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Dentre muros : uma etnografia de um hospital psiquiátrico

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Michelle Alcântara Camargo

Dentre Muros:

Uma etnografia sobre um hospital psiquiátrico.

Campinas 2017

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Michelle Alcântara Camargo

Dentre Muros:

Uma etnografia sobre um hospital psiquiátrico

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutora em Ciências Sociais.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Conceição da Costa

Este exemplar corresponde à versão final da tese defendida pela aluna Michelle Alcântara Camargo e orientada pela Profª. Drª. Maria Conceição da Costa.

Campinas 2017

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 07/07/2017, considerou a candidata Michelle Alcântara Camargo aprovada.

Profa. Dra. Maria Conceição da Costa

Profa. Dra. Anna Paula Vencato

Prof. Dr. Bruno Dallacort Zilli de Jesus

Profa. Dra. Carolina Branco de Castro Ferreira

Profa. Dra. Taniele Cristina Rui

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna.

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AGRADECIMENTOS

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq, pelo apoio e financiamento de pesquisa.

Ao Programa de Doutorado em Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.

Ao Núcleo de Estudos de Gênero -PAGU.

Ao Arquivo Edgard Leuenroth pelo tratamento imagético do acervo Iconográfico do Hospital Benedita Fernandes.

A Maria Conceição da Costa, pela orientação e correções durante todo o período de doutoramento.

A Marko Monteiro, pela orientação, correção e incentivo no período inicial do processo de doutoramento.

A Susana Durão, pelo trabalho de aprendizagem e prática em docência na disciplina de Antropologia Urbana durante o Programa de Estágio Docente. A Paulo Dalgalarrondo pelo aceite e arguição rica e generosa durante no exame de qualificação.

A Taniele Rui pelas orientações bibliográficas, a leitura atenciosa, generosa e cuidadosa durante o exame de qualificação e de defesa.

A Anna Paula Vencato, Carolina Branco, Bruno Zilli, Eide Abreu, Susana Durão e Marko Monteiro pelo aceite ao convite de composição de banca examinadora e pelas contribuições generosas e atentas, nas respectivas arguições no exame de defesa.

A Eunice Nakamura pela coordenação na pesquisa de campo com os moradores das residências terapêuticas de Santo André.

Aos professores do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Susana Durão, Taniele Rui, Carolina Branco, Isadora Lins França, Christiano Tambascia, Suely Kofes, Regina Facchini, Bibia Gregori, José Maurício Arruti e Nádia Farage,

Aos moradores, funcionários e gestores do Hospital Benedita Fernandes, por todo material concedido e disponibilidade para entrevistas e diálogos sem os quais essa pesquisa não teria sido possível.

A Giulia Levai pela revisão, leitura e amizade sincera durante todo o processo de doutoramento.

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A Bruno Puccinelli pelo auxilio na formatação do texto e a Bárbara Luisa Pires e Giuseppe de Maria pelo tratamento de imagens para a Exposição Fotográfica das Jornadas de Antropologia John Monteiro de 2015.

Aos meus pais e minha família, pelo apoio, afeto e cuidado durante toda minha trajetória.

A Sarah Rossetti, Renan Leonel, Luis Ótavio, Ludmila Oze, Raisa Fagundes, Alcione Moreira, Lucas Silva, Thamy Anandita, Petras Antonelli, Mirela Garcia, Patricia Lessa, Patrik Vezali, Flávio Rabelo, Vinicius Zanoli, Rubens Fonseca, Guilherme Christol, Paulo Vitor, Rosa Oliveira, Eide de Abreu, Carolina Bonomi, Paulo Vitor, Igão, Periquito Peres, Silvana, Rafael Nascimento, Katiuscia Moreno, Tony, Teresa Cristina, Priscila Favato, Celia Celem, Sirlene Ferreira, Ivana Simili, Rosana Steike, Flavio Macedo e tantos outros amigos sinceros e companheiros de jornada.

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RESUMO

Esta tese se constitui como uma etnografia de um hospital psiquiátrico, e busca compreender como se estabelecem as relações entre uma instituição psiquiátrica e a política de cuidado e controle dos considerados doentes mentais. Organizada em três eixos, analisa primeiramente a trajetória da fundação do Hospital Benedita Fernandes – (HBF), locus desta pesquisa – enquanto entidade filantrópica, trajetória que aponta para o pioneirismo de mulheres como lideranças em associações assistencialistas durante a primeira metade do século XX. A partir das narrativas sobre a trajetória de Benedita Fernandes, considerada fundadora da instituição que ganhou seu nome, buscou-se compreender a trama onde a filantropia, a psiquiatria e o movimento espírita se interpelam, para se tornar elementos centrais na construção do HBF. Durante toda sua trajetória, o Hospital tornou-se morada de muitas pessoas que, por meios dos conflitos e desigualdades sociais, passaram a se constituir como moradores deste espaço. Como segundo eixo, interessou a esta tese analisar as categorias sociais que marcam as diferenças geradoras de desigualdades sociais, capazes de moldar experiências cotidianas, permeando relações de gênero, raça, classe e geração. Para tanto, utilizei como fontes os prontuários das pessoas que se tornaram moradoras da instituição – analisando os dados referentes às terapêuticas empregadas e às classificações ali presentes –, bem como entrevistas e diálogos com a equipe terapêutica e administrativa do HBF. O último eixo se dedica às elaborações dos próprios sujeitos internados, mais especificamente, às (re)significações do morar dentre muros, as experiências cotidianas e os agenciamentos na vivências dos últimos moradores do Hospital Benedita Fernandes. E, avalia, por fim, como as narrativas do delírio (re)significam as experiências desses indivíduos na (re)construção de suas próprias vidas.

Palavras-chave: Hospital psiquiátrico; Gênero e saúde; Etnografia; Mulheres; Saúde mental.

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ABSTRACT

This thesis is an ethnography of a psychiatric hospital, and it aims to understand the establishment of the relationship between a psychiatric institution and the politics of care and control of those considered as mentally ill. Organized in three parts, it first analyzes the path of the foundation of the Hospital Benedita Fernandes – (HBF), locus of this research – as a philanthropic entity and the role of the women who established themselves as a leadership to these welfare associations, during the first half of the twentieth century. Through the narratives about the path of Benedita Fernandes, the named founder of the institution, I seek an understanding of the plot where philanthropy, psychiatry and the Spiritist movement interpellate themselves and become responsible for the construction of the HBF. Throughout its history, as consequence of long-term hospitalizations, the Hospital Benedita Fernandes through asylum policies and became the home for many people who, by means of social conflicts and inequalities, began to constitute themselves as residents of the space. To understand analytically what social categories defines the differences generated by social inequalities, shaped by everyday experience, as relations of gender, social class, and generation permeated it. As a methodology, I used the data regarding the therapeutics and classifications present in the medical records of people who became residents of the institution, applied interviews and dialogues with the therapeutic and administrative staff. Finally, I analyze the (re) significations of “living among walls”, how they organize the space, the daily experiences and assemblages in the experiences of the last residents of the Hospital Benedita Fernandes and from the narratives of delirium (re) constructing their own lives.

Keywords: Psychiatric hospital; Gender and health; Ethnography; Women Mental health.

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SUMÁRIO

Introdução...11

Metodologia...14

Organização da tese...16

Capitulo I: Trajetória de um hospital Psiquiátrico...20

1. A trajetória de Benedita Fernandes...21

2. Benedita Fernandes e a Associação das Senhoras Cristãs...26

3.O movimento espírita, o assistencialismo e os hospitais psiquiátricos...33

4. A construção do Hospital Psiquiátrico...36

5. A arquitetura do hospital...42

6. O hospital dentre muros...44

7. A Ala feminina...48

8. Conclusão...51

Capitulo II: Reforma psiquiátrica, prontuários e marcadores de diferenças 1. O Hospital Benedita Fernandes e a reforma psiquiátrica...54

2. Prontuários e marcadores sociais de diferenças...67

3. Conclusão...74

Capitulo III: “Minha casa é aqui”: (Re)significações do morar dentre muros...75

1. Narrativas do delírio e significações do morar...,...78

2. Afetividade e noção de moradia...82

3. Quartos, memórias fotográfica e religiosidades...89

Considerações Finais...94 Referências Bibliográficas...98 Anexos...102 Anexo I...102 Anexo II...103 Anexo III...104

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Introdução

Quando iniciei meu doutoramento no Programa de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas, minha idéia inicial era investigar o cotidiano de alguns hospitais psiquiátricos na região de Araçatuba, interior do estado de São Paulo, e assim como fez, Veena Das (2015), lançar um olhar sobre a vida comum, o cotidiano, a ética do dia a dia na pobreza, na doença e nas relações familiares. A história de algumas mulheres nesse universo psiquiátrico e pobre, a quantidade de mulheres que se encontravam internadas e que passaram pela instituição, me chamaram a atenção como sujeitos de pesquisa.

Porque havia uma quantidade maior de mulheres nessas instituições, pobres, sem recursos, aparentemente sem relações familiares que ajudassem no cuidado? Essas questões me fizeram refletir sobre o que Veena Das e outros pesquisadores tem buscado na esperança de produzir evidência antropológica de outra forma, “of the kind that could be used for serious advocacy on sanitation, health care, or everyday violence.” (Das, 2015).

Deste modo, interessava-me compreender como as trajetórias dos sujeitos que se encontravam em instituições psiquiátricas, tornavam visíveis realidades alocadas fora das cartografias humanas (Biehl, 2005) e como estas pessoas elaboravam agenciamentos diversos em relação ao sofrimento e as rupturas das relações sociais e familiares decorrentes de ausência de recursos financeiros no cuidado com a saúde mental.

Além de minhas indagações, a bibliografia sobre saúde mental nas ciências sociais me impulsionou para o aprimoramento de minhas observações. Nas ciências sociais, a bibliografia clássica sobre saúde mental e hospitais psiquiátricos parte da perspectiva de que as instituições psiquiátricas se desenrolam como práticas seculares de disciplinarização, moralização e contenção de indivíduos socialmente desviantes (Carrara, 1998). M. Foucault, classicamente, analisa que a reclusão daqueles que são diagnosticados como loucos tem um caráter institucional e, que, ao ter como

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medida questões econômicas e de precaução social, a internação ganha o valor de intervenção (Foucault, 2010).

Nessa perspectiva, o internamento ou gesto de internação pode ser definido como banimento social que visava isolar, através da reclusão, os sujeitos “indesejáveis” e, deste modo, atuava como um mecanismo social que legitimava o sonho burguês de uma cidade onde “imperaria a síntese autoritária da natureza e da virtude” (Foucault, 2010:79).

Assim como tantos outros estudos sobre grandes sanatórios no Brasil (Biehl, 2005,2008; Carrara, 2010; Cunha, 1986, Facchinetti et al, 2008, Segawa, 2002) apontam justamente para o caráter de reclusão, disciplinarização e moralização dos pacientes dessas instituições, erguidas com o intuito de isolar os indivíduos socialmente desviantes (Velho, 1974), através de grandes muros e pavilhões.

Diferentemente dos estudos mais clássicos sobre instituições psiquiátricas e seu caráter de banimento social (Foucault, 2010), Veena Das (2015) caminha em outra direção. A autora está interessada em compreender como os movimentos limítrofes do cotidiano estão relacionados com diferentes formas de suportar o sofrimento, bem como entender como pequenos atos habituais, relacionados a gentilezas e afetos, possibilitam que alguns sobrevivam enquanto outros morrem (Das, 2015).

Nesse sentido, inspirada pelo trabalho de Veenas Das (2015), estou interessada em compreender etnograficamente a vida de pessoas pobres, consideradas improdutivas e que foram diagnosticadas com doenças mentais. Em outras palavras, interessa-me compreender como as pessoas consideradas como portadoras de doenças mentais graves, institucionalizadas e tuteladas pelo Estado, (re)elaboram a exclusão social e as significações do morar, a partir de atos cotidianos, no interior dos muros de uma instituição psiquiátrica.

A ideia de pesquisar as significações sobre moradia dentre os muros de um hospital psiquiátrico surgiu após um trabalho de campo em uma residência terapêutica na cidade de Santo André-SP, que consistiu em coletar relatos e observações sobre como os moradores de uma residência terapêutica significavam cotidianamente o morar nessas casas (Furtado et al, 2013).

Na residência terapêutica de Santo André, foi possível observar marcadores sociais da diferença como classe, geração e gênero: a maioria dos

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moradores eram homens que provinham de classes populares e possuíam uma faixa etária de 50 a 70 anos. Neste trabalho de campo, também foi observado que esses espaços se configuravam, na maioria das vezes, em zonas de abandono. Ademais, a observação in loco dessa residência terapêutica, assim como a realizada por Biehl (2005) no Hospital Psiquiátrico Vita, tornou visíveis realidades que existiam através e além de governabilidades.

Deste modo, as observações de campo realizadas com os moradores da residência terapêutica de Santo André me levaram à compreensão de que a trajetória das pessoas pobres, diagnosticadas com transtornos mentais graves e que passaram longos anos de suas vidas internadas como pacientes psiquiátricos nos antigos sanatórios, está atrelada também a deslocamentos institucionais e (re)elaborações dos significados do habitar nessas instituições.

Em relação aos sujeitos pesquisados nesta etnografia, eles se constituem principalmente pelas mulheres que se encontravam na condição de moradoras do Hospital Benedita Fernandes, HBF. Moradoras é um termo utilizado pelo próprio hospital para distinguir as mulheres que estão internadas provisoriamente daquelas que se tornaram moradoras do Hospital ou do chamado Abrigo, pequena casa nas adjacências do HBF, gerenciado e mantido pelo mesmo, ou seja, as moradoras são mulheres que permanecem internadas no hospital psiquiátrico há mais de um ano.

Por meio das narrativas e histórias de vida que essas mulheres me contavam e aquelas que pude coletar em seus prontuários, foi possível compreender os significados por elas construídos sobre suas experiências de internamento e reclusão, locadas não apenas no corpo, mas também presentes em uma rede de afetos, relações e (des)encontros que se constituem nesse diálogo, entre a modernidade e a loucura nas sociedade urbanas contemporâneas (Das, 2015).

Assim, os sujeitos privilegiados pelo foco desta pesquisa, são mulheres na condição de pacientes e moradoras de um hospital psiquiátrico e que se encontram na condição de tuteladas pelo Estado, vivenciando diferentes possibilidades de vida e diversas formas do habitar dentre muros.

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Metodologia

Como fontes para a compreensão das primeiras políticas públicas de saúde mental no munícipio de Araçatuba, foram levantadas fotografias históricas de diferentes períodos, entre 1943 e 1999 e reportagens publicadas na imprensa local sobre o Hospital Benedita Fernandes, entre 2009 e 2012, HBF, além de um livro sobre a trajetória de Benedita Fernandes, bem como fotos, entrevistas e diálogos realizados durante o trabalho de campo com os moradores do hospital, funcionários e gestores, como ilustrado na tabela abaixo.

FONTE DATA REGISTRO

Jornal Folha da manhã 11 de agosto de 1995 Acervo HBF

Jornal Folha da Manhã 12 de agosto de 1995 Acervo HBF

Jornal Folha da Região 16 de agosto de 1995 Acervo HBF

Jornal Folha da Manhã 17 de agosto de 1995 Acervo HBF

Folha de São Paulo 10 de julho de 2009 Acervo HBF

Fotos do HBF 1944-1995 Acervo HBF

Fotos Interior do prédio do HBF 2014-2017 Registro de Campo

Livro a Dama da Caridade 1988 Acervo HBF

Entrevistas e diálogos como paciente funcionário e gestores.

2014-2017 Registro de Campo

Plano de Ação de Atividades a ser realizadas pelos terapeutas e técnicos no exercício de 2014 - Associação das Senhoras Cristãs mantenedora do Hospital Benedita Fernandes

2014 Acervo HBF

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Tais fontes foram coletadas com vistas a compreensão dos itinerários terapêuticos das pessoas que por ali se encontravam internadas. Por fim, utilizo a análise de dezesseis prontuários, que apontou a identificação de marcadores sociais de diferenças presentes na produção de diagnósticos destes pacientes.

Além deste levantamento documental, foram também utilizadas como material de análise as interações entre pacientes e entre pacientes e funcionários, com o intuito de compreender as relações sociais entre os sujeitos que circulam no HBF, seus conflitos, afetos e ambiguidades. Com todo o material levantado acima, coletado entre os anos de 2014 e 2017, foi possível construir a tese com três eixos, que se interconectam para tornar possível e visível essas realidades.

Assim, é possível traçar uma linha do tempo sobre a história do Hospital Benedita Fernandes, desde a fundação da Associação das Senhoras Cristãs em 1932 (Carvalho, 1988) período próximo a psiquiatrialização do noroeste de São Paulo, iniciada na década de 1930, como podemos observar através da construção de hospitais psiquiátrico nas cidades de Araçatuba, Bauru, Penápolis, Marilia e São Jose do Rio Preto1.

Em 1947 é inaugurado o prédio do HBF, seus grandes muros e estrutura de alas e salas. Em 1996 o hospital realiza suas primeiras reformas, com vistas a diminuir a estrutura manicomial presente em sua arquitetura, por um prédio de áreas mais espaçadas e ventiladas, bem como uma ampliação de sua equipe técnica e médica e suas terapêuticas.

Em 15 de novembro de 2015, vinte e cinco anos depois do hospital realizar estas reformas, o mesmo se vê sem condições para sua continuação e fecha suas portas, passando a ser morada apenas de seus ex- pacientes, que aguardariam até os próximos dois anos, em abril de 2017, as suas transferências paras as residências terapêuticas sob a gestão da Associação das Senhoras Cristãs, conforme a linha do tempo abaixo:

1

Disponível em http://www.bezerra.org.br/interna.asp?Ir=area.asp&area=7. Acesso em 15 de maio de 2015. Disponível em http://www.hem.org.br/a-instituicao. Acesso em 17 de maio de 2015. Disponível em http://www.folhadaregiao.com.br/Materia.php?id=334850. Acesso em 17 de maio de 2015.

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Assim para que a pesquisa de campo pudesse dar prosseguimento as minhas observações e referências bibliográficas sobre a saúde mental e as ciências sociais, para compreender como se realizou o processo de construção de um hospital psiquiátrico, seus entornos e suas politicas públicas de saúde mental, foram necessárias autorizações através do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Campinas, bem como a aprovação posterior do Comitê de Ética do Hospital Benedita Fernandes. Entre os trâmites, de elaboração do projeto a aprovação, decorram quatro meses. Com a aprovação iniciei minha pesquisa no ano de 2014 e a finalizei em 2017.

Organização da Tese

No primeiro capítulo retomo a história do Hospital Benedita Fernandes, locus desta pesquisa, através da trajetória de sua fundadora, Benedita Fernandes. Esta, traz à tona a relação entre o movimento espírita e as entidades filantrópicas, responsáveis pela construção, na década de 1940, dos primeiros hospitais psiquiátricos no noroeste do Estado de São Paulo.

A trajetória de Benedita Fernandes apresenta muitos ângulos. Se, num primeiro momento, Benedita foi considerada uma mulher louca e perigosa que perambulava pelas ruas da cidade de Araçatuba, sendo muitas vezes detida na cadeia municipal, sua figura ganha contornos religiosos, na medida em que Fundação da Associação das Senhoras Cristãs

1932

Construção dos Hospitais Psiquiátricos no Noroeste Paulista

1940

do Prédio do Construção HBF

1947

Reforma Psiquiátrica

1990

Fechamento do HBF

2015

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Benedita se liga ao movimento espírita local, e passa a dedicar-se à filantropia, junto a uma associação de mulheres, responsável pela construção de casas que se destinariam especialmente ao cuidado e abrigo de crianças órfãs, idosos e doentes mentais.

Em 1932, foi fundada por Benedita Fernandes e demais mulheres ligadas ao movimento espírita local, a entidade filantrópica Associação das Senhoras Cristãs, responsável pela criação e gestão do Hospital Benedita Fernandes, desde 1947, ano em que foi inaugurado (Carvalho, 1987), até 2015, ano em que encerrou suas atividades.

Para este levantamento histórico foram coletadas fotografias que compreendem o período entre a década de 1930 e a de 1990, presentes no acervo histórico do HBF. Tal levantamento foi feito com o intuito de enriquecer os estudos sobre o pioneirismo das mulheres nas associações filantrópicas do país, na contramão de uma historiografia tradicional que, por muitas vezes renegou as mulheres na filantropia como coadjuvantes e organizadoras de festas (Mott, 2005).

Deste modo, por meio da trajetória de Benedita Fernandes, foi possível compreender a história de fundação do hospital psiquiátrico que leva seu nome, e, a partir da abordagem da história do HBF, foram analisadas as primeiras ações voltadas para a saúde mental no noroeste de São Paulo, suas relações com as entidades filantrópicas, a influência do movimento espírita local, dentro destas instituições, e ainda, a relação dessas entidades nas políticas locais voltadas para a saúde mental.

Além da questão da trajetória de Benedita Fernandes e da construção do HBF, analiso, no capítulo I, como a arquitetura hospitalar presente na configuração do prédio do HBF reproduz a lógica prisional de reclusão e de vigília (Foucault, 2010), operando como as instituições totais no cuidado, tratamento e asilamento da loucura (Goffman, 2010).

No capítulo II, abordo a história do Hospital a partir das reformas do mesmo, iniciada na década de 1990 com as novas diretrizes relacionadas às políticas de saúde mental, como a desinstitucionalização ou desospitalização, preconizadas pelo movimento da reforma psiquiátrica (Amarante, 1994), que através de portarias, reduziu o número de leitos e o tempo de internação.

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Como consequência destas alterações, a partir dos anos 2000 houve um aumento significativo do número de internações judiciais, também chamadas de compulsórias, o que implicou num alargamento do número de moradores no interior do hospital psiquiátrico em questão.

Com o intuito de compreender que tipos de pessoas estavam sendo internadas compulsoriamente e/ou se tornando moradores do hospital, foram coletados dezesseis prontuários, de homens e mulheres, entre os anos 2014 e 2017. Com a análise de tais prontuários, foi possível observar certos padrões relativos aos marcadores sociais de diferenças como gênero, geração, classe social, escolaridade e raça.

Esses documentos indicam, além desses marcadores, certos tipos de diagnósticos e terapêuticas medicamentosas relacionados aos denominados transtornos mentais. Tais diagnósticos e terapêuticas aparecem repetidamente, revelando quais tipos de doenças mentais e quais medicamentos estão atrelados a certos marcadores de diferenças. Outro aspecto evidenciado pela documentação é aquele que aponta quais doenças mentais são consideradas geradoras de rupturas dos laços sociais e familiares, consequentes a longas internações nos hospitais psiquiátricos.

Para ir além da institucionalização de pessoas por meio de diagnósticos, analiso, no capítulo III, por meio das anotações de dados de campo, sobretudo, aquelas extraídas de diálogos com os moradores do Hospital Benedita Fernandes. Tais diálogos permitiram a compreensão dos significados que estes moradores constroem sobre moradia em um hospital psiquiátrico, e como estabelecem relações sociais dentre muros.

Deste modo, nesta etnografia, tentei ir além de uma descrição densa, através de uma interpretação analítica (Geertz, 1978) dos dados coletados, que, juntamente com as anotações de campo e a documentação levantada, configuram uma colcha de retalhos (Rui, 2012), com a pretensão de tornar visíveis histórias de pessoas silenciadas e marcadas por diversas categorias sociais e biomédicas.

Se por um lado, essas categorias, vindas de suas experiências de exclusão e da produção de diagnósticos, impõem aos sujeitos institucionalizados uma existência isolada da sociedade, a capacidade de agência dessas pessoas não as abandona, ao passo que as singularidades de

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suas vivências oferecem-lhe a possibilidade de (re)invenções de si, através de narrativas em delírio, histórias de vida recontadas a partir de positivações sobre o sofrimento.

Finalmente, o que se buscou nessa etnografia foi contar as histórias de mulheres invisibilizadas, de pioneiras na filantropia á portadoras de doenças mentais, as consideradas transtornadas, e que extrapolam as fronteiras da normalidade, reconstruindo a trajetória de suas vidas por agenciamentos diversos.

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Capítulo I:

A trajetória de um hospital psiquiátrico

Respiro e persigo uma luz de outras vidas. E ainda que as janelas se fechem, meu pai É certo que amanhece. Hilda Hilst, A obscena senhora D.

Este capítulo se dedica ao resgate de memórias presentes na biografia de Benedita Fernandes, e nas fotografias do antigo Sanatório Benedita Fernandes, com vistas à compreensão do protagonismo feminino na elaboração e execução de associações filantrópicas do estado de São Paulo, pouco antes da metade do século XX.

Durante os primeiros anos de 1930, momento da construção das primeiras casas assistencialistas para crianças, idosos e os considerados “doentes mentais” na cidade de Araçatuba (Pinheiro; Bodstein: 1997) tais associações filantrópicas construíram relações com o movimento espírita. Assim, a história do hospital psiquiátrico Benedita Fernandes, locus desta pesquisa, mostra-se atravessada pela conjectura política e social da época de sua fundação, pela relação com os movimentos religiosos espíritas, e pela história das associações filantrópicas no Brasil.

Para uma melhor compreensão dos principais fios da trama desta instituição, desde a construção do hospital psiquiátrico, ex-sanatório, até o modo como ele se configura atualmente, faz-se necessária a retomada da trajetória de vida da senhora que deu nome à instituição, e que foi considerada sua fundadora: Benedita Fernandes.

Abro este capítulo com a revisão das narrativas sobre a trajetória de Benedita, buscando a compreensão da trama onde a filantropia, a psiquiatria e o movimento espírita cruzam seus caminhos, tornando-se responsáveis por

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proporcionar, as condições necessárias para a construção do Sanatório Benedita Fernandes, em 1943, reinaugurado na década de 1990, como Hospital Benedita Fernandes, podendo preservar seu papel institucional tanto no cuidado com a saúde mental, quanto no controle dos indivíduos considerados transtornados.

1. A trajetória de Benedita Fernandes

Antes de adentrar a trajetória de Benedita Fernandes, para lançar luz sobre a história do hospital psiquiátrico, é necessário definir o que se entende por trajetória nesta tese.

Suely Kofes (2001), em etnografia sobre a trajetória de Consuelo Caiado, avaliando a impossibilidade de se contar uma história de vida a partir dos relatos da própria pessoa biografada, – forma pela qual a antropologia clássica se utilizou do método biográfico – evidencia ao leitor que não pretende reconstruir a vida de Consuelo em narrativa, mas sim, focar seu interesse nas experiências do sujeito de pesquisa. Ao perseguir a história de vida de Consuelo Caiado, através de sua trajetória, por meio de narrativas plurais, contadas por outros sujeitos que não ele, a autora afirma: “penso portanto que posso situar melhor o que estarei aqui chamando de trajetória: o processo de configuração de uma experiência social singular” (Kofes, 2001: 27).

Assim como na narrativa sobre a trajetória de Consuelo (Kofes, 2001), dada a impossibilidade de se narrar a história de vida de Benedita por ela mesma, tentei priorizar, neste capitulo, sua trajetória social. Ou seja, no que se refere ao seu papel de fundadora, articuladora e gestora de uma entidade filantrópica destinada à prestação de serviços médicos, sanitários e educacionais para a população mais pobre, a partir da década de 1930, na cidade de Araçatuba, interior de São Paulo. Faço-o sob o intuito de apresentar ao leitor a trama que levou à construção do sanatório, mais tarde, transformado em hospital psiquiátrico.

Em outras palavras, a experiência social de Benedita é singular, visto que a mesma foi a responsável pela criação e gestão de práticas assistencialistas destinadas às classes populares, assim como aconteceu com

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outras entidades filantrópicas e assistencialistas criadas por mulheres (Mott, 2005).

Pouco se sabe sobre a trajetória de Benedita Fernandes. Dona Benedita, nome pelo qual é retratada, foi sempre descrita pelos informantes com muita afetividade. Essa afetividade, presente nas falas dos funcionários e dos pacientes do Hospital, também se faz presente nas fotografias e nas cartas de crianças e adultos que moraram no Hospital. Nas fotografias levantadas no acervo iconográfico do HBF, podemos ver duas crianças que viveram no orfanato, conviveram com Benedita e que registram seu afeto, anexando às fotografias algumas inscrições como esta: “À Mãe Dita, com nosso afeto”.

Figura 1. Frente da foto endereçada a Benedita Fernandes, 1944. Acervo Hospital Benedita Fernandez.

Figura 2. Verso da foto endereçada a Benedita Fernandes, 1944. Acervo Hospital Benedita Fernandes.

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Além das cartas e fotografias do acervo do HBF, que remetiam a essa identificação afetiva em relação a Benedita Fernandes, sua história de vida se confunde com as histórias das mulheres que moravam no chamado Abrigo, casas destinadas as mulheres e homens que passaram por uma longa institucionalização. No primeiro ano da pesquisa de campo, tive oportunidade de conversar com Laurinha, moradora do Abrigo desde a década de 1990, quando o mesmo foi inaugurado. Logo após me mostrar sua casa, pediu que eu me sentasse e tomasse um café.

Enquanto conversávamos sobre os itinerários relacionados à saúde mental de Laurinha, sua trajetória de vida até aquele momento e o que ela fazia no curso de seu dia, Laurinha trouxe-me uma toalha bordada, juntamente com outros panos que ela costurava, e pôs-se a falar sobre seu bordado, contando que havia aprendido a bordar observando a toalha em questão, dizendo-me que aquele objeto teria sido bordado por Benedita Fernandes, sua tia.

Ao buscar averiguar tal informação, do parentesco entre Laurinha e Benedita, junto às assistentes sociais, conhecedoras da história de vida de Laurinha, pude logo compreender que essa informação era uma história recriada por Laurinha, em suas narrativa em delírio, na (re)elaboração das rupturas de seus laços familiares.

Assim, a história (re)construída por Laurinha, sobre seu parentesco com Benedita Fernandes, que ela chamava de tia Dita, demonstra o quanto a vida de Benedita, ou a representação do que se criou sobre ela, se atrela a memórias das moradoras no Hospital, bem como a um imaginário social que faz com que ela seja sempre citada, quando adentramos o universo deste hospital psiquiátrico.

O próprio campo me levou a querer compreender melhor sua história de vida e como ela está relacionada simbolicamente à história da instituição, seja nas histórias de vida de outras pessoas que por ali passaram, nas narrativas de mulheres moradoras do Hospital, ou mesmo nas inscrições encontradas nas fotografias.

Nesse sentido, contar o que se narra sobre tia Dita também auxilia na compreensão sobre a relação entre associações filantrópicas, o movimento espírita, e a psiquiatria, presentes no momento em que o Hospital psiquiátrico foi construído. Uma tríade que, na década de 1940, momento de fundação do

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hospital, foi a responsável pela implementação das primeiras políticas públicas de saúde mental na cidade de Araçatuba, no interior do Estado de São Paulo.

Apesar das inúmeras menções a Benedita Fernandes, por parte de pacientes e de gestores, permanecem escassas as referências bibliográficas acerca desta personalidade. Há apenas um livro sobre ela, intitulado A Dama da Caridade: apontamentos sobre Benedita Fernandes (Carvalho, 1987), de caráter religioso, impresso por uma editora espírita, e que conta – através das atas de fundação do sanatório, entrevistas com os espíritas que conviveram com tia Dita e mensagens psicografadas2 pela mesma – a trajetória de uma mulher vista como uma médium ou medianeira. O sujeito médium ou medianeiro, segundo a cosmologia espírita, é alguém que possui a capacidade de se comunicar com os espíritos.

Mediunidade, porém é uma categoria com vários níveis de inclusão. No seu primeiro e mais abrangente sentido, mediunidade é sinônimo de comunicação espiritual, focalizando a relação sincrônica e permanente entre o mundo visível e o mundo invisível” (Cavalcanti, 1983:62).

Tal mediunidade foi responsável, segundo Carvalho (1987) por uma visão espiritual, um tipo de transe consciente, vivenciado por tia Dita, quando a mesma encontrava-se presa a cadeia de Araçatuba. Neste episódio, a médium teria estabelecido contato com espíritos, que lhe ofereceram a redenção espiritual no cuidado com os mais necessitados em troca da cura de sua loucura. Desde então tia Dita teria sido libertada da cadeia e iniciado seus labores.

Logo no início da segunda edição do livro de Carvalho (1987) explicita-se uma preocupação nas considerações da editora em narrar um episódio ocorrido dentro de uma sessão mediúnica, em um centro espírita na cidade de Penapólis, interior de São Paulo.

Segundo a narrativa, o espírito de Benedita Fernandes, por meio de um transe mediúnico, teria feito um pedido de reedição do presente livro em março de 1987, bem como a publicação de outro livro, sobre a vida de um dos

2 “A psicografia é uma forma de mediunidade que ocupa lugar importante no Espiritismo. Sua

origem é simultânea à constituição dessa religião [...] Em estreita ligação com o Estudo, a psicografia afirma num outro plano a valorização da palavra escrita” (Cavalcanti, 1983:121).

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membros de tal centro espirita, líder do movimento espírita local, que teria convivido com mesma (Carvalho, 1987).

Segundo o relato da editora, este membro do movimento espírita, que estaria naquela sessão mediúnica, teria negado tal biografia, o que teria gerado uma reação do espírito de Benedita Fernandes, que insistia na necessidade da publicação de biografias sobre pessoas que teriam lhe ajudado em vida:

“Então, hei eu de ficar aí, sem pai nem mestre, solta no espaço, para que não vejam a mão que me sustentou na desgraça, em meio às quedas morais e a insânia, só porque o senhor não permite? Há de ver que para a humildade há medida, e que as flores servem para ficar na ponta dos galhos e não sobre o chão” (Carvalho, 1987:8).

A publicação de tal mensagem, atribuída ao espírito de Benedita Fernandes, logo no início do livro, permite compreender tanto a importância do movimento espírita local na trajetória de Benedita Fernandes, bem como a influência espírita dentro das dinâmicas e terapêuticas do próprio HBF. O referido livro, que narra a história de Benedita, é citado tanto nos Planos de Ação, terapêuticas e gestões elaboradas pela equipe técnica do HBF, quanto no conteúdo do site3 do HBF, que resgata a história de Benedita para explicar a própria história:

Entendemos que o trabalho assistencial desenvolvido por Benedita Fernandes e seu tipo de liderança se adequam perfeitamente às características do nosso movimento durante a primeira metade do atual século (século XX). Indubitavelmente a obra dela exerceu influências que transcendem os limites regionais. Se não bastasse tudo isso, a fundação das Senhoras Cristãs a março de 1932, tendo como um dos objetivos o atendimento do doente mental, a coloca como um dos marcos históricos do surgimento dos Hospitais Psiquiátricos Espíritas (Carvalho, 1987:9).

Deste modo, a utilização da obra A dama da Caridade (Carvalho, 1987) no website do hospital, nos planos de ação elaborados pela equipe técnica, bem como nas memórias dos funcionários – que me indicaram o referido livro no primeiro dia de campo, como fonte historiográfica de grande relevo – demonstra como esse contar da história do HBF é indissociável ao contar da trajetória de Benedita, dos assistencialismos das entidades filantrópicas e do movimento espírita que a ela se atrelam.

3

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2. Benedita Fernandes e a Associação das Senhoras Cristãs

Pouco ou quase nada se sabe sobre a infância e juventude de Benedita Fernandes. Segundo o levantamento de publicações de jornais espíritas como o Clarim, feito por Carvalho (1987), Benedita Fernandes nasceu em 1883 e faleceu em 1947. Ainda segundo o autor, Benedita era originária da cidade de Campos Novos da Cunha, interior de São Paulo, e havia migrado para a cidade de Penápolis durante sua juventude. Nesta cidade, foi vista como andarilha, termo utilizado no interior de São Paulo em referência a moradores de rua que passam a maior parte do seu tempo caminhando pelas cidades4.

Tanto o livro de Carvalho (1987) quanto o website do hospital psiquiátrico – em seção referente ao histórico desta instituição – conta que Benedita, aos 20 anos, teria sido encaminhada à cadeia de Penápolis, sendo presa por andar com uma tesoura na mão, enquanto entrava sonâmbula nos quartos da casa vizinha. Tal atitude teria preocupado os vizinhos, que a levaram para a delegacia, como um gesto de “proteção”:

É fato bem conhecido que Benedita Fernandes, portadora de pertinaz obsessão, em época muito carente de atendimento aos desiquilibrados e aos chamados “loucos”, perambulou por cidades da região noroeste do nosso Estado, sendo muitas vezes recolhida em presídios. Nessas circunstâncias, Benedita perdeu contato com seus familiares e se localizou na cidade de Penápolis. Conta-se que, naquela cidade, que Benedita chegava a provocar preocupações. Elpídio Antonio Moreira, seu contemporâneo, relatou textualmente episódios anteriores a sua conversão ao Espiritismo. Este senhor morava com seus pais na cidade de Penápolis [...] Registra o confrade “Mais ou menos na década de 20, frente a nossa casa existiam duas habitações com paredes de barro, na frente morava o dono das duas, o parceiro de Brandão e alugava a outra no fundo para umas mulheres. Uma tarde minha mãe recolheu em nossa casa uma delas, completamente obssediada5, falava coisas sem nexo, a noite andava pelo corredor de nossa casa e com uma tesoura nas mão, entrava nos cômodos aonde dormíamos. Meu irmão mais velho, isto presenciado, disse a minha mãe que não a poderíamos ter conosco, pois a mesma poderia cegar um de nós com a tesoura. A essa altura entrou em cena o sr. João Marcheze, transmitindo passes na obssediada. Como a situação era delicada, resolveram levá-la a

4

Notas de campo.

5

Na cosmologia espírita, obssediada é a pessoa que sofre obsessão. Nessa cosmologia, a obsessão é um fenômeno que se realiza pela influência sutil que os espíritos exercem sobre as pessoas e levaria a “perturbação completa do organismo e das faculdades mentais” (Cavalcanti, 1987:90).

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delegacia [...] O carcereiro, um espanhol de pouca prosa e bondoso, de nome Padial a recolheu. Ali comeu e dormiu embaixo de sua proteção. O insigne líder espirita Leopoldo Marcheze, muito ligado a dona Benedita, também se refere ao episódio...fora em moça, obsediada de ser metida em xadrez, a falta de manicômio, de dar muito o que fazer à polícia” (Carvalho, 1987:21).

Vale lembrar que o episódio de encarceramento de Benedita na cadeia da cidade, ilustra uma prática recorrente no Brasil, em uma época em que não existia nenhum tipo de terapêutica, cuidado ou tratamento destinado aos sujeitos considerados “loucos”, sendo realizada apenas sua retirada da paisagem urbana, através da reclusão.

De acordo com Cunha (1994), no Brasil, até o final do século XIX, as práticas destinadas ao controle da loucura, estabeleciam-se como meros mecanismos de controle social. Destinada à reclusão de “loucos furiosos”, a cadeia, as Santas Casas e a Casa de Correção se constituíam como o lugar da contenção da loucura, cuja detenção poderia extrapolar até mesmo a lógica médica:

A escala em que eram adotadas tais providências era, no entanto, bastante reduzida e destinada praticamente aos “loucos” agitados e aos delinquentes. São constantes nos documentos oficiais e nas descrições de época, as queixas generalizadas de administradores de prisões e hospitais gerais e Santas Casas de Misericórdia, quanto a “indisciplina” gerada pelo convívio maléfico entre loucos e sãos, em prejuízo a ordem dos estabelecimentos (Cunha, 1994:58).

Em outras palavras, até o final do século XIX, período que marca a construção dos primeiros sanatórios ou manicômios no Brasil, os “loucos” eram compreendidos como sujeitos comuns à paisagem urbana, e, quando considerados “perigosos”, eram recolhidos juntamente com os delinquentes e reclusos nas cadeias, nas Santas Casas e nas Casas de Correção, gerando muitas vezes conflitos entre os “sãos” e os “loucos” (Cunha, 1994).

Com Benedita não foi diferente. Quando alocada na condição de “louca perigosa” por andar com uma tesoura na mão e perturbar a ordem da vizinhança, foi levada à cadeia de Penápolis, em regime de reclusão e deixada aos cuidados do carcereiro, como mencionado anteriormente.

Passados quinze dias de detenção, Benedita recebe autorização do delegado para sair do cárcere, volta para sua casa e começa a trabalhar como lavadeira. Seu cotidiano de trabalho a leva a estabelecer relações sociais com

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outras lavadeiras, que faziam parte do movimento espírita local. No início dos anos 1930, Benedita inicia, nas imediações do centro espírita Paz, Amor e Caridade, no bairro de Santana, na cidade de Araçatuba, um trabalho de cuidado, como a distribuição de sopas e práticas de passes mediúnicos para crianças e obssediados6, dentre eles, os considerados doentes mentais. Para tanto, foi preciso construir duas casas, erguidas em madeira pela própria Benedita, juntamente com outras lavadeiras (Carvalho, 1987).

Figura 3. Primeira casa de madeira construída em 1932 por Benedita Fernandes. (Acervo Hospital Benedita Fernandes).

Para garantir o funcionamento destas casas, que envolvia a obtenção de recursos financeiros, para a distribuição de sopas, por exemplo, foi necessário institucionalizá-las, através da criação de uma associação filantrópica. Isso levou Benedita a estabelecer e articular redes com outras mulheres, frequentadoras do Centro Espírita Paz, Amor e Caridade. Em 3 de março de 1932, em reunião nas dependências deste centro, foi fundada a “Associação das Senhoras Cristãs” (Carvalho, 1987), atual entidade filantrópica responsável pela gestão do Hospital Benedita Fernandes.

No ano de fundação da Associação das Senhoras Cristãs, 1932, o Brasil estava sob a gestão do Estado Novo, de Getúlio Vargas. Durante os anos de 1930 a 1945, as associação filantrópicas foram as maiores responsáveis pela

6 Na cosmologia espírita, obssediados são pessoas que recebem influências de espíritos

considerados maus o que poderia levar a perturbação completa das faculdades mentais (Cavalcanti, 1983).

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implementação das políticas assistencialistas voltadas à integração e disciplinarização das camadas populares (Mestriner, 2005).

Na época, as instituições filantrópicas eram, em sua maioria, compostas por entidades religiosas, que recebiam auxílios financeiros e subvenções sociais como moeda de troca, no cuidado e disciplinarização dos pobres em situação de vulnerabilidade social, como crianças, idosos e doentes mentais (Mestriner, 2005). É neste período que surge no país o chamado primeiro-damismo, com Darci Vargas, esposa de Getúlio Vargas, como símbolo das associações assistencialistas, dentre elas as filantrópicas (Mestriner, 2005).

Pode-se dizer que a relação entre assistencialismo, filantropia e mulheres na elaboração, construção e manutenção das associações filantrópicas para além do primeiro-daminismo, foi, por muito tempo, negligenciada pela historiografia tradicional da filantropia (Mott, 2005).

Maria Lucia Mott (2003; 2005), em seu trabalho sobre as biografias de Pérola Byington e Maria Rennotte, analisa a participação das mulheres nas entidades filantrópicas na cidade de São Paulo, e encontra na trajetória dessas mulheres, um pioneirismo e um agenciamento feminino enquanto exercício de cidadania.

De acordo com a autora, a participação das mulheres e o papel que elas estabeleceram em tais entidades filantrópicas – voltadas à prestação de serviços para a população mais pobre, por meio do assistencialismo médico, social e educacional – é um tema que foi pouco explorado pela historiografia tradicional brasileira, cuja compreensão sobre a história dessas mulheres tende a limitá-la a um papel secundário na história da filantropia, onde elas ocupariam não mais que um lugar de coadjuvantes e organizadoras de eventos:

Permanece na historiografia a imagem da filantropia como obra masculina, sendo as mulheres vistas como coadjuvantes, meras organizadoras de festas para o levantamento de fundos, bem como é pouco conhecido o papel que tiveram na criação, manutenção e elaboração dos programas de associações de assistência educacional, médica e social (Mott, 2005:43).

O papel exercido por Pérola Byington na criação, organização, administração e manutenção de entidades filantrópicas endereçadas à assistência sanitária, médica, social e cultural na cidade de São Paulo, como o

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Hospital Cruzada Pró-Infância, posteriormente nomeado como Hospital Pérola Byington (Mott, 2003), pode ser pensado em paralelo com o papel exercido por Benedita Fernandes na criação, administração e manutenção da Associação das Senhoras Cristãs.

Na ata de fundação da Associação das Senhoras Cristãs, de 6 de março de 1932, Benedita Fernandes aparece como presidente, Manuel Gonçalves como secretário e Maria Bogalho Gonçalves como tesoureira (Carvalho, 1987). Pode-se notar, a partir da observação da própria ata, o papel predominante das mulheres na criação, organização, administração e manutenção de uma associação que se destinava, assim como a de Pérola Byington, para as camadas mais pobres da sociedade, através de práticas assistencialistas que atuavam tanto no âmbito sanitário e médico, quanto no social.

Esse protagonismo das mulheres na administração e manutenção da Associação das Senhoras Cristãs pode ser confirmado nas fotografias do arquivo iconográfico do Hospital Benedita Fernandes, acessado na pesquisa de campo, durante os anos de 2014 e 2015.

Dentre o material encontrado neste arquivo, destaco aqui duas fotografias, uma com as fundadoras e a outra com as secretárias do HBF, ambas datadas de 1932, que revelam que, embora a associação também fosse constituída por homens, como observável nos demais nomes que constam nas atas de fundação, no levantamento feito por Carvalho (1987), as mulheres estavam em maior número se comparadas aos homens, tanto na representação simbólica dessas fotografias, como na efetivação de práticas assistencialistas e filantrópicas, exercendo, enfim um papel social de pioneiras na elaboração, gestão e manutenção de tais práticas.

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Figura 4. Fundadoras da Associação das Senhoras Cristãs em 1932 (Arquivo Hospital Benedita Fernandes).

Figura 5. Escritório da Associação das Senhoras Cristãs,1932 (Arquivo Hospital Benedita Fernandes).

Com a fundação da Associação das Senhoras Cristãs, Benedita iniciou campanhas pela cidade de Araçatuba e região metropolitana, divulgando seu trabalho destinado ao assistencialismo sanitário, médico e educacional de crianças e idosos em situação de vulnerabilidade social, sob o intuito de levantar fundos para a manutenção dessas casas. Os ganhos de tais campanhas, junto do apoio da população, possibilitou que as casas de madeira se transformassem em casas de alvenaria, sendo inauguradas em 1933, como “Casa da Criança” e “Asilo Dr. Jaime de Oliveira” (Carvalho, 1987).

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Figura 6. Casa da criança, 1946 (Arquivo Hospital Benedita Fernandes).

Durante a década de 1930, a Casa da Criança e o Asilo Dr. Jaime se constituíram, na cidade de Araçatuba, como políticas assistencialistas que eram gerenciadas e mantidas pela Associação das Senhoras Cristãs. Nestas casas, crianças, bebês a adolescentes e idosos, e os considerados doentes mentais, recebiam abrigo, alimento, moradia, alfabetização e cuidados religiosos (Carvalho, 1987).

De acordo com Dalgalarrondo & Oda (2005), neste momento histórico, anterior ao surgimento da psiquiatria no Brasil como uma prática médica especializada, as Santas Casas de Misericórdia, assim como as demais entidades filantrópicas, ficaram responsáveis pelo recolhimento dos chamados alienados e pobres por meio de uma estrutura asilar:

Vale lembrar que, no período em estudo, os “Asilos”, “Hospícios” ou “Hospitais” eram locais de hospedagem para aqueles que dependiam da caridade: os órfãos, os recém-nascidos abandonados (chamados “expostos”), os mendigos, os morféticos e loucos. Tais hospícios poderiam contar eventualmente com alguma assistência médica, mas sua principal intenção era dar aos necessitados um abrigo, alimentos e cuidados religiosos. Os estabelecimentos destinados ao recolhimento de alienados e pobres, portanto surgiram quase sempre como estruturas asilares das Santas Casas de Misericórdia, bem antes que a psiquiatria existisse como prática médica especializada (Dalgalarondo & Oda, 2005: 985).

Deste modo, os cuidados e acolhimentos de crianças abandonadas, idosos e até mesmo os tais alienados mentais, eram comuns para uma época em que, as camadas pobres com maior situação de vulnerabilidade social não possuíam qualquer assistência ou terapêuticas que os pudesse amparar, o que

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fez da Associação das Senhoras Cristãs um tipo de asilo para essa população, assim como aconteceu como as Santas Casas de Misericórdias país afora.

Além de abrigo e moradia, o Asilo Dr. Jaime e a Casa da Criança também ofereciam cuidados religiosos a exemplo dos passes mediúnicos. Os passes mediúnicos podem ser definidos como uma “troca fluídica do mundo visível (dos homens) com o mundo invisível (dos espíritos) e é realizado por um médium (Cavalcanti, 1983). Estes passes mediúnicos eram ministrados por Benedita Fernandes, aos que ali chegassem “em surto” ou que fossem trazidos pela polícia, sob alegação de perturbação da ordem vigente. Tais práticas religiosas são mencionadas no trabalho de Carvalho (1987), em que o autor aponta novamente para a influência que o movimento espírita exerceu, tanto na trajetória de Benedita, quanto na presença de grupos espíritas no interior do hospital psiquiátrico.

3. O movimento espírita, o assistencialismo e os hospitais psiquiátricos

De acordo com Cavalcanti (1983), o termo movimento espírita é empregado para designar um conjunto de atuações promovidas por pessoas que se auto denominam espíritas. Essas atuações podem constituir lares, centros (casas construídos para as práticas religiosas), institutos culturais, federações nacionais e regionais, associações profissionais, imprensa, editoras, orfanatos, asilos e hospitais.

A principal obra da bibliografia especializada na personalidade Benedita Fernandes (Carvalho, 1987) narra sua história a partir do próprio nascimento do movimento espírita na cidade de Araçatuba. Nota-se um vínculo essencial entre a trajetória de Benedita Fernandes e o movimento espírita local, afinal, foi através de sociabilidades e do estabelecimento de redes com os integrantes deste movimento que Benedita iniciou a construção de casas de madeira, que viriam a ser transformadas em casas de alvenaria, mais adiante, destinadas ao atendimento de pessoas em situação de vulnerabilidade social.

Tanto no livro de Carvalho (1987) quanto nas falas dos funcionários do Hospital que pude entrevistar, registram-se episódios que narram o papel de líder espiritual, um tipo de curandeirismo, exercido por Benedita Fernandes no

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interior destas casas assistencialistas. Nestes relatos, conta-se que Benedita aplicava passes em adultos e crianças que eram encaminhados para o orfanato e para o asilo, quando os mesmos se encontravam agitados, agressivos ou até mesmo em surtos, e que, não raro, chegavam ali amarrados, da forma como a polícia local os trazia.

Para conceituar os passes, podemos seguir a definição de Cavalcanti (1983), que estabelece-os como parte da prática e da cosmologia da religião espírita, que podem ser definidos como trocas fluídicas entre o mundo visível (o mundo material dos humanos) e o mundo invisível (o mundo dos espíritos), com o objetivo de transmissão de energia e fluidos entre espíritos e pessoas, por meio de um médium (Cavalcanti, 1983).

Durante o trabalho de campo realizado, foi possível observar que as práticas de se aplicar passes nos pacientes se mantiveram no tempo. Durante o campo, soube, por meio de informantes, que, uma vez por semana, um grupo de pessoas, que se diziam integrantes do Centro Espírita Benedita Fernandes, adentrava o HBF e aplicava passes nos pacientes que assim o desejassem, uma prática não só permitida como estimulada pela própria gestão do Hospital, que, por sua vez, também fazia parte do grupo espírita mencionado.

Vale ressaltar também que a implementação destas práticas espíritas, como os passes mediúnicos, vistas pela cosmologia espírita enquanto cura (Cavalcanti, 1983) nos considerados loucos em desvario, só eram aceitas e praticadas por conta da consolidação do movimento espírita local e pela divulgação de tais práticas.

Embora tenha se iniciado na década de 1920, com a fundação do primeiro centro espírita na cidade, é somente na década de 1940 que esse movimento se amplia, tanto em relação à infraestrutura, como à construção de outras sedes para as práticas e rituais espíritas, e à circulação de jornais impressos. Um exemplo é o jornal Clarim, que, como outros, além de divulgar o que chama de doutrina espírita, também divulgava o trabalho assistencialista realizado por Benedita Fernandes e o seu grupo (Carvalho, 1987).

Assim, podemos afirmar que Benedita Fernandes exerceu uma liderança política e social tanto no âmbito das associações filantrópicas quanto no próprio movimento espírita local.

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Esta liderança, entretanto nem sempre foi vista com bons olhos. Na biografia consultada (Carvalho, 1987), encontra-se uma narrativa confirmada nas conversas com funcionários mais velhos do hospital: conta-se que na década de 1940, mesma época da construção do asilo e do orfanato e também da expansão dos movimentos espíritas na cidade de Araçatuba, os padres católicos locais se reuniram com os bispos regionais, para “denunciar” o trabalho de Benedita e seu grupo, vista por eles como feiticeira, ameaçadora da ordem católica vigente, por meio de uma carta endereçada a Getúlio Vargas.

Os conflitos que envolveram os movimentos espíritas, como este exemplificado pelo caso de Benedita, não se limitaram as divergências morais entre as religiões espíritas e católicas, mas envolveram ainda a disputa de espaços e financiamentos no cuidado e na construção do conhecimento sobre o louco, tanto no âmbito moral da religião quanto no âmbito científico da psiquiatria (Almeida, 2007).

De acordo com Almeida (2007), o espiritismo e a psiquiatria se consolidaram no Brasil na mesma época, entre o fim do século XIX e a metade do século XX, e ambos buscaram legitimação social, científica e institucional no que se refere aos conceitos e tratamentos em relação à loucura.

Para a psiquiatria do início do século XX, a mediunidade, de que tanto falavam os espíritas, se constituía em delírio, e, portanto, continuaria inscrita no âmbito da loucura, ao invés de curá-la, como afirmavam os espíritas. O espiritismo, por sua vez, questionava a limitação da eficácia dos tratamentos psiquiátricos praticados na época. No fim, a psiquiatria acabou por se consolidar enquanto ciência, conquistou o campo acadêmico e científico e se tornou a principal responsável pelo tratamento das chamadas doenças mentais, enquanto o espiritismo se legitimou no campo da religião (Almeida, 2007).

Porém, mesmo relegado ao campo religioso, o movimento espírita no Brasil continuou exercendo influência sobre o campo da saúde mental. No noroeste de São Paulo, por exemplo, foram fundados três sanatórios de vertente espírita, que depois da reforma psiquiátrica se transformaram em hospitais psiquiátrícos, e que mantêm suas atividades até os dias atuais. É o

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caso do Hospital7 Dr. Bezerra de Menezes8, fundado em 1946 na cidade de São José do Rio Preto, o Hospital Espírita de Marília9, fundado em 1948, na cidade de Marília e o Hospital Psiquiátrico Felício Lucchine10 fundado em 1947, na cidade de Birigui, todos localizados no noroeste do Estado de São Paulo, e gerenciados por associações filantrópicas, assim como o Hospital Benedita Fernandes, que permaneceu sendo administrado pela associação filantrópica Associação das Senhoras Cristãs.

A influência das associações filantrópicas na construção e gestão dos hospitais psiquiátricos não foi uma caraterística singular do noroeste do Estado de São Paulo. A presença das dessas associações como gestoras de instituições relacionadas à saúde mental, de modo geral, ainda é representativa.

Grande parte dos hospitais psiquiátricos em atividade no estado de São Paulo, continua sendo administrada por tais associações. Em uma pesquisa elaborada pelo Ministério da Saúde, cujo objetivo foi traçar um perfil sobre as condições socioeconômicas dos pacientes, aqueles que se tornaram moradores dos hospitais psiquiátricos, foi constatado que dos 58 hospitais psiquiátricos públicos, em atividade até o ano de 2008 no Estado de São Paulo, 58% eram geridos por associações filantrópicas, como abaixo apresentado (Barros; Bishaf, 2008).

7 Disponível em http://www.bezerra.org.br/interna.asp?Ir=area.asp&area=7. Acesso em 15 de

maio de 2015.

8

Bezerra de Menezes foi psiquiatra e líder espírita cearense, autor de várias obras que relacionam a loucura com a questão e cosmologia espírita, como o livro A loucura sob novo Prima, escrito no fim do século XIX (Menezes, 1997).

9 Disponível em http://www.hem.org.br/a-instituicao. Acesso em 17 de maio de 2015. 10

Disponível em http://www.folhadaregiao.com.br/Materia.php?id=334850. Acesso em 17 de maio de 2015.

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Deste modo, a presença majoritária das associações filantrópicas na construção, elaboração e gestão dos hospitais psiquiátricos do Estado de São Paulo indica a importância que a filantropia exerceu nas instituições psiquiátricas neste Estado. Em outras palavras, a maioria dos hospitais psiquiátricos do Estado de São Paulo, assim como o Hospital Benedita Fernandes, é administrada por entidades filantrópicas como a Associação das Senhoras Cristãs.

4. A construção do Hospital Benedita Fernandes

Antes de adentrar a história da construção do Hospital Benedita Fernandes, faz-se necessária uma breve digressão sobre a história da cidade de Araçatuba, com vistas a uma melhor compreensão dos fatores sócio-históricos que levaram a construção de um hospital psiquiátrico na cidade.

Inaugurada em 1908, a cidade de Araçatuba nasce a partir da “marcha para o oeste”, através da construção de diversas estradas de ferros, financiadas por uma politica que visava a interiorização do país. Iniciada no fim do século XVIII, a marcha para o oeste se configurava em uma política para ligar o litoral e a capital de São Paulo ao Estado do Mato Grosso do Sul, através de ferrovias financiadas pelo capital estrangeiro e estatal (Pinheiro; Bodstein, 1999).

Em 1908, aos arredores da última estação construída pela Companhia Noroeste do Brasil, formou-se um povoado constituído por trabalhadores dessas ferrovias. Assim a partir de uma aglomerado de pessoas em torno de vagão de trem vazio, que servia de estação ferroviária, nasceu a cidade de Araçatuba (Pinheiro; Bodstein, 1999).

Na historiografia tradicional de Araçatuba, são relatados conflitos entre estes trabalhadores, das estradas férreas, com os índios da etnia Kaingang. Anteriormente a vinda das companhias férreas ao oeste do Estado de São Paulo, enquanto o oeste paulista encontrava-se em uma condição de região de mata e perigosa, o território espacial no qual seria fundada a cidade de Araçatuba já era ocupado pelos indígenas. Com a vinda das estradas de ferro, muitos desses trabalhadores, de construtores a engenheiros, entravam em

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conflitos diretos com os grupos indígenas, principalmente com os Kaingangs, que se encontravam em maior número (Pinheiro; Bodstein, 1999).

Em 1910 os conflitos e disputas territoriais entre os Kaingangs e os trabalhadores das estradas de ferro, que representavam a Companhia Noroeste do Brasil, se intensificaram e a mesma companhia, juntamente com grileiros de terras, que migraram para a região com promessas de riquezas naturais, contrataram os chamados bugreiros, homens pagos para matar, violentar e incendiar indígenas e suas aldeias. Em um dia de festividades, marcadas pelo casamento de dois membros da etnia Kaingang, um total de vinte e oito bugreiros invadiram e incendiaram a aldeia assassinando homens, mulheres e crianças Kaingangs (Pinheiro; Bodstein, 1999).

Após o massacre dos Kaingangs e o fim dos conflitos, a Companhia Noroeste do Brasil prosseguiu a construção de mais estradas de ferro e em 1908 foi inaugurada a cidade de Araçatuba, que permaneceu até a década de 1950 como uma cidade de população majoritariamente rural, com o predomínio do agronegócio como o cultivo do algodão e a criação de gado (Pinheiro; Bodstein, 1999).

Com o passar dos anos, no fim da década de 1940 e início da década de 1950, a cidade de Araçatuba expandiu sua atividade pecuária, como a exportação da carne, advinda da criação do gado de corte. Com o crescimento da atividade pecuarista e consequentemente com a expansão da população urbana, surgiram diversas entidades filantrópicas de caráter assistencialista como a criação do primeiro asilo, a expansão de centros religiosos espíritas e católicos, voltados para a educação de crianças em situação de vulnerabilidade social, bem como a criação de creches, albergues e institutos para cegos (Pinheiro; Bodstein, 1999).

Assim, o final da década de 1940 é marcado pela expansão da territorialidade urbana de Araçatuba, embora a população ainda se constituía como predominantemente rural. Com o aumento populacional, regiões despovoadas como a fazenda intitulada Patrimônio de Dona Ida foi loteada e transformada em bairro, distante do centro e destinado as classes populares. Posteriormente, este bairro foi renomeado como bairro Santana (Pinheiro; Bodstein, 1999) aonde se localiza atualmente o Hospital Psiquiátrico Benedita Fernandes.

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Em 1947, com a morte de Benedita Fernandes, “A casa da criança”, um orfanato destinado a crianças em situação de vulnerabilidade social, foi transformado juntamente com o “Asilo Dr. Jaime de Oliveira” no Sanatório Benedita Fernandes (Carvalho, 1987), que passa ser administrado pela Associação das Senhoras Cristãs, uma administração que se manteve ativa até a data do fechamento do HBF, em 2015.

Do levantamento iconográfico que realizei em campo, mais especificamente, nas fotografias da sede da Casa da Criança e do Asilo Dr. Jaime de Oliveira, pode-se observar que estas casas foram construídas uma ao lado da outra, com um tipo de hall interligando-as. Com a morte de Benedita, estas duas sedes foram unificadas, transformando-se em um sanatório, como pode ser observado na imagem abaixo.

Figura 7. Fachada do primeiro prédio do Sanatório Benedita Fernandes, 1947 (Arquivo Hospital Benedita Fernandes).

Tal mudança de nome, de asilo para sanatório, marca o início da psiquiatrialização e da institucionalização da loucura na cidade de Araçatuba. Com o passar dos anos, a antiga sede do sanatório torna-se pequena para atender a crescente demanda dos “loucos perigosos” que costumavam fazer parte da paisagem urbana, e inicia-se a construção de um grande prédio (Carvalho, 1987).

A construção do novo prédio, que sediaria o Sanatório Benedita Fernandes se inicia na década de 1940, assim como os demais sanatórios

Referências

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