• Nenhum resultado encontrado

Escravizadas em Ações de Liberdade: o pecúlio para a compra da alforria. Recife oitocentista-1870/1880

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Escravizadas em Ações de Liberdade: o pecúlio para a compra da alforria. Recife oitocentista-1870/1880"

Copied!
12
0
0

Texto

(1)

Escravizadas em Ações de Liberdade: o pecúlio para a compra da alforria. Recife oitocentista-1870/1880

Maria Marinho Harten

Universidade Católica de Pernambuco

RESUMO

Nossa pesquisa tem como objetivo apresentar o protagonismo de mulheres escravizadas em micro resistências na resolução dos conflitos no Recife das últimas décadas que antecederam a abolição. Como fonte buscamos os processos de ações de liberdades acondicionados no Memorial de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco amparadas pela Lei 2.040 de 28 de setembro de 1871, entre os anos de 1871 e 1885 envolvendo legal para ações movidas por escravizadas em conflitos contra o domínio senhorial e escravizadas, envolvendo o conflito entre o direito natural de liberdades e o direito da propriedade escrava. Vestígios e fragmentos das ações, como fio condutor, cruzados a notas e notícias publicitadas em periódicos locais e a historiografia recente, para a narrativa onde o lugar central é ocupado por mulheres “nem submissas nem heroínas, sujeitos ativos da história.. Aqui apresentamos mulheres numa sociedade de traços patriarcais, paternalista e fortemente hierarquizada “ousando” buscar a arena judicial em busca por autonomia, mobilidade e liberdades, rompendo a invisibilidade imposta aos grupos subalternos. Ao mesmo tempo que suas estratégias individuais suas estratégias de sobrevivência e resistência, vão abrindo espaço para a conquista do direito coletivo da abolição. A interferência do Estado pós a legislação de 1871, passa a ditar um novo padrão nas relações entre o domínio senhorial e escravizadas, acirrando tensões onde o direito costumeiro da “alforria concedida” exclusivamente pelo proprietário passa a ser discutida na esfera judicial com a garantia da irrevogabilidade. O que move as mulheres de idades, cores de pele e atividades diversas, têm algo em comum: o sonho e o desejo por liberdades. Rofina, Silvéria, Luíza e Benedicta vivenciaram o confronto entre seus desejos e sonhos de liberdades e os interesses do poderio senhorial em oposição ao lugar subalterno e invisível. Suas histórias instigam a percepção e afastamento da imagem de escravizadas disciplinadas e submissas, contribuindo para incluir as mulheres da condição servil na condução da abolição de 13 de maio de 1888.

(2)

Palavras-chave: Ações de liberdade; Mulheres escravizadas; Estratégia de resistência.

Rofina, “30 anos, pouco mais ou menos”, por um “valor justo” buscou na justiça a compra de sua alforria (PROCESSO JUDICIAL CÍVEL, 1871). Naquele dia, 22 de novembro de 1871, os periódicos em circulação no Recife publicavam com destaque anúncios de promoções em lojas de tecidos, livrarias, farmácias, além do Baile dos Mascarados no Teatro Santo Antônio (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 1871). A cidade vivia a influência civilizatória europeia mas, em suas entranhas, o comércio de gentes supria a dependência da mão de obra cativa. Anúncios de compra, venda e aluguéis de escravas figuravam nas mesmas páginas, lado a lado com as mais diversas mercadorias. A “preta crioula, muito prendada, pois engoma, cose e cozinha, tudo com perfeição” contava com um valor de 800 mil réis, mas o seu senhor – que dizia não se negar a conceder-lhe a alforria – exigia um conto e quinhentos mil réis, quantia muito acima da que havia sido acumulada por Rofina, o pecúlio que ela conquistara com o seu trabalho alugado a terceiros. Foi assim com Silvéria, uma escravizada de 36 anos, “pouco mais ou menos”, lavadeira e cozinheira. Silvéria, já havia pago ao seu proprietário, José Moreira da Silva, em duas prestações, o valor de 161 mil réis, de um total de 400 mil réis, quando buscou a mediação judicial (PROCESSO JUDICIAL CÍVEL, 1871).

Na década de 1880, encontramos Luiza, “parda”, 17 anos, quando pela via judicial procura impedir o seu embarque para o sul; e a história de Benedicta Thereza de Jesus, escravizada de 54 anos de idade, “do serviço doméstico”. As histórias dessas quatro mulheres anônimas, seus fragmentos e vestígios, foram fios condutores para a construção da narrativa da resistência de escravizadas que, ao subverterem a norma do regime escravagista, confrontaram seus proprietários a partir de suas percepções de direitos e liberdades.

As ações de liberdade dessas quatro escravizadas – bem como as de tantas outras – fazem parte do acervo do Memorial de Justiça do Estado de Pernambuco (TJPE, 2020). O contexto em que foram empreendidas abarca o período entre 1871 e 1885, quando as discussões sobre o elemento servil ocupavam praças, periódicos, movimentos abolicionistas, estudantes e recém-formados pela Faculdade de Direito do Recife, poetas e artistas dos teatros, além de mulheres libertas e forras. Um período de relações acirradas entre escravizadas e o domínio senhorial em razão das tensões advindas dos efeitos da legitimação do direito costumeiro à formação do pecúlio para compra da alforria, após a promulgação da Lei 2.040 de 28 de

(3)

setembro de 1871 – que, entre outras ações, tirava dos senhores a dominação “paternalista” que atendia ao controle sobre suas propriedades – e o ano de 1885, quando a escravidão tornara-se “socialmente ilegítima” (ALONSO, 2015).

Ser mulher escravizada numa sociedade escravista doséculo XIX significava ausência de cidadania (CARVALHO, 2002). Constantemente perseguidas, viviam sob rígido controle senhorial e social, com passos limitados aos locais estabelecidos para “pessoas de cor, que deveriam saber seu lugar”. (ALBUQUERQUE, 2009, p. 33). Na visão senhorial, não passavam de “mercadorias” e, assim, para sobreviver, recorriam a algumas estratégias. Um dos aspectos mais traumáticos do regime escravista era a compra e venda de seres humanos (CHALHOUB, 2011, p. 29). A ambiguidade entre obediência e rebeldia era uma estratégia “para não morrer, não adoecer e não enlouquecer enquanto serviam a seus senhores” (DIAS, 2012, p. 360).

A liberdade, enquanto conceito dinâmico, terreno de conflito, assim defendida por Carvalho (2010), deveria ser compreendida no plural, não de forma estática, entendendo-a como “liberdades”, como “um processo de conquistas que podem ou não ser alcançadas” e, ainda, como “desdobramentos de um conjunto de direitos que podem ser adquiridos ou perdidos”. Era “um caminho a ser percorrido”, que muitas vezes “começava na construção de uma rede de relações pessoais”. Um caminho “tortuoso”, ainda mais para as mulheres que, independentemente de serem livres, forras, libertas ou escravizadas, estavam em condição inferior. As liberdades poderiam não surgir com a alforria, e seriam relativas, uma vez que a mulher liberta, na sociedade patriarcal escravista, estaria “um degrau abaixo de todos os homens da mesma condição” (p. 210-227).

Sobre a violência que envolvia as relações escravistas, Challoub (2010) defende que “não transformava os negros em seres incapazes de ação autonômica, nem passivos receptores dos valores senhoriais, e nem em rebeldes valorosos e indomáveis” (p. 49). A definição legal do elemento servil como “coisa”, segundo o autor, justificava a forma de violência social e contradizia a imagem do País, que se encaminhava ao “progresso” e à “civilização” (p. 43). Mesmo diante da opressão da escravidão, regime cruel, a resistência empreendida pelas mulheres as colocava como sujeitos ativos e agentes da sua própria história, do novo rumo que suas vidas podiam tomar:

Mesmo sendo anônimas, viveram antes o tempo dos pequenos e a luta de sobrevivência dos oprimidos, alheias aos problemas dos patriarcas e estadistas do primeiro reinado. Da independência política, sabem por ouvir dizer dos vizinhos, continuam envoltas nas relações de parentela e vizinhança que quase

(4)

não se veem afetadas. A verdade é que suas vidas vão se tornando gradativamente mais árduas, cada vez mais penoso o confronto com autoridades do fisco, das terras, da higiene e da moral pública. (DIAS, 1995, p. 27)

O artigo 179 da Constituição de 1824, é a base para o conflito entre o direito natural de liberdade e o direito à propriedade, presente nas discussões em relação ao elemento servil e abolição gradual do regime escravista. (BRASIL, 1824). Segundo Bertin (2004), a judicialização dos conflitos envolvendo escravizadas e escravizados e o domínio senhorial enfraquece a propriedade e ameaça a continuação da escravidão.

Há muito debate entre os historiadores entre os significados da alforria. Para muitos, a alforria era fundamental para o controle exercido pelos senhores sobre seus escravos, obrigando-os a anos de serviços em troca da concessão ou da promessa da liberdade futura. A alforria era fundamental para a ideologia senhorial, sendo o principal recurso dos senhores na efetivação da dominação escravista. (GRINBERG E PEABODY, 2013, p. 18)

Para Pena (2001) menciona o avanço na historiografia quanto à percepção do espaço de “autonomia e ação por parte dos escravos e libertos na defesa de costumes e direitos alcançados, diante das exigências desmedidas ou da defesa intransigente do direito de propriedade por parte dos senhores” (PENA, 2001, p. 27). Assim, os estudos afirmam que:

negros e negras que tomaram atitudes conscientes contra o que consideravam injusto nas suas relações com os proprietários, preferindo fugir, acionar as autoridades judiciais, ou mesmo assassinar seus algozes, do que se submeterem aos suplícios desumanos ou a ritmos cansativos de trabalho. (PENA, 2001, p. 27)

E ainda:

Outros trabalhos destacaram, também, para as últimas décadas da escravidão, o auxílio jurídico prestado por inúmeros curadores, solicitadores, advogados (e até juízes) a escravos e libertos nas aberturas de suas ações de liberdade ou de “manutenção” da liberdade. Auxilio que chegou às vias da militância política abolicionista. (PENA, 2001, p. 27).

A “preta” Rofina chegou ao Cartório Cível acompanhada de Joaquim Aleixo, recém-formado pela Faculdade de Direito do Recife. A escravizada é depositada em depósito particular, indicado por seu curador, ficando protegida de qualquer constrangimento causado por seu proprietário durante o litígio judicial. Já o pecúlio ficaria a cargo do depósito público, como garantia de que a escravizada teria condições de arcar com o valor arbitrado pelos avaliadores indicados pelas partes. Intimado a realizar o depósito do pecúlio, Joaquim Aleixo não o fez, dando brechas para que Francisco Ferreira de Novaes requeresse a posse de Rofina,

(5)

uma vez que “estava tendo prejuízo”. Ele insinuou que Rofina não possuía o valor estipulado, e que estaria apenas querendo ganhar tempo. Alegou ainda que o fato abriria precedentes.

Ao procurar o depositário, Cucy Juvenal do Rego, o oficial de justiça foi informado de que Rofina estaria em poder do seu curador, em sua residência, no Bairro de São José. Em diligência, o oficial de justiça e dois policiais foram à casa do curador Joaquim Aleixo. Rofina resistiu e tentou fugir, sendo frustrada. Ela, então, retornou ao poder de Francisco Ferreira de Novaes.

O curador Joaquim Aleixo entrou com um agravo da decisão e, em março de 1872, retornou ao juiz da Vara Cível com o pedido de habeas corpus em favor de Rofina. O curador informou que a escravizada teria sido vendida, apesar da questão da propriedade estar em litígio. Alegando ter obtido tal informação por meio de nota de jornal, publicada no Diário de Pernambuco e assinada por outro proprietário. A nota dizia que a “escrava Rufina” teria fugido no dia 18 do corrente ano da freguesia da Escada. “Preta, crioula, 27 anos de idade, baixa, gorda, levando no corpo vestido de chita e chale de algodão”. Supunha-se que tivesse vindo para o Recife pela linha férrea, e quem informasse seria gratificado pelo seu senhor, Alexandre da Mota. (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 1872). Não tivemos acesso ao habeas-corpus, nem sabemos se foi concedido. Em relação ao agravo que seguiu para o Tribunal de Relações, também não obtivemos maiores informações.

Silvéria, preta, 36 anos, “pouco mais ou menos”, já havia pago ao seu proprietário, senhor José Moreira da Silva, 161 mil réis em duas prestações, restando ainda algumas parcelas até atingir o valor exigido de 400 mil réis. A primeira, paga em 1876, no valor de 150 mil réis, e a segunda, um valor bem menor, de 11 mil réis. De posse de recibos e atestado médico, Silvéria buscou a mediação judicial em abril de 1878, indo ao Cartório Cível acompanhada de Romualdo Alves de Oliveira, deu entrada em ação cível de arbitramento. Em suas súplicas, requereu “avaliação justa”, para “não morrer no cativeiro” (PROCESSO JUDICIAL CÍVEL, 1878) e por desejar uma liberdade completa, ao Juízo da 2ª Vara Cível do Recife. Assim, ficou registrada a súplica:

Ilustríssimo Senhor Doutor Juiz de Direito da 2ª Vara Cível.

Silveria, escrava, tendo dado ao seu senhor José Moreira da Silva, morador nesta cidade a quantia de 161:000 em 1876, que conta de sua liberdade, como prova com o recibo junto, isto por achar-se há muitos anos sofrendo do pulmão, como prova também com o atestado junto; acresce que seu estado se tem tornado cada vez mais (ilegível) preze seu estado de não poder trabalhar; implora a proteção de seu senhor para receber 200:000 para lhe dar sua liberdade completa, supondo que só por 400:000, senão morrerá no cativeiro.

(6)

Não podendo a suplicante dar mais dinheiro, nem podendo nada pagar semana, atesto seu grave estado de sofrimento, vem requerer a Vossa Senhoria digne-se mandar ouvir seu senhor para ver se aceita em mão 200:000, para, no caso contrário, proceder-se arbitramento[...](PROCESSO JUDICIAL CÍVEL, 1878).

No recibo, assinado por José Moreira da Silva, estava a condição para que conseguisse seu intento: teria que trabalhar para seu senhor até terminar de pagar (PROCESSO JUDICIAL CÍVEL, 1878). A alforria comprada por coartação, em prestações, segundo Grinberg (2013), era uma das maneiras de se obter a carta. O atestado médico anexado aos autos, datado de 1º de dezembro de 1876, atestava que a “crioula” Silvéria sofria de “tubérculos disseminados no ápice do pulmão direito”. Era tuberculose, doença responsável por um grande número de mortes, que atingia principalmente escravizadas e escravizados e os grupos empobrecidos. “O tratamento requer energia, assídua medicação acompanhada de uma alimentação tônica e saudável” (PROCESSO JUDICIAL CÍVEL, 1878).

Obrigada a pagar jornal semanal ao senhor, além dos valores para a alforria, o trabalho de ganho provavelmente exigia da escravizada dupla jornada, além do jornal e das prestações, ela teria que arcar com despesas pessoais. O autor de “Ganhadores: a greve de 1857 na Bahia”, João José Reis, defende que “o trabalho de ganho não era um mar de rosas” e se dava “consumindo os corpos” , “com frequência lhes abreviando a vida” (REIS, 2019). A doença nos pulmões era comum nas cidades, a tuberculose consumia os corpos e matava (CHALHOUB, 2017).

Provavelmente Silvéria, vinha tentando viver como se livre fosse e valeu-se da autonomia e das relações pessoais que certamente teceu ao exercer atividades de ganho, no ir e vir pelas ruas do Recife, pelos caminhos dos rios, em canoas, a pé ou até, se quisesse, de bonde. Para o historiador Paulo Roberto Staudt Moreira, “a tenacidade da autopreservação fazia com que os ganhos conseguidos com os serviços fossem acrescidos de pequenas transgressões”, facilitadas pelas redes pessoais e interesses mútuos que se cruzavam. Assim, a escravizada não se intimidou diante das normas escravistas e empreendeu uma fuga, que pode não ter sido a primeira nem a última.

Anúncios publicados no Diário de Pernambuco por três dias seguidos, em novembro de 1877, rogavam às autoridades policiais e capitães de campo a apreensão de Silvéria, prometendo recompensa. José Moreira da Silva indicava o endereço da Rua Estreita do Rosário, 31 e descrevia Silvéria, como uma “escrava de 38 anos de idade, baixa, magra, pés pequenos,

(7)

com falta de alguns dentes e cabelos carapinhos”. A nota informava como ela estaria trajada, e afirmava que teria levado “um vestido de listras claras e chale de lã branca”. (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 1877ª; DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 1877b, DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 1877c).

Levada aos avaliadores, seu valor foi arbitrado em 300 mil réis. Seu proprietário, que a princípio teria assegurado não se opor à alforria, argumentou que havia alugado os serviços de Silvéria para a função de lavadeira e cozinheira, por um valor de 12 mil réis mensais, e alegou que a escravizada teria um débito de 29 mil réis para com o seu senhorio. O curador, Romualdo Alves de Oliveira, não aceitou o valor estipulado, argumentando que a sua curatelada “deve ser avaliada novamente, porque acha-se gravemente doente, como se vê no atestado à folhas 7”, e continuou, afirmando ser “um valor excessivo”, e que “se a minha curatelada foi avaliada por indivíduos que não tem conhecimento do que sejam tubérculos no pulmão, nem qual a gravidade do mal, é óbvio que uma tal avaliação é viciosa”. Para o curador, o “valor razoável, mas, ainda alto seria o de 200 mil réis, visto que a escrava já havia pago a quantia de 160 mil réis por sua liberdade”. A sentença do juiz “desconsidera a gravidade do estado de saúde” e “o excesso cometido pelos avaliadores”, e determina que o valor a ser pago por Silvéria seria de 300 mil réis, sendo ainda acrescidos 6% ao ano, caso não fosse quitado de imediato todo o valor estipulado na sentença.

Segundo Cowling (2018), na década de 1870 as mulheres desempenharam papel importante nas negociações em torno da liberdade. O processo de mudança, a partir da Lei 2.040 de 28 de setembro de 1871 (BRASIL, 1871), conhecida como a Lei do Ventre Livre, teria “redesenhado o panorama das batalhas judiciais”, e “a relação singular das mulheres com a lei vinha de longa data” em razão do “desejo de libertarem seus filhos, ao longo da história da escravidão nas Américas”, que as colocava na posição de protagonistas e de sujeitos ativos (COWLING, 2018) nas liberdades. Silvéria havia ocupado o lugar de sujeito ativo, e provavelmente continuou na luta e na labuta, na resistência ao regime opressor e, quem sabe, tenha tentado novamente a primeira estratégia utilizada antes de buscar a justiça. Ou talvez tenha apresentado uma apelação ex officio, mas os desembargadores não reformularam a decisão do juiz de primeira instância. Seu Curador, republicano e abolicionista, provavelmente figura em outras ações por liberdades.

Um total de 1.271 escravizados e escravizadas seguiram para o porto do Rio de Janeiro, em 1877. No ano seguinte, o número cresceu para mais 1.671 e, em curva ascendente, em 1879

(8)

seguiram para a capital imperial 2.212 escravizados e escravizadas (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 1880a). A cultura cafeeira na região do Vale do Parnaíba tinha uma demanda crescente por mão de obra. Assim, Luíza encontrava-se pronta para viajar ao Rio de Janeiro quando, na fila para receber seu passaporte, no dia 25 de agosto do ano de 1880, Antonio Affonso Ferreira, “zeloso empregado”, a interrogou. Naquela sala, Luíza, Claudina e a filha Quitéria, declararam que “possuíam dinheiro para a sua liberdade”, mas o chefe de polícia, Francisco Manuel Cavalcanti, ordenou que lhes não fossem entregues os passaportes pedidos (JORNAL DO RECIFE, 1880a).

Naquele mesmo dia, o chefe de polícia remeteu ofício ao juiz substituto da Vara Cível, em resposta a ofício daquele Juízo datado de 25 de agosto de 1880, dando conta de que teriam sido tomadas “as providências precisas para não ser embarcada a parda Luiza, de 17 anos de idade, que por esse juízo está litigando sua liberdade. Luiza, porém, conseguiu o seu intento. De alguma forma, ficou sabendo que seria embarcada para o Rio de Janeiro e não se intimidou. Em passos largos, no fim do inverno calorento do Recife, dirigiu-se ao Cartório Cível no Bairro de Santo Antônio e ali depositou sua súplica em mãos do escrivão. Assim, Luíza, “parda”, aos 17 anos de idade, de posse de um pecúlio de 300 mil réis, confrontou a sociedade Ernesto & Leopoldo. Alegando desejar libertar-se, requereu que lhe fosse nomeado curador, que o valor fosse depositado e, ainda, “assim dar-lhe depositário em virtude de quererem os seus senhores embarca-la amanhã para o sul do império.” (PROCESSO JUDICIAL CÍVEL, 1880).

No dia 26 de agosto, o Doutor Francisco Itaciano Teixeira prestou juramento, “sem dolo e malícia”, para acompanhar todos os atos processuais e requerer tudo que fosse de direito para garantir que a ação de arbitramento de sua curatelada prosseguisse, a bem do seu direito e justiça. É provável que, assim como as escravizadas Rofina e Silvéria, Luíza também tivesse buscado auxilio do advogado e com ele houvesse dado passos em direção à sua liberdade. Talvez por essa razão, o despachante responsável pela venda de Luiza tenha ido a público, em periódico de circulação na cidade, ironizar o embargo à sua pretensão. A notícia “Não seguiram” (JORNAL DO RECIFE, 1880a), publicada no dia 27 de agosto de 1880 no Jornal do Recife, serviu de mote para a o desabafo, em tom ameaçador, dirigido, entre outros, ao advogado e curador Francisco Itaciano Teixeira, revelando os bastidores da batalha travada fora da arena judicial que envolvia o comerciante de gentes e “os novos protetores de liberdade de escravos”.(JORNAL DO RECIFE, 1880b). A resistência empreendida por Luiza pela via judicial descortinava ações em prol das liberdades que uniam a agência escrava, a ação de

(9)

abolicionistas e de artistas de teatro na última década do regime escravista, tendo como cenário a cidade do Recife (JORNAL DO RECIFE, 1880c).

Em audiência, os representantes da sociedade Ernesto & Leopoldo declararam não serem proprietários da escravizada, e indicaram três possíveis donos: Manuel Soares, José Victorino de Paiva ou Miguel de Bastos, justificando que teriam vendido Luiza a Manuel Soares sem passar a escritura de compra e venda. Sem sobrenome, Luiza, aparece na ação como “parda”. A cor registrada pelo escrivão parece ser de grande relevância para diferenciar seu estatuto jurídico, sua condição de escravizada, no espaço de homens livres. Mattos (2013) menciona que apesar da cor parda, na literatura, se referir à pele mais clara ou “menos escura do mestiço”, essa cor era forte indicativo da sua condição, pois não designava apenas a mestiçagem, mas os lugares sociais em que etnia e condição social estariam associadas.

Diante da iminência de ser obrigada a deixar sua cidade rumo a um destino conhecido apenas de ouvir falar, Luiza lutava para permanecer no local onde mantinha suas relações pessoais e familiares. Seu movimento teve grande repercussão, ao ponto de um grupo teatral anunciar com destaque um espetáculo do Club de Artes “em benefício da liberdade da escrava Luiza” (JORNAL DO RECIFE, 1880c). O curador, e também um dos “novos protetores de liberdade de escravos”, localizou o proprietário de Luiza e, extrajudicialmente, conseguiu comprar sua carta de liberdade. A libertação de Luíza ecoou nas ruas da cidade e, diante do seu exemplo, outras escravizadas buscaram o caminho judicial da liberdade.

O trâmite da ação de Benedicta levou pouco mais de três meses, do recebimento da súplica, em 28 de julho de 1885, à expedição da carta de liberdade, em 12 de outubro do mesmo ano, e o último ato, a certidão do escrivão, passada nos autos em 7 de novembro de 1885, com expedição da carta precatória para levantamento do valor depositado “como requerida na petição”, encaminhada pelo curador (PROCESSO JUDICIAL CÍVEL, 1884). Benedicta, “escrava do doutor Antonio Vitruvio Pinto Bandeira Accioly de Vasconcelos”, aos 54 anos de idade, conseguiu juntar um pecúlio de 100 mil réis com seu esforço e trabalho.

A “preta crioula” transferiu para os tribunais a negociação que não conseguiu realizar no espaço privado. Sua súplica, tomada a termo pelo escrivão, foi assinada a rogo por pessoa livre. Em seu requerimento para que fosse avaliada por “um valor justo”, Benedicta depositou sua percepção sobre o sistema escravista. Ao ser avaliada, saberia se os “réis” que conseguiu acumular seriam suficientes para caminhar pela cidade como mulher liberta. Sua batalha judicial pode ser encarado com:

(10)

seus sentidos de resistência é reconhecer como fundamental todo o conteúdo de interdições, limites - e mesmo de concessões – presentes em uma sociedade marcada pela escravidão e pelo patriarcalismo. É reconhecer ainda que os grupos populares possuem também linguagens próprias na leitura do mundo e de cada significante espacial. (SILVA, 2011, p. 60)

Benedicta foi submetida à avaliação e os peritos “passaram a examinar a referida escrava”. Assim, foi estipulado o valor de 200 mil réis como sendo o preço pela escravizada. O valor do esforço e trabalho de Benedicta Thereza de Jesus estava, portanto, acima do pecúlio acumulado pelos anos de serviço como escravizada. Avaliada “levando em conta a sua idade”, Benedicta teria que completar o valor para auferir a sua liberdade legal (PROCESSO JUDICIAL CÍVEL, 1884).

Rofina, Silvéria, Luíza e Benedicta ocupam hoje a narrativa e o lugar de sujeito histórico. Seus passos foram decisivos, e mesmo quando não alcançaram a liberdade legal essas mulheres escravizadas viveram suas liberdades, sonhos e desejos de liberdades ao lutarem por seus direitos, ao garantirem que outras trilhassem o caminho judicial, o caminho da luta.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, Wlamyra R. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 319 p.

ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-88). São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

BERTIN, Enidelce. Alforrias na São Paulo do século XIX: liberdade e dominação. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2004.

BRASIL. Manda observar a Constituição Politica do Imperio, offerecida e jurada por Sua Magestade o Imperador. Constituição Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro, RJ, 25 mar. 1824. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm. Acesso em: 17 out. 2020. ______. Lei Nº 2.040. Declara de condição livre os filhos de mulher escrava que nascerem desde a data desta lei, libertos os escravos da Nação e outros, e providencia sobre a criação e tratamento daquelles filhos menores e sobre a libertação annaul de escravos. Rio de Janeiro, RJ. 28 Set. 1871. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM2040.htm Acesso em: 17.10.2020 CABRAL, Flavio José Gomes e COSTA, Robson (orgs). História da escravidão em Pernambuco. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo Caminho. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822-1850. 2. ed. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2010.

(11)

CHALHOUB. Sidney. Visões da liberdade- Uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

CHALHOUB. Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

COWLING, Camillia. Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e a abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro. Tradução: Patrícia Ramos Geremias, Clemente Penna. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2018.

DIAS, Maria Odila. Escravas: resistir e sobreviver. In: PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria. Nova História das mulheres. São Paulo: Contexto, 2012. p. 360-381.

DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.

DIÁRIO DE PERNAMBUCO. Recife, 22 nov. 1871. Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=029033_05&pasta=ano%20187&pesq=%22bail de%20dos%20mascarados%22&pagfis=4421

______. Recife, 23 mar. 1872. Disponível em:

http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=029033_05&pagfis=5229. Acesso em: 18 out. 2020.

______. Recife, 08 nov. 1877. Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=029033_05&pasta=ano%20187&pesq=%22bail de%20dos%20mascarados%22&pagfis=18719

______. Recife, 09 nov. 1877. Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=029033_05&pasta=ano%20187&pesq=%22bail de%20dos%20mascarados%22&pagfis=18727

______. Recife, 10 nov. 1877. Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=029033_05&pasta=ano%20187&pesq=%22bail de%20dos%20mascarados%22&pagfis=18735

______. Recife, 01 jan. 1880. Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=029033_06&pasta=ano%20188&pesq=&pagfis =1 Acesso em 02. nov. 2020

GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambiguidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro: Relumbe-Dumará, 1994.

GRINBERG, Keila e PEABODY, Sue. Escravidão e liberdade nas Américas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.

JORNAL DO RECIFE. Recife, 27 ago. 1880. Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=705110&pasta=ano%20188&pesq=&pagfis=16 943. Acesso em 02 nov. 2020

(12)

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=705110&pasta=ano%20188&pesq=&pagfis=16 967. Acesso em 02 nov. 2020

______. Recife, 04 set. 1880. Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=705110&pasta=ano%20188&pesq=&pagfis=16 971. Acesso em 02 nov. 2020

MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade Sudeste escravista (Brasil, século XIX). 3. ed. rev. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013.

PENA, Eduardo Spiller. Pajens da Casa Imperial, jurisconsultos, escravidão e a lei de 1871. Campinas, SP: Editora da Unicamp/Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2001. PROCESSO JUDICIAL CÍVEL. Processo de Rofina. Recife, 1871. Memorial de Justiça de Pernambuco. Documento 110226, Caixa 1214

PROCESSO JUDICIAL CÍVEL. Processo de Silvéria, 1878. Memorial de Justiça de Pernambuco.. Caixa 247

PROCESSO JUDICIAL CÍVEL. Processo de Luíza, 1880. Memorial de Justiça de Pernambuco. Caixa 1162

PROCESSO JUDICIAL CÍVEL. Processo de Benedicta, 1884. Memorial de Justiça de Pernambuco.. Caixa 7

REIS, João José. Ganhadores: A greve negra de 1857 na Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

SILVA, Maciel Henrique. Pretas de Honra: vida e trabalho de domésticas e vendedoras no Recife do século XIX (1840-1870). Editora Universitária da UFPE, coedição, Salvador: EDUFBA, 2011. TJPE. Memorial da Justiça. Acervo. Disponível em: https://www.tjpe.jus.br/web/memorial-da-justica/acervo. Acesso em: 20 fev. 2020.

Referências

Documentos relacionados

Nesse mesmo período, foi feito um pedido (Processo do Conjunto da Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro nº 860-T-72) pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil e pelo Clube de

F REQUÊNCIAS PRÓPRIAS E MODOS DE VIBRAÇÃO ( MÉTODO ANALÍTICO ) ... O RIENTAÇÃO PELAS EQUAÇÕES DE PROPAGAÇÃO DE VIBRAÇÕES ... P REVISÃO DOS VALORES MÁXIMOS DE PPV ...

insights into the effects of small obstacles on riverine habitat and fish community structure of two Iberian streams with different levels of impact from the

As questões acima foram a motivação para o desenvolvimento deste artigo, orientar o desenvol- vedor sobre o impacto que as cores podem causar no layout do aplicativo,

Os principais resultados obtidos pelo modelo numérico foram que a implementação da metodologia baseada no risco (Cenário C) resultou numa descida média por disjuntor, de 38% no

O Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, de 2007, e a Política Nacional de Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica, instituída em 2009 foram a base

Ressalta-se que mesmo que haja uma padronização (determinada por lei) e unidades com estrutura física ideal (física, material e humana), com base nos resultados da

O capítulo I apresenta a política implantada pelo Choque de Gestão em Minas Gerais para a gestão do desempenho na Administração Pública estadual, descreve os tipos de