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RELIGIÃO E PSICOLOGIA AMERÍNDIAS

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Revista Transformar |13(1), jan./jul. 2019. E-ISSN:2175-8255 733

RELIGIÃO E PSICOLOGIA AMERÍNDIAS

AMERINDIAN RELIGION AND PSYCHOLOGY RELIGION Y PSICOLOGÍA AMERINDIAS Monica Giraldo Hortegas

Graduação em Psicologia, Mestrado e Doutorado em Ciência da Religião. Coordenadora do Curso de Psicologia da UNIFSJ.

Resumo: Religião e psicologia não têm fronteiras rígidas e demarcadas no universo das tradições indígenas. Elas, em conjunto, sustentam a subjetividade e dão o sentido à existência. Se, a história das Américas primeiro apresentou a figura indígena como um outro inferior e inclusive despido de características humanas, temos reflexões que demonstram o contrário. Com os limites e a falência do sistema lógico-racional eurocêntrico, são eles os que tem a ensinar. O presente artigo investiga o pensamento decolonial de autores como Walter Mignolo e Aníbal Quijano e antropologia de Eduardo Viveiros de Castro para ofertar a visão de mundo dos povos originários e como ela é capaz de apontar para uma vida mais rica de sentido, conectada com a natureza, alegre, esperançosa e no limite, trazer a compreensão de que qualquer ato da vida cotidiana é também sagrado.

Palavras-chave: Religião. Psicologia. Ameríndia. Antropologia. Pensamento decolonial.

Abstract: Religion and Psychology do not have rigid and defined borders in the universe of indigenous traditions. Together, they sustain subjectivity and give meaning to existence. If, the history of the Americas first presented the indigenous figure as an inferior other and even removed its human characteristics, there is also a critical thinking that demonstrate the opposite. With the limits and failure of the Eurocentric logical-rational system, they are the ones who are able to teach. This article investigates the decolonial thinking of authors such as Walter Mignolo and Aníbal Quijano and the anthropology by Eduardo Viveiros de Castro as a way to offer the worldview of the native people of the Americas and how they are capable of pointing to a meaningful life, connected with nature , cheerful, hopeful and in its limits, bring the understanding that any act of everyday life is also sacred.

Keywords: Religion. Psychology. Amerindia. Anthropology, Decolonial thinking. Resumen: La religión y la psicología no tienen fronteras rígidas y demarcadas en el universo de las tradiciones indígenas. Juntas, apoyan la subjetividad y dan sentido a la existencia. Si la historia de las Américas se presentó por primera vez la figura indígena como el otro inferior e incluso despojado de las características humanas, tenemos reflexiones que demuestran lo contrario. Con los límites y el fracasso del sistema lógico-racional eurocéntrico, ellos son los que tienen que enseñar. Este artículo investiga el pensamiento descolonial de autores como Walter Mignolo y Aníbal Quijano y la antropología de Eduardo

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Revista Transformar |13(1), jan./jul. 2019. E-ISSN:2175-8255 734 Viveiros de Castro para ofrecer la visión de mundo de los pueblos originarios y cómo es capaz de señalar una vida más rica en significado, conectada con la naturaleza. , alegre, esperanzada y al límite, entiende que cualquier acto de la vida cotidiana también es sagrado.

Palabras clave: Religión. Psicología Amerindia. Antropología. Pensamiento descolonial.

1.INTRODUÇÃO

Dale tu mano al indio Dale que te hara bien Y encontraras el camino Como ayer yo lo encontre Dale tu mano al indio Dale que te hara bien Te mojara el sudor santo De la lucha y el deber La piel del indio te enseñara

Toda la senda que habras de andar[...]54. Mercedes Sosa

Para se refletir sobre a religiosidade, psicologia ou qualquer outra temática que se refere aos grupos indígenas, é preciso buscar fontes que indiquem de que forma eles estão sendo tratados e cuidados. Foram cerca de cento e vinte assassinatos indígenas na Colômbia no ano de 2019. No Brasil, foram cento e trinta e cinco mortes em 2018 e aproximadamente vinte lideranças indígenas perderam suas vidas nos últimos dois anos. No Canadá, desde 1980, mil e duzentas mulheres indígenas foram assassinadas ou estão desaparecidas (FERREYRA, 2019). Um número que continua crescendo em toda a Ameríndia55. Nos últimos meses vimos o esmagamento da cultura indígena na Bolívia, em nome da Bíblia cristã.

54 Dale tu mano al indio. Música de Mercedes Sosa, cantora argentina que tem ascendência indígena e ficou conhecida por sua bela voz e sua luta pelos direitos humanos e pelas vozes dos excluídos na América Latina. Faleceu em 2009.

55 O conceito ameríndio se refere não apenas ao lugar (Américas), mas o que concerne geopoliticamente aos povos que habitavam as Américas, antes da chegada dos colonizadores e os que ainda habitam nos dias de hoje, também chamados de índios aborígenes, nativos e povos originários. Os conceitos são sempre carregados de forças que os compõem. Assim há estudos que tecem críticas sobre a maneira com que são denominados. É importante perceber que Ameríndia é uma categoria ampla e se

refere aos indígenas habitantes das Américas, tanto na América do Sul, Central e do Norte. Se trata não apenas seu território, mas suas culturas, suas crenças, sua religiosidade, etc. (FUNARI; PIÑON, 2016, p. 50).

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Revista Transformar |13(1), jan./jul. 2019. E-ISSN:2175-8255 735 Para o antropólogo Viveiros de Castro há uma guerra aberta contra os povos indígenas. O Estado, que deveria proteger e dar garantia jurídica é, ao contrário, quem apoia essa devastação. Não são apenas mortes. É um povo que adoece, se humilha, é escravizado e despossuído de suas terras. Sua dignidade é constantemente esmagada.

Para compreender a religiosidade e psicologia ameríndias, é preciso entender primeiro quem são eles, o que os sustentam enquanto identidade e quais são as forças das quais eles têm que seguir lutando contra, para que possam sobreviver. Indígena significa “gerado dentro da terra que lhe é própria, originário da terra em que vive” (CASTRO, 2016, p. 188). O indígena tem como referência primordial a sua relação com a terra. É a terra que nasceu, a que vive em comunidade, a que lhe dá o alimento de sua subsistência, a que lhe dá vida. A terra é seu próprio corpo (CASTRO, 2016, p. 191). Separados deste corpo, eles podem ser mortos, cristianizados, vestidos, violentados, transformados em trabalhadores e categorizados como pobres (CASTRO, 2016, p. 190).

Outra importante identidade é sua língua. Só no Brasil, são cerca de duzentas e cinquenta etnias que falam cento e cinquenta línguas (KRENAK, 2019, p. 31). O guarani é falado por oito milhões de nativos no Paraguai, Brasil, Bolívia e Peru. O quéchua é falado por dez milhões de pessoas na Bolívia, Peru, Equador, Argentina, Colômbia e Chile. As línguas maias ainda hoje permanecem vivas, faladas por seis milhões de nativos no México, Belize e Guatemala (AS LÍNGUAS, 2013). Elas traduzem sua cosmovisão, seus sentimentos, seu habitar o mundo e o tempo. Mas, na maioria dos países americanos, seus idiomas não são tidos como oficiais. Ao contrário, são dialetos considerados inferiores.

Mas quem determina esta superioridade sobre os povos indígenas? Como foi inaugurada este poder de forças que subjugam, excluem e matam? Diversos autores vêm estudando os impactos a partir das epistemologias de poder e dominação eurocêntricos. Seus primeiros pensadores, buscaram entender os acontecimentos da Índia, com os chamados estudos subalternos. Posteriormente essas pesquisas se alargam e passam a fazer parte do pós-colonialismo. O que se percebia era que as formas de dominação sexual,

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Revista Transformar |13(1), jan./jul. 2019. E-ISSN:2175-8255 736 política, epistêmica, econômica, espiritual, linguística e racial possuíam como pano de fundo a hierarquia étnico-racial do europeu em relação ao não-europeu, cabendo a aquele o papel da superioridade. Foram críticas que permitiram estudar a relação entre os países “subdesenvolvidos” e os “desenvolvidos” e perceber as formas de violência que ultrapassaram o período colonial e persistem até os dias de hoje. Autores como Boaventura de Souza Santos sugeriram uma nova proposição chamada de uma epistemologia do sul, onde os grupos subalternos deveriam pela primeira vez ser escutados. Eles deveriam ser o sujeito de suas próprias histórias (SILVA; PROCÓPIO, 2019, p.21).

Anibal Quijano e Walter Mignolo, autores latino-americanos, entre outros, inauguraram uma reflexão decolonial que partia do continente latino-americano e fazia refletir sobre a matriz de poder colonial que sustentou este continente no período inicial da colonização mas que ainda hoje persiste no imaginário contemporâneo. De colonização passe-se ao poder da colonialidade. Seria o lado oculto ou obscuro da modernidade. Com o ideal “colonial/moderno, capitalista e eurocentrado” essa matriz tem a pretensão de ser a exclusiva produtora e protagonista da modernidade (QUIJANO, 2005, p. 112). Decolonizar ou dar um giro epistêmico decolonial (MIGNOLO, 2007, p. 58) é perceber que todo o fundamento desta modernidade está em crise e que é preciso descolonizar todos esses padrões que põem em risco a própria humanidade. A própria ideia de América foi uma invenção forjada, que se deu no processo da história colonial europeia, e que gerou a apropriação de um continente e sua integração no imaginário eurocristão (MIGNOLO, 2007, p. 29). A América Latina foi o nome escolhido para denominar a restauração da civilização europeia, católica e latina, nas “novas terras”, com a intenção das novas elites criollas terem sua inclusão na modernidade (MIGNOLO, 2007, p. 81). Mas antes disso, o território já existia, já era povoado, e já havia nomes regionais como Tawantinsuyu, para os incas da região andina, Anáhuac, com os astecas na região do México (MIGNOLO, 2017, p. 3) e Abya-Yala no Panamá. Os relatos desse descobrimento e desses novos nomes não pertenciam aos habitantes locais. Mas, tanto esses povos, quanto depois os negros, não foram convidados ao diálogo e nem a contar sua própria história. A

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Revista Transformar |13(1), jan./jul. 2019. E-ISSN:2175-8255 737 única narrativa existente era a da “raça superior” europeia. Os demais foram silenciados. Ficaram fora, inclusive da categoria de seres humanos, de atores históricos e de seres racionais. Essa ferida colonial, segundo estes autores, ainda existe e é ela que potencializa a necessidade de mudanças (MIGNOLO, 2007, p. 97).

Segundo Quijano, a relação dos conquistadores com os indígenas, estabeleceu um novo padrão de poder, sem precedentes na história da humanidade, onde os indígenas foram suas primeiras vítimas. A ideia de raça, foi o elemento constitutivo que criou uma hierarquia entre o homem branco europeu, na posição mais elevada e o restante como nem ao menos fazendo parte da humanidade (QUIJANO, 2018, p. 111). Raça aqui seria similar à etnia. Ela não categorizava os indivíduos em relação à cor da pele ou traços culturais mas sim, dava o nível de aproximação ou distanciamento do modelo de pressuposto ideal de humanidade – o europeu (MIGNOLO, 2007, p. 11). A eles, indígenas e posteriormente aos negros, cabia o lugar do não-ser. Este padrão, inaugurado na América Latina, se perpetua, segundo ele, nas formas de controle de trabalho e classificação racial e social da população mundial, com o capitalismo selvagem, sua marcha em direção a um “futuro”, a valorização do neoliberalismo, sua visão de mundo desconectada com a natureza, seu discurso de uma única civilização chamada ocidental. Segundo a visão eurocêntrica, a América Latina seria uma enorme superfície de terra com recursos minerais, obra de obra barata e estaria esperando por seu “progresso e desenvolvimento” (MIGNOLO, 2007, p. 38).

2.DECOLONIALIDADE E OS POVOS AMERÍNDIOS

Na religião ou psicologia, esses estudos refletem até que ponto ainda se é cativo de epistemologias eurocêntricas. A primeira reflexão que se pode fazer a respeito é que o conceito religião ou psicologia não fazem parte do universo dos povos originários. É algo pensado pelo “ocidente” eurocêntrico. Também é importante perceber que o movimento de controle dos saberes dos povos colonizados passa por diversos modelos, como, por exemplo, a criação de categorias ditas “primitivas, irracionais, mágicas, pré-científicas” (WIRTH, 2013, p. 130). O que ocorre é uma relação hierárquica entre os colonizadores e os

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Revista Transformar |13(1), jan./jul. 2019. E-ISSN:2175-8255 738 colonizados, fundamentada na dita “superioridade racial” dos primeiros e no controle ou proibição de formas de produção materiais, simbólicas e subjetivas. O cristianismo que vem com o colonizador nas novas terras descobertas, tinha a intenção de converter os indígenas, “adoradores de ídolos”. Antônio Vieira, da Companhia de Jesus, foi um dos padres missionários que viveu ao longo do século XVII e, que, mesmo denunciando os maus tratos aos povos que aqui já habitavam, tinha a intenção de convertê-los ao cristianismo, essa “verdade superior” as demais religiões existentes (NEVES, 1997, p. 254).

A insistência no modelo ocidental ainda privilegia o eurocentrismo tornando o outro invisível, marginalizado e oprimido. E assim, vê-se tamanha dificuldade na aceitação dos povos originários e sua visão de mundo. Religião aqui não tem um sentido institucional. Assim como as tradições orientais, ela faz parte inseparável da totalidade da vida, em conjunto com sua filosofia, psicologia e sua vida cotidiana. É o conhecimento que se expressa na forma de viver a vida em sua totalidade, onde o valor na experiência é fundamental.

Com o perspectivismo ameríndio, desenvolvido por Eduardo Viveiros de Castro em colaboração com sua aluna Tania Stolze Lima é possível pensar sobre os indígenas a partir do xamanismo. No contexto de reflexões dialogais, a antropologia nos ajuda com nossas próprias análises. Assim, pode-se respeitar o modo como eles próprios veem e compreendem a si, e não tentar entendê-los e enquadrá-los a partir de uma visão eurocêntrica. Como diz Viveiros de Castro, “antes de buscar a reflexão sobre o outro é preciso buscar a reflexão do outro” (CASTRO, 2007, p. 14). Há uma importante mudança aqui, que também ocorre nas tradições orientais, por exemplo. O outro investigado não é um objeto, é também sujeito. E sem ter a intenção da neutralidade, importante também é o deixar-se afetar pelo outro. Precisamos nos alimentar desse modelo ameríndio de pensar e viver. Uma reindigenização seria antes de tudo, um potencial subversivo, uma descolonização (CASTRO, 2007, p. 32).

Segundo esse antropólogo, seu perspectivismo foi inspirado por Deleuze e Guatari e o manifesto antropofágico de Oswald de Andrade. Diz ele que houve em Oswald uma recusa de modelos forjados e que foi um dos únicos com um pensamento realmente decolonizador. Para o pensamento indígena, não há binarismos. Não há uma separação entre o físico e o moral, entre o

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Revista Transformar |13(1), jan./jul. 2019. E-ISSN:2175-8255 739 transcendente e o imanente, entre o natural e o cultural (CASTRO, 2007, p. 28). Enquanto o mental é escrito no corpo, o outro, seja este uma montanha, uma planta ou um animal é também um sujeito que vê a realidade de maneira diferente (CASTRO, 2007, p. 32). Para compreender a dimensão deste outro, é preciso perceber que a base do pensamento indígena é a humanidade. No fundo, todos são humanos. Assim como a animalidade figura na base do homem, para o indígena, esta é humana. Para os homens, nós éramos animais e deixamos de sê-lo com a emergência da cultura. Para os indígenas, os animais eram humanos. Tanto animais quanto humanos eram uma só coisa (CASTRO, 2007, p. 34). Ainda hoje, a partir desta compreensão, os animais veem os humanos como animais e a si mesmos como humanos, sem perder sua animalidade. As onças, por exemplo, são gente e, também, onça. Seria esta, uma cosmologia xamanística e uma compreensão da própria subjetividade. Ao mesmo tempo em que a natureza se mostra relacional entre os seres e a composição de mundo, ela afirma o reconhecimento de si. Os seres com alma veem a si e seus aparentados como humanos. Mas são reconhecidos pelos outros como animais, espíritos ou plantas (CASTRO, 2007, p. 36-37). A percepção da humanidade de todos os seres também é percebida pelo xamã.

2.1.XAMANISMO

Não é preciso ter xamãs para viver uma cosmologia xamanística (CASTRO, 2007, p. 36). Esse olhar faz parte da vivência de todos, seja enquanto comem, caçam ou dançam. Mas há uma especificidade em torno do xamã de uma tribo. A percepção dos diversos seres, sejam estes animais, plantas e espíritos, enquanto humanos, é o trabalho do xamã da tribo. Se o xamanismo não aparece apenas nas Américas (ele é utilizado em regiões asiáticas e árticas), é uma prática constante entre os povos ameríndios. Ele é uma base fundamental para o sustento saudável de toda a vida na tribo. O mundo invisível, que o xamã tem contato, coabita e existe neste mesmo mundo onde existimos. Não é um mundo para além deste. E esta é a base para uma relação com a floresta de maneira respeitosa e equânime. Não há uma superioridade que possa subjugar a natureza. Não há nada separado dela.

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Revista Transformar |13(1), jan./jul. 2019. E-ISSN:2175-8255 740 O xamã, segundo Eduardo Viveiros de Castro, possui a habilidade manifesta de cruzar barreiras corporais e adotar a perspectiva de subjetividades outras (CASTRO, 2002, p. 358). Xamã é aquele que sabe ver (VILAÇA, 2000, p. 62). Os xamãs são interlocutores e são capazes de compartilhar sua vivência com a comunidade.

Davi Kopenawa, dos povos Yanomami, na obra A queda do Céu, narra de que forma se constituiu o primeiro xamã, dentro da cosmologia de sua tradição. O livro, que além de ser um testemunho, vem com a denúncia da destruição de seu povo e é também um manifesto xamânico. Segundo Kopenawa foi Omama quem criou as terras, florestas, ventos, rios, animais e plantas. Ele retirou (criou) sua esposa da água. De peixe, ela se transformou em mulher e a humanidade nasceu de seu ventre. Omama criou os espíritos da floresta, das águas e dos animais a pedido de sua esposa. A intenção inicial seria que estes espíritos, os xapiris, afugentariam os espíritos maléficos e as doenças.

Também foi Omama que criou o primeiro xamã, que era seu filho. Os xamãs seriam os responsáveis pelo movimento da vida. Na fala de Kopenawa “o sol e a lua têm imagens que só os xamãs são capazes de fazer descer e dançar” (KOPENAWA, 2015, p. 82). Conta-se então sobre tornar seu filho um xamã:

Mais tarde, o filho de Omama tornou-se um rapaz e seu pai quis que ele aprendesse a fazer dançar os xapiri para poder tratar os seus. Buscou uma árvore yakoana hi na floresta e disse ao filho: ‘com esta árvore, você irá preparar o pó de yakoana! Misture com as folhas cheirosas maxara hana e as cascas das árvores ama hi e amat ahi e depois beba! A força da yakoana revela a voz dos xapiri. Ao bebê-la, você ouvirá a algazarra deles e será sua vez de virar espírito. Depois soprou yakoana nas narinas do filho com um tubo de palmeira

horoma (KOPENAWA, 2015, p. 84).

Algumas tribos fazem esta ligação através de danças, de músicas e rituais. Outras utilizam plantas. As substâncias utilizadas pelos povos originários inicialmente foram descritas por seus efeitos alucinógenos (CASTRO,2015, p. 38). Muitos dos efeitos e comportamentos dos xamãs são compreendidos como patológicos pela psiquiatria (DALGALARRONDO, 2008). Mas há muitas pesquisas sendo desenvolvidas sobre as plantas psicoativas. Outro nome para elas é enteógenas. Autores como o psiquiatra tcheco

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Revista Transformar |13(1), jan./jul. 2019. E-ISSN:2175-8255 741 Stanislav Grof e os psicólogos brasileiros Phillipe Bandeira de Mello e Álvaro da Veiga Jardim fazem parte destas investigações. Segundo estas pesquisas mais recentes o termo alucinógeno não é adequado. Estas plantas produziriam estados não comuns ou ampliados de consciência (GROF, 1994, p. 34).

O peruano Carlos Castañeda foi um dos precursores nesse estudo. Sua dissertação de mestrado se tornou um livro best-seller, chamado A erva do

diabo. Após esta, ele escreveu diversas outras obras para falar do tempo de

aprendizado que teve ao lado de seu mestre-xamã, Don Juan. O ritual da tribo Yaquis é a partir do peiote, substância mescalina, um cacto da região do deserto de Sonora no México. Diz em seu livro:

Para Dom Juan, a importância dessas plantas residia em sua capacidade de provocar estados de uma percepção especial num ser humano. Assim, ele me levou a experimentar uma série desses estados com o objetivo de expor e dar validez a seu conhecimento. Eu os denominei “estados de realidade não comum”, significando uma realidade incomum, ao contrário da realidade da vida de todo dia. A distinção baseia-se no significado inerente dos estados da realidade não comum. No contexto do conhecimento de Dom Juan eram considerados reais, embora sua realidade fosse diferenciada da realidade comum. Dom Juan acreditava que os estados de realidade não comum eram a única forma de aprendizagem pragmática e o único meio de se adquirir o poder (CASTAÑEDA, 1970, p. 9).

No Brasil, a tradição do Santo Daime trabalha com chá ayahuasca produzido por duas plantas, a chacrona e o cipó mariri. Esta composição também é utilizada em outros países, como na Colômbia, mas com outros nomes. O rapé (tabaco, ervas e cinzas das árvores) também é utilizado entre os indígenas. Passar rapé seria uma forma de absorver a energia dos espíritos. Outras substâncias encontradas em cogumelos, além das folhas da maconha e da coca também fazem parte da utilização indígena, tanto para uso ritualístico como medicinal. Ingenuidade seria pensar que utilizam uma ou duas substâncias. São diversas, que hoje estão sendo catalogadas. Só em Oaxaca no México, setenta e cinco bebidas sagradas estão sendo registradas em um livro (HINOJOZA, 2019).

A realidade que eles tocam a partir destas plantas é chamada pelos povos originários de sonho. O sonho é a realidade. Para os indígenas eles ligam mundos. Segundo Kopenawa, os brancos não sonham tão longe quanto eles sonham. É com o sonho que se guardam as leis que devem ser seguidas (KOPENAWA, 2015, p. 390). Quando se desperta, essas palavras estão

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Revista Transformar |13(1), jan./jul. 2019. E-ISSN:2175-8255 742 coladas em seus pensamentos e eles as compartilham. Nos sonhos, pode-se ver os animais e plantas como humanos. Assim, a roupagem do mundo animal e vegetal apenas cobriria sua essência verdadeiramente humana (DESCOLA, 2016, p. 13).

Outra grande importância do sonho é a defesa da floresta e da natureza como um todo (KOPENAWA, 2015, p. 466). A humanidade não é algo separado da natureza. É parte integrante, é a própria natureza, com seus componentes minerais, água, etc. Se a natureza perece, a humanidade perece com ela. A natureza tratada pelos povos originários possui personalidade. Montanhas por exemplo, formam casais, trocam afeto, mostram que estão felizes ou tristes. Quando são nomeadas, elas comungam com os indígenas e se tornam seus parentes (KRENAK, 2019, p. 18-19). Já a cultura eurocêntrica gira em torno da posse e do que se pode lucrar com ela.

Para Aílton Krenak, indígena da tribo com o mesmo nome, não se pode desistir do sonho. Ainda há pessoas no mundo que cantam, dançam e fazem chover (KRENAK, 2019, p. 26). Mas isto não é uma fala ingênua. É a fala esperançosa, de um povo que já foi dizimado, que ainda sofre matanças, agressões, perdas de terras. São ameaçados por garimpos, mineradoras, pelo governo, pela presidência da República. É uma fala de resistência e fundamental para a permanência da existência da humanidade e do planeta. São essas a religiosidade e psicologia ameríndias as quais o homem branco deveria se abrir. Deixar de sonhar sonhos egocentrados e se abrir para sonhos maiores. Sonhos que sustentam o céu de Kopenawa e dos tantos povos originários das Américas.

3.MULHERES INDÍGENAS

As mulheres indígenas vêm incansavelmente liderando e nutrindo sonhos também. Da posição de submissão, elas têm levantado a voz a partir da poesia. Em concordância com o sistema de tradição oral, elas seguem respeitando suas tradições e mostrando que suas crenças ainda estão vivas e se sintonizam com a natureza e com a alegria, como em Alegria de Lucila Lema, de origem quechua do Equador:

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Revista Transformar |13(1), jan./jul. 2019. E-ISSN:2175-8255 743 El princípio no había dioses lejanos

Estaba la luna vestida de escarcha Tocando com sus largos cabelos Los aposentos sagrados del sol. Desperto él entre rocas y caminhando

Creció verdosos vales, animales grandes y pequeños. Transnochando veneraron al dios luminoso

Por haber permitido la vida. Hubo gran algarabía. Sapos y condores abuelos

Llamaban com cânticos a la lluvia,

Que es mujer, para hacer parir a la tierra. Vinieron entonces los guaguas, que eran Las montañas, las estrellas, el maíz. De ellos nacieron

Los hombres y las mujeres, Y entre ellos hubo amores Y hubo fiesta

Y alegria (LEMA apud FÉLIX, 2017, p.8-9).

Se no período colonial era recorrente escutar que elas eram “caçadas a laço” (FUNARI; PIÑON, 2016, p. 16), hoje elas marcham em movimentos políticos lutando pelo que acreditam. Tarcila Rivera, quéchua, é a fundadora do

Enlace Continental de Mujeres Indígenas de las Americas e do Foro Internacional de Mujeres Indígenas. Segundo ela, há muitos feminismos e a

mulher indígena deve encontrar seu próprio conceito de feminismo. E isto inclui os direitos coletivos e de território (RIVERA, 2018). Segundo Ro’Otsitsina Xavante, há muita violência de gênero. Mas também posições distintas das leis nacionais. As meninas, por exemplo, já são mulheres com quatorze anos, distinto das regras estabelecidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Não há divisão por idade e sim por grupo etário (ROSSI, 2019).

Na Marcha das Margaridas, que acontece a cada quatro anos, cem mil mulheres latino-americanas do campo, da floresta e das águas caminharam e se uniram à primeira marcha das mulheres indígenas no Brasil, chamada de

Território: nosso corpo, nosso espírito, com a presença de três mil indígenas.

Como narra Nena Fulni-ô, ao fim da caminhada: “Estou cansada, cantei o dia todo, dancei. Mas valeu à pena” (FULNI-Ô apud SAMPAIO, 2019). A alegria é resistência, é decolonial. Ela é a potência para a construção de um mundo que permite os diversos mundos em coexistência, de maneira digna, justa e pacífica.

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Revista Transformar |13(1), jan./jul. 2019. E-ISSN:2175-8255 744 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para abordar perspectivas sobre religião e psicologia no universo indígena ameríndio, faz-se necessário dissolver fronteiras. Ambas se entrecruzam e se interconectam revelando a riqueza que sustenta a subjetividade indígena. O valor do transcendente se revela em pequenos atos do cotidiano como comer e caçar. O sagrado não está em um lugar distante. Ele se apresenta no imanente, nos cantos, nas danças e na vida diária. Tudo aqui deve ser respeitado: os sonhos, a natureza, as relações humanas, as relações de todos os seres. Enquanto mantivermos o olhar da ciência ocidental, que apenas se ampara pela visão lógico-racional do mundo, pouco teremos que aprender com eles. Importante se faz uma abertura para escutar o outro. Não um outro ingênuo, mas, com a experiência de que, mesmo sendo dizimados e perseguidos, seguem incansavelmente um caminho que se sustenta pela alegria e pela esperança. Como nos diz Viveiros de Castro, precisamos viver como eles. Pensar um outro mundo, mais fraterno.

REFERÊNCIAS

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