no ano de 1557. Jovem sapateiro, ele integra a primeira missão calvinista no Novo Mundo. Sua narrativa foi composta de forma fragmentada, atropelada pela sucessão de exílios que o futuro pastor calvinista, perseguido pelos católicos, viveu durante o auge das guerras de religião na Europa. Entre 1557 e 1578, quando publica a primeira edição de seu livro

10 A constatação de que os autores em questão constroem a narrativa exemplar de sua salvação por intermédio do ameríndio é proposta por alguns autores. Castelnau-L´Estoile, em Les ouvriers d´une vigne stérile, ao analisar o papel das cartas edificantes no processo de conversão, considera que os jesuítas vislumbram a sua própria salvação por intermédio da conversão do outro. Frank Lestringant, em Le Huguenot et le Sauvage, analisa a narrativa do pastor calvinista Jean de Léry a partir da construção do “mito da eleição pessoal”, na qual a experiência do selvagem será determinante para sua conversão interna, ou seja, para a tomada de consciência de sua vocação religiosa. Cf. CASTELNAU-L’ESTOILE, C., Les ouvriers d´une vigne stérile , p. 86 ; LESTRINGANT, F., Le huguenot et le sauvage, pp. 8-19.

11 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos. Ao P. Simão Rodrigues, Baía, 10 de abril de 1549, p. 20.

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Histoire d´un voyage faict en la terre du Brésil, a Europa passa por um dos períodos

mais intensos das guerras de religião, cujo ápice de crueldade manifestou-se nos levantes sangrentos do massacre de São Bartolomeu. Mais de vinte anos separam a publicação de seu livro da experiência vivida entre os Tupinambá, o que resulta em uma narrativa onde a figura desses índios é representada de forma ambígua, alternando-se continuamente entre a exaltação e a detração.

Ora a exaltação do ameríndio, que anuncia o posterior mito do bom selvagem, ressaltado em sua nudez pura e seu desapego material; ora o “maldito filho de Cam”, condenado à “cegueira de seus sentidos” por não conhecer as Sagradas Escrituras e, conseqüentemente, o verdadeiro Deus.

A tensão explicitada pelos autores na construção do lugar do Tupinambá dentro do universo da salvação espelha a crise epistemológica de um mundo que passa por grandes transformações. Os dois autores analisados expressam fortemente, em suas narrativas, problemas epistemológicos e teológicos advindos da conjugação de dois grandes fenômenos que marcaram o período renascentista: as Reformas religiosas e os descobrimentos marítimos.

Crise epistemológica manifestada primeiramente pela chamada descoberta do Novo Mundo. O oceano, antes um limite, reverte-se aos poucos em um horizonte capaz de ser percorrido, o que resultou em um alargamento do mundo. A dimensão da experiência, resultante do contato com diferentes culturas até então desconhecidas, chocou-se com o universo de verdades prescritas na tradição bíblica. A presença dos ameríndios suscitou o que Anthony Pagden denominou “problema do reconhecimento”12.

Como nomear o desconhecido e diverso? Como situar o Tupinambá na narrativa bíblica? Nesse ponto, a questão da nudez tornou-se um problema significativo pois – ao observarem homens nus caminhando em um continente que até o final do século XV sequer poderia existir – os viajantes não souberam, a princípio, como situá-los em seu universo teórico e teológico. Em se tratando de Nóbrega e Léry, dois homens religiosos, um problema ainda mais grave os perseguia: como

12 PAGDEN, A., The fall of natural man, p. 12.

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reconhecer povos que, aparentemente, nunca ouviram falar das Sagradas Escrituras e que não são reconhecíveis a partir dos relatos bíblicos?

“E porque por toda a terra se espalha o Seu ruído, e até os confins do mundo Sua voz”, diz o Salmo 18,5 da Bíblia. Como conceber a verdade da onipresença do Deus cristão, diante da descoberta de povos tão diversos, que nunca tinham sequer ouvido falar em Seu nome? A descoberta do Novo Mundo colocou, portanto, em xeque crenças até então tidas como certezas inquestionáveis. Nesse sentido, é importante perceber a experiência de Nóbrega e Léry com os Tupinambá como um acontecimento que afetou a idéia cristã do lugar do Homem no mundo e de sua relação com Deus.

De acordo com Reinhardt Koselleck, o advento da chamada época moderna é fruto de uma tensão crescente que se dá entre o “espaço de experiência” e o “horizonte de expectativa”. Na época medieval, o horizonte de expectativas estaria situado predominantemente no Além, ou seja, no tempo sagrado da salvação, que fugia do tempo finito e histórico dos homens mortais. O horizonte de expectativas na Idade Média estava interligado à idéia de um passado perfeito e sem pecado, enquanto o campo de experiência estava limitado pelo horizonte de expectativas, que tinha como conceito fundamental a idéia da salvação eterna no tempo sagrado primordial. Segundo Koselleck, os “tempos modernos” marcaram uma ruptura, no sentido de que as expectativas se afastaram cada vez mais de todas as experiências realizadas até o momento13. Assim, a experiência do Novo Mundo seria importante no sentido de intensificar a dissociação paulatina que se dá entre o “espaço de experiência” e o “horizonte de expectativa”.

A época moderna inaugura um momento em que a história passa a ser pensada não mais exclusivamente como obra da Providência, mas como resultado de motivos humanos, que se fazem sentir pela experiência do homem no mundo. Pagden também analisa a descoberta do Novo Mundo sob a ótica do “primado da experiência”. O autor se refere à categoria grega de “autópsia” (“ver com os próprios olhos”) para explicar de que forma os viajantes do Novo Mundo começaram a valorizar mais

13 “C’est la tension entre l’expérience et l’attente qui suscite de façon chaque fois différente des solutions nouvelles et qui engendre par là le temps historique.” KOSELLECK, R., Le futur passé. Contribution à la sémantique des temps historiques, pp. 314 e 315.

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intensamente a experiência de seus sentidos em detrimento do olhar da autoridade bíblica, para explicar a conexão entre o Velho e o Novo Mundo14.

É importante ressaltar que, embora a dimensão da experiência deva ser destacada no universo desses religiosos que viajam ao Novo Mundo, a preocupação que eles manifestam com a salvação ainda é predominante. Como já foi mencionado, além dos descobrimentos marítimos, as Reformas religiosas foram fundamentais para se compreender a crise epistemológica por que passava o continente europeu. As noventa e cinco teses expostas por Lutero em 1517 trouxeram à tona diversos debates teológicos que intensificaram a crise religiosa e, conseqüentemente, o forte sentimento de insegurança diante da salvação.

Segundo o historiador Jean Delumeau, não se pode compreender plenamente a intensidade da Reforma protestante sem situá-la na “atmosfera de fim de mundo que reinava então na Europa e especialmente na Alemanha”15. De acordo com Lutero, o papado representava o Anticristo, o que demonstraria seu medo de que a humanidade estivesse chegando ao fim: “Tudo está consumado, o Império Romano está no fim de seu curso e o turco no topo, a glória do papado está reduzida a nada e o mundo desmorona por todos os lados”16. Calvino, discípulo de Lutero, também via no papado a manifestação do Anticristo. Em sua luta contra as superstições e os abusos de poder da Igreja católica, o pastor considerava-se um dos profetas dos últimos dias17.

Assim, é preciso situar a experiência do Novo Mundo nesse contexto de fermentação escatológica intensificado pela fragmentação religiosa. A descoberta da América e de uma humanidade desconhecida foi interpretada por muitos dentro de um plano teleológico18.

14 PAGDEN, A., European Encounters with the New World, p. 51. 15 DELUMEAU, J., História do medo no ocidente, p. 222.

16 LUTERO, M., APUD: DELUMEAU, J., História do medo no ocidente, p. 222. 17 DELUMEAU, J., História do medo no ocidente, p. 224.

18 Para um estudo mais aprofundado sobre a relação entre o descobrimento da América e os anseios milenaristas suscitados, cf. DELUMEAU, J., Historia do Medo no Ocidente; LESTRINGANT, F., Milléranisme et âge d´or: réformation et expériences coloniales au Brésil et em Floride (1555-1565); WOORTMANN, K., O selvagem e o Novo Mundo. Ameríndios, humanismo e escatologia.

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Pois é preciso em primeiro lugar que a Boa Nova seja proclamada a todas as nações” (Marcos, 14:10).

Essa Boa Nova do Reino será proclamada no mundo inteiro em testemunho diante de todos os povos. E então virá o fim” (Mateus, 24: 14)19.

Tendo em vista as citações bíblicas de Marcos e Mateus, é possível sugerir de que forma o contato com essa nova humanidade da América de fato alimentou a idéia da proximidade do fim dos tempos.

O descobrimento, como citado, apresentou-se sob uma perspectiva

escatológica, desde seus primórdios, quando Colombo, imerso no imaginário milenarista de Joachim de Fiore, associou a descoberta do Novo Mundo ao apocalipse20. A descoberta de um novo continente acendeu a perspectiva de que o Evangelho seria agora conhecido por todo o mundo: a conversão dos ameríndios anunciaria a volta gloriosa de Jesus Cristo. É significativo o fato de Colombo ter chegado às Américas no mesmo ano em que os espanhóis haviam expulso os árabes da Península Ibérica. Impulsionados pelo espírito da Reconquista, os ibéricos se lançaram sobre o Novo Mundo dentro de uma perspectiva cruzadística de expansão da fé católica.

O contexto de fragmentação da cristandade em razão da expansão protestante acentuou o espírito messiânico ibérico, que, a partir de meados do século XVI, começou a perceber a presença dos índios americanos a partir de uma perspectiva providencial, entendida como “compensação oferecida por Deus à Igreja pela fratura da Cristandade provocada pelo ‘maldito Lutero’”21. A chamada “teoria da compensação” ajustava-se, segundo Barbosa Filho, à celebração do povo ibérico como escolhido pela Divina Providência para anunciar a Boa Nova aos pagãos22.

A Companhia de Jesus se tornaria então a principal ordem religiosa a participar do movimento de expansão marítima da Coroa portuguesa. Aliados ao papado, os jesuítas foram fundamentais para fortalecer, com seus métodos inovadores e anti-monásticos de pregação e conversão, o movimento da Contra-reforma

19 BÍBLIA. APUD: DELUMEAU, J., História do Medo no Ocidente, p. 213. 20 LESTRINGANT, F., 1492 e o conhecimento, p. 11.

21 BARBOSA FILHO, R., Tradição e artifício – Iberismo e Barroco na formação americana, p. 282. 22 Idem, Ibidem.

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comandado pela Igreja católica. Inseridos no contexto de fragmentação da cristandade e de expansão marítima dos ibéricos, os jesuítas se lançaram às Américas, em aliança com as Coroas ibéricas e o Papado, a partir de uma perspectiva messiânica. A iniciativa de fundar um Governo-Geral em terras brasileiras também atendia o desejo de assegurar o monopólio comercial sobre um território ameaçado permanentemente pela presença dos franceses. No entanto, não se pode isolar do expansionismo português o desejo religioso de alargar o reino de Cristo pelo mundo, como manifestou D. João III: “Porque a principal coisa que me moveu a mandar povoar as ditas terras do Brasil foi para [que] a gente dela se convertesse à nossa Santa Fé Católica”23.

Nessa perspectiva, ao se referir aos Tupinambá como gentio, deve-se compreender que Nóbrega associava os ameríndios aos povos idólatras e pagãos, nomeados pela Bíblia e existentes ainda no tempo anterior à vinda de Cristo. A

conversão do gentio se refere ao ideal de uma “missão divina não cumprida”24 que deveria reunir todos os povos no Corpo místico de Jesus Cristo. Nesse sentido, pode-se construir a idéia de que a salvação da própria cristandade – e, conpode-seqüentemente, de Nóbrega – dependia diretamente da conversão do gentio25. É, portanto, no ato de conversão do Tupinambá que estão depositadas todas as expectativas de salvação do

jesuíta. Assim que chega a terras brasileiras, o otimismo evangelizador traduz-se na visão já pré-estabelecida sobre os Tupinambá: por serem gentios, só lhes restava serem vistos como “papel em branco em que se pode escrever à vontade”26.

Se, por um lado, Nóbrega inclui o Tupinambá em seu universo da salvação, o mesmo não pode ser dito de Jean de Léry. Enquanto calvinista, Léry é herdeiro da doutrina da dupla predestinação: por não conhecer as sagradas escrituras, o Tupinambá estaria condenado ao esquecimento divino. Enquanto os jesuítas expandiam o Reino de Deus da Índia ao Novo Mundo, os calvinistas pareciam mais

23 SOUZA, T. Regimento Tomé de Souza,

www2.uol.com.br/linguaportuguesa/valeoescrito/ve_regimentotome.htm.

24 BARBOSA FILHO, R., Tradição e artifício – Iberismo e Barroco na formação americana, p. 282. 25 “O empreendimento evangelizador no Novo Mundo não era movido apenas pela intenção altruísta de salvar as almas dos novos gentios; tratava-se de salvar o mundo e, principalmente, a cristandade já constituída (...)”. WOORTMANN, K., O selvagem e o Novo Mundo, p. 221.

26 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Simão Rodrigues, Baía, 10 de abril de 1549, p. 20.

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preocupados em criar um refúgio protestante do que converter a humanidade. A América e os indígenas adquirem um estatuto diferenciado: ao contrário do jesuíta, para quem a ênfase da salvação está colocada na conversão dos nativos, o calvinista percebe o continente americano como a “Nova Revelação” 27. A salvação protestante não estaria na expansão do Reino de Deus e, sim, na fundação de um refúgio religioso em que a comunidade religiosa se distancia daquilo que seria, segundo eles, o avanço do Anti-Cristo. É nesse sentido que deve ser compreendido o significado mítico dado ao continente americano. Ao invés de um milenarismo migratório, os protestantes inserem-se no “Apocalipse da reabsorção”, onde a salvação dos eleitos implica na perda da maioria28.

A partir da experiência do Novo Mundo, tornou-se intenso o debate teológico sobre a inserção dos ameríndios na genealogia transcendental da Bíblia. Essa tensão entre a experiência de uma nova humanidade e a expectativa da salvação, resultou na ambígua representação do Tupinambá. Ambigüidade acentuada pela discórdia religiosa entre católicos e protestantes.

De fato, procura-se demonstrar que a representação do ameríndio, feita por Nóbrega e Léry, se insere no desejo desses homens em afirmarem a salvação de seu grupo diante uma Europa fragmentada pela crise religiosa. Percorrendo um mundo em movimento, trêmulo e instável, esses homens estão inseguros diante da angústia do Juízo Final. O outro atende ao desejo de redenção do mesmo.

Com isso, procura-se ressaltar de que maneira a dimensão da experiência com o Tupinambá operou uma transformação na forma de Nóbrega e Léry situarem o indígena em seus diferentes projetos de salvação. A historiadora Eunícia Fernandes analisou as práticas de consolidação dos aldeamentos jesuíticos partindo da decalagem entre as predisposições da Companhia de Jesus, ou seja, seus projetos de

conversão, e as metamorfoses resultantes da experiência do encontro29. De forma análoga, procura-se aqui perceber as metamorfoses ocorridas no modo de esses

27 VILLAS BÔAS, L., Travel Writing and Religious Dissent. Hans Staden’s Warhaftig Historia in Print. p.24.

28 LESTRINGANT, F. , Milléranisme et âge d´or: réformation et expériences coloniales au Brésil et en Floride (1555-1565), p. 193.

29 Cf. FERNANDES, E., Futuros outros: homens e espaços – os aldeamentos jesuíticos e a colonização na América portuguesa.

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homens religiosos representarem o Tupinambá dentro de seus universos de expectativas salvíficas.

A partir da experiência contínua com os ameríndios, Nóbrega compreendeu que a imagem do Tupinambá dócil, aberto aos sinais divinos como um papel em branco, não poderia mais se sustentar. Tal percepção é substituída paulatinamente pela imagem do “índio bestial”, que deve ser convertido a partir do temor e não mais do amor30. Léry, por sua vez, ao mesmo tempo em que condena o Tupinambá à danação eterna, lança um olhar nostálgico sobre o ameríndio, que parece ser exaltado por suas características de pureza primordial, antagônicas ao contexto de uma Europa imersa na barbárie das guerras de religião.

O principal objetivo desta dissertação é, portanto, acompanhar a representação ambivalente do Tupinambá no universo de expectativas de salvação do jesuíta Manuel da Nóbrega e do calvinista Jean de Léry. Entre o “papel branco” e o “índio bestial”, entre a exaltação que anuncia o mito do “bom selvagem” e o “maldito filho de Cam”, o Tupinambá, como visto por Nóbrega e Léry, é ambíguo. Ambigüidade caracterizada pelo movimento pendular que se dá entre dois pólos extremos e concorrentes: o bom e o bestial31.

30 Cf. EISENBERG, J. , As missões e o pensamento político moderno. O cientista político José Eisenberg analisa as correspondências entre a experiência das práticas jesuíticas, principalmente de Nóbrega, com as transformações conceituais operadas no discurso político moderno. Em linhas gerais, o autor sustenta a tese de que a mudança conceitual nas práticas de conversão, operada por Nóbrega a partir do chamado Plano Civilizador (1558), resultou na legitimação da autoridade através do consentimento gerado pelo medo, tal como Hobbes argumentaria mais tarde no Leviatã.

31 Para uma análise acerca das representações ambivalentes sobre o ameríndio pelos primeiros viajantes que estiveram no Novo Mundo, Cf. PÉCORA, A., O bom e o boçal ou o selvagem americano entre calvinistas franceses e católicos ibéricos; e LAPLANTINE, F., A pré-história da antropologia: a descoberta das diferenças pelos viajantes do século XVI e a dupla resposta ideológica dada daquela época até nossos dias.

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2.2

O jogo entre a escrita e o corpo

O movimento pendular entre o bom e o bestial aparece constantemente nas descrições do corpo tupinambá, principalmente no que se refere à questão da sua

nudez. O propósito de analisar o discurso da salvação a partir da relação entre a

escrita religiosa e o corpo tupinambá, se insere na percepção do lugar privilegiado que ocupa a escrita na dimensão salvacionista de Nóbrega e Léry. Além disso, inseridos no contexto das guerras de religião, os religiosos estão imersos nas infindáveis discussões teológicas referentes à relação entre o corpo e a salvação. Se por um lado, como será visto, a escrita é o principal instrumento de consolidação das expectativas salvíficas de Nóbrega e Léry, por outro, é no corpo que o Tupinambá manifesta, primordialmente, sua relação com o sagrado.

Alguns acontecimentos como o advento da imprensa, a vinda de textos orientais para a Europa, a interpretação dos textos religiosos sobre a tradição e o magistério da Igreja, a tradução da Bíblia por Lutero, o princípio protestante da Sola

Scriptura, ajudam a compreender a presença essencial da escrita no século XVI32. De fato, a escrita acompanha de forma decisiva a experiência de Nóbrega e Léry, ocupando um lugar determinante no universo da salvação desses homens. A escrita sistemática de cartas ocupa uma posição central na prática missionária de Nóbrega. Por outro lado, a publicação do livro Histoire d´un voyage fait en la terre du Brésil, será determinante na construção e garantia da eleição do calvinista, imerso no princípio da Sola Scriptura33.

Por outro lado, apesar do foco da dissertação não ser o estudo das sociedades tupinambá e sim a representação destes nas narrativas de um jesuíta e um calvinista, é importante considerar a posição central que o corpo ocupa nas sociedades indígenas brasileiras. O corpo se apresenta como ponto de convergência da oposição entre o

32 Cf. FOUCAULT, M. Les mots et les choses, p.53.

33 A Sola Scriptura foi um dos princípios doutrinários estabelecidos por Lutero que marcou a reforma protestante. Ao declarar a inutilidade da intercessão entre a Igreja e o fiel, o reformista estabeleceu algumas teses, entre as quais destacam-se a Sola Fide ( só a fé salva) e Sola Scriptura, que afirma que toda Verdade revelada por Deus está na Bíblia ou seja, a salvação encontra-se nos textos sagrados da Bíblia.

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individual e o social, ou seja, o “elemento pelo qual se pode criar a ideologia central, abrangente, capaz de (...) totalizar uma visão particular do cosmos”34.

É nesse sentido que se deve compreender os rituais de passagem dos meninos prestes a se transformarem em homens (seres sociais), que perfuram seus lábios e orelhas: “ É essa penetração gráfica, física, da sociedade no corpo que cria as condições para engendrar o espaço da corporalidade que é, a um só tempo, individual e coletiva, social e natural”35. O fundamento da salvação tupinambá faz-se presente, portanto, nessa relação “dialética básica entre corpo e nome”36. Como diz Certeau ao se referir aos Tupinambá observados por Léry: “O significante não é destacável do corpo individual ou coletivo. Não é, portanto, exportável. A palavra aqui é o corpo que significa”37.

O corpo nu ameríndio causou estranhamento a esses religiosos. Como situá-lo

no universo da salvação? Como torna-lo compatível às doutrinas bíblicas? Estariam os Tupinambá vivendo ainda o tempo da inocência, anterior ao pecado original, ou seriam eles pecadores bestiais imersos em “apetites sensuais”? O corpo ameríndio é o que melhor expõe o caráter ambíguo do Tupinambá visto pelos europeus: ora é o lugar privilegiado dos sinais demoníacos (nudez, poligamia, antropofagia), ora é o espaço em que se vislumbra a pureza das origens, a nudez gloriosa da inocência primordial.

É importante ressaltar que o caráter ambivalente desse corpo foi acentuado pelas discussões teológicas envolvendo a relação entre o corpo e o sagrado, que ocupavam posição central no período das reformas religiosas. Os principais pontos que marcaram a ruptura teológica protestante advinham da relação entre o corpo e o sagrado: o fim do culto das relíquias, a discussão sobre a presença real do corpo de Cristo na hóstia, a condenação da santidade38. Todos tratam da questão de como a fé e o sagrado devem se relacionar com a dimensão corporal no plano terreno. A crítica feroz dos protestantes à necessidade de um corpo político (a Igreja) como

34 SEEGER, A., DA MATTA, R., VIVEIROS DE CASTRO, E. B., A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras, p. 13.

35 Idem, p. 15. 36 Idem, p. 13.

37 CERTEAU, M., A escrita da História, p. 217. 38 Cf. GELLIS, J., Le corps, l´église et le sacré.

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intermediário entre o fiel e a Graça divina foi o ponto de partida para posteriores questionamentos, principalmente dos calvinistas, sobre a relação entre o corpo e a salvação.

Ao introduzir a doutrina da predestinação, Calvino estabeleceu como condição da salvação o dom gratuito da Graça do Senhor: Deus seria o único a decidir, previamente, se o homem será salvo ou condenado.Diferentemente dos católicos, que admitem um corpo intermediário para administrar os pecados pelo sacramento da confissão, os calvinistas acreditam que só Deus poderia decidir, previamente, acerca da salvação de cada ser. Segundo Calvino, Deus é radicalmente transcendente, não podendo portanto ser representado em forma alguma. Nesse sentido, torna-se extremamente complicado atribuir um símbolo a Deus, pois qualquer símbolo demonstra, na verdade, a significação de Sua essência incompreensível39. Todo símbolo que for tomado literalmente como representação de Deus constitui, de fato, uma idolatria, o que explica a condenação calvinista do teatro, da dança e das imagens sobre a vida de Jesus – assim, qualquer tentativa de representar Deus em estado de corporalidade é uma afronta à Sua Glória infinita.

A Graça sacramental, disponível ao católico como meio de compensação de seus pecados, mostra-se inútil para o calvinista. Deus já determinou o destino individual de cada um. Qualquer pessoa que se pretendesse intermediária entre Deus e o homem para a concessão da Graça se aproximaria dos mágicos charlatões, dos falsos profetas. Segundo Weber, com essa transcendência radical de Deus, realiza-se a conclusão definitiva do longo processo histórico-religioso de desencantamento do

mundo. Deus teria se distanciado definitivamente do horizonte do homem, sua Graça

não estaria nos sacramentos monopolizados pela Igreja Romana, com sua hierarquia, e sim na convicção interna do crente. Tal isolamento íntimo do ser humano provocaria uma negação de todo elemento de ordem sensorial, ou seja, “fica explicada a recusa em princípio de toda cultura dos sentidos em geral”40.

Por outro lado, os jesuítas – inseridos na cultura ibérica, atrelada ao movimento de expansão da universalidade da Igreja Católica – reafirmavam com

39 PAUL, T., A History of Christian Tought, p.263.

40 WEBER. M., A ética protestante no espírito do Capitalismo, p. 96.

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veemência o caráter institucional da Igreja como legítima intermediária entre Deus e os homens. Para a Coroa portuguesa, imersa na perspectiva da Segunda Escolástica41, o indígena deveria ser integrado ao corpo místico da Coroa portuguesa e da Igreja universal por meio da recepção da doutrina e dos sacramentos42. Os jesuítas trouxeram ao Novo Mundo o ímpeto de reafirmar a presença dos santos e dos sacramentos da Igreja católica. Os gestos corporais, as curas, as penitências públicas, a confissão, a forte presença de imagens e relíquias, a aparição dos santos e apóstolos – são práticas recorrentes entre os jesuítas e demonstram a relação intensa que estabeleciam com a cultura dos sentidos.

O jesuíta deve agir como corpo intermediário entre Deus e o paganismo. Dessa forma, enquanto membro do corpo místico da Igreja, Nóbrega deveria restabelecer a unidade do catolicismo. Sua missão supõe uma continuidade entre os dois mundos, o pagão e o católico, para que se concretize o fim determinado: a união de toda a humanidade no corpo místico de Jesus Cristo. Finalmente, a percepção de que Deus se manifesta materialmente, pela forte presença dos santos e das relíquias em seu cotidiano, demonstra a relação de continuidade que se estabelece entre o corpo e o sagrado entre os jesuítas. Sustenta-se a hipótese de que a predisposição jesuítica à utilização de um forte aparato simbólico envolvendo os gestos corporais, o uso de imagens e objetos litúrgicos, foi importante no sentido de garantir uma receptividade dos Tupinambá às pregações do missionário.

Segundo Certeau, a formação de um “discurso sobre o outro”, ocasionado pelos descobrimentos do Novo Mundo, se dá em contraposição à agrafia tupinambá - a escrita se sobressaiu enquanto instrumento privilegiado capaz, ao mesmo tempo, de “reter as coisas em sua pureza e de se estender até o fim do mundo”43. É no espaço ameríndio – e, no entender dos ocidentais, sem escrita e sem memória – que se

41

42 PÉCORA, A., O bom e o boçal ou o selvagem americano entre calvinistas franceses e católicos ibéricos, p. 39.

43 CERTEAU, M. , Etno-grafia. A oralidade ou o espaço do outro: Léry. In: A escrita da História. p. 217.

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“fabrica a história ocidental”44. Nesse sentido, o corpo ameríndio é transmutado, pelo olhar do europeu, no “campo de expansão para um sistema de produção”45.

As narrativas de Nóbrega e Léry, apesar de suas enormes diferenças, parecem convergir nesse sentido: ambas utilizam o corpo ameríndio como campo de expansão para um sistema de produção – o discurso da salvação.

Cá poucas letras bastam, porque é tudo papel branco e não há mais que escrever à vontade46.

Não é difícil perceber, pela citação de Nóbrega, que o ato da escrita perpassa a presença do corpo tupinambá. Ao utilizar a famosa metáfora do papel branco, o jesuíta estabelece uma relação simbólica entre o corpo tupinambá e a escrita missionária. Metáfora que delimita uma ação: escrever sobre o corpo do outro os sinais de Jesus Cristo. Ação do missionário que está inserido no mundo como um novo apóstolo que deve converter o maior número de gentios para vislumbrar sua salvação pessoal47. Nesse sentido, pela percepção de Nóbrega, escrever sobre o corpo ameríndio é agir diretamente sobre ele, transformando-o na superfície edificada pelos sinais da salvação. Salvação que, no entender de Nóbrega, se aplica tanto ao gentio quanto ao próprio missionário.

Eis aí portanto um tema de dissertação suscetível de mostrar que os habitantes da Europa, da Ásia e da África devem louvar a Deus pela sua superioridade sobre os dessa quarta parte do mundo. Ao passo que os selvagens nada podem comunicar entre si a não ser pela palavra, nós, ao contrário, podemos entender e dizer os nossos segredos, por meio da escrita, pelas cartas que enviamos de um a outro extremo da terra. Além da invenção da escrita, os conhecimentos

44 CERTEAU, M. , Prefácio à 2o edição. In: A escrita da História. p. 10.

45 Idem, Ibidem.

46 NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos. Ao Dr. Martín de Azpicuelta Navarro, Baía, 10 de Agosto de 1549, p. 54.

47 Castelnau L´Estoile percebe que a salvação pessoal do missionário se dá em conjunção com o ato da conversão pois é a mesma Graça divina que sustenta os dois projetos: a salvação do missionário e a do outro. Cf. CASTELNAU-L´ESTOILE, C., Les ouvriers d´une vigne stérile, p..86.

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de ciência que aprendemos pelos livros e que eles ignoram, devem ser tidos como dons singulares que Deus nos concedeu 48.

A citação de Léry expõe claramente uma hierarquia entre os povos a partir da presença da escrita. Os Tupinambá, que só podem comunicar-se verbalmente, são destituídos de todos os privilégios que a escrita traz: a “ciência”, a comunicação que se estende pelo espaço e, principalmente, a memória original das verdades divinas. A comunicação Tupinambá parece estar, pelo olhar de Léry, presa ao próprio corpo e, por isso, sujeita às intempéries do tempo e da distância. Aqueles que só “podem se comunicar verbalmente” são, com isso, “inteiramente privados” dos “dons singulares que Deus nos concedeu”. Enquanto o Tupinambá é então condenado ao esquecimento de Deus, o calvinista Léry agradece o “dom singular” que lhe foi concedido. O Tupinambá, aquele que é despossuído da escrita, é também despossuído dos sinais da salvação. Condenado ao esquecimento de Deus, o Tupinambá irá esclarecer a condição de eleito do futuro pastor calvinista.

Espaço que oscila entre a salvação e a danação, entre a exaltação e a detração, o corpo tupinambá torna-se objeto de um jogo. Dizemos jogo, pois se cria uma relação de trocas intensas – entre a escrita, jesuítica e calvinista, e o corpo ameríndio – que suscitam emoções diversas, tensões, desejos, estratégias e consolos. Jogo, pois há, nessa troca de experiências, a criação de uma forma significante explicitada de um lado pela metáfora do “escrever à vontade sobre o papel branco”, e do outro pela relação de superioridade que se estabelece entre a palavra escrita calvinista – garantidora da memória pura de Deus – e a palavra tupinambá, presa ao corpo e sujeita às intempéries do tempo e do espaço.

Se pensarmos que o jogo se baseia na manipulação de certas imagens, como diz Huizinga, numa certa “imaginação da realidade”, cabe procurar “o valor e o significado dessas imagens e dessa imaginação”, para se compreender sua ação no seio das diferentes experiências49. O jogo percebido se configura numa triangulação entre a escrita, o corpo e a salvação.

48 LÉRY, J., Viagem à terra do Brasil, p. 206. 49 HUIZINGA, J., Homo Ludens, p. 7.

(34)

3

O exilado e o missionário: o corpo e a salvação nas reformas

religiosas

3.1

Léry: o exilado e os cortes

Corte semiológico: o corpo e a ausência de Deus

Após quatro meses de “exílio” marítimo, os missionários calvinistas foram calorosamente recebidos pelo comandante da colônia francesa, Nicolas de Villegagnon. No entanto, o que deveria ser o pouso acolhedor da nova religião reformada mostrou-se logo o avesso. A discórdia religiosa entre Villegagnon e os genebrinos não tardou a reverter o quadro de fraternidade. No dia 21 de março de 1557, foi celebrada pelos protestantes a primeira “santa ceia de Nosso Senhor.” Antes de realizar a confissão pública de sua fé para receber a comunhão, Villegagnon pôs-se de joelhos.

E ele próprio [Villegagnon] a fim de dedicar o seu fortim a Deus e fazer confissão de sua fé em face da Igreja, ajoelhou-se num coxim de veludo (...) e pronunciou em voz alta duas orações, das quais obtive cópia e aqui transcrevo, literalmente, para que se melhor compreenda quanto é difícil conhecer o coração desse homem50.

Como conhecer a verdadeira fé de um homem que se confessa reformado, mas que, simultaneamente, evidencia em seus gestos corporais a fé católica? O ato de se curvar diante da hóstia supõe a crença de que o corpo de Cristo esteja realmente presente na substância do pão. Calvino rejeitava de forma categórica a doutrina da

50 LÉRY, J., Viagem à terra do Brasil, pp. 90-91.

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transubstanciação, ou seja, a concepção de que, durante a eucaristia, as substâncias do pão e do vinho se transformavam de fato em corpo e sangue de Jesus Cristo. Segundo o pastor, a doutrina da transubstanciação evidenciava a idolatria católica, fundada na adoração de objetos materiais como sendo o próprio Deus. Assim, a genuflexão de Villegagnon traduziria um gesto idólatra: adorar um pedaço de pão como sendo o corpo divino.

O capítulo VI do livro de Léry é o único a tratar especificamente das relações sociais da França Antártica, ou seja, do espaço delimitado pelo poder político de Villegagnon. Curiosamente, esse capítulo trata quase exclusivamente da discórdia religiosa em torno da eucaristia. O destaque da polêmica sobre a presença real do corpo de Cristo na hóstia não é casual. Ele é reflexo da posição central que ocupavam as discussões sobre a relação entre o corpo e a salvação durante o período das reformas protestantes51. De fato, as reformas são marcadas pela polêmica lançada por Lutero sobre o culto das relíquias e a venda de indulgências. A autenticidade desses objetos, como corpos que conteriam de fato a Graça da salvação, foi posta em xeque pelo então monge beneditino em suas famosas 95 teses, expostas em 1517.

É certo que, desde que a moeda cai na caixa, o ganho e a cupidez podem ser aumentados; mas a intercessão da Igreja só depende da vontade de Deus. (...) Serão condenados para toda a eternidade, com os seus mestres, aqueles que crêem estar seguros da sua salvação por cartas de indulgências52.

Segundo Lutero, os cultos católicos se valeriam de um poder simbólico falso para iludir os fiéis, vendendo-lhes imagens e objetos que seriam apenas o simulacro da presença divina. Com isso, Lutero inverteu a condição do papado: este, a quem antes se confiava a esperança da salvação, agora se mostrava o representante maior da corruptibilidade humana – o próprio Anticristo. O ato de reconhecer o papa, não mais como sucessor de Cristo, e sim como o seu possível opositor, intensificou o clima já predominante dos medos apocalípticos. Pela lógica salvacionista de Lutero, se o Anticristo reinava em Roma, a história humana estaria possivelmente se aproximando

51 Cf. GELLIS, J., Le corps, l´église et le sacré, Histoire du corps, p. 78

52 LUTERO, M., APUD: MARQUES, A., História moderna através de textos, p. 119.

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de seu fim53. É importante lembrar o quanto ainda é dominante, ao longo do século XVI, a expectativa em torno da salvação após a morte, principalmente entre homens religiosos como Calvino e Léry.

Na visão protestante, o culto das relíquias – assim como os excessivos gestos de devoção – representariam o ato herege de reduzir a essência espiritual de Deus à dimensão terrena e imperfeita da corporalidade. Se o papa é o Anticristo, onde então encontrar a salvação? Lutero sugeriu que o verdadeiro Deus não deveria ser procurado na Igreja – espaço dominado pela exacerbação simbólica e geradora de um poder que falsificava a primitiva mensagem de Cristo – mas na fé interior. O sola

fidei procurou reduzir o poder exclusivo da Igreja e dos sacerdotes como legítimos

intermediários entre Deus e os homens.

Calvino, discípulo de Lutero, acentuou a discussão referente ao culto das relíquias ao procurar esvaziar a possibilidade de um corpo intermediário (Igreja, sacerdotes e santos) entre Deus e os homens. A doutrina da predestinação – princípio teológico segundo o qual Deus é o único capaz de decidir sobre a salvação dos indivíduos – transformou significativamente a forma de se conceber a relação entre o corpo e a salvação. Diferentemente dos católicos – que poderiam redimir-se de seus pecados através da intermediação dos santos, das relíquias ou de um corpo sacerdotal – os calvinistas acreditavam que somente Deus, agora distanciado em sua abstração espiritual, poderia intervir no destino individual de cada um.

A radical transcendência de Deus impossibilitaria atribuir-lhe um símbolo, pois este seria sempre a demonstração de sua essência incompreensível54. A presença do signo, na concepção calvinista, implica a ausência de Deus. Segundo Calvino, “os signos humanos são antes figuras de coisas ausentes do que insígnias e marcas de coisas presentes”55. Nesse sentido, a semiologia calvinista, como sugere Lestringant, deve ser entendida como uma semiologia da disjunção, pois implica na dissociação do signo em significado e significante56. Segundo Léry, Deus não pode estar presente no pão e no vinho da Eucaristia, pois Ele não se encerra “nessas espécies materiais,

53 DELUMEAU, J. , História do Medo no Ocidente, p. 222. 54 PAUL, T. , A history of christian tought, p.263.

55CALVINO, J., Institution de la religion chrétienne. APUD: LESTRINGANT, F., Une sainte horreur, p. 22. (tradução minha)

56 LESTRINGANT, F. , Une sainte horreur, p. 22.

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mas está no céu donde, por virtude do Espírito Santo se comunica espiritualmente com os que recebem os sinais da fé”57.

O catolicismo, imerso na filosofia da Segunda Escolástica, explicava o milagre da transubstanciação a partir da teoria aristotélica da matéria. Diferentemente dos reformistas, que vão utilizar uma visão retórica e gramática da eucaristia, os católicos justificavam o milagre da transubstanciação a partir do conceito aristotélico de substância e acidente58. Os católicos estabeleciam, portanto, uma relação de continuidade entre a dimensão sagrada e o mundo material e simbólico dos homens: a eucaristia era – além de instrumento e signo visível da salvação individual – o ritual que garantia a união da Igreja em torno da unidade do corpo místico de Jesus Cristo59. Dentro da perspectiva de que Deus não poderia ser reduzido a nenhum símbolo, os calvinistas compreendiam que a relação do pão e do vinho com o corpo e o sangue de Jesus Cristo era puramente metonímica. Ou seja, as palavras de Deus na Bíblia seriam expressas de forma figurada, como nos sugere Léry:

Essas palavras são figuradas, isto é, a Sagrada Escritura nomeia os signos dos sacramentos pelo nome da coisa significada60.

A Bíblia nomeia os signos divinos a partir dos seus significantes. Léry, a exemplo de Calvino, é adepto de uma leitura retórica do Evangelho. Dentro desse princípio de dissociação semântica do sacramento, os genebrinos, na falta de vinho para celebrar a cena eucarística, consideraram a possibilidade de substituir a substância do vinho pela do cauim, bebida fermentada utilizada nos rituais tupinambá. A forma significante em nada alteraria, segundo os genebrinos, o

57 LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasi, p. 94.

58 WOORTMANN, K. , Religião e ciência no Renascimento, p. 86. Woortmann, explica da seguinte forma a influência de Aristóteles na concepção eucarística da Segunda Escolástica: “(...) a teoria da matéria aristotélica tornava o milagre possível: uma substância que existe em si, como o pão, é composta de uma matéria extensa, quantidade que fornece seu substrato, e de uma forma que imprime as qualidades ou propriedades nesse substrato. A substância apresenta-se aos sentidos mediante um conjunto de acidentes que determinam sua natureza, como a cor, o calor etc. A substância do pão tem como acidentes uma cor cinza, uma consistência mole etc. Pelo milagre eucarístico, os acidentes subsistem, enquanto a substância do pão é substituída pela substância do corpo do Cristo.”

59 LESTRINGANT, F. , Une sainte horreur, p. 93.

60 LÉRY, J. , Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, p. 73. (tradução minha).

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significado essencial do ritual eucarístico, que é a união espiritual entre os fiéis e Deus.

(...) ao instituir a ceia Jesus estava na Judéia, e portanto falava da bebida que era usual ali. É claro que se estivera no país dos selvagens, onde outra era a bebida, a ela se teria referido. Portanto, não hesitariam em celebrar a ceia com as coisas mais comuns (na falta do pão e do vinho), à alimentação dos homens do país onde se encontrassem61.

A condenação calvinista da transubstanciação marcou definitivamente o embate entre Villegagnon e os genebrinos. Atacar o dogma fundamental do catolicismo resultou em forte reação do comandante francês, que não tardou em “promover disputas relativamente à doutrina e sobretudo à ceia”62. Ele inverteu sua opinião sobre Calvino e seus seguidores, agora vistos como hereges e transviados da fé63. Nesse momento, a ilha de França Antártica tornou-se para Léry , ao invés de um refúgio da nova fé reformada, mais um espaço dominado pela perseguição religiosa. É importante compreender a posição central que ocupam os rituais religiosos, principalmente o da eucaristia, nos levantes ocorridos durante as guerras de religião. A continuação que se percebe entre o rito eucarístico e o dissenso religioso, descrita por Léry em sua vivência na França Antártica, é analisada por Natalie Davis a partir da noção de “ritos de violência.” Segundo ela, “a ocasião para a maior parte da violência religiosa era durante o culto ou ritual religioso, e o espaço, o que era usado por um ou ambos os grupos com propósitos religiosos”64. É a partir da discórdia em torno da presença real do corpo de Cristo na hóstia que se consome definitivamente qualquer possibilidade de paz religiosa. A França Antártica deixa de ser a Terra Prometida e se torna o espaço da perseguição e da violência. Os genebrinos são forçados a se refugiar entre os Tupinambá, “pelos quais éramos tratados com mais humanidade do que pelo patrício que gratuitamente não nos podia suportar”65. É

61 LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil, pp. 101 e 102. 62 Idem, p. 94.

63 Idem, p. 98.

64 DAVIS, N., Culturas do povo - sociedade e cultura no início da França moderna, p. 143. 65 LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil, p. 102.

Referências

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