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O Princípio do melhor: a natureza com arte

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CDD: 149.7

O princípio do melhor: a natureza como arte

ADELINO CARDOSO Centro de História da Cultura

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa

LISBOA, PORTUGAL cardoso.adelino@gmail.com

Resumo: Leibniz conta-se dentre os vários pensadores que, na transição do século XVII ao XVIII, assumem a perspectiva segundo a qual a ordem e inteligibilidade imanentes à natureza são reforçadas pelo caráter artístico dessa mesma natureza enquanto obra divina. Este artigo dedica-se ao exame das reflexões de Leibniz sobre o caráter artístico da Criação e sua relação com o ordenamento físico da natureza, com vistas a evidenciar que, também nesse aspecto particular, as teses defendidas por Leibniz estão em consonância com sua perspectiva filosófica geral que, avessa a dualidades fragmentadoras, tais como aquela entre mecânica e finalidade, ciência e moral, fé e razão, pauta-se pela convicção de que os diferentes modos pelos quais o pensamento se exercita se complementam e harmonizam entre si.

Palavras-chave: arte, harmonia, perfeição, mecanismo, organismo, natureza

Abstract: Leibniz is among the philosophers who, at the transition from XVII to XVIII centuries, share the point of view that the order and intelligibility of nature is reinforced by its artistic character as a result of God's work. This paper is consecrated to examine Leibniz's reflections about the artistic character of creation and its relationship to the physical order of nature, in order to show that, also concerning this subject, Leibniz's thesis are coherent with his general philosophical conception according to which the different ways in which the thought exercises itself are complementary and harmonic one to another.

Keywords: art, harmony, perfection, mechanism, organism, nature

Introdução

A teodiceia está no cerne da inteligibilidade leibniziana. A sua compreensão adequada revela o sentido fundamental do leibnizianismo, a respiração que anima o labor do filósofo de Hanover e acompanha o seu esforço de renovação do saber. De fato, a teodiceia ilustra admira-velmente o modo leibniziano do pensar entendido como exercício de

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continuidade entre os diferentes domínios do saber, recusando dualida-des fragmentadoras como aquelas que a racionalidade moderna na sua versão tipificada legitima: fé e razão, ciência e moral, mecânica e finali-dade, liberdade e necessifinali-dade, ordem e acaso. Daí que, no opúsculo que marca a sua adesão ao mecanicismo moderno, Confessio naturae contra atheistas (1669), Leibniz manifeste o sentimento de perplexidade em face da indiferença religiosa evidenciada pela nova ciência da natureza: “Ex-perimentamos este nosso século igualmente fecundo na ciência e na impiedade”1. Tal indiferença só pode resultar de uma incompreensão

dos fundamentos da grande máquina do universo. Na perspectiva leib-niziana, é tarefa da ciência e de toda a filosofia natural dar a ver a beleza e finalidade inscritas na natureza como assinatura do seu autor.

A contemplação da beleza da natureza, acompanhada da consi-deração do bom governo do mundo, e particularmente da “ótima repú-blica” que é o reino moral dos espíritos, desperta no espírito uma dis-posição favorável para com o divino arquiteto e monarca. É esse o in-tento do opúsculo Confessio philosophi (1673-1674): “Efetivamente, con-clui-se com uma demonstração irrefutável que tudo quanto existe é ó-timo ou harmonikôtaton, porque a primeira e única causa eficiente é uma mente. Ora, a causa ou fim para que uma mente aja é a harmonia e, no

1 Leibniz, Confessio naturae contra atheistas, GP IV, p. 105. As abreviações aqui

empregadas, com as respectivas edições dos escritos de Leibniz, são: Ak:

“Sämtliche Schriften und Briefe”. Deutschen Akademie der Wissenschaften zu Berlin. GP: “G. W. Leibniz – Die philosophischen Schriften” (Ed.: Gerhardt, C, I.,

George Olms Verlag. Hildesheim, 1996). GM: “G. W. Leibniz – Die Mathema-tische Schriften”. Gerhardt. George Olms Verlag. Hildesheim, 1971. Grua:

“Textes Inédits d'après les manuscrits de la Bibliothèque provinciale de Hanovre” (Publicados e comentados por Gaston Grua 2ª ed. PUF, Paris, 1998). OFI:

”G. W. Leibniz – Opuscules et fragments inédits – extraits des manuscrits de la

Bibliothèque Royale de Hanovre” (Ed.: Couturat, L. George Olms Verlag.

Hilde-sheim, 1988). Teodiceia: “Essais de Théodicée sur la bonté de Dieu, la liberté de l'homme et l'origine du mal” (em: GP VI, pp. 21 - 471).

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caso de uma mente perfeitíssima, é a harmonia suprema”2. Por

conse-guinte, na “República universal”, governada por Deus, “não há indig-nação justa”3, mais, o homem desesperado é um “inimigo de Deus, do

universo, de si”4

Leibniz não é, todavia, um caso isolado na sua defesa da per-feição da natureza. De fato, na transição do século XVII ao XVIII, au-tores relevantes assumem a perspectiva segundo a qual a ordem e inte-ligibilidade imanentes à natureza são reforçadas pelo caráter artístico dessa mesma natureza enquanto obra (por via de emanação ou criação) da divindade. É assim que R. Boyle, na obra mais elaborada sobre o conceito de natureza de finais do século XVII, afirma que a tese segun-do a qual “a natureza faz sempre o melhor (natura semper quod est optimum facit)”5 é um axioma vulgar, isto é, corresponde a um tópico

razoavel-mente consensual. Porventura a síntese que melhor exprime a inteligibi-lidade da natureza no início do século XVIII é a de F. Bayle nas suas Institutiones Physicae: “A natureza faz tudo sapientissimamente. A nature-za é sapientíssima, não faz nada em vão, segue as vias mais curtas, faz o melhor, é conservativa, vigia pela conservação do universo”6. No caso

deste médico notável, a natureza é sábia enquanto natureza naturante (natura naturans), identificada com a mente divina.

Para Leibniz, a natureza apresenta uma ordem altamente com-plexa, cujo grau mais elevado, o da organicidade do vivo, é de uma suti-leza e artifício que ultrapassa as produções da arte humana. Nos termos do prefácio da Teodiceia, “há mais artifício na organização dos animais

2 Leibniz, Confessio philosophi, Ak VI, III, p. 146. 3 Op. cit., p. 140.

4 Op. cit., p. 145.

5 Boyle, Robert, De ipsa natura sive libera in receptam naturae notionem disquisitio ad amicum, Coloniae, 1688, p. 79.

6 Bayle, F., Institutiones Physicae ad usum scholarum accomodatae, Tolosae, Apud

Paulum Douladoure, 1700, p. 55 (no cap. sobre Sententia recentiorum phi-losophorum circa naturam).

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do que no mais belo poema do mundo ou na mais bela invenção de que o espírito humano é capaz”7.

Entre criação e emanação: a continuidade Deus/natureza

A relação entre criador e criatura e, mais especificamente entre Deus e a natureza, é um tópico central da filosofia natural no período em que Leibniz desenvolve o seu pensamento, desde aproximadamente 1663 a 1716. As posições divergem de uma maneira muito acentuada, desde a tese da identidade entre Deus e natureza, à maneira de Espino-sa, à tese de um abismo entre os dois planos, tal como é defendido por Malebranche. O ponto fulcral de divergência diz respeito à potência da natureza, à sua capacidade de agir. Espinosa inscreve a potência de agir no cerne da natureza, reconhecendo em cada ente um conatus essendi ou um esforço para persistir no seu próprio ser. A metafísica espinosana da imanência é acompanhada por um dinamismo intrínseco de todas as partes da natureza8. Por seu lado, reconhecendo a marca do Criador na

perfeição da máquina da natureza criada, Malebranche defende uma descontinuidade radical entre o autor e a sua obra, mediante a tese de que toda a potência é divina e, por conseguinte, a radical passividade da natureza criada implica a necessidade da operação divina inclusive nos movimentos mecânicos mais simples: “Mas o que é um corpo movido? É um corpo transportado por uma ação divina”9.

7 Leibniz, Teodiceia, prefácio, GP VI, p. 42.

8 Acerca do dinamismo espinosano, vide Martinez, Francisco José, “Essentia

actuosa”, in Ferreira, M. L. R., Aurélio, D. P. e Feron, O., Spinoza. Ser e Agir. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011, pp. 153-159.

9 Malebranche, N., Entretiens sur la métaphysique et sur la religion, Pris, Vrin, 1965,

p. 164. Na base da causalidade e eficácia imanentes à natureza, Malebranche vê uma concepção pagã e ilusória da natureza: “Despreza todas essas potências imaginárias de uma natureza cega, que os Filósofos pagãos inventaram ou para esconderem a sua ignorância, ou para justificarem a sua idolatria, ou para se acomodarem à fraqueza da imaginação do comum dos homens.”

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Como é seu timbre, Leibniz elabora um sistema de filosofia na-tural que mostra a insuficiência de cada uma das teses extremas e a exi-gência de um novo ponto de vista. Assim, afirma simultaneamente a transcendência de Deus em relação à natureza criada10 e a continuidade

entre um e outro. Sob este aspecto, é particularmente relevante o opús-culo De ipsa natura, onde o autor se demarca simultaneamente do mo-nismo substancial, para o qual “Deus é a própria natureza ou substância de todas as coisas” (ipsam naturam vel substantiam rerum omnium Deum es-se)11 e, mais persistentemente, do ocasionalismo de Malebranche, cuja

doutrina, ao excluir as ações imanentes das criaturas, “se revela estranha à razão” (a ratione apparet aliena)12 e, como dirá em carta a De Volder,

in-digna de um filósofo13. O decreto divino comunica às coisas algum

“vestígio” da sua potência, donde resulta que as coisas encerram “uma eficácia, forma ou força” (efficatiam, formam vel vim) que chegou até nós sob o nome de natureza14.

A articulação entre transcendência divina e espontaneidade da natureza está patente, desde logo, na concepção leibniziana do ato cria-dor, operando uma síntese entre a doutrina cristã da criação ex nihilo e a teoria neoplatônica da emanação. O próprio léxico utilizado por Leib-niz dá conta da presença destas duas tradições. Com efeito, se o termo habitual no corpus leibniziano é criação, a emanação está igualmente

pre-che, N., Meditações cristãs e metafísicas, tradução de Adelino Cardoso, Lisboa, Colibri, 2003, p. 71).

10 Tal é o ponto de partida do opúsculo De rerum originatione radicali (1697), em

que o mundo, destituído de verdadeira unidade, requer uma unidade extra-mundana como razão última das coisas: “Donde resulta evidente que, mesmo supondo a eternidade do mundo, não é possível evitar uma razão última extra-mundana das coisas, isto é, Deus.” (De rerum originatione radicali, GP VII, p. 303).

11 De ipsa natura, § 8, GP IV, p. 509). 12 Op. cit., § 10, p. 510.

13 Leibniz, Carta a De Volder, de 10. 11. 1703, GP II, p. 258. 14 Leibniz, De ipsa natura, § 6, GP IV, p. 507.

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sente, v. g. no Discurso de Metafísica15 e na Teodiceia. O ato criador é

si-multaneamente dar ser e aquiescer ao dinamismo de autoconstituição dos seres e do mundo no qual participam. O ponto decisivo é que o fiat ou o decreto divino não determina o ser das criaturas, nem sequer alte-ra as suas qualidades próprias. Como é muito expressamente dito no § 52 da Teodiceia: “[…] e já que o decreto de Deus consiste unicamente na resolução que ele toma, depois de ter comparado todos os mundos possíveis, de escolher aquele que é o melhor e admiti-lo à existência pela palavra omnipotente Fiat, com tudo o que este mundo contém, é visível que este decreto não muda nada na constituição das coisas e que as deixa tais quais eram no estado de pura possibilidade [itálico meu], isto é, que ele não muda nada nem na sua essência ou natureza, nem mesmo nos seus acidentes, representados já perfeitamente na ideia deste mundo possí-vel.”16

A criação não parte do vazio, mas da pulsão de existência ine-rente aos possíveis segundo o grau de perfeição que encerram: “[…] tendo cada possível o direito de pretender a existência à medida da per-feição que envolve”17. Com efeito, a pretensão de existir é intrínseca

aos puros possíveis, também chamados por Leibniz essências, nature-zas ou perfeições. Isto significa que há uma realidade própria do possí-vel enquanto disposição para o ser: “o possípossí-vel exige a existência”, “to-do o possível tem uma tendência (conatus) para a existência”18. Se, pois,

15 “Ora, em primeiro lugar, é muito óbvio que as substâncias criadas

depen-dem de Deus, que as conserva e, mesmo, que as produz continuamente por uma maneira de emanação, como nós produzimos os nossos pensamentos.” (Leibniz, Discours de Métaphysique, § 14).

16 Leibniz, Teodiceia, § 52, GP VI, p. 131. 17 Leibniz, La Monadologie, § 54, GP VI, p. 616.

18 Leibniz, Resumo de metafísica, GP VII, p. 289. Nos termos de De rereum origina-tione radicali: “Todavia, para explicar um pouco mais distintamente de que

mo-do é que as verdades temporais, contingentes ou seja físicas nascem das verda-des eternas ou essenciais ou metafísicas, devemos reconhecer em primeiro lugar reconhecer que, pelo simples fato de que existe algo em vez do nada, nas coisas possíveis ou na própria possibilidade ou essência há uma certa exigência

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o entendimento divino é “a região ideal dos possíveis”19 e se é o ato

desse mesmo entendimento que faz a realidade dos possíveis20, daí não

se segue que eles sejam o resultado do ato intelectivo. Com efeito, “Deus não é o autor do seu próprio entendimento” e por isso ele não fez a possibilidade das coisas21. Por conseguinte, a inteligência infinita e

o mundo inteligível são conaturais um ao outro, nenhum deles preexis-te ao outro.

A escolha do mundo atual não tem, pois, nada de arbitrário: Deus escolhe a série mais perfeita, a melhor: “Pode dizer-se que, logo que Deus decidiu criar alguma coisa, há um combate entre todos os possíveis, todos pretendendo a existência, e que aqueles que em con-junto produzem mais realidade, mais perfeição, mais inteligibilidade pre-valecem”22. Dada a própria natureza da vontade divina, a não existir

um mundo perfeito, isto é, que contém toda a perfeição de que um mundo é passível, Deus não o faria existir: “[…] se não houvesse o me-lhor (optimum) entre todos os mundos possíveis, Deus não teria produ-zido nenhum”23. Assim, embora, do ponto de vista metafísico, algum

ser e algum bem sejam preferíveis ao nada, a perfeição da vontade

divi-ou, por assim dizer, uma pretensão de existência divi-ou, numa palavra, que a es-sência tende por si mesma para a existência.” (Leibniz, De rerum originatione

radicali, GP VII, p. 303).

19 Leibniz, Teodiceia, § 335, GP VI, p. 314.

20 “Com efeito, em minha opinião, é o entendimento divino que faz a realidade

das verdades eternas, embora a sua vontade não participe nisso.” (Leibniz,

Teodiceia, § 184, GP VI, p. 226).

21 “Ora, tendo Deus feito toda a realidade positiva que não é eterna, ele teria

feito a fonte do mal, se ela não consistisse na possibilidade das coisas ou das formas, única coisa que Deus não fez [itálico meu], porque ele não é o autor do seu próprio entendimento”. (Leibniz, Teodiceia, § 380, GP VI, p. 341). No § 335 da

Teodiceia, precisa o autor: “Logo, Deus não é o autor das essências enquanto

elas são meras possibilidades, mas não há nada de atual a que ele não tenha outorgado e dado a existência.” (GP VI, p. 314).

22 Leibniz, Teodiceia, § 201, GP VI, p. 236 . 23 Leibniz, Teodiceia, § 8, GP VI, p. 107.

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na significa que ela só pode querer o melhor, não em termos compara-tivos, mas em sentido absoluto: […] pois ele faltaria ao que deve a si próprio, ao que deve à sua sabedoria, à sua bondade, à sua perfeição, se não seguisse o resultado de todas as suas tendências para o bem, se não escolhesse o que é absolutamente o melhor […]”24.Por conseguinte, a

melhor série das coisas só pode ser uma porque “o melhor não tem i-gual”25, pelo que, do ponto de vista ontológico, ela é “a única

determi-nada”26, em comparação com o caráter vago de todas as outras.

Desde o Discurso de Metafísica (1686) que Leibniz marca bem que a perfeição do mundo não advém do ato criador. A perfeição é imanente ao mundo e daí que ele seja objeto da volição do Ser Perfeito, não o inverso: “Assim, eu estou muito longe do sentimento daqueles que defendem que não há quaisquer regras de bondade e de perfeição na natureza das coisas ou nas ideias que Deus tem delas e que as obras de Deus só são boas pela razão formal que foi Deus que as fez”27. Ora,

perfeito significa o mais rico e o mais harmônico, isto é, aquele que contém a maior variedade com a máxima unidade, no qual a diferencia-ção e o jogo interno de relações é levado ao infinito.

Ora, enquanto investido de potência e de plasticidade interna, o mundo atual é um mundo natural. Natureza significa imanência da ordem e da ação ao mundo atual. A natureza é ótima e opera de um modo perfeito, o que não anula, inclusive exige alguma desordem e imperfeição: “Faz parte da grande ordem que haja alguma pequena de-sordem”28. O filósofo natural tem que estar desperto para a

complexi-dade e sutileza do mundo natural, não se satisfazendo com uma visão estritamente geométrica. Daí a exigência de reformulação, que

acompa-24 Leibniz, Teodiceia, § 25, GP VI, p. 117. 25 Leibniz, Teodiceia, § 202, GP VI, p. 237. 26 Leibniz, Resumo de metafísica, GP VII, p. 290. 27 Leibniz, Discurso de Metafísica, § 2., GP IV, p. 427. 28 Leibniz, Teodiceia, § 243, GP VI, p. 262.

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nhou a elaboração da filosofia leibniziana da natureza ao longo de qua-se cinquenta anos.

A elaboração da ciência leibniziana

Tal como noutros domínios, Leibniz reformulou a sua filosofia natural no intuito de responder a dificuldades e a uma exigência cres-cente de inteligibilidade.

Desde muito cedo, Leibniz adere à ciência moderna na sua ver-são padronizada, isto é, mecanicista. Fá-lo na correspondência com o seu respeitável mestre, J. Thomasius, em tom de saudável provocação: “confesso que sou nada menos do que um cartesiano (me fateor nihil mi-nus quam Cartesianum esse)”29. No entanto, a procura leibniziana de uma

nova física é igualmente um exercício de autoquestionamento da racio-nalidade moderna. Não se trata de negar a validade do mecanicismo, mas de reconhecer a sua insuficiência no plano filosófico e, o que é mais, no plano científico. Leibniz começa por questionar a substanciali-zação da extensão, concebida como a essência do corpo: “Antes de mais, não lhe [Descartes] concedo que a essência do corpo consista na extensão (mas no movimento)”30. Trata-se de uma precisão

significati-va na correspondência com Oldenburg, secretário da Royal Society, jovem instituição da qual Leibniz espera o reconhecimento do seu pri-meiro esforço de renovação da física, expresso na Theoria motus abstracti. Aí, Leibniz considera diferentes planos na natureza, a que correspon-dem modalidades distintas de corporeidade. Ora, o corpo é uma estrutura original, não podendo reduzir-se a um caso particular de uma realidade mais ampla, como por exemplo, a extensão. O seu estatuto não é o de um dado imediato, mas o de um artefato: o corpo é o resultado de uma construção (constructio), ou seja, é uma produção segundo uma regra. O 29 Leibniz, Carta a Thomasius, 20-30 de Abril de 1669. Ak II, I, p. 15.

30 Carta a Oldenburg, 15-25 de Outubro de 1671, Ak II, I, p. 167. A mesma tese

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mais significativo é que a natureza corporal não seja homogênea e que a inteligibilidade matemática se não apresente como a chave de leitura da física propriamente dita. De fato, Leibniz distingue aí três tipos de construção: matemática, mecânica e física31: “Há uma tripla construção:

geométrica, isto é, imaginária mas exata, mecânica, isto é, real mas não exata e física, isto é, real e exata”. A construção matemática é a produ-ção de qualquer corpo possível por algum tipo de mente, em alguns casos só pela mente divina; a construção mecânica é a produção de múltiplos tipos de movimento; “a construção física compreende os modos pelos quais a natureza pode produzir as coisas, isto é, que os corpos produzem por si mesmos”32 (ibid., p. 235). A construção física

evidencia a eficiência da natureza, a sua espontaneidade.

Não é, pois, surpreendente que, numa obra imediatamente pos-terior, Confessio philosophi (1673-1674), Leibniz aproxime a física da mo-ral, por oposição às ciências matemáticas, correspondendo respectiva-mente à distinção entre ciências da quantidade e da qualidade, entendi-da esta como “potência de agir e de padecer”, na qual se inclui o mo-vimento33.

Ao invés da tendência mais típica do seu tempo, Leibniz consi-dera que a questão do valor é intrínseca à ciência da natureza, que a dimensão teleológica e moral não é eliminável da física. Nos termos do Discurso da conformidade entre a fé e a razão: “Assim, pode dizer-se que a necessidade física se funda na necessidade moral, ou seja, na escolha do sábio digna da sua sabedoria; e que uma e outra devem ser distinguidas da necessidade geométrica. Esta necessidade física faz a ordem da natureza […]”34. Consequentemente, as próprias leis da natureza se inscrevem

31 Leibniz, Theoria motus abstracti, GP IIV, p. 234. 32 Leibniz, Op. cit., p. 235.

33 Leibniz, Confessio philosophi, Ak VI, III, p. 118. 34 Leibniz, Teodiceia, GP VI, p. 50.

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numa necessidade moral, a meio caminho entre a necessidade absoluta e o acaso fortuito35.

No quadro leibniziano, a ligação entre física e moral é interna à própria física, ao nível dos seus princípios fundadores: “Muito longe de excluir as causas finais e a consideração de um ser agindo com sabedo-ria, é daí que é preciso deduzir tudo na física”36.

A ciência leibniziana é um exercício de harmonização entre mecanismo e finalidade. A ciência mecânico-geométrica é insuficiente porque não dá conta da realidade efetiva da natureza, da diversidade e da beleza do mundo físico.

No longo processo de afinamento e correção da sua hipótese física37, Leibniz questiona a realidade do movimento, que coloca no

mesmo plano da extensão, enquanto algo de relativo, ideal, vago, abs-trato e imaginário, desprovido de substancialidade e de eficácia causal. Assim, o movimento exige a força como seu fundamento38, levando a

uma nova figuração do corpo como sujeito da força, o que corresponde ao intento leibniziano de fundação da dinâmica, que o autor entende como uma física cujos princípios são “independentes da matemática”39.

35 “Estas considerações mostram bem que as leis da natureza que regem os

movimentos não são nem completamente necessários, nem inteiramente arbi-trários.” (Teodiceia, § 349, GP VI, p. 321).

36 Leibniz, Carta a Bayle, de 1698, GP III, p. 54. A mesma tese é assumida no Tentamen anagogicum, GP VII, p. 279.

37 “Apuro e corrijo cada vez mais a minha hipótese.” (Leibniz, Carta a Olden-burg, Ak II, I, p. 168).

38 “Se bem que, efetivamente, a força seja algo de real e absoluto (aliquid reale et absolutum) não obstante o movimento pertence à classe dos fenômenos

relati-vos (phaenomenorum respectivorum), e verdade não se observa tanto nos fenôme-nos como nas causas.” (Leibniz, Specimen Dynamicum, GM VI, p. 248).

39 “Ora, por este único princípio, a saber, que é preciso que haja uma razão

suficiente de as coisas serem como são de preferência a serem de outra manei-ra, demonstra-se a divindade e todo o resto da metafísica ou da teologia natu-ral e mesmo, de algum modo, os princípios físicos independentes da matemá-tica, ou seja, os princípios dinâmicos da força” (Leibniz, Segundo escrito contra

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A força, noção axial da dinâmica, faz a mediação entre o mo-vimento e a substância corporal40, tal como, no plano metafísico, entre

a potência e o ato41, introduzindo a eficiência no seio da natureza.

A dinâmica é, sem dúvida, o contributo mais relevante de Leibniz para a constituição de uma física especial, que faça a ponte com a metafísica. No entanto, a dinâmica revela-se ainda insuficiente para fornecer o verdadeiro ponto de vista de uma natureza que “ama a di-versidade” e se caracteriza pela infinita variação. Daí a passagem à vida como exercício de unidade de uma multiplicidade levada ao infinito, a que corresponde a representação o corpo como organismo.

A filosofia monadológica, que culmina o leibnizianismo, é a-companhada de uma concepção vitalista, em que o organismo fornece a visão geral da natureza e é agente de singularização dos corpos. Nos termos do prefácio dos Novos Ensaios: “Vejo […] a matéria orgânica por toda a parte, nada vazio, nada estéril, negligenciado, nada demasiado uniforme, tudo variado mas com ordem”42.

Organismo é um neologismo inventado simultaneamente por Leibniz e Stahl, designando em ambos os autores o corpo como totali-dade e como estrutura singular, no quadro de uma visão integrada do composto psicossomático. Não obstante, em cada um dos autores, o

40 “[…] e o movimento, enquanto ele é apenas uma modificação da extensão e

mudança de vizinhança, envolve algo de imaginário, de maneira que não seria possível determinar a que sujeito, dentre aqueles que mudam, é que ele perten-ce, se não se recorrer á força que é causa do movimento e que está na substân-cia corporal.” (Carta a Arnauld, de 30. 05. 1687, GP II, p. 98)

41 “Ora bem, a força ativa compreende um certo ato ou entelecheian que se situa

entre a faculdade de agir e a própria ação, e implica esforço. Vê-se assim leva-do a agir por si mesmo e, consequentemente, não precisa de ajuda, mas tão-só da eliminação dos obstáculos.” (Leibniz, De primae philosophiae emendatione, GP IV, 469).

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organismo assume uma significação peculiar43. No que respeita a

Leib-niz, organismo é uma modalidade específica de organização da matéria animada, que se acrescenta ao mecanismo e se lhe sobrepõe, mas não o anula. De algum modo, o organismo é um mecanismo especial, não um mecanismo cego e agindo segundo princípios que lhe são totalmente extrínsecos, mas um mecanismo interior e autofinalizado. Como bem diz M. Serres: “De fato, só por iteração infinita do mecânico é que se pode conceber o orgânico”44. O organismo é um mecanismo mais

di-vino e infinitamente sutil: “Porque a natureza, em virtude de ter sido produzida por um artífice sapientíssimo, é orgânica em todo o lado nas suas partes interiores. E o organismo dos vivos mais não é do que um mecanismo mais divino crescendo em sutileza ao infinito”45. Trata-se

efetivamente de um mecanismo, como Leibniz insiste na controvérsia com Stahl46, mas um mecanismo original, que não poderia ser derivado

da matéria inorgânica e respectivas leis47.

O organismo é a réplica, no plano corporal, da verdadeira uni-dade representada pela mônada. Com efeito, o organismo é um com-posto dotado de uma certa unidade, “um todo completo”, cujos “artifí-cio e beleza” excedem a imaginação48. No entanto, em lugar da

unida-de, Leibniz enfatiza a diversidade inscrita no orgânico. A organicidade exprime-se pela máxima diferenciação interna: “Assim, cada corpo or-43 Acerca deste tópico, vide: Duchesneau, F., Les modèles du vivant de Descartes à Leibniz, Paris, Vrin, 1998 e Nunziante, A.-M., Organismo come Armonia. La gene-sis del concetto de organismo vivente in G. W. Leibniz, Trento, Verifiche, 2002. 44 Serres, M., Le système de Leibniz et ses modèles mathématiques, Paris, PUF, 1968,

p. 364.

45 Leibniz, Consequências metafísicas do princípio de razão, OFI, p. 16.

46 Logo no início das Animadversiones, escreve Leibniz: “Ele [Stahl] insiste muita

vezes sobre a diferença entre o mecanismo e o organismo, se bem que, a bem dizer, todo o organismo seja de fato um mecanismo mas mais refinado e, por assim dizer, mais divino.” (Carvallo, S., La controverse entre Stahl et Leibniz sur la

vie, l’organisme et le mixte, Paris, Vrin, 2004, p. 84).

47 Leibniz, Éclaircissement sur les natures plastiques, GP VI, p. 553. 48 Leibniz, Teodiceia, § 194, GP VI, p. 232.

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gânico de um vivo é uma espécie de máquina divina ou de um autôma-to natural, que ultrapassa infinitamente autôma-todos os autômaautôma-tos artificiais. Porque uma máquina feita pela arte do homem não é máquina em cada uma das suas partes. (…) Mas as máquinas da natureza, quer dizer, os corpos vivos são também máquinas nas suas partes mais pequenas, até ao infinito”49.

O artifício da natureza

A afinidade entre natureza e arte é um dos tópicos recorrentes na filosofia natural de Leibniz. O aforismo constante de um texto pre-paratório da característica universal, de 1671-1672, dá o tom da aborda-gem leibniziana: “A natureza é uma arte sutil, a arte é uma natureza grosseira (Natura est ars subtilis, Ars natura crassa)”50. Nos termos de De

ipsa natura, a natureza é “um artifício divino” (artificium Dei)51, cuja

pro-dução, “a máquina natural” (machina naturalis) ostenta a marca do seu autor na infinidade de órgãos de que é composta. O corpo vivo orgâni-co é a forma mais apurada desta natureza artística, pelo que “não serí-amos capazes de admirar suficientemente a beleza e o artifício da sua estrutura”52. Beleza, ordem e artifício são qualificativos do organismo

enquanto princípio organizador da matéria53.

A ligação íntima entre organismo e arte da natureza é estabele-cida num escrito de 1686, Du rapport général de toutes choses, que porventu-ra assinala a invenção do termo “organismo”. O ponto de partida deste opúsculo de apenas doze linhas é a afirmação de que a ordem geral das 49 Leibniz, La Monadologie, § 64, GP VI, p. 618.

50 Leibniz, Vorarbeiten zur Characteristica Universalis, Ak VI, II, p. 494. 51 GP IV, p. 505.

52 Leibniz, Teodiceia, § 134, GP VI, p. 188.

53 “O organismo, isto é, a ordem e o artifício, é qualquer coisa de essencial à

matéria produzida e arranjada pela inteligência soberana, devendo a produção conter sempre os traços do seu autor.” (Leibniz, Carta a Lady Masham, GP III, p. 340).

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coisas pressupõe a omnipresença do organismo: “A relação geral e exa-ta das coisas entre si prova que todas as partes da matéria estão cheias de organismo.”54 Importa realçar que o organismo é um requisito da

relação geral e exata, isto é, da correspondência perfeita entre as partes da matéria. A razão aduzida é filosoficamente relevante: só o orgânico pode exprimir o orgânico, porque o inferior não pode exprimir ade-quadamente o superior. A organicidade é a réplica da expressividade no plano material. Como é dito no seguimento exato do texto: “Pois, de-vendo cada parte da matéria exprimir as outras e hade-vendo entre as ou-tras muitas orgânicas, é manifesto que é preciso que haja orgânico na-quilo que representa o orgânico (il faut qu’il y ait de l’organique dans ce qui represente l’organique).” (ibid.).

A relação de expressão é o operador do mais perfeito sistema das coisas, que estabelece uma ligação de todas as coisas entre si e, o que é mais, de cada uma das coisas com todas e cada uma das outras: “A expressão é comum a todas as formas” e consiste numa “relação constante e regrada”55 entre coisas. O sistema leibniziano da expressão

é inteiramente determinado, o que significa que vai ao limite de preci-são e detalhe: nada fica de fora da ordem, o ínfimo participa da ordem comum e intensifica-a. É o que muito expressamente diz o segundo parágrafo do texto que estamos a acompanhar: “Acrescento inclusive que não há caos algum na natureza, nada que não seja trabalhado artistica-mente até às partes por muito pequenas que elas possam ser. [itálico meu] É ver-dade que notamos muitos pedaços grosseiros e sem arte na aparência, mas o que é trabalhado é demasiado pequeno para aparecer e, no en-tanto, está por todo o lado. A sabedoria de Deus não permite nunca que haja um caos verdadeiro, o que seria um defeito da sua arte.” (Ibid.). O que é trabalhado é demasiado pequeno para aparecer: a arte divina da nature-za é de uma sutilenature-za e de uma complexidade inexcedíveis: a considera-ção do mínimo fornece um ponto de vista do conjunto e, sobretudo, 54 Leibniz, Du rapport général de toutes choses, Ak VI, IV, p. 1615.

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um ponto de vista mais rico e mais belo. O excesso da ordem do mun-do atual, que ultrapassa a medida da inteligência e a medida mun-do desejo de um espírito finito, revela-se no sentimento vivo do pormenor: “To-davia, há lugar para crer que nós estaremos um dia mais perto do ver-dadeiro ponto de vista das coisas para as achar boas, não só pela fé, nem unicamente por esta ciência geral que podemos ter presentemente, mas ainda pela própria experiência do pormenor e pelo sentimento vi-vo da beleza do universo mesmo em relação a nós”56. Nos termos do

Tentamen Anagogicum, “este princípio da perfeição, em vez de se limitar unicamente ao geral, desce ao particular das coisas e dos fenômenos” (GP VII, p. 272).

A arte divina produz uma máquina perfeita cujo mecanismo é levado ao infinito, segundo regras de conveniência e ajustamento, isto é, segundo o princípio fundador de todo o ser e de todo o agir: o prin-cípio da harmonia. A arte naturante, no sentido preciso de uma arte fabricadora da natureza, é obra de um geômetra e de um arquiteto, mas também de um monarca justo, que ama os membros da república uni-versal dos espíritos e oferece à sua consideração o mais exaltante e ma-ravilhoso espetáculo57. A arte prolonga-se numa estética ou numa

vi-vência subjetiva do belo inscrito na organização interna das coisas natu-rais: “Todavia aqueles que entram no pormenor das máquinas naturais precisam de uma grande prevenção para resistirem aos atrativos da sua beleza, e o próprio Galeno tendo conhecido alguma coisa do uso das partes dos animais, ficou de tal modo deslumbrado de admiração que acreditou que explicá-las era o mesmo que cantar hinos em honra da divindade”58.

56 Leibniz, Carta à Eleitora Sofia, Grua, I, p. 380.

57 “[…] se nós pudéssemos entender bastante a ordem do universo,

acharía-mos que ela ultrapassa todos os desejos dos mais sábios e que é impossível torná-lo melhor do que ele é, não só para o todo em geral, mas ainda para nós próprios em particular […]” (Leiniz, La Monadologie, § 90, GP VI, p. 623).

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Conclusão

A filosofia natural de Leibniz conjuga admiravelmente uma e-xigência muito forte de inteligibilidade, expressa na universalidade do princípio de razão suficiente, com o sentimento da complexidade, ex-presso na proliferação de diferenças segundo um princípio de variedade levado ao limite. Daí resulta uma concepção ordenada da natureza, mas incluindo uma multiplicidade de planos distintos, aos quais correspon-dem diferentes abordagens. Sob este aspecto, a originalidade de Leibniz reside em que, colocado em face de duas vias, a de uma ciência geral e a de uma ciência do indivíduo, ele escolhe as duas, não como vias parale-las, mas procurando o ponto da sua intersecção: “Mas aqueles que gos-tam de entrar no pormenor das coisas, desprezam as investigações abs-tratas e gerais; e aqueles que aprofundam os princípios raramente en-tram nas particularidades. Pela minha parte, estimo igualmente uma coisa e a outra.”59 A ordenação entre estes dois planos da natureza

constitui um tópico nuclear da correspondência com De Volder, que fornece a síntese mais elaborada da filosofia natural leibniziana da fase monadológica, a sua “expressão canónica”, nas palavras de N. Jolley60.

Do ponto de vista de Leibniz, o cerne do debate gira em torno da dificuldade em pensar a diversidade das coisas a partir de um fundo substancial homogêneo e indiferenciado. Com tal ponto de partida, “não se revela a origem da diversidade (non apparet origo diversitatis)”61.

Daí a rejeição de um elemento primitivo do qual tudo pudesse ser deri-vado e ao qual tudo pudesse ser reconduzido62, bem como a rejeição da

59 Leibniz, Carta a Foucher, 1692, Foucher de Careil, Lettres er opuscules inédits,

Paris, Ladgrange, 1854, p. 89.

60 Jolley, N., “Leibniz et l’autosuffisance causal des monades”, Revue Philosophique de Louvain 107 (4), 2009, p. 701.

61 Leibniz, Carta a De Volder, 6. 7. 1701, GP II, p. 226.

62 Em oposição ao seu interlocutor, Leibniz é muito peremptório: “Mas daqui

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extensão como essência da matéria. A diversidade é originária, a subs-tância é irredutivelmente singular: “[…] demonstrei que, salvo se a ma-téria fosse heterogênea (o que acontece por meio das enteléquias), não poderia nascer nenhuma variedade dos fenômenos […]. Além disso, não distingo aqui entre a noção geral da substância e a noção da subs-tância determinada, porquanto toda a subssubs-tância é determinada, embora as diversas substâncias se determinem de modos diversos.”63 O ponto

fulcral reside porventura na dissociação que Leibniz opera entre unum e totum, pelos quais De Volder define a substância64. Unum e totum, isto é,

unidade e totalidade são planos heterogêneos: “E, na verdade, as mi-nhas unidades ou substâncias simples […] não constituem um todo homogéneo, posto que a homogeneidade da matéria só se obtém por abstração da mente, enquanto se considera apenas como passiva e in-completa.”65. De fato, a unidade é o traço distintivo da realidade

subs-tancial e consiste numa diferença originária, que realiza uma forma ou uma perspetiva do mundo. Por seu lado, o todo é um continuum ideal e abstrato, homogêneo, que pode ser subdividido ao infinito, mas cujas partes se distinguem solo numero. De algum modo, uma ficção em que se concebem partes diversas sem verdadeira diversidade: “Mas vulgarmen-te os homens, convulgarmen-tenvulgarmen-tes com satisfazer a imaginação, não cuidam das razões e daí resultou a introdução de tantos monstros contra a verda-deira filosofia. Sem dúvida, limitaram-se a acrescentar noções incom-pletas e abstratas ou matemáticas, bem como do espaço ou do extenso puramente matemático, da massa meramente passiva, do movimento

nenhum elemento primitivo (Nullum esse Elementum primum) […]”. (GP II, p. 162).

63 Leibniz, Carta a De Volder, 6. 7. 1701, GP II, p. 227.

64 “Onde concebo algo uno (unum), parece-me evidente que isso se me

repre-senta como um todo (totum) ou nada dele mesmo.” (Carta de De Volder a

Leib-niz, 13. 2. 1701, GP II, p. 222).

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matematicamente considerado, etc., onde os homens podem imaginar coisas diversas sem diversidade”66.

Inteligibilidade física e inteligibilidade matemática acentuam um dos pólos da relação todo / partes: “Mas o espaço, tal como o tem-po, não é algo substancial, mas ideal, e consiste nas possibilidades ou na ordem dos coexistentes enquanto possível. De igual modo, não há divi-sões a não ser as que a mente faz e a parte é posterior ao todo. Pelo contrário, nas coisas reais as unidades primam sobre a multidão e não existem multidões senão através das unidades”67 (II, 279). A realidade

física é mais fina, mais diversificada e mais complexa do que as noções incompletas da matemática e da metafísica cartesiana, apelando a uma reorganização do campo da filosofia natural.

66 Leibniz, Carta a De Volder, Junho de 1701, GP II, p. 250. 67 Leibniz, Carta a De Volder, 11. 10. 1705, GP II, p. 279.

Referências

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