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Educação e responsabilidade pelo mundo no cenário do capitalismo contemporâneo: uma leitura de Hannah Arendt e de Richard Sennett

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Academic year: 2021

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UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS

EDUCAÇÃO E RESPONSABILIDADE PELO MUNDO NO CENÁRIO

DO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO: UMA LEITURA DE

HANNAH ARENDT E DE RICHARD SENNETT

CLAUDIR MIGUEL ZUCHI

Ijuí – RS 2019

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CLAUDIR MIGUEL ZUCHI

EDUCAÇÃO E RESPONSABILIDADE PELO MUNDO NO CENÁRIO

DO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO: UMA LEITURA DE

HANNAH ARENDT E DE RICHARD SENNETT

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação nas Ciências da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ), como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutor em Educação nas Ciências.

Orientador: Prof. Dr. Sidinei Pithan da Silva

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Catalogação na Publicação

Eunice Passos Flores Schwaste CRB10/2276

Z94e

Zuchi, Claudir Miguel.

Educação e responsabilidade pelo mundo no cenário do capitalismo contemporâneo: uma leitura de Hannah Arendt e de Richard Sennett / Claudir Miguel Zuchi. – Ijuí, 2019.

143 f. ; 30 cm.

Tese (doutorado) – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Campus Ijuí). Educação nas Ciências.

“Orientador: Sidinei Pithan da Silva”

1. Educação. 2. Responsabilidade pelo mundo. 3. Capitalismo. 4. Arendt. 5. Sennett. I. Silva, Sidinei Pithan da. II. Título.

CDU: 37:330.342.14

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“A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens” (ARENDT, 2013, p. 247).

“A sociedade moderna carece de expressões positivas de respeito e reconhecimento pelos outros” (SENNETT, 2004, p. 13).

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Que o respeito mútuo seja a marca da luta contra as injustiças sociais, as desumanidades e um elo de relações que valorizem a dignidade humana em suas diferenças e, no mundo comum, ecoe a eficácia educacional como primazia em prol da vida, da justiça e da democracia. Àqueles que comungaram e comungam comigo com o sentido e a marca da solidariedade, neste mundo comum, a minha gratidão:

- À toda minha família e, em especial, aqueles que deram de si pela minha vida (in memoriam – a mãe Regina Albarello e o pai Luiz Zuchi).

- Ao Professor Dr. Sidinei Pithan da Silva.

- Aos colegas Claudionei Vicente Cassol e Celito Urbano Luft.

- Aos inúmeros colegas e amigos que lutam pela justiça; aos injustiçados pelas lágrimas que cimentam a esperança e a vitória da vida, da liberdade.

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RESUMO

A temática de pesquisa da tese intitulada “A educação e a responsabilidade pelo mundo no

cenário do capitalismo contemporâneo: uma leitura de Hannah Arendt e Richard Sennett” objetiva uma compreensão teórica educacional embasada nestes dois teóricos na

tentativa de abrir possibilidades de pensar a educação e refletir sobre o espaço público e privado, bem como, a dimensão da atitude dos indivíduos. O esforço teórico-metodológico, bibliográfico, qualitativo e interpretativo, explicita uma dimensão comum entre ambos, embora de tradições diferentes, de tratar da constituição das formas de sociabilidade do mundo moderno. Em Sennett, buscamos uma análise histórico-sociológica da sociedade capitalista moderna e, em Arendt, buscamos compreender a tarefa da política na crise da modernidade e nos inserir no debate da tradição do pensamento filosófico político ocidental, “desenhando”, assim, a possibilidade de pensar a educação como forma de responsabilidade e amor pelo mundo. Hipoteticamente evidencia o desafio da educação na esfera pública e permite reconhecer o percurso assumido pela tese de refletir sobre as razões do declínio do sentido público-político e do compromisso no âmbito da vida social moderna e contemporânea, a partir do desenvolvimento da cultura capitalista moderna e da flexibilização patrocinada pelo capital na contemporaneidade. A análise dessa problemática desafia a escola, o professor e a educação, de modo geral, na ação de desenvolver um eu público ainda na vida escolar, capacitando-o para participar na esfera pública. Esse panorama descrito a partir de Arendt e de Sennett, nesta tese, aponta a preocupação da formação educacional pública, bem como, apresenta a perspectiva da idealidade, em projetar a educação pública como possibilidade para além dos interesses imediatos, formais e privatistas.

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ABSTRACT

The subject of the present thesis “Education and responsibility for the world in the

scenario of contemporary capitalism: a reading of Hannah Arendt and Richard Sennett” aims at a theoretical educational understanding based on these two theorists in

attempt to open ways of thinking about education and to reflect on the public and private space, as well as the dimension of the attitude of individuals. The theoretical-methodological, bibliographical, qualitative and interpretative effort, makes explicit a common dimension between both, although of different traditions, to deal with the constitution of the forms of sociability of the modern world. In Sennett we seek a historical-sociological analysis of modern capitalist society and in Arendt we seek to understand the task of politics in the crisis of modernity and insert us in the debate of the tradition of Western political philosophical thought, thus “designing” the possibility of thinking education as a form of responsibility and love for the world. Hypothetically highlights the challenge of education in the public sphere and allows us to recognize the course taken by the thesis to reflect on the reasons for the decline of the public-political sense and commitment in modern and contemporary social life, from the development of modern capitalist culture and of the flexibilization sponsored by the capital in the contemporary world. The analysis of this problem challenges the school, the teacher and the education, in general, in the action of developing a public self still in the school life, enabling it to participate in the public sphere. This scenario, described from Arendt and Sennett, in this thesis, points out the concern of public educational formation, as well as, presents the perspective of ideality, in projecting public education as a possibility beyond immediate, formal and private interests.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 9

1 A DILUIÇÃO DAS FRONTEIRAS ENTRE A ESFERA PÚBLICA E PRIVADA ... 17

1.1 A EROSÃO DA ESFERA PÚBLICA: CONFUSÃO ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO – ANTÍDOTO DO “NOVO CAPITALISMO” ... 17

1.2 O RETRAIMENTO DA VIDA PÚBLICA: O DESENVOLVIMENTO DE UMA INDIVIDUALIDADE PERSONALIZADA E OS DESDOBRAMENTOS DA SOCIEDADE INTIMISTA ... 40

1.2.1 Tumulto da Vida Pública no Século XIX: Individualidade Personalizada como Tendência Privatista ... 40

1.2.2 Desdobramentos da Sociedade Intimista do Século XX: o Declínio da Cultura Pública ... 50

2 O COLAPSO DA ESFERA PÚBLICA NO NOVO CAPITALISMO: DESAFIOS PARA A EDUCAÇÃO ... 59

2.1 O INDIVÍDUO PRIVADO, A CULTURA E A CORROSÃO DO CARÁTER NO “NOVO CAPITALISMO” ... 59

2.2 A CULTURA DO NOVO CAPITALISMO E SUAS CARACTERÍSTICAS NA COMPREENSÃO SENNETTIANA ... 71

3 EDUCAÇÃO E RESPONSABILIDADE PELO MUNDO: CRISE E SENTIDO NA CULTURA E NA EDUCAÇÃO NA CONCEPÇÃO DE ARENDT ... 82

3.1 A CULTURA EM DECLÍNIO: SUA “IMPORTÂNCIA SOCIAL E POLÍTICA” EM HANNAH ARENDT ... 84

3.2 A CRISE NA EDUCAÇÃO E A NATALIDADE: NASCIMENTO DOS NASCIMENTOS ... 97

3.3 A EDUCAÇÃO EM DECLÍNIO DE SEU SENTIDO PÚBLICO: UMA REFLEXÃO NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO À LUZ DO PENSAMENTO ARENDTIANO ... 102

4 DESAFIOS EDUCACIONAIS CONTEMPORÂNEOS À LUZ DE ARENDT E DE SENNETT ... 111

4.1 A REALIDADE DO EU PRIVADO E A CULTURA DO CONSUMO ... 113

4.2 A ESCOLA: ESPAÇO PÚBLICO E DE RESPONSABILIDADE PELO MUNDO ... 117

4.2.1 A Instituição Escola e o Paradigma das Condições Pedagógicas ... 119

4.2.2 O Professor, o Agir Pedagógico e a Responsabilidade pelo Mundo ... 121

4.2.3 O Aluno, Perspectivas de Formação e Conhecimento do Mundo ... 124

4.3 CONTRIBUIÇÕES APROXIMADAS DE ARENDT E DE SENNETT ... 127

CONCLUSÃO ... 130

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INTRODUÇÃO

O presente estudo objetiva desenvolver uma tese acerca da educação e da responsabilidade pelo mundo no cenário contemporâneo do capitalismo. A construção centraliza as bases teóricas em Hannah Arendt (1906-1975) e Richard Sennett (1943...), pensadores que parecem abrir possibilidades de pensar o contexto atual da educação e refletir sobre o espaço do público e do privado e a dimensão da atitude dos indivíduos. A leitura destes pensadores apoia o debate de categorias centrais da tese, como o espaço público, a educação pública, a responsabilidade pelo mundo e o reaproveitamento dos conceitos de juízo e o de compreensão. À luz dos escritos destes teóricos compreende-se o sentido do declínio do espaço público, a crise na cultura e suas repercussões na educação (ARENDT, 2013; SENNETT, 1988). Nesta perspectiva, temos objetivos de compreender a leitura que estes pensadores desenvolvem do mundo moderno, especialmente, sobre a educação pública como forma de responsabilidade pelo mundo e construção do caráter, bem como, refletir sobre o contexto social contemporâneo e as interferências que aparecem na educação, especialmente, a progressiva diluição das fronteiras entre as esferas da vida pública e da vida privada (SENNETT, 1988), conceitos que, também, promovem a interface entre Arendt e Sennett. A diluição do sentido de vida privada e de vida pública, central nesta tese, parece se prolongar na atualidade em práticas profissionais no mundo da educação, como as percepções de educadores e profissionais liberais, do cotidiano de nossos dias, tendência que promete sanar os problemas educacionais a partir da lógica econômica do mundo globalizado1.

1Entre os vários possíveis exemplos, extraímos três de artigos do Zero Hora: A) “Não há dúvida de que o crescimento e o desenvolvimento econômico são capazes de gerar, por si só, um efeito pedagógico inerente ao aumento da renda. [...] Enquanto não houver efetiva prioridade à educação fundamental e de base, concentrada principalmente nos primeiros anos de estudos, jamais atingiremos um patamar sustentável de crescimento. Não atrairemos, também, capital externo nos segmentos econômicos de maior atratividade e valor agregado, como ciência, tecnologia e serviços. [...] E isso só pode ser obtido com investimento em educação básica, em ensino fundamental e na garantia do valor do mérito e do trabalho. [...] É urgente a mudança na gestão da educação pública” (Felipe Quintana da Rosa, Advogado e membro honorário do Instituto de Estudos Empresariais – IEE, escrevendo sobre “mudança necessária” no que se refere à educação – ZH, 08 de setembro de 2012, p. 13). B) Artigo se referindo às “competências para a escola do século 21”, afirma: “[...] Cada indivíduo aprende de forma diferente, entre crises, tropeços e iluminações. A escola para ser consistente no presente precisa se abrir para as novas tecnologias e metodologias voltadas para a construção de um indivíduo integral que: pensa, sente, brinca e cria. A escola não deve ser tão séria” (Flávia Leal Alves – Coordenadora de Projetos Sociais da Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho – ZH, 29 de maio de 2015, p. 33). C) Artigo com o título “mais uma da pátria educadora” referindo-se à diminuição das vagas do Pronatec pelo governo Federal. [...] “O investimento em educação deve ser um projeto para o país, uma política de Estado, uma questão de soberania nacional. É só através do investimento e não de cortes na educação que faremos do Brasil um país melhor” (Bruno Eizerik – Presidente do Sindicato do Ensino Privado do RS – Sinepe/RS – ZH, 04 de junho de 2015, p. 19). São ideias que aparecem em pequenos artigos que comentam e propõem possibilidades para a educação. É apenas um exemplo que cito compreensão e conceitos educacionais que surgem seguidamente no público. No Brasil, como um todo,

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Parece crescente o número de profissionais liberais e educadores que defendem a escola enquanto formadora de jovens para o mercado globalizado e forçam uma política de Estado centrada na economia de mercado e encantada com as “novas tecnologias”. A educação pública carece de debate sobre seu sentido e seu projeto. Isso inclui também a valorização dos profissionais da educação. O Estado tem o dever de proporcionar condições financeiras e de qualidade na formação e ação dos profissionais da educação. O fortalecimento do dever do Estado para com a educação de seus cidadãos abre caminho para a formação de “eus” públicos que podem conhecer e assumir, gradativamente, o caminho da vida pública, republicana e democrática. A responsabilidade do Estado enquanto instituição síntese das coletividades, também parece dirigir-se, na concepção de Arendt e de Sennett, para a pesquisa e para a busca do conhecimento que constitui educadores com compromisso público e autorizados a agir na formação pública das gerações.

Neste horizonte desponta o interesse pessoal pelo presente estudo, enquanto responsabilidade que emerge como forma de compromisso com a pesquisa que se reflete na ação e no posicionamento político do sentido público da educação. As compreensões abordadas nessa tese consolidam a atitude pessoal do pesquisador forjada na trajetória de vida pessoal e de suas relações com as pessoas no espaço público, na docência e no mundo comum. Gestualidades pessoais que ecoam no amor ao mundo educacional e no desejo de transformar o mundo em um espaço habitável, justo, saudável, com dignidade e princípios de respeito e democracia.

A pergunta pela possibilidade, no contexto contemporâneo, de desenvolver e assumir o sentido da educação pública e da responsabilidade pelo mundo, a partir de Hannah Arendt e de Richard Sennett, delimita a questão central desta tese. Imaginamos que ambos os autores compartilham da ideia de que é possível, na contemporaneidade, reabilitar o espaço público, o mundo comum e confiar na escola – mas não só a ela – o papel de desenvolver o sentido de responsabilidade pelo mundo. Este viés de reflexão parece focar na educação como elemento potencial para a constituição de sociedades democráticas e republicanas. Esta perspectiva de estudo entre o pensamento de Arendt e de Sennett e sua relação com a educação, constitui uma originalidade, pois a revisão bibliográfica acurada de escritos em revistas, periódicos, teses e dissertações, nos mostra que são poucas, ainda, as aproximações com o campo educacional. Parece-nos ser imprescindível buscar com profundidade desenvolver esse temos muitos escritos publicados neste sentido. Porém, demandam, daqueles que, como nós, se ocupam da educação, uma discussão consistente e que leve em conta a qualidade educacional, a escola enquanto instituição pública, os profissionais da educação e as condições oferecidas pelo Estado enquanto poder público.

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diálogo com os dois pensadores que, embora, de tradições diferentes, tecem uma análise sociológica, histórica, política e filosófica do contexto moderno e contemporâneo, analisando, especificamente, o declínio da cultura e do sentido público da educação.

Os escritos de Arendt e de Sennett explicitam uma dimensão comum ao tratar da constituição das formas de sociabilidade do mundo moderno. Ambos conferem visibilidade às formas de vida que emergem no capitalismo industrial, a partir do século XVIII, evidenciando que o caráter privado e individual, predomina sobre o caráter público e coletivo. Da mesma forma, é possível encontrar em ambos, uma espécie de força ou condicionante econômico, que modifica ou perverte os sentidos das instituições e da cultura, produzindo uma moralidade adequada apenas ao mundo produtivo e de consumo. Desta forma, trazer para o debate os escritos desses autores, é abrir para uma forma de pensamento que mostra possibilidades de contribuições para entendermos a educação para além do princípio do mundo privado. A educação como forma de responsabilidade pelo mundo se coloca como outro princípio negado, ocultado e reprimido pela moralidade constituída pelas forças do império da economia em uma sociedade de consumo.

O enfoque teórico-metodológico desta tese consiste em estudo bibliográfico, de cunho qualitativo e interpretativo, a partir dos escritos de Richard Sennett e Hannah Arendt. Em Sennett, buscamos uma análise histórico-sociológica da sociedade capitalista moderna, para compreender a relação público/privado no cenário do mundo do trabalho, da cultura e das relações entre indivíduos. A análise sennettiana busca diagnosticar as mudanças do capitalismo industrial e do capitalismo tardio. Em Arendt, buscamos compreender a tarefa política da crise da modernidade e nos inserir no debate da tradição do pensamento filosófico político ocidental. Encontramos, em Arendt, uma crítica aos sistemas totalitários do Ocidente, enquanto possibilidade de pensar a responsabilidade e o amor pelo mundo. O percurso se desenvolve a partir das obras de Richard Sennett, O declínio do homem público: as tiranias

da intimidade (1988), A corrosão do caráter: as consequências do trabalho no novo capitalismo (2010), A cultura do novo capitalismo (2006), e as obras de Hannah Arendt, A condição humana (2014) e Entre o passado e o futuro (2013), basilares para a discussão e a

compreensão da educação como responsabilidade pelo mundo diante do cenário do capitalismo contemporâneo. Outros pensadores e intérpretes somam-se a estes dois clássicos para trazer luz às reflexões (AGUIAR, 2008; 2009; ALMEIDA, 2011; CALLEGARO, 2009; 2012; CARVALHO, 2008; FABRIS; SILVA, 2010; FELÍCIO, 2016; GARCIA, 2007; HERMENAU, 2005; NASCIMENTO, 2002; NASCIMENTO; GARCIA, 2015; SILVA, 2015; SILVA, 2016; 2018).

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A perspectiva hermenêutica, centralidade teórico-metodológica, busca nos conceitos de Sennett e Arendt, compreender a erosão do espaço público (SENNETT, 1988), a crise na cultura e a crise na educação moderna (ARENDT, 2013). Acreditamos que este estudo possibilita construir um sentido alargado para a educação na contemporaneidade como forma de responsabilidade pelo mundo público. Por isso, a pesquisa procura analisar a noção de espaço público e de espaço privado, bem como, debater o processo histórico-social de constituição do espaço público e da educação que culminam na concepção neoliberal de sociedade. O foco principal ao qual nos propomos, caminha num duplo sentido: por um lado, a concepção de público e privado com a análise sociológica sennettiana, cuja elaboração nos proporciona compreender o contexto socioeconômico e político moderno e contemporâneo que sublinha uma concepção privatista da vida, da educação e da sociedade. Por outro, o declínio da cultura e do sentido público da educação moderna e contemporânea, na compreensão arendtiana.

No que diz respeito ao contexto da educação contemporânea, especificamente no que tange à difusão de discursos pedagógicos, versando sobre a perda do ideal do sentido político e ético da educação, da diluição das fronteiras entre as esferas da vida privada e pública da educação, almeja-se, a título de hipótese, perceber a educação como forma de responsabilidade pelo mundo. Esta hipótese evidencia o desafio da educação na esfera pública e permite reconhecer o percurso assumido pela tese de refletir sobre as razões do declínio do sentido público, político e do compromisso no âmbito da vida social moderna e contemporânea, a partir do desenvolvimento da cultura capitalista moderna e da flexibilização patrocinada pelo capital na contemporaneidade.

A concepção sennettiana de indivíduo na sociedade moderna sinaliza as implicações para o âmbito do campo da política e do espaço público. O autor caracteriza as mudanças que despolitizam o domínio público em prol do indivíduo no mundo privado. A modernidade promete um mundo público e, portanto, político. No entanto, seu vínculo com o capitalismo desenvolve uma arena pública atravessada pelos interesses do indivíduo privado. A personalidade, o indivíduo privado, passa a ser o princípio da vida social. Sennett (1988) considera o declínio da esfera pública em função de uma perspectiva intimista e privada de liberdade, a qual se associa largamente com a emergência da família burguesa no século XIX. Então, o sociólogo problematiza a queda do antigo regime e a formação de uma cultura urbana, secular e capitalista no século XIX, a qual se modifica no século XX, assumindo uma perspectiva de um capitalismo social e burocrático, em meados do século, para ao final do século converter-se em um capitalismo flexível. O metabolismo do capital inclui mudanças na

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racionalidade e na forma de produzir cidades e indivíduos, modificando a moralidade e a vida ética. Na compreensão arendtiana, a problemática da vida política evidencia a tarefa colocada para a escola na sociedade moderna: tornar-se uma instituição responsável pela passagem do domínio privado, do lar, para o mundo público (ARENDT, 2013). Nessa linha de pensamento, Arendt (2013) escreve sobre a crise na cultura e na educação e o declínio do sentido público. Os escritos de Arendt ajudam a entender o pano de fundo no qual Sennett realiza sua análise da cultura do capitalismo e da erosão do homem público.

Na perspectiva analítica sennettiana há uma correlação com o entendimento de Hannah Arendt acerca da crise da tradição do pensamento político e do lugar do espaço público. No entanto, os escritos desta pensadora, sobre a educação, a liberdade e a política, evidenciam o quanto a educação sofre da mesma crise que atravessa a modernidade. Para Arendt, o espaço público está relacionado com a política, lugar comum nos quais os indivíduos podem ser vistos e ouvidos em seus discursos e atos e, desta forma, constituindo-se em sua liberdade singular pela ação, a pluralidade e a experiência coletiva. Neste sentido, o respeito e a responsabilidade da autoridade com a constituição do mundo para com as pessoas ganham destaque. O rompimento com esse respeito assinala a indiferença, o desrespeito com o reconhecimento do outro, o rompimento de um pensamento e de uma tradição. O reconhecimento e a confiança são fundamentais para a autoridade ser visível e legível (SENNETT, 2001).

A era moderna parece ter perdido a herança em torno da ideia de cultura e dos ideais republicanos no espaço público em função de ter se tornado uma sociedade intimista, conforme Sennett. Arendt (2013), por sua vez, se “espelha” na concepção de autoridade e de cultura dos romanos e de polis dos gregos. A crise que ambos os autores denunciam não é apenas um momento obscuro, mas o rompimento do fio da tradição ocidental cuja culminância se realiza após a Segunda Guerra Mundial com os sistemas totalitários e as práticas de desenraizamento da cultura. Este fenômeno indica Sennett e Arendt no século XX, foi gerado por sistemas políticos totalitários que romperam com a tradição da cultura ocidental, com o idealismo republicano e democrático do espaço público, da cultura e da educação. A forma de vida material assumida pelos homens modernos se opõe a essa dimensão. Acreditamos, junto com Arendt (2013), que o desafio da educação é compreender o presente e o mundo como ele é, para conhecer o mundo e assumir a responsabilidade pelo mundo na formação das novas gerações.

As perspectivas de análise descritas por Sennett e Arendt sobre o período moderno parecem apontar para algumas consequências da constituição do eu privado. Na escola, o

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professor recebe os alunos influenciados por este contexto histórico de políticas: fragmentação do conhecimento que fragiliza o caráter dos indivíduos, a consciência de si, de sua historicidade e de sua possível ação responsável nas escolhas e participações no mundo público. Tal problemática desafia a escola e a educação, de modo geral, na ação de desenvolver um eu público ainda na vida escolar, capacitando-o para participar na esfera pública. O mundo social tem educado ao avesso. A sociedade contemporânea tem produzido “eus” consumistas, voltados ao prazer e ao consumo das sensações. Não fica difícil entender porque a corrosão do caráter tornou-se um desafio para pensar a esfera pública e a continuidade das instituições políticas, jurídicas e educacionais.

À escola – instituição educativa –, e ao professor – autoridade pedagógica –, recém o desafio de desencadear processos de acesso ao conhecimento como forma de reflexividade sobre o mundo herdado. Para isto, a qualificação do professor e o assumir a responsabilidade pelo mundo se torna imprescindível (VERONESE, 2004). A reflexão educacional parece auxiliar na compreensão que constitui o significado do conhecimento do mundo via mediações da sala de aula, dos conteúdos, da pesquisa e dos autores estudados. Uma noção de conhecimento constituinte do sujeito, para além de sua subjetividade e intimidade pessoal, reside no sujeito capaz de tomar decisões, fazer escolhas e comprometer-se “no” e “com” o espaço público, emerge na reflexão que esta tese desenvolve. Pensar a constituição do sujeito e de sua identidade e historicidade no contexto panorâmico da realidade do capitalismo contemporâneo “abre horizontes” novos para pensar sentidos ampliados de educação escolar. Esse é o esforço que movimenta as duas concepções no decorrer dos capítulos desta tese.

No primeiro capítulo busca-se compreender a diluição das fronteiras entre a esfera pública e privada a partir da pesquisa histórica e sociológica no lastro teórico de Sennett, baseada principalmente na sua obra O declínio do homem público: as tiranias da intimidade, publicada em 1977 (traduzido e publicado na língua portuguesa, em 1988). Nesta elaboração, objetiva-se trabalhar os conceitos de vida pública e privada no cenário do capitalismo industrial. A teoria sennettiana compreende o comportamento de uma personalidade individualizada como forma de desdobramento de uma sociedade intimista/privatista, a qual acentuou o declínio da cultura pública. A moralidade se desloca, no mundo moderno, para Sennett, do interior do eu para com o nós, para o interior do eu em relação com a sua aparência corporal e seus sentimentos. Tal tendência parece ter correlação posterior com o declínio do sentido público da educação.

O segundo capítulo tem como base as obras, A cultura do novo capitalismo (2006) e

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Tematizamos as mudanças desencadeadas na sociedade a partir do capitalismo tardio no que diz respeito ao colapso da esfera pública e às características do novo capitalismo. Analisamos as mudanças nas relações de trabalho, na cultura e na vida social, pois permitem entender a vida dos indivíduos no mundo social, moderno e contemporâneo. As mudanças culturais geradas pelo capitalismo, com sua instabilidade e financeirização, estariam rompendo com as formas tradicionais de trabalho construídas durante o estado de bem-estar social. O impacto destas novas formas se traduz em mais incertezas e inseguranças para a classe trabalhadora, promovem e intensificam o desvalor acerca da esfera pública. Emerge, assim, no cenário do capitalismo contemporâneo, uma nova concepção de subjetividade, a qual desafia a emergência e a necessidade de um novo pensamento sobre o lugar e o sentido da educação.

O terceiro capítulo tem como centralidade o estudo dos escritos de Arendt a partir das obras A condição humana (2014) e Entre o passado e o futuro (2013), nas quais a autora tematiza a crise na cultura e na educação e enfatiza a questão da natalidade e do sentido público da educação. A análise dos ensaios A crise da cultura e A crise na educação enfatiza a relevância da fundação e da autoridade, as quais estão relacionadas com a tradição e com o espaço comum. Conforme Fry (2010), a preocupação de Arendt está relacionada com o “esquecimento coletivo da riqueza do passado, o que priva a humanidade das profundezas da existência humana”. Arendt se refere ao problema educacional nos Estados Unidos, cujo investimento está mais ligado à educação técnica, problemas de autoridade do professor e à falta de respeito e responsabilidade para com as crianças. Há, neste entendimento, uma necessidade de, como adultos, assumir a responsabilidade pelas crianças e pelo amor ao mundo.

No quarto capítulo procura-se refletir sobre os desafios da educação contemporânea à luz dos escritos de Arendt e de Sennett e da noção de crise que os autores desenvolvem. Enfocamos neste tópico, a realidade do eu privado e da cultura de consumo; a autoridade do professor e as perspectivas de formação e do valor do conhecimento para a constituição do mundo do aluno; e a instituição escola como espaço público que possibilita criar o sentido de “responsabilidade pelo mundo”. Essa concepção ampara-se e aperfeiçoa-se na retomada do juízo estético, da compreensão que procede e sucede o conhecimento humano. A crise vivida na atualidade é um fenômeno amplo, que inclui todas as faces da modernidade e atinge a cultura, a educação, a família, a escola e a política. Arendt denuncia esta crise na cultura e na educação e a consequente perda do sentido político e público e instiga a superar esta realidade que desafia a sociedade como um todo, em especial, a educação. A crise que tematizamos no quarto capítulo, na compreensão arendtiana e sennettiana, é um problema político que parece

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decorrer da ausência de significações partilhadas e deliberadas no espaço comum. Ao Estado moderno, neste sentido, se apresenta a perspectiva da idealidade: projetar a educação pública como perspectiva para além dos interesses imediatos. A educação teria que atender interesses públicos, formando “eus” públicos, não apenas “eus” privados.

Assim, a pesquisa tematiza a educação como forma de responsabilidade pelo mundo a partir das concepções de Arendt e de Sennett. Perspectivas que serão assinaladas no desenvolvimento da tese, tecendo considerações propositivas na conclusão.

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1 A DILUIÇÃO DAS FRONTEIRAS ENTRE A ESFERA PÚBLICA E PRIVADA

A pesquisa neste capítulo movimenta-se no sentido de entender os conceitos de público e privado na modernidade. Busca, sobretudo, compreender a erosão da esfera pública nos séculos XIX e XX, o que torna-se fundamental para entender a emergência do mundo moderno e os desafios da educação. Problemática que sentimos concretamente na prática docente, nas relações com os alunos, com os próprios docentes, bem como, na mentalidade liberal que perpassa na sociedade como um todo. O estudo tem como referência básica o livro de Sennett, O declínio do homem público: as tiranias da intimidade (1988).

1.1 A EROSÃO DA ESFERA PÚBLICA: CONFUSÃO ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO – ANTÍDOTO DO “NOVO CAPITALISMO”

A escolha do tema do primeiro capítulo vai ao encontro da reflexão conceitual sennettiana acerca do domínio público e privado. No livro O declínio do homem público: as

tiranias da intimidade (1988), o autor pontua a erosão da esfera pública (transformações do

período industrial), caminho que marca a tendência ao privado. Assinala a substituição do mundo de domínio público (a partir do século XVIII) e o desenvolvimento de uma personalidade individualizada, cujos desdobramentos apontam para a sociedade intimista e o declínio da cultura pública nos séculos XIX e XX. A crítica ao capitalismo e o entendimento conceitual da teoria sennettiana no contexto da era moderna fornecem elementos indispensáveis para pensar a problemática da educação pública e da responsabilidade pelo mundo. Interpretação que parece ser decorrente da análise dos escritos de Sennett na medida em que tematiza a erosão do mundo público.

No livro O declínio do homem público: as tiranias da intimidade, Sennett (1988) procura teorizar o contexto da sociedade moderna em uma discussão sobre o domínio público e o privado em uma sociedade intimista2. Essa problemática parece transitar no estudo teórico de vários pensadores, sejam eles filósofos, psicólogos, historiadores e sociólogos que tecem uma compreensão da vida moderna. Sennett (1988, p. 62) delineia o estudo dentro de um cenário histórico e teórico; procura interpretar tal cenário por meio da análise sociológica da

2Segundo Nascimento (2002, p. 187), “a esfera íntima que era fundada na subjetividade correlata ao público, base da esfera pública literária, hoje se tornou uma porta aberta por onde entram as forças sociais sustentadas pela esfera pública do consumismo cultural dos meios de comunicação de massa, que invadem a intimidade familiar”. As relações dentro ou fora dos serviços de produção se tornam apolítico e aderem ao mundo do consumismo, do mercado e do privado. Tal cultura corrói a esfera pública.

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sociedade, na contingência de uma visão capitalista e secularista dos séculos XIX e XX, até chegar ao “desequilíbrio dos meios públicos e íntimos na sociedade ocidental em nossos dias”. Podemos dizer que esse é o movimento histórico que o autor chega e explora no final de seu livro em estudo.

No entender de Botton (2010, p. 623), Sennett “realiza um apanhado das formas de sociabilidade, comunicação, representação, atuação e relação entre as pessoas das grandes cidades, desde o século XVIII até os dias atuais do autor (1974), a fim de compreender como se formaram as concepções intimistas contemporâneas”. É um movimento que Sennett faz em sua elaboração teórica, mostrando os desdobramentos do “declínio do homem público” na sociedade contemporânea. Assinala a compreensão, as oscilações, as limitações nas relações através do comportamento, as percepções e as funções que as pessoas assumem na sociedade.

No início do seu livro, O declínio do homem público: as tiranias da intimidade, Sennett (1988, p. 19) discute “as dimensões sociais e políticas do problema público, tal como vem se desenvolvendo na sociedade moderna”. Compara os tempos modernos com o Império Romano no período em que este entra em decadência. Faz “um paralelo entre a crise da sociedade romana após a morte de Augusto e a vida nos dias atuais, no que diz respeito ao equilíbrio entre a vida pública e a vida privada” (SENNETT, 1988, p. 15). Nessa época, os romanos passaram a tratar a vida pública como uma questão formal. As cerimônias públicas, as necessidades militares do império e os rituais passaram a se constituir como deveres nos quais os romanos “participavam com um espírito cada vez mais passivo, conformando-se às regras da res publica e investindo cada vez menos paixão em seus atos de conformidade” (SENNETT, 1988, p. 15).

Na medida em que ocorre esse esfriamento da vida pública e da política romana, a vida privada passa a tomar outro rumo com o viés das “energias emocionais” vinculadas às práticas religiosas e às seitas provindas do Oriente próximo, entre as quais o Cristianismo que passou a predominar como “novo princípio de ordem pública” (SENNETT, 1988, p. 15). Assim, parece um meio em que se esfria o compromisso público e político com a coletividade e com a vida pública. Os rituais e as crenças passam a praticar mais a questão da interioridade. Presta-se “culto à personalidade”, ao líder religioso, prática que era também do império, mais como obrigação formal3.

3Relacionada a esta questão, pode-se trazer a concepção de liberdade de Santo Agostinho. Conforme Arendt (2013, p. 193), “é interessante notar que, historicamente, o aparecimento do problema da liberdade na filosofia de Santo Agostinho foi, assim, precedido da tentativa consciente de divorciar da política a noção de liberdade, de chegar uma formulação através da qual fosse possível ser escravo no mundo e ainda ser livre”. É uma liberdade mais de domínio interior, desligada do fato da vida cotidiana, portanto, no âmbito da política.

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A vida pública na atualidade também se tornou uma questão de obrigação formal. Participa-se de negociações com o Estado, com transações políticas nas instituições com intercâmbios rituais e boas maneiras, considerados, muitas vezes como formais, mas nem sempre são práticas verdadeiras e transparentes. Compreensão praticada com intencionalidade de interesses de grupos e/ou privados, talvez na sua grande maioria não em benefício da população em geral. A noção de vida pública pode ser conceituada como uma forma de vida cosmopolita em meio à multidão de estranhos4 que estabelecem relações entre as pessoas, mas que não estão intimamente ligados com a família, a amizade ou de uma vida mais íntima. Porém, essa questão, “como na época romana, a participação da res publica é hoje, na maioria das vezes, uma questão de estar de acordo; e os fóruns para essa vida pública, como a cidade, estão em estado de decadência” (SENNETT, 1988, p. 16). Qual a diferença entre a concepção do passado romano e o presente na era moderna?

A diferença entre o passado romano e o presente moderno reside na alternativa, no significado da privacidade. O romano privadamente buscava um outro princípio para contrapor ao público, um princípio baseado na transcendência religiosa do mundo. Privadamente buscamos não tanto um princípio, mas uma reflexão, a saber, o que são nossas psiques, ou o que é autêntico em nossos sentimentos. Temos tentado tornar o fato de estarmos em privacidade, a sós ou com a família e amigos íntimos, um fim em si mesmo (SENNETT, 1988, p. 16).

Em termos das ideias modernas a respeito desta psicologia da vida privada parecem um tanto confusas. São confusas por ser desconsiderado o contexto social do surgimento desta compreensão. E essa vida privada não pode ser exposta ao mundo social. “A psique é tratada como se tivesse uma vida interior própria. Considera-se essa vida psíquica tão preciosa e tão delicada que fenecerá se for exposta às duras realidades do mundo social e que só poderá florescer na medida em que for protegida e isolada” (SENNETT, 1988, p. 16). O peso e a responsabilidade de si próprio e sobre o conhecimento do mundo recai sobre si, sobre o eu pessoal. Neste sentido, no que diz respeito à personalidade de cada um, dificulta, assim, ter uma explicação da vida privada, pois a razão tem como finalidade a psique de si.

Tal prática na era moderna aponta a “confusão entre a vida pública e privada em que assuntos pessoais são levados a público, tornando íntimo também o domínio público”

4Para Leal (2017, p. 146), “existem diferentes maneiras pelas quais os indivíduos podem ser considerados estranhos: por serem migrantes, por adotarem comportamentos dissonantes da maioria, por estarem fora dos padrões de determinado grupo; o estranho pode até mesmo ser simplesmente um desconhecido com o qual se depara na rua. A característica comum à categoria estranho é causar perturbação, ainda que não intencionalmente, por colocar em questão as regras de agir e os padrões de comportamento que oferecem segurança”. É esta a compreensão de estranhos para Sennett? Mais adiante no texto será descrita sobre a categoria “estranho” na ótica sennettiana (conforme nota 15).

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(BOTTON, 2010, p. 625). Essa concepção sennettiana parece continuar na atualidade e se fortalecem em diferentes instituições públicas e privadas, nas “opiniões públicas” sobre vida, saúde, educação, religião, política, economia, transporte, esporte, entre outros. Opiniões que são fortalecidas e “fundamentadas” via senso comum nas igrejas, nas redes sociais e nos meios de comunicação social em geral. Conceitos que do ponto de vista da práxis temos avançado pouco. Parece haver uma ausência de profundidade e poucos debates públicos sobre essas questões. Segundo Nader (1989, p. 166), “no mundo moderno, as relações sociais somente adquirem relevo em função da identidade pessoal. A erosão da esfera pública acarretou não um vazio, mas a invasão do seu espaço pelo que é do âmbito privado”. Um movimento que vai transformando o espaço público em privado5. Essa confusão teorizada por Sennett aponta que é um período em que as mudanças na concepção capitalista e nas crenças religiosas estão acontecendo, elementos característicos do secularismo.

As mudanças perpassam as relações sociais e são cimentadas através de códigos que dão “oficialidade” a uma prática um tanto confusa, talvez um caminho próprio que caracteriza a intencionalidade das “transformações” na sociedade secularizada. Os códigos parecem “formalizar” um direcionamento de significado privado. Sennett (1988, p. 17) afirma: “Segundo nosso código moderno de significação privada, as relações entre experiência impessoal e íntima não possuem tal clareza”. Parece-nos que essa visão se torna “significativa” em termos de sociedade quando ela é convertida em “um grande sistema psíquico” (SENNETT, 1988, p. 17). Segundo Sennett (1988, p. 17), essa compreensão para a vida das pessoas mais em relação ao pessoal e não em relação pelo que fazem em termos sociais passou a predominar na sociedade. Exemplifica essa questão com o trabalho de um político6. No entender do sociólogo, “um líder político que busca o poder obtém ‘credibilidade’ ou ‘legitimidade’ pelo tipo de homem que é não pelas ações ou programas que defende”. A concepção de práxis política, na mentalidade da maioria da população brasileira atual e, de certa maneira, também dos “líderes” de partidos políticos, continua e/ou aperfeiçoa tal visão. Podemos exemplificar em expressões do senso comum como “acredito na pessoa e

5Em obras de Bauman podemos buscar reflexões sobre o público e o privado. Na obra Em busca da política, Bauman (2001, p. 53-54), afirma que “o espaço privado está colonizando o espaço público, onde o indivíduo de fato age e interage com o todo onde vive”. A distinção entre o público e o privado em Arendt, encontramos no segundo capítulo do livro A condição humana. A discussão desses conceitos é imprescindível para entendermos a decadência da esfera pública. E essa decadência vem acompanhada de um modelo de praticar a política. 6Sennett fazia uma crítica da visão liberal de política. Em seus escritos traz aspectos que apontam as raízes de uma compreensão política na sociedade que cimenta aos poucos a atuação do político como uma prática neoliberal. Esse modelo de fazer política se manifesta na indiferença do povo frente às questões públicas, com a própria política. E ao mesmo tempo o desinteresse dos “líderes” políticos em defender questões de interesse público que beneficia a população de modo geral.

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não no partido”, fulano de tal pertence “àquela religião” podemos confiar e votar. Uma grande maioria dos líderes políticos em suas campanhas eleitorais está comprometida com empresas privadas e interesses individuais. Porém, seus discursos parecem transmitir um compromisso público e social.

O trabalho que o político deveria fazer parece não interessar às pessoas. Interessa mais o que ele é. No entanto, procura não mostrar as fragilidades pessoais e/ou seus erros em relação ao público. Leva-nos a crer que o compromisso com as relações mútuas são mais como um ato de desvendamento e as relações comunitárias de estrangeiro são subestimadas. Essa visão psicológica inibe não só as “forças básicas da personalidade”, bem como, “o respeito pela privacidade dos outros”. Tal compreensão, um tanto obscura na sociedade industrial, parece esconder o que o indivíduo é na vida privada. Sennett (1988, p. 17) afirma que “uma vez que cada indivíduo é em certa medida uma câmera de horrores, as relações civilizadas entre os indivíduos só pode ter continuidade na medida em que os desagradáveis segredos do desejo, da cobiça ou inveja forem mantidos a sete chaves”.

O advento da psicologia moderna prega que as pessoas precisam se libertar desses horrores da vida pessoal. Essa compreensão leva uma multidão de pessoas a imaginar nessa libertação. Porém, não passa de uma armadilha que se fecha na “intimidade”, numa visão psicológica desvinculada do mundo da vida social e pública. A expressão de intimidade ligada aos sentimentos interessa na medida em que recebe benefícios pessoais. É uma espécie de recompensa psicológica. Os sentimentos e os compromissos com o outro se esvaziam. Sennett (1988, p. 18), interpretando Riesman, descreve que este:

Acreditava que a sociedade americana e, na esteira desta, a Europa Ocidental estavam mudando da condição de voltada para dentro à condição de voltada para outrem. A sequência deveria ser invertida. As sociedades ocidentais estão mudando a partir de algo semelhante a um estado voltado para o outro para um tipo voltado para a interioridade – com a ressalva de que, em meio à preocupação consigo mesmo, ninguém pode dizer o que há dentro. Como resultado, originou-se uma confusão entre vida pública e vida íntima: as pessoas tratam em termos de sentimentos pessoais os assuntos públicos, que somente poderiam ser adequadamente tratados por meio de códigos de significação impessoal.

Segundo o autor, essa confusão embora pareça ser um problema mais americano, é uma compreensão que atinge o funcionamento da sociedade mundial. Ele chama isso de uma espécie de “ansiedade a respeito do sentimento individual. A fonte dessa ansiedade reside nas profundas mudanças do capitalismo e da crença religiosa, o que não se limita a fronteiras nacionais” (SENNETT, 1988, p. 18). As mudanças atingem o comportamento público e

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privado das pessoas. Para entendermos esse comportamento de expressão pública, Sennett (1988, p. 19) aponta para uma discussão sobre as “dimensões e políticas do problema público” e traça um caminho que reflete “as questões históricas e teóricas” examinando-as em várias direções. É o esforço que iremos fazer para o entendimento da problemática em questão.

A primeira dela está relacionada com o comportamento das pessoas em direção à questão do amor e das relações mais íntimas, as quais acontecem “fora do domínio público”. Segundo Sennett (1988, p. 19):

O problema da sociedade contemporânea é duplo: o comportamento e as soluções são impessoais não suscitam muita paixão; o comportamento e as soluções começam a suscitar paixão quando as pessoas os tratam, falsamente, como se fossem questões de personalidade.

Esse duplo problema público atinge e cria um problema no interior da vida privada. A erosão não é só da vida pública, mas também nas relações íntimas que acabam, muitas vezes, solapando a sinceridade do amor das pessoas. Assim, “o mundo dos sentimentos íntimos perde suas fronteiras” (SENNETT, 1988, p. 19). Essa experiência, segundo Sennett (1988), tem atingido principalmente as últimas quatro gerações. Tal deformação atinge o “amor físico” que é uma das experiências mais pessoais e íntimas do ser humano.

O amor físico é redefinido a partir das quatro últimas gerações. Ocorre a passagem do “erotismo para os termos da sexualidade. O erotismo vitoriano envolvia mais relacionamentos sociais, enquanto a sexualidade envolve a identidade pessoal” (SENNETT, 1988, p. 19). O erotismo por meio das ações de escolha, repressão e “interação” envolve mais relacionamentos sociais. A sexualidade é um ato físico do amor que decorre mais de forma passiva, como resultado íntimo entre duas pessoas.

O erotismo tem suas bases entre a burguesia do século XIX. As bases estavam escondidas no medo e expressas pelo filtro da repressão. A ação sexual era acompanhada de “sentimento de violação”, do “corpo da mulher pelo homem”, do “código moral social pelos dois amantes”, “pelos homossexuais” (SENNETT, 1988, p. 20). A sociedade moderna tem se revelado contra o medo e a repressão. Porém, uma nova escravidão veio substituir a antiga. O sexo passou a ser uma revelação do eu, mais ligado aos órgãos genitais. O amor físico não tem mais uma conotação de um ato social. Agora está mais ligado à afinidade emocional, portanto, fora da teia das relações sociais na vida da pessoa. Na era moderna se usa a expressão “caso”, que tem uma conotação de desvalorização da sexualidade. Parece ser um

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discurso que se rebela contra a repressão sexual. E ao rebelar-se contra esta, está se rebelando contra a dimensão social da sexualidade. Esta prática sinaliza uma espécie de narcisismo nas relações íntimas humanas, onde, em decorrência disso, tem-se uma “troca mercantil em relações íntimas” (SENNETT, 1988, p. 21). Tece-se, neste sentido, uma falta de compromisso, de seriedade e responsabilidade no relacionamento amoroso entre as pessoas.

A prática sinalizada expressa uma concepção do narcisismo. “O narcisismo é uma obsessão com aquilo que esta pessoa, este acontecimento significa para mim [...]. Tem a dupla qualidade de ser voraz nas necessidades do eu e o bloqueio de sua satisfação” (SENNETT, 1988, p. 21). Parece suprir momentaneamente a satisfação do eu, mas essa introjeção das necessidades do eu podem frustrar a sua satisfação. Há uma espécie de sentimento de não ter atingido o objetivo de que se queria atingir. Segundo Sennett (1988), as práticas narcisistas podem ser fonte de dificuldades psíquicas das pessoas, constatação realizada pelos terapeutas nesta área. Nascimento (2002, p. 192), interpretando Sennett afirma: “o narcisismo, que o autor define como um distúrbio patológico faz com que os indivíduos percam a capacidade de diferenciar o eu do mundo, ou seja, das outras pessoas e coisas que os rodeiam, provocando uma extrema preocupação consigo mesmo, que se traduz num interesse obsessivo com relações pessoais e íntimas”. Essa prática leva às pessoas a dar uma importância pessoal e particular aos indivíduos e não aos interesses gerais da vida pública.

Esses distúrbios distanciam as pessoas do compromisso do amor físico, pessoal ou social. Em decorrência disso:

[...] o resultado do narcisismo é um decréscimo da imaginação metafórica do corpo, o que é, vale a dizer, um empobrecimento da atividade cognitiva criadora de símbolos a partir de uma coisa física. Esta é uma das razões pelas quais, à medida que uma sociedade passa do erotismo à sexualidade, da crença em ações emocionais para a crença em estados emocionais, forças psicológicas destrutivas são trazidas à baila. É um sinal da destrutividade desencadeada quando uma sociedade nega até mesmo a Eros uma dimensão pública (SENNETT, 1988, p. 22).

Há uma inversão real do sentido do amor físico para com as pessoas. Essa inversão adentra na vida privada, tecendo uma espécie de “troca mercantil/comercial” nas relações íntimas. Essas relações duram até que convém. Em respeito disso ocorre um esvaziamento do compromisso do amor como preocupação pública em detrimento de uma preocupação mais privada, voltada mais aos desejos e aos sentimentos pessoais.

Uma segunda mudança que o autor teoriza segue na direção do esvaziamento do sentido do espaço público. Para Sennett (1988), essa compreensão de absorver o privado e o

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íntimo em detrimento do público torna favorável uma prática subjetiva capitalista, onde as relações não são mais de responsabilidade e sentido público, mas tão somente uma prática comercial, de trocas com sentido utilitarista e de acúmulo de capital. Há uma introjeção do privado e uma relativização do espaço público ou se quisermos uma transposição do público para o privado com profundo aspecto de egoísmo e individualismo que satisfaz enquanto beneficia os interesses pessoais7. Sennett (1988) chama essa descaracterização do público como “espaço público morto”. Interpretando Sennett, Botton (2010, p. 625) afirma que “a morte do espaço público acontece na medida em que a cultura do narcisismo vai avançando no interior da cultura social”. No pensamento do sociólogo, “A visão intimista é impulsionada na proporção em que o domínio público é abandonado, por estar esvaziado. No mais físico dos níveis, o ambiente incita em pensar no domínio público como desprovido de sentido. É o que acontece com a organização do espaço urbano”8 (SENNETT, 1988, p. 26).

Entendemos que, em tal dimensão do espaço urbano moderno, não há só uma contradição, como também uma supressão do espaço público, o qual se torna passageiro ou transitório, portanto, não permanente. É um projeto arquitetônico vertical que relativiza a horizontalidade como espaço de encontro presencial de pessoas públicas. “Isto significa que o espaço público se tornou uma derivação de movimento [...]” (SENNETT, 1988, p. 28). Há uma relação entre o particular e a movimentação, esvaziando o sentido do encontro com o(s) outro(s). Assim, “as ruas da cidade adquirem então uma função peculiar: permitir a movimentação; se elas constrangem demais a movimentação, por meio de semáforos, contramãos, etc., os motoristas se zangam ou ficam nervosos” (SENNETT, 1988, p. 28). Essa movimentação carrega as pessoas de ansiedade e de estresse, individualmente. Parecem estarem no anonimato, mesmo estando se movimentando em meio das ruas, em um grande número de pessoas.

7“Talvez o individualismo apontado por Sennett possa ter causas muito mais sólidas, cujas raízes devam ser buscadas no âmago da concepção burguesa de sociedade, bem como, em outros movimentos no pensamento e na cultura ocidental ao longo da modernidade. Na verdade, ele chega a apontar o capitalismo como um dos responsáveis por esse processo, mas não nos esclarece, de forma consistente, qual foi sua relação com o narcisismo e a mudança de código da secularidade que passou de transcendente para imanente” (NASCIMENTO, 2002, p. 193). Assim, interpretando Sennett, o narcisismo e a secularidade parece não ser suficiente para explicar todas as causas da erosão da vida pública.

8Para exemplificar o espaço urbano o autor cita o exemplo da construção de um prédio (arranha-céus), construído após a Segunda Guerra Mundial em Nova York. É o chamado “Lever House de Gordon Bunshaft” (SENNETT, 1988, p. 26). O andar térreo é aberto ao qual tem acesso da rua. Esse espaço, Sennett (1988), chama de espaço morto, pois este andar não contempla atividades diversas senão para servir de “passagem para o interior” do mesmo. Essa compreensão relativiza ou até mesmo destrói o sentido de espaço público por onde se encontram ou passam muitas pessoas em suas diferentes atividades.

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Esse espaço perde o sentido público. Por mais que esteja na movimentação urbana há um “isolamento”, uma “perda de significado” e de “sentido” como local público para os outros (relações comerciais, habitacionais, de trabalho, pobres, ricos e questões étnicas). Há uma perda da sociabilidade nas relações entre as pessoas. É um “isolamento segregador, bem como, do isolamento pelo retraimento em público” (LEAL, 2017, p. 151). No entender de Sennett essa compreensão se estende no trabalho burocrático ao qual o local de trabalho é separado por paredes. São sociáveis, mas com “barreiras tangíveis”. Isto significa dizer que “os seres humanos precisam manter certa distância da observação íntima por parte do outro para poderem sentir-se sociáveis. Aumentam o contato íntimo e diminuirão a sociabilidade. Esta é a lógica de um tipo de eficiência burocrática” (SENNETT, 1988, p. 29). A questão burocrática afeta as regulações das instituições e também dos indivíduos. Para Sennett (2006, p. 40), “as estruturas burocráticas permitem interpretar o poder, conferir-lhe sentido no campo da ação; podem, assim, dar aos indivíduos a sensação de estar agindo por conta própria”.

A razão desta prática cimenta o “espaço público morto” por visualizar o “isolamento” e as “transgressões psicológicas” como complementares. Cria-se uma espécie de “máscara” para que a vida pessoal não seja exposta nas relações sociais. Segundo a interpretação de Sennett (1988, p. 30) é uma mudança que ocorre do ponto de vista histórico, iniciado na “queda do Antigo Regime e com a formação de uma cultura urbana, secular e capitalista”. É uma geração, “nascida após a Segunda Guerra Mundial que se voltou para dentro de si ao se libertar das repressões sexuais” (SENNETT, 1988, p. 30). Em termos de cultura ocidental podemos entender essa chave de compreensão da mudança, conceituando o entendimento da história das palavras “público e privado”9.

Segundo Sennett (1988, p. 31):

9As palavras “público e privado” têm sua história de significação e de transformação, principalmente nos séculos XVII e XVIII. Sennett (1988) descreve o sentido do conceito moderno do século XVIII, que pensa ser o foco da reflexão na sequência do livro. O sentido do “público” ampliou-se no século XVIII, tanto em Paris, como em Londres, onde os burgueses atingiram um grande número e passaram em não se preocupar com suas origens sociais. Grupos diversos, em cidades onde moravam, estavam entrando em contato com a sociedade. São as mudanças que ocorrem no domínio público. Para Arendt (2014), o termo “público” denota dois fenômenos que estão ligados, porém, não idênticos por completo. Público, “significa, em primeiro lugar, que tudo que aparece em público pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível” (ARENDT, 2014, p. 61). “Em segundo lugar, o termo ‘público’ significa o próprio mundo, na medida em que é comum a todos nós e diferente do lugar que privadamente possuímos nele” (ARENDT, 2014, p. 65). Sobre o privado, Arendt (2014, p. 72), afirma que “viver uma vida inteiramente privada significa, acima de tudo, estar privado de coisas essenciais a uma vida verdadeiramente humana: estar privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por outros, privado de uma relação ‘objetiva’ com eles decorrente do fato de ligar-se e separar-se deles mediante o mundo comum de coisas, e privado da possibilidade de realizar algo mais permanente que a própria vida”. Arendt (2014), na distinção destes conceitos, mostra uma compreensão mais clássica (influência grega) com sentido político. Sennett (1988) faz mais uma análise sociológica da vida pública e privada, enfatizando a mudança de comportamento do público para o privado no mundo moderno.

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Na época em que a palavra “público” já havia adquirido seu significado moderno, portanto, ela significava não apenas uma região da vida social localizada em separado do âmbito da família e dos amigos íntimos, mas também o domínio público dos conhecidos e dos estranhos incluía uma diversidade relativamente grande de pessoas.

O conceito de público em Sennett e Arendt assemelha-se: público é o que está comum para todos, “significava o bem comum na sociedade” (SENNETT, 1988, p. 30). Sennett (1988) analisa com enfoque histórico e sociológico a questão no âmbito da vida citadina. Parece que sua análise se refere à classe burguesa e, em decorrência desta centralidade, a sociedade de modo geral é conduzida e determinada pela prática de tal classe. Gradualmente, a classe burguesa desgasta o sentido do público se protegendo no âmbito da família. A família passa a praticar cada vez mais ser “um refúgio idealizado, um mundo exclusivo, com um valor moral mais elevado do que o domínio público” (SENNETT, 1988, p. 35). A compreensão dessa dimensão do público/privado é uma transformação que se realiza aos poucos na cultura ocidental.

Arendt (2014) faz uma reflexão crítica do termo ao qual amplia o conceito de público dimensionando para uma compreensão política, de responsabilidade sobre aquilo que é visto e ouvido em comum para todos. No entanto, para Arendt (2014, p. 67), o mundo comum, o espaço público “não pode ser construído apenas para uma geração e planejado somente para os que estão vivos, mas tem de transcender a duração da vida de homens mortais”. É um posicionamento que pressupõe uma dimensão política permanente. O privado está não só ligado aos interesses de uma determinada classe, mas em relação a todos aqueles que não recebem com dignidade seus direitos. Significa algo que não é comum e permanente para todos. Arendt (2014, p. 72) compreende que “a privação da privacidade reside na ausência de outros; para estes, o homem privado não aparece, e, portanto, é como se não existisse”. A importância fica mais ao interesse privado e desprovido do que é significativo para os outros.

Sennett (1988) ao analisar a realidade citadina amplia o conceito do termo público. Inclui-se aqui também o termo “Cosmopolita”10 que está associado ao público urbano diverso. Termo registrado em Francês em 1738 e, em inglês, no qual passou a ser mais usado no século XVIII. Sennett (1988, p. 31-32) compreende que “Cosmopolita é um homem que se movimenta despreocupadamente em meio à diversidade, que está à vontade em situações sem

10Para Bueno (1986, p. 306), cosmopolita é a “pessoa que se julga cidadão do mundo inteiro, ou que considera sua pátria o mundo. Cidade cosmopolita: em que vivem pessoas de quase todas as partes do mundo”. Educação cosmopolita, neste contexto, é um desafio. Supõe também educação e responsabilidade pelo mundo.

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nenhum vínculo nem paralelo com aquilo que lhe é familiar [...]. Por causa de novos hábitos de se estar em público, o cosmopolita tornou-se o homem público perfeito”.

O público passa a significar uma vida que está fora ou externa em relação à vida familiar e da vida íntima dos amigos. É um período (século XVIII) em que surge a “construção” de parques urbanos, ruas adequadas ao passeio de pedestres, bares, teatros e óperas, que eram abertas ao público e mercado competitivo. Enfim, são espaços que “integram” diversas modalidades que abriam possibilidades de “relações sociais”, mas com base cada vez mais impessoal. Uma vida adequada e levada entre estranhos, uma vida separada da vida familiar e dos amigos11.

Tanto no comportamento, como na crença, as pessoas das capitais, no século XVIII, procuravam definir o que era e o que não era relacionado à vida pública (SENNETT, 1988). Mas existia certa confusão entre o que se vivia no público e o que se vivia na vida familiar. Na vida pública se procurava uma relação satisfatória com os estranhos, com aqueles que não estavam no círculo da convivência mais próxima. “Enquanto o homem se fazia em público, realizava sua natureza no domínio privado, sobretudo em suas experiências dentro da família” (SENNETT, 1988, p. 33). Havia uma tensão entre o viver a civilidade e os direitos da natureza no que tange ao público e ao privado na vivência também das coisas mundanas na grande cidade.

Para Sennett (1988, p. 34), na ascensão do capitalismo industrial em detrimento da “ordem pública na cidade” três forças estão ligadas em relação dessa mudança:

Em primeiro lugar, um duplo relacionamento que no século XIX o capitalismo industrial veio a ter com a vida pública nas grandes cidades; em segundo lugar, uma reformulação do secularismo, que começou no século XIX e que afetou a maneira como as pessoas interpretavam o estranho e o desconhecido; e, em terceiro lugar, uma força que se tornou uma fraqueza, embutida na própria estrutura da vida pública do antigo regime.

11Eagleton (1991), em seu livro A função da crítica, sinaliza, no prefácio, a tese de que a crítica atual perdeu a sua relevância social. Traz em seu pensamento a teoria habermasiana no sentido da relativização do espaço público, da autoridade e da cultura moderna, a partir da “cultura” da família burguesa. Eagleton (1991, p. 109-110) compreende que: “Quando, ao longo de sua evolução, a sociedade burguesa chega à época moderna, as relações entre esfera pública, esfera íntima e Estado passam por importantes transformações. [...] O consumo e o lazer privados, com base no espaço agora exíguo da família, substituem as formas de discussão social anteriormente associadas à esfera pública”. Há uma transferência da concepção da transcendência religiosa, para o interior do eu privado. As atividades em relação à vida social deixam de ser significativas, a não ser a preocupação, segundo Eagleton (1991), com “os processos simbólicos da vida social e com a produção social de formas de subjetividade”. Assim, pontua o autor do livro, a importância e a responsabilidade do crítico frente o preenchimento da função política.

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Essa herança afetou as novas forças do capitalismo e do secularismo, acarretando aos poucos uma mudança no seu interior da sociedade quanto ao sentido público, pressionando para as privatizações suscitado pelo capitalismo “na sociedade burguesa do século XIX” (SENNETT, 1988, p. 34). A família burguesa passou a ser idealizada no sentido que nela rege um parâmetro moral para enfrentar os desgastes da ordem pública e da sociedade. Segundo Habermas (2003, p. 42):

A esfera pública burguesa pode ser entendida inicialmente como a esfera das pessoas privadas reunidas em um público; elas reivindicam esta esfera pública regulamentada pela autoridade, mas diretamente contra a autoridade, a fim de discutir com ela as leis gerais da troca na esfera fundamentalmente privada, mas publicamente relevante, as leis do intercâmbio de mercadorias e do trabalho social.

Interpretando o pensamento habermasiano, Nascimento (2002, p. 186) afirma que a camada burguesa pensava a cultura moderna, cuja “formação do raciocínio público12, brotou do solo íntimo da família burguesa ou do próprio cerne da esfera privada”. Para Sennett (1988, p. 35), “A privacidade e a estabilidade pareciam estar unidas na da família; é em face dessa ordem ideal que a legitimidade da ordem pública será posta em questão”. Nota-se que há uma oscilação entre o público e o privado neste período. Oscilação que, em termos de geografia pública, tomavam duas direções: “uma afastava-se do público, em direção à família; a outra promovia uma nova confusão, envolvendo os materiais da aparência em público, confusão essa que podia, contudo, ser transformada em lucro” (SENNETT, 1988, p. 36).

Entra aqui uma segunda força que vai em direção da mudança em relação à vida pública herdada do Antigo Regime, ou seja, um “novo imaginário” na vida terrena que é a crença no secularismo. Este tem como princípio de conhecimento a imanência. No entender de Sennett (1988, p. 37):

Essa reestruturação do código do conhecimento secular teve um efeito radical sobre a vida pública. Significava que as aparições em público, por mais mistificadoras que fossem, ainda tinham que ser levadas a sério, porque poderiam constituir pistas da pessoa oculta por trás da máscara [...]. É assim que surge uma das maiores e mais enriquecedoras contradições do século XIX: mesmo quando as pessoas queriam fugir, fechar-se num domínio privado, moralmente superior, temiam que classificar arbitrariamente sua experiência em, digamos, dimensões públicas e privadas poderia ser uma cegueira autoinfligida.

12Nascimento (2002, p. 182), ao considerar o problema da esfera pública tece as perspectivas contrapostas entre Arendt e Habermas: “enquanto Arendt viu as transformações econômicas trazidas pelo capitalismo na modernidade como responsáveis pela destruição da vida pública, Habermas vê nesse mesmo processo o surgimento de uma nova esfera pública, a esfera pública burguesa”. O posicionamento sobre tal problemática, Sennett segue na sequência do texto, frisando uma análise sociológica nesse contexto.

Referências

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