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Antonio Candido

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Academic year: 2020

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Texto

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Apresentação

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or qualquer lado que se queira abordar, a figura de Antonio Candido es-tará sempre marcada por grandeza e excelência. Maior crítico literário vivo do Brasil, provavelmente um dos melhores em qualquer língua em seu tempo, figura seminal no debate historiográfico acerca da Literatura (não só no Brasil), grande professor, orientador capaz de abrir caminhos para seus orientandos, Candido é também uma referência como homem público – mesmo tendo tido pouca expe-riência em posições formais do mundo político e sindical, pelo menos desde os anos 60 transformou-se numa baliza para o pensamento democrático de esquer-da. Isso sem falar de seus livros, capazes de durar para muito além das expectati-vas do autor, convertendo-se em marcos da Crítica e da Teoria Literária na língua portuguesa.

Nascido no Rio em 1918, criado em Poços de Caldas, Minas Gerais, Antonio Candido de Mello e Souza teve uma vida marcada pela cultura letrada, a começar por seus pais, grandes leitores e orientadores da vocação dos filhos. Vai residir em São Paulo na juventude, e lá estuda na nascente Universidade de São Paulo, a pri-meira instituição superior realmente moderna do país. Tão moderna que abriga-va um curso como Ciências Sociais, que será a formação básica de Candido. Ela-bora um extraordinário trabalho de doutoramento em Sociologia, recentemente republicado (Os parceiros do rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transfor-mação de seus meios de vida). Trata-se de um estudo da vida social e mental de

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uma pequena comunidade de agricultores, perto do rio que dá nome ao trabalho; e a época do estudo diz muito sobre o país: elaborada a pesquisa entre os anos de 1947 e 1954, logo depois da onda globalizante da Segunda Guerra, é publicada no último desses anos, quando a capital paulista comemorava 400 anos de fun-dação. Em plena euforia urbana, Candido estendia seu olhar analítico mas tam-bém amoroso para os confins do mundo rural, que mudava irreversivelmente.

Pela mesma época, entre 1945 e 1951, Candido está, por conta própria, estu-dando a Literatura Brasileira, com vistas a escrever outro de seus trabalhos que se transformará em clássico absoluto, a Formação da literatura brasileira: momentos de-cisivos. Publicada a obra em 1957, ela logo chamou a atenção para uma série de

sin-gularidades, a começar, talvez, pelo método de estudo: pela primeira vez alguém se dispunha a relatar uma história da literatura nacional a partir de pressupostos cien-tíficos claros, trazidos do mundo da Sociologia e devidamente temperados pelo olho clínico do crítico literário que Candido já era havia bastante tempo, desde os primeiros anos 40, quando começou a exercer crítica militante na imprensa.

(Não custa lembrar, entre parênteses, que a geração intelectual de Candido é a mesma de dois outros estupendos pensadores formativos, que sucedeu no

tem-po à geração de Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Vianna Moog e Augusto Meyer. Com Candido e sua Formação vieram ao mundo

a obra de Raymundo Faoro, Os donos do poder: formação do patronato político bra-sileiro, de 1958, e a Formação econômica do Brasil, de 1959, do recém-falecido –

lamentavelmente falecido – Celso Furtado. A companhia não podia ser melhor, nem mais significativa.)

Nos últimos anos da década de 50, quando já ministrava aulas de Sociologia na mesma USP em que se formara, resolveu migrar para a área da Literatura. A transição não se deu sem percalços, mas o que importa é que o saldo resultou amplamente positivo: a área letrada ganhava um professor e orientador habilita-do, que faria uma carreira notável. E publicaria vários livros que de imediato se inscrevem no restrito grupo das obras decisivas para entender o país, em sua li-teratura e em sua sociedade. Devem constar dessa lista pelo menos Brigada ligeira

(1945), Ficção e confissão: estudo sobre a obra de Graciliano Ramos (1956), Tese e antítese (1964), Literatura e sociedade (1965), Vários escritos (1970), Teresina etc.

(1980), A educação pela noite e outros ensaios (1987) e O discurso e a cidade (1993),

entre outros. (Para qualquer orientação, deve-se recorrer à Bibliografia de Antonio Candido (São Paulo: Duas Cidades/Editora 34; 2002), excelente trabalho

organi-zado e anotado por Vinicius Dantas.)

A entrevista que segue fala por si, mas vale a pena esclarecer algumas circuns-tâncias de sua realização. Telefonei para o professor perguntando de sua disponi-bilidade para uma entrevista, e ele se prontificou a la. Ofereci-me para fazê-la ao vivo, em São Paulo, mas ele preferia por escrito. Enviei então, em fevereiro de 2004, por correio, um conjunto de perguntas. Ainda antes do prazo combina-do (agosto), o professor me liga para anunciar que estava com o trabalho pronto (datilografado) e para, ainda antes de enviar a entrevista, ajustar alguns termos.

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Primeiro, pediu para suprimir o tratamento de “senhor” que estava na minha redação (“Vocês jovens acham que precisam nos tratar assim, mas nada disso, pelo menos quanto a mim”, disse o sempre gentil professor). Segundo, pediu permissão para, digamos assim, editar algumas perguntas. O resultado é excelen-te, melhor do que eu poderia formular. Os aspectos que ele preferiu eliminar das perguntas originais eram quase sempre elogios que eu fazia a ele. Antonio Can-dido é um sujeito da melhor qualidade até na polidez. (Na resposta à penúltima pergunta, tal mérito se verifica também nas entrelinhas: sabe-se que uma das de-cepções de Candido ocorreu quando determinado colega de pesquisas, naqueles tempos, por assim dizer se adonou de material que ele havia recolhido e tencio-nava trabalhar. Mas é claro que o professor não diz nada disso aqui, e se se sabe dessa triste passagem é por outras fontes.)

Na carta que enviei com a entrevista, anotei uma explicação que cabe repetir aqui: “Procurei fazer algumas perguntas de interesse mais imediato para o leitor daqui, do Sul, o que explica (e talvez desculpe) a insistência nos temas locais. Da mesma forma, tentei formular questões que me parecem não muito feitas em ou-tras oportunidades.” Como o leitor poderá ver em seguida, de fato eu forcei um pouco a mão para que o professor Candido abordasse temas que nos afligem, aqui no Rio Grande do Sul, nomeadamente aquele que atende pelo nome de regionalis-mo. Assim como pedi desculpas antecipadas a Candido por investir tanto na

ques-tão, peço agora ao leitor, que talvez preferisse ver a inteligência do entrevistado ilu-minar temas talvez mais subidos, quem sabe Proust, quem sabe Machado de Assis. O que se vai ler, enfim, é o que Antonio Candido respondeu, ipsis litteris. E é

da maior qualidade.

Luís Augusto Fischer, novembro de 2004.

Em passagem que já é clássica no tema, Oswald de Andrade cita a sua opinião sobre a conveniência de escrever memórias, porque uma literatura só alcança a maioridade com elas. A pergunta inevitável é se está seguindo esta convicção e, portanto, prepa-rando as suas.

AC: Não. Nunca pensei em escrever memórias, e agora, mesmo que quisesse não haveria mais tempo nem cabeça. A minha observação a Oswald de Andrade levava em conta o fato de ser ele um eminente escritor, cuja vida cheia de mo-vimento e interesse estava ligada de maneira essencial a uma fase importante da literatura brasileira. Não é o meu caso. Mas já tenho dado entrevistas de cunho autobiográfico, como esta.

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Algumas figuras centrais do século 20 foram de seu convívio, como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Emilio Sales Gomes, Lúcia Mi-guel Pereira entre outros. Poderia lembrar, mesmo sumariamente, quais foram as mais importantes e por quê?

AC: Tive de fato a oportunidade de conhecer gente notável, inclusive, en-tre os que citou, Mário de Andrade. As nossas relações foram cordiais, mas ce-rimoniosas, além de durarem relativamente pouco, porque ele morreu cedo. De Oswald fui amigo e com ele convivi bastante, apesar de desentendimentos cau-sados a meio caminho por artigos restritivos que escrevi quando saiu Marco zero.

Mas ele superou isso e acabei padrinho do seu filho caçula, Paulo Marcos, que in-felizmente morreu bem moço num desastre. A minha geração sofreu de maneira geral o impacto do modernismo, mas não creio que pessoalmente eu tenha sofri-do influência de Mário (como já vi alegasofri-do), e muito menos de Oswald. Quansofri-do a afinidades, o meu grupo tinha maiores com Mário, estudioso metódico e bem informado, não um improvisador de gênio como Oswald.

Com Sérgio Buarque de Holanda tive intimidade e sua casa foi das que mais frequentei. Ele gostava de receber e tinha uma conversa incomparável pelo hu-mor, a soma de experiência interpretada de maneira original e a incrível cultura. Com ele aprendi muito. Aprendi também com Caio Prado Júnior, de quem fui amigo e com quem convivi bastante, sobretudo a partir dos anos de 1960.

Lúcia Miguel Pereira é um caso diferente. Sobrinha de minha mãe, era uma prima muito mais velha à qual fui ligado afetivamente desde sempre, embora a visse relativamente pouco, porque morava no Rio, de onde é a minha família ma-terna. Quando eu era menino ela me dava livros, mostrava edições bonitas e logo passou a contar coisas da vida literária. Não é impossível que tenha sido o meu modelo inconsciente.

Mas a vida intelectual não se alimenta só de relações famosas. A minha esteve sempre entrelaçada de maneira profunda com pessoas sem projeção, que foram decisivas, a começar por meus pais, ambos cultos e excepcionalmente atuantes na formação dos filhos. Fora da família menciono, por exemplo, Dona Maria Ovídia Junqueira, minha professora no Ginásio Municipal de Poços de Caldas, que me iniciou na cultura de língua inglesa, me deu o hábito de ler a Bíblia (era

protestante) e me fez ler precocemente obras que em geral só são lidas mais tar-de, como peças de Shakespeare. Nesse ginásio tive dois colegas cujo convívio foi importante no meu amadurecimento: os irmãos Antonio Carlos e José Bonifácio de Andrada e Silva, sobretudo este. Eles revelaram Casa grande & senzala, mais

tarde Raízes do Brasil, reforçaram a inclinação pelo socialismo, contribuíram para

incrementar o interesse pela literatura brasileira do momento, quebrando um pouco o meu hábito de preferir os clássicos, adquirido durante longa estadia na França com minha família.

A partir da Universidade fiquei devendo muito aos amigos do chamado “grupo de Clima”, título da revista que fundamos em 1941 e durou com

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in-terrupções até 1944. Deles você mencionou Paulo Emilio, que foi o meu guru político. Ele não apenas me livrou de um eventual stalinismo, orientando-me para o socialismo independente, mas me levou à militância a partir de 1942 ou 43 (não lembro bem) em pequenos grupos de oposição à ditadura do Estado Novo. Apesar da minha falta de gosto e de capacidade para a política, Paulo me convenceu de que ela era uma espécie de dever imperativo da nossa geração. Aí, entrei nela e nela fui ficando mais ou menos até hoje, de maneira marginal e intermitente, enquanto o meu guru foi para a França em 1947, só voltou em 1954 e nunca mais teve atividade política regular, embora tenha sempre agido politicamente em caráter individual, pela escrita e pelos atos. Paulo era genero-síssimo e solidário, tinha uma personalidade aberta e única pela originalidade e foi com certeza o mais fascinante dos meus amigos. Mas no fraterno grupo de

Clima devo destaca Gilda de Moraes Rocha, com quem casei e vivo há mais de

sessenta anos, e Décio de Almeida Prado. Foram eles os meus diálogos princi-pais ao longo da vida.

Como era sentida, se é que era, a tensão entre Mário e Oswald?

AC: Falava-se a respeito, mas até hoje não sei qual foi a causa precisa da rup-tura. E nunca ouvi um falar mal do outro. Pelo contrário. Oswald era generoso, impulsivo e imprudente, dando a vida por uma gozação engenhosa, mesmo que isso importasse em comprometer amizades. Parece que fazia piadas sobre a ale-gada heterodoxia sexual de Mário de Andrade, mas quando comecei a conhecer a vida literária da cidade, a partir de 1939, tendo vindo de Minas em 1936, isso já era coisa do passado. O que sei é que Oswald tentou por vários modos fazer as pazes, mas Mário foi sempre inflexível. Quando ele morreu, em 1945, Oswald teve uma pungente crise de desespero. Pouco antes dele próprio morrer, em 1954, me chamou para dizer que considerava Macunaíma a obra culminante do

modernismo e a realização de tudo o que idealizara.

Lembra se, e como, Mário de Andrade reagiu às insultuosas insinuações de Jorge Ama-do contra ele no prefácio Ama-do ABC de Castro Alves?

AC: Não tenho a menor ideia nem lembro desses insultos. Lembro que na

Vida de Luís Carlos Prestes, editada em espanhol em Buenos Aires, Jorge Amado

escreveu contra os modernistas coisas desagradáveis e, aliás, de completa obtu-sidade, que atenuou estrategicamente em seguida na edição brasileira. Nas suas malhações poupava sempre Oswald de Andrade, então seu correligionário, mas quando este rompeu com o Partido Comunista, em 1945, creio que cortaram re-lações.

A propósito da atmosfera daquele tempo, uma curiosidade: classificando há muitos anos os papéis de Oswald depositados no Instituto de Estudos Brasilei-ros da Universidade de São Paulo sob minha custódia, encontrei num dos

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cader-nos de notas a informação de que quando Pablo Neruda esteve aqui em 1945, para o famoso comício Prestes, organizou-se um encontro dele com intelectuais. Oswald incluiu o meu nome, mas Jorge vetou, alegando que eu era trotskista, pa-lavra que frequentemente ia ficando elástica a ponto de perder o significado. Para os mais simples podia ser sinônimo de traidor, policial, etc.

Acho que vale a pena mencionar também um fato que talvez a sua geração desconheça e é o seguinte: quando houve o Pacto Germano-Russo de agosto de 1939, raríssimos stalinistas chegaram a deixar o partido, mas a maioria absoluta aceitou a coisa, como aceitava qualquer palavra de ordem ou atitude emanada da União Soviética, e muitos levaram o zelo a ponto de elogiar Hitler. Foi nes-se contexto que Jorge Amado e Oswald de Andrade colaboraram no jornal Meio Dia, do Rio, dizem que subvencionado pela Embaixada Alemã. Mário desferiu

então a sua seta no artigo “Elegia de abril”, escrito a nosso pedido para abrir o primeiro número de Clima, numa alusão hoje incompreensível, mas claríssima

no tempo:

“E se vê intelectuais, sem o menor respeito pelas glórias conquistadas, mu-darem de diretrizes, da meia-noite para o meio-dia, servindo aos interesses mais torvos”.

O jogo de palavras fica ainda mais evidente quando se sabe que Diretrizes era

o nome de uma revista de esquerda do Rio.

Que cidade era a São Paulo dos anos de sua formação? Que marcas lhe parecem mais sensíveis na mudança para a metrópole em que ela se transformou?

AC: São Paulo tinha pouco mais de 1 milhão de habitantes quando vim es-tudar aqui. Era uma cidade encantadora, limpa, segura, em vias de passar pela admirável transformação cultural ligada ao predomínio de membros do antigo Partido Democrático, com Paulo Duarte orientando o prefeito Fábio Prado neste setor, com a extraordinária obra de Mário de Andrade no Departamento de Cul-tura, com a Faculdade de Filosofia da USP inaugurando em nível superior estu-dos que até então não eram cultivaestu-dos nele (estuestu-dos literários, filosofia, sociolo-gia, história, etc.), com a Universidade no seu todo começando a fazer da cidade o maior produtor de conhecimento do país.

Eu e toda a minha geração nos beneficiamos desse sopro renovador, que o Es-tado Novo instaurado em novembro de 1937 atrapalhou só em parte (causando, por exemplo, a demissão de Mário de Andrade e a interferência nos rumos de seu trabalho), mas não chegou a abafar. Eu pude não apenas cursar os dois anos da 1ª seção do Colégio Universitário, excelente instituição abolida depois da Reforma Capanema, mas, a seguir, na Faculdade de Filosofia, ser durante três anos aluno de professores franceses de qualidade, dois dos quais tiveram grande influência em mim: Roger Bastide e, sobretudo, Jean Maugüé. Depois São Paulo se desen-volveu com rapidez assustadora a partir dos anos de 1950, virando a metrópole equipadíssima em todos os setores que é hoje, numa escala com a qual nem se

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sonhava nos anos de 1930 e 1940. Mas para mim estes foram os momentos de maior encanto, porque eram os das descobertas e das revelações, e tudo estava se fazendo sob os nossos olhos. Creio que nós vivemos o último dos vagalhões sus-citados em 1922 pela Semana de Arte Moderna, que tinha ocorrido fazia apenas quatorze anos quando vim para São Paulo.

Lembra-se da chamada Revolução de 32? Havia na época algum sentimento antigetu-lista? Chegava a ser, mesmo difusamente, antigaúcho? Era explícito? Como avaliar as causas desse sentimento?

AC: Em 1932 eu tinha 14 anos, morava em Minas e meus pais eram contrá-rios à revolução paulista. Quando cheguei aqui, três anos e pouco depois, ainda ouvi muita coisa restritiva a mineiros e gaúchos, porque os paulistas achavam que Minas e o Rio Grande do Sul os haviam traído não entrando no levante ao seu lado. Em geral a birra não era grave, salvo em pequenos grupos de separa-tistas reunidos no Clube Piratininga, mas podia ter aspectos curiosos. Por exem-plo: um deputado propôs na Assembleia Legislativa que, para serem funcionários estaduais, os naturais de outras unidades da Federação precisariam provar pelo menos dez anos de residência aqui, como se fossem estrangeiros... E havia extre-mados que recusavam comer queijo de Minas e linguiça do Rio Grande!

O sentimento contra Getúlio Vargas era forte e cresceu ainda mais com o gol-pe de 1937. Eu próprio comecei a militar politicamente em função da resistência ao Estado Novo. Em setores das classes dominantes daqui e de Minas havia um antigetulismo que se considerava fruto do amor à democracia, mas era também ressentimento pela entrada triunfal do Rio Grande nas esferas da liderança do país, rompendo o monopólio oligárquico do “café-com-leite”. Além disso, São Paulo foi sempre um estado de muito orgulho bairrista, como é o Rio Grande, e nisso as velhas famílias se irmanavam aos neobrasileiros, oriundos da imigração e apegados estritamente ao lugar de nascimento. Para estes o sentimento nacio-nal era sobretudo sentimento local, levando a certo menosprezo pelo resto do país. Trata-se de uma variante daquilo que há meio século atrás vi definido no Sul como Lokalpatriotismus. A Revolução Constitucionalista exacerbou esse

sen-timento, fundindo antigos e novos paulistas.

Ao longo do tempo os seus escritos têm se ocupado com o regionalismo. Numa perspec-tiva de conjunto, que papel lhe parece que ele desempenhou na literatura brasileira?

AC: A questão tem vários aspectos e já escrevi sobre alguns deles. Esquema-ticamente seria possível, forçando um pouco, identificar três modalidades su-cessivas no regionalismo brasileiro. Primeira, a de predomínio da incorporação; segunda, a de predomínio da exclusão; terceira, a de predomínio da sublimação.

No tempo do Império ele foi um instrumento de revelação do Brasil aos brasi-leiros, incorporando à experiência do leitor das cidades o espetáculo da vida nas

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regiões afastadas. Penso em autores como José de Alencar e Bernardo Guimarães. O ânimo de integração por parte deles pode ser verificado na maneira de escre-ver: ambos praticavam uma escrita ajustada à norma culta, com o mínimo indis-pensável de modismos regionais, o que aproximava o homem rural do homem urbano, mostrando a unidade sob a diferença.

No tempo da Primeira República e do incremento da urbanização o regio-nalismo foi, ao contrário, fator de afastamento e mesmo estranhamento entre ambos, como se a intenção dos autores fosse marcar a diferença, acentuando o exotismo do homem rural e, assim, marcando a condição superior do homem urbano. Foi um processo de folclorização do regionalismo, visível na diferença entre o discurso civilizado do autor e o discurso rústico, quase caricatural dos personagens, excluídos de certo modo da norma culta. Era o tempo dos detestá-veis “ocê tá bão?” e da redução reificadora do campesino a elemento pitoresco da paisagem. Penso em autores como o Coelho Neto de Sertão.

Depois de 1930 houve uma fecundação do regionalismo em duas direções, que ocorreram sucessivamente. A primeira foi devida sobretudo a ficcionistas do Nordeste e consistiu em superar a alienação folclórica por meio da consciência social, que problematizou a vida rural e, por outro lado, procurou aproximar o homem rústico do homem da cidade, invertendo de certo modo a natureza do discurso da fase anterior, ao tentar uma injeção equilibrada da simplicidade co-loquial na norma culta. A segunda direção, que denominei “super-regionalismo” (pensando em “surrealismo”, ou “super-realismo”) foi uma literatura de subli-mação, na medida em que incorporou o experimentalismo modernista. Um au-tor como Guimarães Rosa privilegiou a função poética da linguagem e viu a sua tarefa como invenção, não reprodução pitoresca. Coisa paralela se deu em ou-tras literaturas da América Latina, o que levou o saudoso crítico uruguaio Ángel Rama a apontar a inesperada originalidade dessa solução paradoxal, consistente em fundir as práticas de vanguarda (que encaram o presente e são esteticamente revolucionárias) com os temas regionais (que tendem ao realismo e a uma preser-vação conservadora do passado).

A tipologia acima é aproximativa e visa sobretudo às predominâncias, mas é preciso lembrar que as três tendências podem ocorrer misturadas em grau maior ou menor. Pensemos, por exemplo, que na fase dominada pelo pitoresco alie-nante Simões Lopes Neto prenuncia a etapa posterior graças à sua inventividade peculiar.

No prefácio de Os parceiros do Rio Bonito há uma anotação lateral que nos interessa de perto sobre o seu conhecimento da vida rural teuto-brasileira em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Como foram esses contatos?

AC: A sua pergunta me fez ver que fui leviano ao escrever aquilo. No começo do decênio de 1950 apenas passei de raspão por zonas rurais do Rio Grande do Sul. Em Santa Catarina foi diferente. Na mesma altura estive lá com um grupo de

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estudantes a fim de investigar o papel da escola na aculturação, ou na resistência a ela. Estivemos algum tempo na zona de Blumenau e depois em Florianópolis, onde colhemos material de arquivo, entrevistamos especialistas e várias pessoas. A seguir voltei com dois colegas e vi mais coisas em outros lugares do interior, sempre visando àquele tema, que afinal não foi elaborado. Em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul estive mais tarde algumas vezes com outras finalidades, mas não em áreas rurais.

Uma última pergunta: como ocorreu a síntese da sua formação sociológica e da sua car-reira na área de literatura? Há algum ponto claro de articulação?

AC: Não sei se houve propriamente síntese. Nos anos de 1930 a sociologia era no Brasil uma disciplina de ponta e passou a se infiltrar nos estudos sobre a sociedade e a cultura, inclusive os literários. Foi uma voga imperativa, como se-ria nestes, bem mais tarde, a da linguística. Eu escolhi o curso de Ciências Sociais porque desejava penetrar nos seus mistérios e porque entendia que deste modo estaria compreendendo melhor o socialismo e a sociedade brasileira. Ponto de referência fundamental neste último caso foi Casa grande e senzala, que fascinou,

literalmente fascinou a minha geração.

Quando comecei a fazer crítica em Clima (1941) não tinha grande

preocupa-ção teórica e ia pelo rumo, manifestando as impressões sobre os livros. Mas logo comecei a me interessar pela função social da literatura, porque estava me im-pregnando cada vez mais de leituras políticas. E esta foi a minha bússola quando me tornei em 1943 “crítico titular”, como se dizia, da Folha da Manhã,

indica-do por meu amigo Lourival Gomes Machaindica-do. A partir daí ganhei a etiqueta de “crítico sociológico” que até hoje é usada para me caracterizar. Mas ao escrever de 1944 a 1945 uma tese sobre Sílvio Romero, senti que a crítica de inspiração sociológica pode ser limitadora do conhecimento adequado das obras, se for concebida como ponto de vista obrigatório. Passei então a valorizar a autonomia estética, não a dependência, o que me valeu um virulento artigo anônimo, es-crito por um conhecido meu que era trotskista, acusando-me de capitular ante a pressão da burguesia... A partir de então fui me inclinando cada vez mais no sentido de uma crítica integrativa, já que a variedade dos textos aconselha a va- riedade das abordagens. Ecletismo? Quem sabe. No entanto, conservei não ape-nas o interesse pela relação entre literatura e sociedade, mas procurei determinar como, na ficção, sobretudo a realista, os estímulos externos (psíquicos, sociais) se tornam realidade interna, definindo a estrutura específica das obras. A minha tentativa neste caso é evitar a tradicional crítica paralelística, que expõe as con-dições sociais (por exemplo) e depois procura verificar a sua ocorrência no tex-to, que deste modo corre o risco de ser reduzido a uma espécie de documento. O que procuro é, sobretudo, mostrar efetivamente o que afirmo no nível teóri-co. Como sabe, em crítica é frequente a brilhante formulação teórica afastada da prática banal.

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Termino contando que fui assistente de Sociologia na USP durante dezesseis anos, mas exercia ao mesmo tempo a crítica literária, de modo que escrevi simul-taneamente, embora de maneira alternativa, Formação da literatura brasileira e Os parceiros do rio Bonito. Mas a minha preferência esteve sempre ligada à literatura,

de modo que a partir de 1958 larguei a sociologia e passei de armas e bagagens para os estudos literários.

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