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Construcionismo social: um convite ao diálogo

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Academic year: 2021

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Publicado por Taos Institute em 2004 www.taosinstitute.net

Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida – em qualquer meio ou forma, seja digital, fotocópia, gravação etc – nem apropriada ou estocada em banco de dados, sem a autorização dos detentores dos direitos autorais.

Produção editorial

 Anna Carla Ferreira

Copidesque

Leonora Corsini 

Revisão

Paulo Henriques

Capa

Ilustrarte Design e Produção Editorial 

Editoração eletrônica

 Abreu’s System

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ G317c

Gergen, Kenneth J.

Construcionismo social: um convite ao diálogo / Kenneth J. Gergen e Mary Gergen; tradução Gabriel Fairman. - Rio de Janeiro: Instituto Noos, 2010.

Tradução de: Social construction: entering the dialogue

Inclui bibliografa

ISBN 978-85-86132-14-8

1. Percepção social. 2. Psicologia social. 3. Ciências sociais

- Filosofa. 4. Interação social. I. Gergen, Mary M., 1938- I.

Título.

10-4394 CDD: 155.91

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Por uma apresentação dialogada ...7

Capítulo 1 – O cenário da construção social ...17

Capítulo 2 – Da crítica à reconstrução ...35

Capítulo 3 – Construção social e prática profissional ...55

Capítulo 4 – A pesquisa como prática de construção ...79

Capítulo 5 – Da crítica à colaboração ...99

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de novas práticas

1992 – Conhecer Kenneth Gergen foi um evento transforma-dor em nossos estudos de família quando buscávamos o entendi-mento das mudanças pelas quais passava o paradigma sistêmico na ocasião. Nosso primeiro contato foi o livro El Yo Saturado. Desde suas primeiras páginas, o desafio de suas ideias – múltiplos selves – vinha acompanhado pelo nosso fascínio por um cenário teórico que dava sentido às experiências pessoais daquele mo-mento: nossa saturação diante dos avanços tecnológicos!

Desde então, aceitamos o convite para conhecer melhor o Construcionismo Social, capaz de articular descrições teóricas à nossa experiência cotidiana. Do pessoal ao profissional, logo pu-demos sentir o quão útil seria esse caminho.

Da erapia Familiar ao campo de resolução de conflitos – Me-diação ransformativa e Justiça Restaurativa, a presença de seu “Diálogo ransformador” é notável e fundamental. Igualmente importantes são as noções de “autorreflexividade”, “responsabi-lidade relacional”, “cocriação de rea“responsabi-lidades”, necessárias na con-sideração de mundos sociais construídos por nós mesmos, em nossas relações mútuas e nossa sociedade.

Quando ampliamos o foco de nossa prática profissional para a capacitação de agentes de mudança em projetos de implantação de novas práticas, as ações conversacionais constitutivas de rela-ções e realidades redobram sua importância. Há um efeito em-poderador do indivíduo quando este se percebe ator e autor de mudança do mundo em que vive e que deseja mudar; quando se dá conta de que nossas descrições linguísticas nos implicam em uma, e não em outra, forma de estar no mundo.

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Nesse contexto de capacitações de processos transformativos onde partilhamos a crença de que “para acender uma lâmpada, basta saber como ligar o interruptor; porém, sabendo como fun-ciona uma lâmpada, pode-se fazer infinitas outras coisas, além de acendê-la”, é onde mais temos sentido falta de textos construcio-nistas que nos ajudem a potencializar esse processo de empode-ramento do indivíduo e de disseminação de novas práticas.

Nesse sentido, este livro de Kenneth e Mary Gergen é mais uma expressão de seus esforços constantes de “unir a teoria à prá-tica de forma que dê vitalidade àquela e inteligibilidade a esta”. Em forma e conteúdo, o Construcionismo Social é apresentado como uma práxis, uma maneira de ser, uma forma de estar no mundo, cativando o leitor no diálogo que inaugura sutilmente. Seu valor é inestimável por ser uma forma de acesso ao conheci-mento para aqueles que se aproximam e desejam ampliar o po-tencial transformador experienciado no processo de aprendiza-gem de novas práticas.

Vania Curi Yazbek Nos últimos dezesseis anos tenho me dedicado a dirigir uma organização sem fins lucrativos na cidade do Rio de Janeiro, o Instituto Noos. Constituído por profissionais das ciências sociais, humanas e da saúde, o Noos busca metodologias que promovam a saúde das relações familiares e comunitárias e as difunde. ra-balhamos com terapia de família, terapia comunitária, grupos re-flexivos de gênero e outras práticas sociais que contribuam para a dissolução pacífica de conflitos familiares e comunitários.

Desde o início de nossas atividades adotamos uma aborda-gem relacional sistêmica, no que entendemos ser sua vertente construcionista social. Percebemos, no início do nosso percurso,

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que essa abordagem poderia contribuir, de forma intensa e dife-renciada, para a construção de soluções alternativas nas áreas de atenção em saúde mental, desenvolvimento comunitário e social e garantia de direitos.

Os problemas enfrentados nessas áreas costumam ser com-plexos, entendidos como aqueles que possuem múltiplos fatores desencadeadores, onde muitas vezes não se consegue delimitar com precisão nem mesmo se pertencem à esfera da saúde ou se são provenientes das desigualdades econômicas e sociais. Além disso, as soluções predominantes costumam vir de fora do gru-po que vive o problema, imgru-postas gru-por especialistas, a partir de um saber científico e acadêmico, deixando, quase sempre, de escutar aqueles que vivem a situação que se pretende mudar. No Noos, privilegiamos as metodologias participativas e cola-borativas, que, preferencialmente, utilizem equipes transdisci-plinares. Acreditamos que as soluções assim construídas serão mais abrangentes e, cada participante, seu coautor. Desta forma, ganham muito mais chances de serem de fato adotadas e seus efeitos perdurarem.

Apesar do longo tempo de experiência e dos resultados com-provados, ainda precisamos de subsídios que nos auxiliem na difusão teórica do que fazemos. Este livro de Kenneth e Mary Gergen contribuirá inequivocamente para enfrentarmos este de-safio, pois, de maneira clara, consegue levar aos leitores, estudan-tes, profissionais ou curiosos, os fundamentos do construcionis-mo social, a diversidade de suas aplicações e responder às críticas mais comuns que recebemos cotidianamente de nossos pares. E, além disso, demonstra o alcance de uma abordagem nova, esti-mulante e revolucionária.

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O cenário do nosso sistema de saúde se apresenta atualmen-te bastanatualmen-te focado num esforço de re-organizar suas práticas de saúde, com diretrizes que favorecem o desenvolvimento de ações mais interativas, horizontais, inclusivas e corresponsáveis. No entanto, a forma biologizante, dualista e hierárquica com que o sistema de saúde funcionou por muito tempo, tem tornado difícil uma mudança nas suas tradicionais práticas, apontando, assim, a necessidade de produção de novos conhecimentos na área, que apoiem e sustentem tais transformações.

Falando do lugar de psicóloga e pesquisadora inserida na Saú-de Coletiva e sobretudo interessada nas práticas do cuidado que aí se desdobram, particularmente acredito que este livro possa trazer contribuições especiais na compreensão desses novos dis-cursos propostos na saúde, dando sustentação a eles e legitimida-de na criação legitimida-de práticas mais dialógicas.

O livro descreve com simplicidade e seriedade a importância das interações humanas, da responsividade e da coordenação en-tre as pessoas na produção dos sentidos e das ações no mundo, num discurso que tem em sua inteligibilidade a construção dia-lógica e compartilhada de nossa realidade social. raz também ideias que rompem com o entendimento tradicional do que é ci-ência, linguagem e identidade. Ao discutirem esses temas como produtos de uma construção social, os autores ampliam as pos-sibilidades de composição de práticas mais progressistas, fortale-cendo e sustentando a importância do processo de se relacionar.

Este livro é uma oportunidade para os profissionais de saúde, ávidos por novos entendimentos que sustentem novas práticas na área, se aproximarem de uma teoria relacional que faz mais sentido dentro da proposta atual do sistema de saúde brasileiro. Uma oportunidade de entrarem em contato com uma

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metodolo-gia que embase e legitime as ideias de corresponsabilidade, gia que embase e legitime as ideias de corresponsabilidade, coo-peração, interação e contexto. Uma oportunidade de refletirem peração, interação e contexto. Uma oportunidade de refletirem sobre o significado da construção social e relacional das ações sobre o significado da construção social e relacional das ações no mundo e suas implicações, compreendendo a importância e no mundo e suas implicações, compreendendo a importância e a complexidade de um diálogo, da interação e do vínculo entre a complexidade de um diálogo, da interação e do vínculo entre profissional de saúde-usuário, que muitas vezes fica colocado em profissional de saúde-usuário, que muitas vezes fica colocado em segundo plano em relação a

segundo plano em relação a procedimenprocedimentos técnicos.tos técnicos.

A proposta construcionista social apresentada neste livro A proposta construcionista social apresentada neste livro apon

aponta também que ta também que não se não se trata de acabar com trata de acabar com proprotocolos e téc-tocolos e téc-nicas, mas também de convidar a pensar todas essas nicas, mas também de convidar a pensar todas essas ferramen-tas como socialmente construídas, dentr

tas como socialmente construídas, dentro de uma lógica o de uma lógica e de ume de um tempo específico. E, por terem sido construídas num tempo específico. E, por terem sido construídas num determi-nado momento histórico, podem ser desconstruídas e nado momento histórico, podem ser desconstruídas e recons-truídas caso não estejam sendo úteis para determinada função. truídas caso não estejam sendo úteis para determinada função. Neste processo de reconstrução, nada mais potente do que pôr as Neste processo de reconstrução, nada mais potente do que pôr as pes

pessoas juntas para o diálogo, para a reflexividade e para a cons-soas juntas para o diálogo, para a reflexividade e para a cons-trução de formas de trabalho que possam ser mais produtivas, trução de formas de trabalho que possam ser mais produtivas, eficazes e

eficazes e prazerosas.prazerosas.

Celiane

Celiane CamargoCamargo-Borges-Borges Este livro é um presente para todos os construcionistas Este livro é um presente para todos os construcionistas bra-sileiros. Há muito se aguardava a tradução das obras dos Gergen sileiros. Há muito se aguardava a tradução das obras dos Gergen para o português. Pois ela chegou da melhor forma! Com um para o português. Pois ela chegou da melhor forma! Com um tex-to claro e abrangente, este livro honra seu título e possibilita o to claro e abrangente, este livro honra seu título e possibilita o início de um diálogo sobre a construção social.

início de um diálogo sobre a construção social.

A maneira simples e didática, recheada por vários exemplos, A maneira simples e didática, recheada por vários exemplos, tem um forte apelo, facilitando o diálogo sobre as contribuições tem um forte apelo, facilitando o diálogo sobre as contribuições radicais deste jeito de pensar o mundo. A obra é uma síntese radicais deste jeito de pensar o mundo. A obra é uma síntese preciosa sobre as principais dimensões do movimento preciosa sobre as principais dimensões do movimento constru-cionista e suas implicações para a prática profissional, seja nos cionista e suas implicações para a prática profissional, seja nos

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campos da psicoterapia, do desenvolvimento organizacional, da campos da psicoterapia, do desenvolvimento organizacional, da educação

educação, da , da resolução de conflitos e da resolução de conflitos e da pesquisa.pesquisa.

Os profissionais comprometidos com o desenvolvimento Os profissionais comprometidos com o desenvolvimento co-munitário encontrarão no livro ferramentas úteis para sua munitário encontrarão no livro ferramentas úteis para sua atua-ção. A

ção. Ao enfatizar a análise da o enfatizar a análise da construção e das consequências dosconstrução e das consequências dos discursos, ele mostra a possibilidade – e, por vezes, a necessidade discursos, ele mostra a possibilidade – e, por vezes, a necessidade – de mudança destes discursos, rumo a uma sociedade voltada ao – de mudança destes discursos, rumo a uma sociedade voltada ao bem comum. Além disso, ao apontar a importância de bem comum. Além disso, ao apontar a importância de buscar-mos alternativas ao discurso individualista, ele contribui para o mos alternativas ao discurso individualista, ele contribui para o fortaleciment

fortalecimento do o do trabalho com famílias, grupos trabalho com famílias, grupos e comunidades.e comunidades. No contexto acadêmico, esta obra permite a pesquisadores em No contexto acadêmico, esta obra permite a pesquisadores em ciências sociais e humanas a expansão das s

ciências sociais e humanas a expansão das sensibilidades críticas,ensibilidades críticas, ao mesmo tempo em que faz reconhecer os limites das mesmas. ao mesmo tempo em que faz reconhecer os limites das mesmas. Desta forma, substitui a crítica antagonista pelo diálogo, levando Desta forma, substitui a crítica antagonista pelo diálogo, levando a uma valorização da

a uma valorização da pluralidade, abripluralidade, abrindo espaço para ndo espaço para a constru-a constru-ção do mundo de maneira colaborativa.

ção do mundo de maneira colaborativa. Par

Para além do a além do campo procampo profissional, este texto pode sefissional, este texto pode ser útil a di-r útil a di-ferentes públicos. Ele convida a novas formas de relação ferentes públicos. Ele convida a novas formas de relação inter-pessoal, à

pessoal, à ampampliação das liação das possibilidades de significação, à possibilidades de significação, à conconver- ver-gência entre domínios de significados divergentes, diminuindo gência entre domínios de significados divergentes, diminuindo os conflitos e promovendo a convivência humana.

os conflitos e promovendo a convivência humana.

Simples em sua apresentação e revolucionário em sua Simples em sua apresentação e revolucionário em sua propos-ta, o livro mostra como podemos construir uma vida marcada ta, o livro mostra como podemos construir uma vida marcada pela ousadia e esperança. Ele já nasce sendo um clássico da pela ousadia e esperança. Ele já nasce sendo um clássico da lite-ratura da área no Brasil!

ratura da área no Brasil!

Emerson Rasera Emerson Rasera Para mim, este livro é um presente inestimável.

Para mim, este livro é um presente inestimável.

Eloquente e coloquial, complexo e humilde, poderoso e Eloquente e coloquial, complexo e humilde, poderoso e res-peitoso.

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Um convite ímpar para um diálogo sobre ideias que, de tão Um convite ímpar para um diálogo sobre ideias que, de tão eloquentes, viram do avesso noss

eloquentes, viram do avesso nossas formas mais habituais de pen-as formas mais habituais de pen-sar e viver o mundo e nós mesmos. Mas também é um convite sar e viver o mundo e nós mesmos. Mas também é um convite que, por sua linguagem quase colo

que, por sua linguagem quase coloquial, inclui a todos. Não é pre-quial, inclui a todos. Não é pre-ciso estar

ciso estar familiarizado com grandes teorizações nem familiarizado com grandes teorizações nem interinteressadoessado nelas para ser bem-vindo a este diálogo. Basta ficar curioso para nelas para ser bem-vindo a este diálogo. Basta ficar curioso para conhecer um modo de f

conhecer um modo de falar de nós, humanos, como autores e alar de nós, humanos, como autores e res- res-ponsáveis pelo que gostamos e pelo que abominamos, no mundo ponsáveis pelo que gostamos e pelo que abominamos, no mundo em que vivemos.

em que vivemos.

Ele é complexo porque complexas são as tramas que nos Ele é complexo porque complexas são as tramas que nos cons-tituem. ão complexas que não é fácil conversar sobre nossas tituem. ão complexas que não é fácil conversar sobre nossas  verdades.

 verdades. ramas ramas que que nos nos fazem fazem acreditar acreditar que que nossas nossas verdadesverdades (pessoais e

(pessoais e proprofissionafissionais) são is) são melhormelhores que as es que as das outras pessoas.das outras pessoas. E nos fazem sentir que estamos fazendo o melhor quando E nos fazem sentir que estamos fazendo o melhor quando bus-camos fazer os outros compartilharem dessas nossas verdades camos fazer os outros compartilharem dessas nossas verdades “melhores

“melhores””. Mas, t. Mas, também é ambém é humilde phumilde porque não sorque não se outorga o e outorga o pri- pri- vilégio de uma v

 vilégio de uma verdade suerdade superiorperior. Ao . Ao contrácontrário, rio, é um coné um convite paravite para legitimar muitas verdades e construir com elas uma vida humana legitimar muitas verdades e construir com elas uma vida humana mais plural. Uma vida humana onde não caibam práticas sociais mais plural. Uma vida humana onde não caibam práticas sociais que trabalhem a favor da dominação de um segmento cultural que trabalhem a favor da dominação de um segmento cultural em detrimento de outro.

em detrimento de outro.

Ele é um convite poderoso porque poderosas são as ideias Ele é um convite poderoso porque poderosas são as ideias que nos tiram do

que nos tiram do lugar (já não tão lugar (já não tão cômodo) de indivíduo-centrcômodo) de indivíduo-centro- o--do-mundo. Ideias que nos convidam a prestar mais atenção ao -do-mundo. Ideias que nos convidam a prestar mais atenção ao modo como nós, humanos, coordenamos nossas ações no modo como nós, humanos, coordenamos nossas ações no mun-do, e como com nossas relações criamos e sustentamos as do, e como com nossas relações criamos e sustentamos as reali-dades em que vivemos. Poderoso pelo paradoxo em que ele nos dades em que vivemos. Poderoso pelo paradoxo em que ele nos coloca: como humanos podemos tudo, mas sozinhos não coloca: como humanos podemos tudo, mas sozinhos não pode-mos nada. Mas é também respeitoso porque reconhece e chama mos nada. Mas é também respeitoso porque reconhece e chama para o diá

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mundo contemporâneo que com ele compartilham da fertilidade na construção de futuros possíveis e desejáveis.

Deixe-me explicar melhor de que lugar eu falo. Durante mui-tos anos trabalhando nos meios acadêmicos, a eloquência, a complexidade e o poder do discurso construcionista social foram fundamentais para o meu desejo de compartilhar essas ideias. Agora, fora da universidade, sinto-me desafiada a aprender uma nova retórica para promover diálogos com profissionais que es-tão, antes de tudo, seriamente comprometidos em fazer melhor

o que de melhor já sabem fazer (médicos, advogados, psicólogos,

assistentes sociais, empresários, administradores, gestores de equipes, educadores). Sem deixar de ser denso e transformador, o diálogo coloquial, humilde e respeitoso deste livro é, para mim, um presente inestimável – daqueles presentes que te chegam no tamanho certo e na hora exata.

 Marisa Japur 

“Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios”  (Manoel de Barros)

Neste livro, Ken e Mary Gergen desenvolvem uma tradu-ção didática e objetiva do conjunto complexo e revolucionário de ideias que compõem o campo da Construção Social. Dando ênfase aos processos relacionais a partir dos quais produzimos conhecimento sobre o mundo e sobre nós mesmos, os autores apresentam uma nova forma de inteligibilidade, que nos tira da posição confortável de conhecedores da Verdade e nos compro-mete com a tarefa de assumir responsabilidade na construção das verdades a partir das quais organizamos nossas vidas e relaciona-mentos. Enfatizando o caráter relacional e situado das realidades

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que criamos em nossas práticas discursivas, os autores nos con- vidam a assumir participação ativa na construção de um mundo

mais flexível e plural.

Assim, este livro tem sido um grande aliado em minha prática profissional, sobretudo em minha atuação como pesquisadora, terapeuta de família e facilitadora de grupos. Embora pareça na-tural que o trabalho com famílias e grupos seja necessariamen-te investido de uma “perspectiva relacional”, esse tipo de práti-ca ainda se encontra marpráti-cada por uma visão estátipráti-ca de família (que busca investigar estruturas, papéis e modelos normativos de comportamento) e de grupo (que busca definir estágios e fases de desenvolvimento). Em ambos os casos, prevalece o olhar de um terapeuta / coordenador que, do lugar de especialista, busca desvendar os jogos e os papéis que as pessoas supostamente de-sempenham em suas relações.

Apesar da força dessas teorias de família e de grupo no mun-do acadêmico, tenho buscamun-do exercer novas posições em minha prática profissional, entendendo que trabalhar com famílias ou com grupos significa investir na construção de espaços dialógicos menos hierárquicos, em que as pessoas sejam efetivamente con-sideradas como participantes de um processo colaborativo de ne-gociação de significados. Essa visão construcionista traz também para o trabalho com famílias e grupos o compromisso ético com a análise dos efeitos de determinadas narrativas na legitimação de formas de vida e, assim, cria oportunidade para, num exercício colaborativo, investirmos na construção de novas histórias, ricas em recursos e potencialidades.

Ao participarem desse tipo de prática, todos – profissionais, familiares ou participantes de grupos – aprendemos que a solu-ção para os dilemas humanos não reside em descobertas finais,

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objetivas e essenciais, mas em construções conjuntas de pesso-as em diálogo que, deixando pesso-as grandes narrativpesso-as em suspenso, “desaprendem” e, assim, podem criar novos princípios...

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O cenário da

construção social

Uma dramática transformação vem tendo lugar no mundo das ideias, e, por toda parte, as tradições estão sendo questionadas. Aumenta a incerteza em relação aos padrões universais e oficiais de verdade, objetividade, racionalidade, progresso e moralidade. Enquanto a insegurança bate incessantemente à porta, questio-na-se a fé em todo lugar. Entretanto, dessa situação tumultuada emergem novos diálogos e novas vozes de esperança para a exis-tência humana. São conversações que cruzam continentes e cul-turas, fazendo-se acompanhar de um grande número de novas práticas profissionais – nas organizações, na educação, na tera-pia, na pesquisa e na assistência social, no aconselhamento, na resolução de conflitos, no desenvolvimento da comunidade e em muitas outras áreas.

Vários nomes já foram atribuídos a essa revolução de pensa-mento e de práticas, sendo frequentes denominações como -fundamentalismo”, empirismo”, iluminismo” e “pós--modernismo”. Entretanto, entremeada em todos os debates está a noção da “construção social” ou seja, a criação de sentido atra- vés de nossas atividades colaborativas. A construção social não é de autoria de um único indivíduo ou grupo, nem tampouco exclusiva e unificada; ela pressupõe um significativo comparti-lhamento entre diferentes comunidades. Os contrastes, tensões e incertezas não intimidam, uma vez que a tentativa de estabelecer

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uma verdade definitiva, uma lógica fundante, um código de va-lores ou uma lista de práticas seria algo absolutamente contrário ao desenvolvimento das ideias defendidas pelos construcionistas sociais.

Nós, os autores, ocupamo-nos durante a maior parte de nossas carreiras profissionais com diálogos construcionistas, e a intenção deste livro é apresentar um relato que permita que alunos, colegas e profissionais, ou mesmo aquelas pessoas que são apenas curio-sas, obtenham um conhecimento básico e avaliem o poder e a for-ça dessas ideias. Nos dois primeiros capítulos serão delineados al-guns dos mais importantes desenvolvimentos teóricos, e, a seguir, analisaremos o impacto dessas ideias na maneira como vivemos e trabalhamos. Nosso foco será as ideias construcionistas em ação, seja nas organizações, na psicoterapia, na educação, na resolução de conflitos, na pesquisa social ou na vida cotidiana. E também trataremos das críticas comumente feitas ao construcionismo.*

A ideia básica: nós construímos o mundo

Embora o construcionismo social se baseie numa ideia maior, simples e clara, observamos que, à medida que desvendamos suas implicações e consequências, esta simplicidade rapidamen-te se desfaz. Isto porque esta ideia básica faz com que rapidamen-tenhamos que repensar praticamente tudo que nos ensinaram a respeito do mundo e de nós mesmos. Ao repensar esses conhecimentos, so-mos convidados a novas e instigantes formas de ação.

* O termo “construtivismo” é frequentemente tomado como equivalente a “construcionismo”. O construtivismo entende que o locus  de construção do mundo está dentro da mente ou no inte-rior do indivíduo. Embora existam certos pontos em comum entre este movimento e o constru-cionismo social, no presente trabalho empregaremos exclusivamente o termo “construcionis-mo” para enfatizar a importância atribuída não aos indivíduos, mas às relações, como o locus 

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Para terem uma ideia das possibilidades, considerem o co-nhecimento do senso comum. O que seria mais óbvio do que o fato de o mundo estar simplesmente lá fora para que possamos observá-lo e entendê-lo? Existem árvores, edifícios, automóveis, mulheres, homens, cães e gatos, e assim por diante. Se observar-mos com atenção, podeobservar-mos aprender como proteger as florestas, como construir edifícios sólidos e como melhorar a saúde das crianças. Agora, vamos virar essas hipóteses confiáveis de cabeça para baixo.

Vamos supor que afirmássemos que árvores, edifícios, mulhe-res, homens etc. não existem, até sermos finalmente convencidos que, sim, eles existem. “Bobagem”, vocês diriam. “Olhem ao seu redor! udo isso já estava aí muito antes de chegarmos!” Parece fazer sentido, mas e se convidássemos a pequena Julie, que tem um ano de idade, para dar uma volta? Seu olhar vagueia para além das árvores, dos edifícios e dos automóveis e ela parece não ser capaz de distinguir homens de mulheres. William James afirmou certa vez que o mundo de uma criança é uma “confusão crescente e ativa”. Você poderá concordar ou não, mas o mundo de Julie não parece ser o mesmo mundo no qual nós, adultos, vivemos. Dife-rentemente de Julie, percebemos as folhas de outono que mudam do verde para o dourado; vemos que a casa à nossa esquerda foi construída em estilo vitoriano, que o automóvel passando na rua é uma BMW, e que a mulher de pé junto à porta é, na realidade, um travesti. O que chega aos nossos olhos pode não ser diferente do que Julie vê, mas o significado deste mundo para nós é bem diferente. Nós construímos o mundo de forma diferente, e esta diferença encontra-se enraizada em nossas relações sociais, a par-tir das quais o mundo se tornou o que é.

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Agora, vamos tomar você, leitor, como objeto da nossa aula: quem é  você e o que você faz? Imagine-se de pé, diante de um grande grupo de pessoas com os mais variados estilos de vida, oriundas de diferen-tes regiões do mundo. Cada pessoa olhará para você e dirá o que vê diante de si, podendo resultar em algo assim:

Paraum Vocêé  

Biólogo “um mamífero”

Cabeleireiro “corte do ano passado”

Professor “alguém que tem potencial”

Homossexual “heterossexual”

Cristão fundamentalista “um pecador”

Pai/ Mãe “um sucesso surpreendente”

Artista “um excelente modelo”

Psicólogo “ligeiramente neurótico”

Físico “uma composição atômica”

Banqueiro “um futuro cliente”

Médico “um hipocondríaco”

Hindu “estado imperfeito de Atman”

Amante “uma pessoa maravilhosa”

Ifaluquiano* “cheio de liget”

Se não houvesse ninguém para identificá-lo, quem você seria nesse caso? Será que você realmente seria algo?

A ideia fundante da construção social parece bem simples, mas, ao mesmo tempo, é profunda. udo que consideramos real é resulta-do de uma construção social. Ou seja, de maneira mais contundente, Nada é real, a menos que as pessoas concordem que assim o seja.* * Habitante de Ifaluk, um atol de corais nas Ilhas Cardinas, pertencentes aos Estados Federados

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Sua voz cética poderia replicar: “Quer dizer que a morte não é real?”, ou “o corpo?”, ou “o Sol?”, ou “esta cadeira?”... A lista é infi-nita. É preciso ter muita clareza quanto a este ponto: os constru-cionistas sociais não dizem “não existe nada”, ou “não há realida-de”; a questão importante é que quando as pessoas definem o que é “realidade”, sempre falam a partir de uma tradição cultural. Sem dúvida, alguma coisa aconteceu, mas, para descrever este fato, é necessário que o mesmo seja representado a partir de um ponto de vista cultural particular — numa linguagem particular ou por intermédio de um meio visual ou oral particular.

A título de ilustração, se dissermos “o pai dele morreu”, na maioria das vezes estaremos falando a partir de um ponto de  vista biológico. Construímos o acontecimento como a cessação de determinada função corporal (muito embora até os médicos possam discordar quanto à definição de morte, pois um cirur-gião especialista em transplantes pode ter uma opinião diferente da de um clínico geral). A partir de outras tradições, poderíamos ainda dizer “ele foi para o céu”, “ele viverá para sempre no cora-ção dela”, “este é o começo de um novo ciclo de reencarnacora-ção”, “foi aliviado de seu fardo”, “viverá no legado de suas boas obras”, “sua vida terá continuidade em seus três filhos”, ou “a compo-sição atômica desse objeto foi alterada”. O que mais há para ser dito fora de qualquer convenção relativa ao entendimento? Para a pequena Julie, o acontecimento pode, de fato, não ser absolu-tamente fora do comum. Para o construcionista, a questão não é “nada existe”, mas sim “nada existe para nós”, ou seja: é a partir das nossas relações que o mundo se faz preenchido com o que nós concebemos como “árvores”, “sol”, “corpos”, “cadeiras” e as-sim por diante.

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Num sentido mais amplo, podemos dizer que, ao nos comuni-carmos uns com os outros, construímos o mundo no qual vivemos e, se mantivermos nossas tradições, a vida poderá prosseguir como de costume. Desde que façamos as distinções que nos são familiares, como, por exemplo, entre homens e mulheres, ricos e pobres, cul-tos e ignorantes, a vida continuará sendo relativamente previsível. Entretanto, tudo aquilo que aceitamos como óbvio também pode ser questionado. Por exemplo, não existem “problemas” no mundo para que todos os vejam, mas, pelo contrário, construímos mundos “do bom” e consideramos “um problema” todos os acontecimentos que obstruam o caminho, impedindo-nos de alcançar aquilo que mais valorizamos. Será que tudo que construímos como “proble-ma” não poderia ser reconstruído como “oportunidade”? Da mes-ma formes-ma, enquanto conversamos, poderíamos estar criando novos mundos. Poderíamos construir um mundo no qual existissem três gêneros, ou um mundo onde os “doentes mentais” fossem “heróis”, ou um mundo em que “o poder de todas as organizações repousasse não em líderes individuais, mas em relações”.

É neste ponto que você poderá começar a apreciar o enorme potencial das ideias construcionistas pois, para o construcionista, nossas ações não são limitadas por qualquer coisa tradicional-mente aceita como verdadeira, racional ou correta. Diante de nós existe um amplo espectro de possibilidades, um convite infinito à inovação, o que, entretanto, não quer dizer que devamos abando-nar tudo aquilo que consideramos real e bom. De forma alguma. Quer dizer, sim, que não estamos presos aos grilhões da história ou da tradição. Ao conversar, ouça novas vozes, levante questões, avalie metáforas alternativas e brinque nas fronteiras da razão, porque, assim, atravessaremos o limiar dos novos mundos de sig-nificado. O futuro é nosso para que o criemos... juntos.

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É comum vermos o envelhecimento como um período de declínio: entendemos que a infância é um período de desenvolvimento, na fase adulta atingimos a maturidade e, na terceira idade, a vida entra em declínio. Considere essa construção bastante comum: vivemos a nossa idade adulta com pavor de envelhecer, procurando incansa- velmente meios de “permanecer jovens” ou, pelo menos, de “parecer  jovens”. Ser velho é ruim e para muitas pessoas a visão do declínio também é algo cuja previsão está fadada a se cumprir. “Estou ficando  velho, preciso reduzir as atividades, exercícios e interesses” e, como

resultado, o corpo e o entusiasmo pela vida enfraquecem.

Mas se o envelhecimento é uma construção social, por que deve-ríamos sustentar esta compreensão negativa? Não existiriam manei-ras que nos permitissem ver o envelhecimento como um processo positivo, um período de crescimento, enriquecimento e desenvolvi-mento? Sentindo-nos desafiados por essa possibilidade, criamos um boletim eletrônico intitulado “Envelhecimento Positivo” [Positive  Aging ]. Nele incluímos um variado material de pesquisa que destaca

o potencial positivo do envelhecimento. Parece ter sido do agrado dos leitores em geral. Como declarou um leitor, “o boletim me per-mitiu manter a esperança de que continuarei levando uma vida gra-tificante por muito tempo”.

Os workshops que realizamos com pessoas interessadas no

en- velhecimento positivo também foram extremamente esclarecedo-res para nós. Desafiamos essas pessoas a reconstruírem os eventos mais temidos como, por exemplo, “declínio físico”, “doença crônica”, “perda da atratividade física” e “perda de entes queridos”. Os grupos foram, em geral, fantasticamente criativos, mostrando, por exem-plo, que uma doença crônica também oferece oportunidade para se avaliar a importância das pessoas amadas, para aprender a ser pa-ciente e tolerante, para deixar de lado as máscaras, para ter tempo de aprender, explorar e criar novas atividades (por exemplo, criar um site da família na Internet, participar de grupos de apoio e ajuda mútua, desenvolver uma nova habilidade ou escrever poemas). Eles nos ensinam que, juntos, podemos produzir novas realidades de en- velhecimento.

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Dos jogos de linguagem aos mundos possíveis

A ideia básica do construcionismo social é, ao mesmo tempo, simples e desafiadora. Outras dimensões vão se revelando à medida que exploramos âmbitos mais amplos das ideias cons-trucionistas. Começamos focalizando a linguagem, mas, como  veremos, nossos interesses se ampliam rapidamente para incluir

todas as formas de vida cultural. Linguagem: da imagem à prática

Por muito tempo consideramos a linguagem como uma for-ma de ifor-magem. Quando os cientistas fazem seus relatos acerca do mundo, supomos que suas palavras sejam o retrato fiel de suas ob-servações. Da mesma forma, procuramos noticiários que nos pro-porcionem uma descrição precisa dos acontecimentos. Embora possa parecer óbvio, o simples processo de dar nomes às pessoas – Frank, Sally, Ben e Shawn – é bastante emblemático. Porque es-ses indivíduos dificilmente vieram ao mundo com seus crachás pendurados. Os pais lhes atribuíram esses nomes e, neste sentido, foram arbitrários. Exceto, talvez, por questão de tradição familiar, Frank poderia ter sido chamado de Ben, Robert, Donald ou rece-ber qualquer outro nome. Mas, antes de tudo, por que lhes foi atri-buído um nome? A principal razão é a praticidade. Se, por exem-plo, precisarem falar a respeito do bem-estar de Sally, verificar se ela está se alimentando bem, se é preciso trocar sua fralda, ou se seu irmãozinho Frank está com ciúmes, seus pais utilizam um nome para realizar essas tarefas típicas de bons pais e, mais tarde, precisarão do nome para outros fins práticos, como matriculá-la na escola e perguntar a Sally por que chegou tão tarde em casa. De maneira geral, tanto as palavras que usamos como os nomes que

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atribuímos uns aos outros são usados para efetuar relações. Não são imagens do mundo, mas ações práticas no mundo.

Isto é fácil de entender no caso de expressões como “Pare!”, “Pe-rigo!” ou “Jogue a bola!”, em que podemos ver como os nomes pró-prios são úteis do ponto de vista social. Entretanto, já não fica tão óbvio no caso de notícias, descrições científicas ou quando se trata de contar a alguém como foi o seu dia; nestes casos, as palavras parecem funcionar como imagens e podem ser verificadas quanto à sua exatidão. Mas considere novamente: o fato de um relato pa-recer ser “exato” ou não é algo que irá depender de uma tradição da comunidade(lembre-se do exemplo dos vários “vocês” no início do capítulo). Como cada tradição tem seus próprios critérios de juízo, acreditar ou não que uma testemunha esteja falando a verdade é algo que dependerá do fato de ela utilizar ou não a mesma forma de linguagem que usamos. Se os incorporadores estão promovendo o desenvolvimento e criando novos bairros ou destruindo espaços abertos é algo que depende do que cada um entende por “desen- volver”. Neste sentido, “falar a verdade” é falar de uma forma que

confirme a tradição de uma determinada comunidade. Jogos de linguagem e os limites de nosso mundo

O famoso filósofo Ludwig Wittgenstein introduziu a metáfora do jogo de linguagem, que permitiu mostrar como as palavras que usamos se encontram embutidas em sistemas de regras ou em con- venções compartilhadas. Isto é algo que pode ser facilmente verifi-cado no caso da Gramática, onde existem regras comuns que nos impedem de dizer “ela vai em praia” ou “bola bateu ele”. Contudo, em qualquer cultura existem muitos jogos de linguagem diferentes, ou seja, existem muitas convenções locais usadas para descrever e

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explicar; uma vez que alguém faça parte de uma convenção local, sua liberdade de expressão fica radicalmente limitada.

Por exemplo, no caso dos diferentes “vocês”, cada grupo se baseia em um jogo de linguagem diferente, uma vez que os biólogos se en-contram mergulhados em jogos de linguagem diferentes dos jogos dos físicos, dos banqueiros ou dos sacerdotes. No momento em que precisam descrever “você”, cada um jogará fazendo uso de regras di-ferentes, cada um criará um significado em seu jogo. Porém, é arris-cado invadir qualquer uma dessas culturas e fazer uso das próprias regras; dificilmente você perguntaria a um biólogo sobre a alma de um sapo, ou pediria a um cabeleireiro a composição atômica de um fio de cabelo, sem que sua sanidade mental fosse posta em dúvida.

Por outro lado, não estamos aqui tratando apenas das regras de linguagem, já que as palavras se encontram normalmente incor-poradas às nossas atividades, na forma como nos movimentamos ou nos vestimos, ou mesmo nos objetos que carregamos e no que fazemos com eles. No jogo de xadrez, por exemplo, falamos em “peões”, “torres”, “xeque-mate” e assim por diante, mas ninguém sai na rua gritando “xeque-mate!” sem que as pessoas olhem de modo estranho. A frase só faz sentido quando as pessoas estão de-sempenhando certas atividades específicas e fazendo uso de obje-tos específicos. Isto também significa que as palavras que usamos informam as pessoas sobre as ações que elas devem realizar. Se al-guém aponta para um objeto e o chama de “cadeira”, você poderá se sentir à vontade para se sentar ali; mas se alguém chama este objeto de “antiguidade preciosa”, provavelmente você se sentará em outro lugar. Para o construcionista, somos convidados a uma dupla escuta: escuta do conteúdo, por um lado, e da importância, por outro. Nos termos de Wittgenstein, nossos “jogos de linguagem”

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encontram-se incorporados em padrões mais abrangentes de ati- vidade, que o filósofo chamou de formas de vida.De fato, biólogos, cabeleireiros e banqueiros estão engajados em diferentes formas de  vida. As palavras ajudam a manter essas formas de vida, ao mesmo

tempo em que as formas de vida conferem significado às palavras. Concomitantemente, essas formas de vida começam a formar os limites de nossos mundos.

O real como o bom

Aprendemos a diferença entre fatos e valores. Que os fatos são “reais”, declarações de evidência, objetivos, não influenciados por desejos, políticas, religião e assim por diante. Em contraste, apren-demos que os valores são frágeis e subjetivos, que não têm a menor base sólida e que representam simplesmente os investimentos parti-culares do indivíduo. odos deveríamos concordar com os fatos, em-bora cada um tenha direito aos próprios valores. O construcionismo social desafia esta distinção que vigorou durante muito tempo.

Para uma apreciação do argumento, analise três manchetes de jornal que descrevem os acontecimentos no momento em que o regime iraquiano de Saddam Hussein entrou em colapso em 2003:

• ropas americanas vitoriosas em Bagdá

• Império americano declara vitória no Iraque

• Forças iraquianas se escondem enquanto americanos

ocupam Bagdá

Cada uma dessas manchetes procura descrever “o que acon-teceu no Iraque”, mas todas diferem significativamente quanto às suas implicações dos acontecimentos. A primeira manchete, de um jornal americano, simplesmente considera os americanos vi-toriosos e expressa sua autocongratulação. A segunda, refletindo

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o ponto de vista de um jornal brasileiro, usa o termo “Império” em tom irreverente, indicando que a vitória é apenas uma preten-são e que o futuro pode se provar diferente. A última manchete, ecoando a visão de alguns países árabes, sugere que a “vitória” seria tão somente uma “ocupação” temporária e que as forças ira-quianas estariam se escondendo em meio à população civil, pron-tas para voltar após a partida das tropas americanas.

Os eventos narrados podem ser idênticos, mas a descrição dos “fatos” depende da tradição segundo a qual cada um estiver escre- vendo. Para o bem ou para o mal, cada tradição possui seus próprios  valores e, neste sentido, não existem descrições isentas de valores.

Você poderá objetar e dizer que “inquestionavelmente os fatos das ciências naturais são neutros em termos de valores”. Mas ana-lise mais uma vez: por que aceitamos como imparcial a ideia de que a ciência médica “cura” doenças? Isto ocorre porque, em geral, atribuímos valor a certas mudanças que os médicos ajudam a pro-mover no corpo humano e este valor é representado pela palavra “cura”. Se alguém descrevesse os mesmos procedimentos médicos como “interferências nos processos da natureza”, consideraríamos tal declaração parcial. Da mesma forma, se você reduzir o mundo à linguagem da física, da química ou da biologia, a linguagem da “ação moral” deixará de existir. Se continuar falando exclusivamen-te em exclusivamen-termos científicos, o lançamento de uma bomba atômica em Nagasaki ou a realização de experiências biológicas com prisionei-ros nos campos de concentração deixarão de ser questões de “as-sassinato” ou de “moral”, já que essas palavras são irrelevantes para a ciência como tal. Da mesma forma, forças militares podem atacar um país e simplesmente falar dos milhares de civis mortos como sendo um “dano colateral”. Certamente as ciências naturais

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pos-suem valores, porque analisam dados de forma a permitir que as fi-nalidades de previsão e controle possam se cumprir; seus discursos estão atrelados a esses propósitos. Se alguém permanecer exclusi- vamente no âmbito de uma determinada tradição, outras tradições

de valor serão consideradas irrelevantes ou serão reprimidas.

Pluralismo radical

A maioria das pessoas tende a concordar com o fato de que mui-tas de nossas categorias são construídas socialmente. odos sabe-mos, por exemplo, que existem infindáveis desacordos quanto ao significado de “justiça”, “moralidade” ou “amor”. Entretanto, muitas pessoas resistem às ideias construcionistas quando as mesmas se re-ferem ao mundo físico, ao mundo pré-linguístico do diretamente observável. É verdadeira ou falsa a afirmativa “a Lua é feita de quei- jo”? Que insensato seria responder “verdadeira”! E não é também óbvio que o mundo é redondo e que as estações mudam na Nova Inglaterra? Mas analise novamente: se considerarmos que o que é real deriva de acordos entre comunidades de pessoas, as afirmações da verdade devem se encontrar no âmbito dessas relações. Ou, mais uma vez, a verdade só pode ser encontrada dentro da comunidade; porque fora da comunidade há o silêncio. Neste sentido, os constru-cionistas sociais não adotam as verdades universais, nem a Verdade com “V” maiúsculo, às vezes chamada de Verdade ranscendental.

Naturalmente existe a verdade com um “v” minúsculo, ou seja, a verdade decorrente dos modos de vida compartilhados dentro de um grupo. Às vezes, esse grupo pode ser enorme, como o grupo que comumente declara que 2 + 2 = 4. Se uma criança disser que a resposta é 3, ela será imediatamente corrigida. Por outro lado, os matemáticos poderiam dizer que a resposta 4 está

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correta se a base do sistema utilizado for decimal; caso contrário, a resposta não é 4. A divisão de pessoas em dois sexos, masculi-no e feminimasculi-no, é algo comumente aceito. No entanto, há certas culturas que constroem um terceiro sexo, intermediário entre o masculino e o feminino. A noção de raças também é uma noção desenvolvida no âmbito das comunidades e, em algumas cultu-ras, as posições sociais foram hierarquizadas em sistemas de clas-ses ou de castas. Assim, ao perguntar se a Lua é feita de queijo, a resposta dependerá da comunidade onde estamos inseridos. Num sentido poético poderíamos inclusive dizer que a Lua é a deusa antiga, Diana.

A ideia de verdade em uma comunidade é de suma importância e, como vimos, todas as construções do verdadeiro estão ancoradas nas formas de vida, e todas as formas de vida se caracterizam por  valores. Isso significa que as afirmações de verdade encontram-se

invariavelmente vinculadas às tradições de valor. Assim sendo, numa comunidade de cientistas espaciais, é importante saber se é  verdadeira ou falsa a afirmação de que um foguete segue uma

de-terminada trajetória, pois esta verdade está vinculada ao valor que os mesmos cientistas atribuem ao fato de que os foguetes chegarão em segurança ao seu destino. Os psiquiatras procuram a verdade sobre a doença mental e tal busca está atrelada aos valores que os psiquiatras atribuem ao que consideram formas normais de vida.

Entretanto, nossos problemas começam quando afirmações lo-cais de verdade (v) são tratadas como verdade transcendental (V); quando uma comunidade acredita que o mundo foi criado pelo “Big Bang” e outra defende que o mundo foi criado pelo “Gran-de Deus” [Big God]; quando uma comunida“Gran-de afirma que o ho-mossexualismo é uma doença e outra insiste que se trata de algo

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normal; ou quando alguém declara que todos os comportamen-tos são predeterminados e outro afirma que as pessoas exercem o livre-arbítrio. al como na maioria das afirmações de saber, a humildade do local se vê substituída pela arrogância do universal. O construcionismo social nos exime da tarefa de decidir qual tradição, conjunto de valores, religião, quais ideologias políticas ou qual ética é a derradeira, transcendentalmente Verdadeira ou Correta. A partir de uma perspectiva construcionista, tudo pode ser válido para um determinado grupo de pessoas, e as ideias construcionistas convidam a um pluralismo radical, ou seja, a uma abertura para múltiplas formas de denominar e avaliar. Como não há fundamento com o qual reivindicar a superiori-dade de nossa própria tradição, somos convidados a adotar uma postura de curiosidade e de respeito para com as outras tradições. O que será que as outras tradições oferecem que não está contido em nossa própria tradição? Que aspectos de nossa tradição po-dem ser compartilhados e úteis para as po-demais?

Naturalmente, uma visão pluralista como esta é mais fácil de se sustentar em termos abstratos do que no corre-corre da vida coti-diana. Dificilmente ficaremos calados diante do que enxergamos como preconceito, opressão, injustiça e brutalidade. Contudo, para o construcionista, a tendência a eliminar aquilo que despre-zamos é um passo na direção errada. É a Verdade em operação. Preferencialmente, o construcionista tende a favorecer formas de diálogo a partir das quais possam emergir novas realidades e no- vos valores. O desafio não é encontrar a “única e melhor forma”, mas criar tipos de relação através dos quais se possa construir o futuro de maneira colaborativa. Voltaremos a abordar esses tipos de relação no Capítulo 3.

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Ciência versus religião?

A maioria dos cientistas acredita que existe um mundo real e um mundo material independente das pessoas e, além disso, acredita ser possível descobrir esse mundo por meio de uma medição sis-temática (telescópios, microscópios etc.), e representá-lo com pre-cisão por meio de sistemas simbólicos, inclusive pela linguagem e por fórmulas matemáticas. Os cientistas geralmente argumen-tam que, através de seus métodos, eles conseguem chegar cada vez mais perto do mundo como ele realmente é. O sucesso alcançado pelas iniciativas científicas, desde a erradicação de doenças fatais até o controle da energia atômica, levou muita gente a aceitar o poder da ciência como a revelação da Verdade sobre o mundo.

Nem todas as ideias construcionistas desvalorizam as iniciati- vas científicas, mas, certamente, desafiam a ideia de que a ciência revela a Verdade. ampouco os frutos da ciência justificariam tal reivindicação. Uma prática efetiva de terapia, por exemplo, não torna Verdadeiras as palavras utilizadas para descrever ou expli-car tal prática. Este é um ponto importante porque, durante sé-culos, foram usadas afirmações relativas à Verdade científica para desacreditar as afirmações das tradições espirituais ou religiosas. A ciência serviu de baluarte numa luta de poder em que o contro-le da sociedade foi arrancado à força das instituições religiosas. Diz-se que a ciência trata da verdade, enquanto as tradições reli-giosas e espirituais se baseiam em fantasias ou mitos.

O construcionismo proporciona uma nova maneira de ver este antagonismo. anto a tradição científica quanto a religiosa/espiri-tual têm suas próprias maneiras de construir o mundo; cada uma delas encerra determinados valores e aprova determinadas formas

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de vida. Não há forma de comparação direta entre a verdade das tradições e a verdade da ciência, visto que qualquer tipo de men-suração se dá necessariamente em uma realidade construída por alguma tradição. Não podemos medir a verdade do espírito por meios científicos, assim como não podemos avaliar a verdade da ciência através da sensibilidade espiritual. Além disso, as duas tra-dições produzem frutos de acordo com seus próprios termos: no caso das tradições científicas, são os foguetes espaciais e a energia atômica; ao passo que, para as tradições religiosas, são as institui-ções preocupadas com o ser humano e visões da boa moral. Nenhu-ma das duas pode produzir em seus próprios termos o que a outra oferece. O construcionismo nos pede que eliminemos a tradicional oposição Ciência versus Religião. Preferivelmente, adotamos uma posição de “ambas/e” quando somos convidados a explorar as con-sequências positivas e negativas de cada uma delas.

Foco do capítulo

Podemos ver o construcionismo social como um permanente diálo-go sobre as fontes daquilo que acreditamos ser o conhecimento do real, do racional, do verdadeiro e do bom – com efeito, tudo é sig-nificativo na vida. alvez seja útil pensar nas ideias construcionistas como sendo um guarda-chuva sob o qual se encontram abrigadas todas as tradições de significado e de ação. O guarda-chuva constru-cionista permite que nos movimentemos através das tradições para apreciar, avaliar, absorver, amalgamar e recriar. Ao mesmo tempo, é preciso reservar um lugar para as próprias ideias construcionistas debaixo desse guarda-chuva. Elas também devem evitar afirmações do tipo Verdade transcendental. Ao escrevermos estas palavras tam-bém nos empenhamos em gerar significado junto com você, leitor. A questão importante não é se nossas palavras são verdadeiras ou ob- jetivas, mas sim o que acontece com nossas vidas quando iniciamos esta forma de entendimento. Como esperamos poder demonstrar, existem muitos novos e promissores caminhos à frente.

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Da crítica à

reconstrução

Uma das coisas mais fascinantes sobre o nosso próprio compro-misso com as ideias construcionistas é a incessante criatividade que elas estimulam. Aqueles que buscam a Verdade procuram reduzir o mundo a um conjunto fixo e único de palavras. Declarar A Verda-de é congelar profundamente as palavras, reduzindo Verda-desta forma o reino das possibilidades para o surgimento de novos significados. Em contraste, os construcionistas preferem o diálogo constante e aberto, no qual há sempre lugar para outra voz, outra visão e outra revisão, e para uma expansão adicional na esfera da relação.

Neste capítulo, apresentamos uma série de grandes desenvol- vimentos nos diálogos construcionistas. Inicialmente, levamos a contribuição construcionista à reflexão crítica. Essa discussão nos prepara para considerar o grande desafio que as ideias nistas trazem à tradição ocidental do individualismo. O construcio-nismo privilegia, em nosso entender, a substituição do indivíduo como fonte de significado pela relação. Finalmente, iremos explorar algumas tentativas recentes de reconstruir o conceito de “self”.

Desconstrução e além

À medida que as ideias construcionistas tornaram-se mais dis-seminadas, também se disseminou a reflexão crítica sobre nossa  vida cotidiana. Por que isso aconteceu? Porque a partir do

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natureza das coisas — seja qual for o status social, as realizações ou a aparente genialidade do enunciador — é apenas “uma maneira de colocar as coisas”. A partir daí, também nos conscientizamos de que poderia ser de outra forma. Cada maneira de construir o mundo sustenta certas tradições, carregadas de valores particu-lares, ao passo que, simultaneamente, ignora tudo o que estiver fora delas. Assim, nossa curiosidade sobre quais tradições estão sendo respeitadas ou não estão sendo questionadas e que vozes se calam ou estão sendo abafadas é despertada. Começamos a nos questionar, por exemplo, que tipo de mundo é construído por um determinado noticiário, por um discurso político ou por um con- junto de textos científicos. Quem é favorecido, quem é

margina-lizado? Será que queremos realmente abraçar essa nova maneira de construir o mundo? Esta sensibilidade crítica tem se difundido cada vez mais no mundo ocidental. Estamos nos tornando mais sensíveis às formas pelas quais a televisão constrói vários grupos – afro-americanos, mulheres, italianos, idosos, e assim por diante. Alguns programas da mídia nos alertam sobre a forma pela qual os “fatos são tramados” por políticos e como a ideologia políti-ca se encontra sutilmente embutida nos noticiários. Os pais estão muito preocupados com as atitudes consumistas que a televisão passa aos filhos. udo isso aponta para um posicionamento crí-tico diante dos mundos construídos por outros, e, neste sentido, o conhecimento acadêmico construcionista apenas expressa uma ampla sensibilidade que já se encontra em movimento.

Na esfera acadêmica, essa orientação crítica tornou-se extrema-mente aguçada e, nesse sentido, as teóricas feministas exerceram um papel bastante relevante. Já suas primeiras contribuições nos fizeram perceber os vieses sutis subjacentes a palavras tais como “humanidade”, “policial” e “presidente”; aliás, atualmente, muitos

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questionam a representação masculina de Deus. Outros grupos que também sentem o peso opressivo da cultura dominante sobre suas formas de vida juntaram-se às acadêmicas feministas. Hoje, muito deste pensamento crítico está também presente nos Estudos Afro-americanos, nos Estudos Orientais, na eoria Queer*, nos Es-tudos Culturais, entre outros. No próximo capítulo, exploraremos o trabalho específico do movimento da “educação crítica”.

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Um poderoso exemplo de trabalho feminista crítico encontra-se no es-tudo de Emily Martin sobre os textos médicos que descrevem o processo da fertilização humana. A autora observa que a maioria das descrições populares segue um padrão de conto de fadas, no qual uma multidão de espermas ativos (os heróis da história) se esforça, lutando contra gran-des adversidagran-des para invadir a fortaleza e penetrar no Óvulo-Princesa. Enquanto isso, a princesa permanece passivamente sentada à espera do feliz e heroico vencedor do combate. A fertilização é o final feliz da bem-sucedida conquista do herói. Como ressalta Emily Martin, esta ex-plicação biológica da fertilização agrega autoridade científica ao antigo mito cultural do macho poderoso e ativo e da fêmea passiva e indefesa.

Quando assistimos um vídeo sobre o processo de fertilização, ve-mos virtualmente o esperma ativo penetrar no óvulo passivo. Mas será mesmo assim? Emily Martin indaga o que veríamos se nossa história retratasse um exótico Óvulo-Sereia que atrai os incautos e indefesos espermas para seu esconderijo? Enquanto o Óvulo-Sereia os atrai em sua direção, seleciona um dos espermas e destrói os ou-tros. Neste caso, o óvulo se transforma na força dominante e nossa  visão do que ocorreu no vídeo muda completamente.

* Queer Studies no original. A Teoria Queer defende que o gênero é uma construção social e que, por-tanto, as identidades, papéis e orientações sexuais dos indivíduos não são uma essência, tampouco estão relacionados a uma inscrição biológica na natureza humana; são antes formas socialmente va-riáveis de desempenhar um ou vários papéis sexuais. De modo geral, a Teoria Queer busca ir além das teorias feministas baseadas na dicotomia homem x mulher, dando maior atenção aos processos sociais amplos que sexualizam a sociedade como um todo de forma a heterossexualizar ou homos-sexualizar instituições, discursos, direitos. Neste sentido, a Teoria Queer se distingue dos estudos gays e lésbicos, pois considera que essas culturas sexuais foram normalizadas e não apontam para a mudança social. Daí o interesse em estudar o travestismo, a transexualidade e a intersexualidade, bem como as culturas sexuais não-hegemônicas caracterizadas pela subversão ou pelo rompimento

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Certamente, a segunda história é tão verdadeira quanto a primeira (e nem um pouco mais politicamente correta!). Ambas são construções narrativas do que está ocorrendo, embora as implicações científicas se- jam totalmente diferentes. A autora, uma médica antropóloga, consi-dera de fundamental importância que a natureza política de nossas in-terpretações seja entendida, inclusive porque o resultado disso também será uma biologia melhor. Na pesquisa tradicional sobre a infertilidade, atribui-se grande importância à mobilidade e à resistência do esperma. Ao adotarmos a segunda história – a do óvulo como sereia – a atenção se volta para as características do óvulo e à passagem que o esperma deve atravessar. No entanto, as duas histórias são limitadas. Será que não poderiam existir outras narrativas ou metáforas proveitosas para aumentar o nosso entendimento sobre a reprodução humana?

Os esforços críticos são extraordinariamente importantes para o desenvolvimento da democracia, pois frustram a tentati- va de qualquer grupo que pretenda dominar ou anular os outros

através de sua construção particular do real e do bom, além de multiplicar os controles recíprocos da sociedade que asseguram uma participação total. Por exemplo, sabendo que os principais  jornais reproduzem as notícias a partir de um ponto de vista

particular e que existem muito poucos jornais independentes, as centenas de sites e fóruns de discussão na Internet aumentam as possibilidades para a expressão pública. Além de estimular a democracia, muitos consideram esse importante trabalho como libertador. Quando as pessoas são capazes de ver os limites e os  vieses naquilo que comumente se aceita como óbvio, elas ficam

livres para considerar alternativas.

Contudo, ainda que indispensável para uma sociedade impar-cial, o impulso crítico também é perigoso, visto que a crítica ques-tiona a legitimidade do que é dito ou escrito. E, se suas palavras estiverem sendo questionadas, é possível que você seja apresentado

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como preconceituoso, egoísta, opressivo ou explorador. Não sur-preende o fato de que muitas vezes a raiva e o contra-ataque sejam a resposta à crítica. anto aquele que critica quanto o seu alvo, via de regra, acredita no bem que está fazendo, mas, rapidamente, a possibilidade de confiança é destruída e a hostilidade mútua preva-lece. Neste sentido, tornam-se necessárias novas formas de discur-so para substituir a tradição da crítica total. Como refletir de forma crítica sem demonizar? Como superamos as barreiras do “fazer sentido” isoladamente para construirmos, juntos, futuros mais pro-missores? Vislumbraremos algumas possibilidades no Capítulo 3.

Do indivíduo à relação

O que pode haver de mais óbvio do que a constatação de que nosso mundo se compõe de indivíduos separados, na maioria das vezes dotados da capacidade de tomar decisões conscien-tes? A partir desta constatação óbvia, favorecemos uma demo-cracia na qual cada cidadão adulto tem direito a voto, onde há tribunais, em que atores individuais são considerados respon-sáveis por suas ações, onde existem escolas para avaliar o tra-balho de cada aluno e organizações nas quais os funcionários são submetidos individualmente a avaliações de desempenho. É basicamente por isto que caracterizamos a cultura ocidental como individualista.

Entretanto, para um construcionista, o fato óbvio do “indi- víduo como um tomador de decisões consciente” não é algo tão

óbvio assim. Pelo contrário, vemos isto apenas como uma forma de construir o mundo. Aliás, a orientação individualista com re-lação à vida social não é tão antiga do ponto de vista histórico (possivelmente data de três séculos), e não é compartilhada pela

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maioria das pessoas no mundo. Não que isto faça com que esta orientação seja errada, mas nos permite dar um passo além de nossas certezas e indagar sobre os prós e os contras desta con-cepção. O que podemos ganhar com essa forma de construir o mundo? O que podemos perder? Quais são as alternativas?

Certamente pode-se dizer muita coisa em favor do individua-lismo, como, por exemplo, que a vida é significativa e importan-te para muitas pessoas, porque elas se senimportan-tem amadas, honradas e valorizadas pelo que são. E, para a maioria de nós, não existe melhor alternativa à democracia. Ao mesmo tempo, o individu-alismo tem suas desvantagens. Do ponto de vista individualista, somos instados a ver o mundo social como se ele, basicamente, fosse constituído de seres isolados. Aprendemos que não mos penetrar na mentes dos outros e, assim sendo, não pode-mos conhecer ou confiar totalmente nos outros. O pressuposto de que cada um está apenas preocupado consigo mesmo exige um treinamento moral para que passemos a nos preocupar com os demais. A autoavaliação transforma-se na dimensão essencial em torno da qual vivemos nossas vidas, com medo de sermos tratados com desdém, procurando ser sempre melhores do que os outros. Num mundo individualista, as relações são relegadas a um segundo plano, porque são tratadas como artifícios que, pro- vavelmente, demandam tempo e que são essenciais apenas nos

casos em que não somos autossuficientes.

É exatamente nesse ponto que as ideias construcionistas vão deslanchar. Se uma determinada construção do eu ou do mun-do vai contra o nosso bem-estar, somos instamun-dos a desenvolver alternativas. De fato, a partir da perspectiva construcionista, são as relações, e não os indivíduos, que constituem a base da

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so-ciedade. Vamos ampliar esta possibilidade, não porque a visão relacional seja a verdadeira, mas porque, ao entrarmos nessa construção, podemos promover novas e mais promissoras for-mas de ação.

O significado como ação coordenada

Geralmente falamos de significado como algo que mora nas men-tes dos indivíduos. Pressupomos que as palavras sejam a expressão externa das elucubrações internas da mente. Quando perguntamos a alguém “O que você quer dizer com isso?”, esperamos que o in-terlocutor esclareça seus pensamentos privados. Esta concepção de significado encontra-se próxima ao cerne da tradição individualis-ta e considera o indivíduo como a fonte de todo significado. Entre-tanto, além de seu viés individualista, esta concepção também gera um problema insolúvel para o entendimento humano, porque, se o significado se encontra “dentro da mente do outro” e a única pista “do que acontece lá” são expressões verbais, jamais teremos a capa-cidade de entender o outro. Nunca chegaremos a verificar se esta-mos certos ou não, a não ser por meio do que o outro externaliza. Contudo, essas externalizações nos deixam no mesmo dilema, pois como poderemos saber o que significam? Entramos então no que os estudiosos chamam de “círculo hermenêutico”, um interminável círculo no qual cada resposta simplesmente cria outra pergunta. A melhor forma de escapar do círculo é abandonar a construção de “um mundo interno” onde o significado é criado. Deixamos de nos concentrar no significado dentro da mente e focalizamos a manei-ra pela qual o significado é criado na relação. Passamos do “entre” para o “dentro”. Mas como podemos entender o significado como algo relacional?

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Considere as seguintes proposições:

1. Os enunciados de um indivíduo não têm significado em si mesmos.

Um homem passa por uma mulher na rua, sorri e diz: “Oi, Anna!” Ela não ouve a saudação e segue seu caminho em silên-cio. O que ele disse, então? Certamente pronunciou duas pala- vras. Entretanto, por maior diferença que isso faça, ele poderia

ter escolhido duas sílabas quaisquer ou simplesmente poderia não ter dito nada, pois, sozinho, ele não constrói um significado. 2. O potencial de significado é concretizado através de uma

ação complementar.

As expressões de um indivíduo começam a adquirir sig-nificado quando outro indivíduo responde, ou seja, quando a outra pessoa agrega uma ação complementar. Se Anna tivesse respondido: “Oi! Bom dia...”, ela teria feito das palavras dele um cumprimento. Comunicar requer que outros nos concedam o privilégio de um significado. Se os outros não tratarem as nos-sas expressões como comunicação (dizendo, por exemplo, “Isto não faz absolutamente o menor sentido”), se não conseguirem se coordenar com relação ao que oferecemos (“Isto é uma total idiotice”), não teremos produzido o menor significado.

Combinando essas primeiras duas proposições, vemos que o significado não reside em nenhum dos dois indivíduos, mas somente na relação de ambos. anto a ação quanto o comple-mento precisam estar obrigatoriamente coordenados para que o significado ocorra. É como um aperto de mãos, um beijo, ou dançar tango: são sempre necessárias duas pessoas.

3. A própria ação complementar requer um complemento. Qualquer complemento age duplamente: em primeiro lugar, conferindo significado àquilo que o precedeu e, em se-gundo, como uma ação que, por sua vez, também requer com-plemento. Com efeito, o significado conferido permanece em

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suspenso até ser também ele complementado. Considere uma mulher em terapia que fala de sua sensação de desamparo por-que se sente incapaz de lidar com um marido agressivo e com um emprego insuportável. O terapeuta pode tomar essas verba-lizações como expressões de depressão, respondendo “Sim, eu entendo que você está deprimida; fale mais a respeito”. Enquan-to a paciente não apresentar outra questão, este permanecerá inativo em termos de significado. Se a paciente simplesmente ignorar o que foi dito, terá negado um significado às palavras do terapeuta. Por outro lado, se ela disser, “Eu não disse que estou deprimida; estou apenas com raiva!”, estará reduzindo a declaração do terapeuta a uma afirmação arrogante. Porém, se a paciente disser “Sim, estou terrivelmente deprimida...”, a de-pressão se torna uma realidade que poderá ser trabalhada em conjunto com o terapeuta. De uma forma geral, podemos dizer que vivemos nossas vidas dialogicamente. Fazemos sentido só em função daquilo que precede e daquilo que segue.

4. As tradições nos oferecem possibilidades de significado, mas não determinam o que deve ser.

É importante reconhecer que as palavras e as ações com as quais contamos para juntos gerarmos um significado mui-tas vezes provêm de um outro tempo e de um outro lugar. Se alguém o abordasse e começasse a emitir uma série de vogais, “aaaaa, eeeee, oooo, uuuu...”, com certeza você ficaria intrigado e talvez até procurasse a saída mais próxima, porque as ações desse indivíduo não fazem parte de qualquer sequência coor-denada que seja familiar a você. Com efeito, nossa capacidade de juntos produzir sentido hoje baseia-se numa história, muitas  vezes com muitos séculos de existência. Neste sentido, devemos a um histórico de coordenações nossa capacidade de nos apai-xonar, de apoiar uma causa justa ou de acompanhar com prazer o desenvolvimento de nossos filhos. Em cada um desses casos, tomamos emprestados os tesouros das relações passadas.

Mas nós não somos determinados pelo passado. Combinações originais de ação/complemento estão em constante movimento.

Referências

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