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A busca por reconhecimento através da educação e os entraves socioculturais de uma classe de cor

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Academic year: 2021

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Marcella de Campos Costa

Kleber Aparecido da Silva

classe de cor

Graduandos do curso de Sociologia e Política da Escola de Sociologia e Política de São Paulo

Resumo

Através da obra de Lima Barreto Recordações do escrivão Isaias Caminha analisamos de que forma a

educação, no contexto brasileiro, é vista como uma ferramenta emancipadora, mas que também acaba por reproduzir velhas estruturas sociais e raciais. A herança escravista e a divisão por classes de cor ainda se fazem presentes no Brasil, podendo ser percebidas na educação e na cultura, por exemplo, pelos entraves da linguagem e do debate sobre as cotas raciais. Isaias Caminhas, personagem de Lima Barreto, demonstra a trajetória de muitos jovens brasileiros, em sua maioria vindos das periferias, que tentam trilhar um caminho de ascensão social, mas que ainda hoje são barrados pelos preconceitos e dificuldades impostas pela sociedade.

Palavras -Chave

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A história nos mostra diversos exemplos dos homens em busca de emancipação e poder, que hoje passa preponderantemente pela ascensão econômica e o direito de consumo.

O direito de consumo torna evidente a fragilidade de atender necessidades básicas como o reconhecimento de cidadania munido de direitos sociais. O Estado ao invés de diminuir a desigualdade racial e social, promove a queda de juros e incentiva o poder de compra. Mas, ainda assim, o acesso à educação, a cultura e ao espaço público é negado pelas autoridades. Uma camada da sociedade acredita que se igualar a economia, todos teriam o mesmo direito de concorrer de maneira justa a vagas nas universidades e melhores postos de trabalho. Outra parte da sociedade aposta que há uma dívida com a comunidade negra, sendo assim reivindicam cotas, principalmente para inserção nas universidades públicas.

Há uma dificuldade do poder público de atenuar o abismo existente entre uma classe de cor e outra, acentuando-se a desigualdade racial, de renda, saúde e educação entre brancos e negros. Muitos apontam o sucesso do homem por aquilo que ele conquistou com a sua força de trabalho, pela determinação pessoal e posição financeira. Sabemos que não é só isso, uma série de fatores interfere no êxito do indivíduo, pois será preciso percorrer longos caminhos que muitas vezes se apresentam de maneira íngreme. A educação escolar é a força motriz da tão sonhada ascensão social, mas também se faz necessário o capital cultural que facilite a incursão desse agente.

Na obra de Lima Barreto explicita-se a discrepância cultural, mas que de certo modo alavanca os desejos do menino Isaias Caminha: “A tristeza, a compreensão e a desigualdade de nível

mental do meio familiar agiram sobre mim de um modo curioso; deram-me anseios de inteligência”. (Barreto, 2011, p. 67)

Não basta o acesso escolar, mas também é necessário uma estrutura familiar, que propicie os anseios do educando, seja com a refeição diária ou a inspiração obtida através da cultura familiar, pois é no seio da família que primeiro nos deparamos com o mundo. Mas, nem todas as famílias podem propiciar um ambiente intelectualizado e instigante, com uma excelente biblioteca doméstica, nem todos os pais tem a disposição em debater diversos assuntos com os seus filhos.

Os meios pelos quais se chegam à educação, e posteriormente ao sucesso, seriam mediados pelo Estado que possibilitaria acesso continuum, mas na

prática como diria Carlos Drummond de Andrade “no meio do caminho tinha uma pedra”. Os obstáculos são variados - da cor da pele ao status sócio-econômico encontramos os entraves de um Estado pouco ineficaz na representação máxima de seu povo.

Uma das pedras encontradas no caminho poderia ser chamada d’o câncer da sociedade. O racismo, que ainda hoje sobrepuja a consciência do cidadão, inviabiliza e obstrui as relações sociais no mais estrito conceito, pois ainda não superamos essa doença maligna que interfere no desenvolvimento de um país livre dos preconceitos de cor e pobreza.

Segundo o autor da obra “Racismo e Luta de Classes”, Serge Goulart nos lembra que “o Brasil e Cuba foram os dois últimos países do mundo a eliminar a escravatura como base de um modo de produção”. (Goulart, 2002, p.11)

Goulart (2002) continua a exemplificar, que no Brasil havia duas linhas constrangedoras que se encontravam no caminho desse país ainda regido A busca por reconhecimento através da educação e os entraves socioculturais de uma classe de cor

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exemplificada aqui, tornou-se mais harmoniosa e estável a relação do negro no âmbito sociocultural brasileiro, Munanga alerta que “está ideia ainda paira em nosso imaginário social”. (MUNANGA, 2006, p. 107).

As raízes históricas relacionadas aos negros no Brasil continuam presente no imaginário do homem, que mesmo por avanços obtidos pelas lutas de pretos e pardos ou de políticas reformistas, ainda encontram dificuldades perante toda a sociedade, seja a priori nas escolas, nas universidades públicas ou até mesmo ao desfrutar do espaço público.

A marginalidade também foi subscrita pelo modo de abolição, que em contraponto dos EUA, “o fim da escravidão para aqueles que trabalhavam nas fazendas não significou o acesso a terra. Significou seu despejo das fazendas”. (Goulart, 2002, p.17). A sociedade brasileira é baseada nesse atraso, e traz consigo marcas profundas cravadas em cada indivíduo.

Poucos países carregam tantos e tamanhos problemas educacionais como o Brasil, para Florestan Fernandes isto também é resultado de uma herança deixada pela sociedade escravocrata e senhorial, pois “recebemos uma situação dependente inalterável na economia mundial, instituições políticas fundadas na dominação patrimonialista e concepções de liderança que convertiam a educação sistemática em símbolo social dos privilegiados e do poder dos membros e das camadas dominantes” (Fernandes, 1989, p. 162). Florestan também acredita no papel da educação na moldagem do homem, homem este que busca a sua identidade, procura reconhecimento perante os familiares e a sociedade. Em um país com tantas desigualdades sociais e econômicas como o Brasil a educação ainda é considerada um dos poucos meios de se alcançar o almejado, ou seja, a estabilidade financeira e, não menos importante, o pelas amarras do modo de produção escravocrata,

Serge diz: “O desenvolvimento capitalista no Brasil só podia avançar com a transformação do trabalho escravo em trabalho assalariado”. (Goulart, 2002, p.13)

Vimos aqui que a questão racial foi o óbice do acanhado desenvolvimento da sociedade brasileira que queria avançar na relação geopolítica com o restante dos outros países, como os EUA que já havia liberto os negros e não apenas isso, mas também terras para o plantio agrícola.

Não obstante, no Brasil, a combinação da pressão da Inglaterra, até então rainha dos mares e senhora incontestável da economia capitalista, que já havia impulsionado os movimentos de independência nas colônias ibéricas das Américas, exigia uma modificação na situação do Brasil. Mas, também lutas internas contra a escravidão, desde um ideário abolicionista a levantes nas senzalas, dinamitaram o escravismo na segunda metade do século XIX.

A luta do povo negro no Brasil não foi um processo simples, a assinatura da Lei Áurea (que aboliu a escravidão), não foi suficiente para resultar em uma solução favorável, pois nesse momento teríamos um contingente de homens e mulheres livres, mas sem direção, sem trabalho, sem moradia.

Não foi através da lei que se ganhou a condição de livre voo, pois não estavam isentos dos grilhões da injustiça sócio-racial. Não houve a prerrogativa de uma ascensão ou emancipação com oportunidades como aquelas dadas aos brancos, sobretudo, às camadas ricas da população. Suas práticas religiosas e liberdade de expressão estavam subjulgadas pela classe de cor branca dominante.

É preciso destacar as lutas de resistência negra e desmistificar a Ideia que pós a Lei Áurea já

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constituíam não só uma razão de ser de felicidade, de abundância e riqueza, mas também um título para superior respeito dos homens e pra a superior consideração de toda a gente. (Barreto, 20112, p.67)

Essa abertura demonstra-nos a figura do mulato pobre que ainda não se reconhece como tal. Vê o pai, que é branco, “fortemente inteligente e ilustrado” e sua mãe com uma origem obscura que trata seu pai de maneira cerimoniosa, quase como uma empregada se dirige ao patrão.

Vendo a sua mãe triste, Caminha ainda não a via como uma escrava alforriada e sim imaginava que a consternação era devido à discrepância da educação da mãe com a do pai. “Se minha mãe me parecia triste e humilde – pensava eu naquele tempo – era porque não sabia, como meu pai, dizer nomes das estrelas do céu e explicar a natureza da chuva” (Barreto, 2012, p.68).

O contraste familiar não atenuou os desejos e aspirações de Caminha. Foi com esses sentimentos que entrou para o curso primário, não hesitou, dedicou-se açodadamente ao estudo e não demorou em brilhar e o mundo era como se estivesse esperando para continuar a evoluir. Era assim que Isaías Caminha se via.

Como era de se esperar, com o tempo a energia de Isaias não diminuiu cresceu sempre progressivamente. Sua professora, dona Ester imaginou que lhe passava pelas mãos um gênio.

Para alcançar seus objetivos Isaias “fugia aos brinquedos, evitava os grandes grupos [...]” (Barreto, 2012, p.68). No Liceu não foi diferente, teve uma boa reputação, quatro aprovações e muitas sabatinas ótimas, descreve Lima Barreto. Isaias lamenta pelas poucas recordações de seus professores do curso secundário, a única descrição que faz a eles é que eram banais. Além do mais, eles não tinham os olhos azuis de dona Ester, que

status quo, o reconhecimento.

O personagem principal da obra Recordações do escrivão Isaias Caminha de Lima Barreto, pode ser

tomado como exemplo dessa busca incansável pelo reconhecimento perante a sociedade. Este sonha em encontrar seu espaço, sua importância através da educação e de um título, como demonstra o trecho “Ah! Doutor! Doutor!... Era mágico o título, tinha poderes e alcances múltiplos, vários, polifórmicos...” (Barreto, 2012, p. 75). Este é o caminho encontrado por muitos jovens, mas a educação se faz insuficiente e isso se agrava se levarmos em consideração as diferenciações das classes de cor, que fomenta a desigualdade na busca pelas oportunidades de inserção e reconhecimento socioeconômico.

Na obra Recordações do escrivão Isaias Caminha

o autor, Lima Barreto, nos coloca diante de uma incrível sensibilidade de mesclar problemas pessoais do personagem principal, que segundo Prado (1989), traz em seu cerne características do próprio escritor, e problemas sociais recorrentes como a desigualdade racial, econômica e educacional.

Lima Barreto inicia o livro nos mostrando a vida e a formação do personagem principal, Isaias Caminha, filho de um padre bem sucedido e educado com uma mãe mulata ex-escrava, descrita pelo próprio filho como obscura por sua ignorância. Rapaz bem criado e educado aos moldes burguês pelo pai, do qual o filho Isaias Caminha nutre grande admiração e orgulho, principalmente por seu vasto conhecimento e educação.

O espetáculo de saber do meu pai, realçado pela ignorância de minha mãe e de outros parentes dela, surgiu aos meus olhos de criança, como um deslumbramento. Pareceu-me então que aquela sua faculdade de explicar tudo, aquele seu desembaraço de linguagem, a sua capacidade de ler línguas diversas e compreendê-las

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de ser doutor, pois como dizia Isaías:

‘Ora Felício!’ pensei de mim para mim. ‘O Felício! Tão burro! Tinha vitórias no Rio! Por que não as havia eu de ter também – eu que lhe ensinara, na aula de português, de uma vez para sempre, diferença entre o adjunto atributivo e o adverbial? Por quê!?’ (Barreto, 2012, p.70)

Como motivador ou apenas inveja, Isaías se coloca a desejar o título de doutor, sonhava em se formar, em ter um anel no dedo, andar nas ruas, nas praças, pelas estradas de cartola e sobrecasaca, com as pessoas o chamando de Doutor e se importando com o seu dia. Para Isaías isso seria sobre-humano. Neste ponto da obra Isaías começa a enfrentar o conflito que, segundo Nietzsche (1998), é natural ao homem, à busca pelo poder e autoafirmação.

Como todo rapaz mulato, pobre e brasileiro da época que aspirava qualquer tipo de ascensão e consideração da sociedade era necessário um apadrinhamento, ou seja, alguém de grande importância e prestigio nas elites para sustentar a jornada do jovem rumo ao topo e que o apresentasse a elite de modo a ser ao menos aceito. É exatamente o trajeto que Isaías Caminhas acredita que irá traçar, mas ao chegar à cidade do Rio de Janeiro se depara com outra realidade e percebe que terá que alcançar seus objetivos sozinhos, terá que conseguir seus estudos para ser doutor sem ajuda e mais do que isso, se depara com o preconceito contra o negro.

Conforme discutido acima o preconceito é uma problema enraizado na sociedade brasileira e passa por todos os âmbitos, mas nos interessa especificamente na educação. Já na época que a obra retrata, inicio do período republicano, a seleção educacional, conforme nos mostra Florestan Fernandes, é baseado em privilégios (de riqueza, “tão meigos e transcendentes que pareciam ler o

meu destino” dizia Isaias. (Barreto, 2012, p. 69). Entendemos que o homem para encontrar o reconhecimento social, precisa de alguns determinantes, como um país que proporcione uma estrutura física e política de escolas, e também de professores bem preparados que façam uma leitura crítica de mundo. Não apenas por uma cosmovisão e sim pela interdisciplinaridade.

Que esses professores vejam seus alunos como indivíduos socioculturais, prenhes de conhecimentos do cotidiano social e geográfico. Só assim os professores poderão conquistar e mediar à ascensão dos futuros protagonistas da sociedade.

Quando uma cidade ou localidade qualquer não oferece subsídios para o processo sócio educacional e mercado de trabalho, muitos precisam migrar para outros locais que favoreçam maior espírito cosmopolita.

A migração para cidades de maior desenvolvimento socioeconômico é de dúbio acento. Há forte tendência para a ascensão social quanto para extrema pobreza e tamanha dificuldade estrutural da infraestrutura urbana.

Mesmo assim, o nosso personagem Isaías Caminha escutava uma voz que dizia para ir para o Rio de Janeiro, pois sua cidade já não bastava, não era suficiente para atender seus sonhos. Isaías colocou-se a pensar e a medir as consequências ao mudar para a cidade grande.

Um dia, ao ler o Diário de *** verificou

que Felício, um antigo condiscípulo, se formara em farmácia, e como dizia o Diário, houve uma

estrondosa manifestação da parte de seus colegas. (Barreto, 2012, p. 70)

Havia uma motivação que apontava para o empreendimento dos seus sonhos, era a vontade

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habilidades culturais e de letramento são ignoradas e muitos o julgam inadequado para o trabalho, mesmo fugindo a regra, pois havia tido uma educação básica espetacular aos moldes da elite.

O personagem de Lima Barreto, Isaias Caminha, não consegue atingir seu objetivo inicial, se tornar doutor, mas consegue um emprego por indicação em um famoso jornal do Rio de Janeiro da época. Neste jornal Isaias sofre uma transformação, apesar de permanecer buscando por seu reconhecimento e a consideração de toda a gente. Este que antes tinha que driblar os preconceitos agora passa a agir de forma preconceituosa. Na concepção de Isaias para ser jornalista era necessário um embasamento educacional e cultural elevado, qualidades que muitos dos seus colegas de trabalho, em sua perspectiva, não tinham. A soberba de Isaias passa também pela linguagem, que segundo Gnerre (1987), é símbolo de status e poder, aliás,

ferramenta de poder para quem a detém. Isaias passa a julgar as pessoas de seu convívio pelo seu modo de falar e pela linguagem utilizada. Os de fala mais rebuscada eram detentores de bons estudos e de capital cultural superior aos demais, sendo assim tinham reconhecimento e importância para a sociedade. Mais uma vez o conhecimento é utilizado como elemento de segregação e para qualificar os homens. A norma culta da língua que remete a poder e a persuasão é transmitida através do processo de educacional, não apenas escolar, mas também no ambiente familiar, pela influência dos pais nos hábitos de leitura. Isaías além de ter tido boa educação contou também com o conhecimento das grandes obras de literatura que seu pai lhe proporcionou. Assim, o personagem principal de Recordações do escrivão Isaías Caminha,

dominava os códigos linguísticos, muito diferente de grande parte dos jovens negros e mestiços, que de posição social, de poder, de raça ou religião).

Era de interesse das elites ‘deseducar’ a massa, ou seja, os desprivilegiados, negros, mulatos, mestiços e pobres. Estes tinham seu...

horizonte cultural claramente delimitado, porque afinal de contas, a cultura cívica era a cultura de uma sociedade de democracia restrita, inoperante, na relação da minoria poderosa e dominante com a massa da sociedade. Essa massa era a gentinha; e, para ser a gentinha, a educação seria perola, que não deveria ser lançada aos porcos (...). (Fernandes, 1989, p. 162)

Ainda hoje nota-se essa fragmentação da educação por classes sociais e, consequentemente, classes de cor, se levarmos em conta a herança escravocrata descrita nas páginas acima. As escolas públicas da periferia são, muitas vezes, abandonadas pelo poder publico e deixadas a sua própria sorte. De todos os lugares, mídia, família, professores etc., os alunos recebem a carga e a responsabilidade da sua formação e de seu futuro. Delega-se a eles a tarefa de “estudar para ser alguém na vida” e “ter um futuro”, amenizando assim as desigualdades sociais que sofreram a vida toda. A educação permanece hoje seletiva, tomemos como exemplo as universidades públicas, onde apenas alunos com repertório cultural e educacional superior ao da maioria é que conseguem ingressar nessas vagas, ou seja, alunos de escolas privadas ou publicas dos bairros centrais tidas como modelo.

Eis a briga do sociólogo Florestan Fernandes, a briga por uma educação mais democrática, onde a qualidade do ensino não leve em consideração a “qualidade do homem” (etnia, classes, região, origem e gênero).

Isaías que passa a enfrentar a questão das classes de cor não consegue facilmente um emprego que lhe proporcionasse estabilidade para frequentar os estudos. Por ser mestiço, suas

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linguagens de ensino-aprendizagem. Assim como oficinas de artes, esporte e lazer, esses novos gêneros educacionais aguçariam a criatividade e dariam novas percepções de mundo que fossem transformadoras e libertárias.

A esperança é decisiva para provocar mudanças individuais e sociais. Mesmo que muitos a compreendam como força alienante, ela impulsiona pessoas e grupos ao encontro de saídas, mesmo que incipientes. Ela gera coragem e amor à vida, leva sujeito a apreciar os fragmentos de emancipação, a permanecer disponível e a providenciar o necessário alimento para que esses fragmentos fertilizem e cresçam. Por lado, a desesperança profetiza a morte do sujeito e o compele à autodestruição, ao lançar sobre os fragmentos emancipatórios possíveis seus vaticínios agourentos. Admitir a morte do sujeito é não compreender a história como síntese de múltiplas determinações, construídas a partir das correlações de forças, dentro de várias possibilidades de saída, presentes no local e no regional, no nacional e no mundial. (Souza Neto, 2011, p. 170)

No mesmo livro o autor ainda nos faz lembrar que “o homem também é produto e produtor do seu cotidiano e de sua história” (NETO, 2011, p. 178). Negar esse axioma é negar a condição humana, por isso se faz importante não observar apenas a questão econômica e sim a questão cultural que é construída pelo indivíduo.

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Isaías termina o seu relato confessando seu desapontamento quanto aos desfechos que sua vida ganhou. Seu árduo caminho rumo à ascensão e reconhecimento social, que começou quando saiu do seio familiar e se atirou a uma aventura no Rio de Janeiro para ser doutor, é cheia de altos e baixos. precisam aproveitar possibilidades reduzidas do

processo de aprendizagem.

Dominar os códigos linguísticos, a fala rebuscada e a cultura literária são para as sociedades complexas fatores expressivos no processo de reconhecimento social e na busca do status quo, pois

possibilita mobilizar pessoas, influenciar opiniões e demonstra educação sofisticada (Bourdieu, 1977). O prestígio de Isaías no jornal em que trabalha aos poucos vai sendo moldado e este assume uma postura preconceituosa e segregadora. Este problema de descriminação pelo falar é nítido já na época em que a obra se passa e persiste nos dias de hoje, por exemplo, o uso de gírias, muito comum em periferias onde a educação é precária, é ligada diretamente a marginalidade e a pessoas desprivilegiadas socialmente.

A língua que nos une é a mesma que nos separa. Isaías parece se esquecer das suas origens, do caminho trilhado para o reconhecimento da sociedade burguesa de seu tempo, assim como hoje, apenas queria reproduzir os valores dessa classe.

Os valores burgueses não se dão apenas no âmbito econômico, mas também se apropriam de outras formas de dominação como pelo substrato linguístico. A língua culta restrita na classe dominante e aqui enfatizo mais uma vez que não se trata apenas do economicismo, mas também do academicismo, ganhando cada vez mais força segregadora do que concerne a exclusão social.

Assim como as gírias, novos códigos são elaborados, e está claro que a educação formal não deu conta de subsidiar crianças e jovens negros ou pobres para que com a forma culta pudessem decodificar o mundo e seus signos.

É preciso esperança que outras fontes de educação, que não seja a formal, utilizem novas

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Durante o livro percebemos que em sua chegada logo nota que lhe tratam diferente pela sua cor, após entrar no jornal acaba tendo certos contatos pela sua educação de “gente abastada”, mas logo desiste de buscar seu sonho de títulos e prestigio. Contenta-se com o pouco que a sociedade carioca do século XIX se propõe a lhe dar.

Lembrava-me... lembrava-me de que deixara toda a minha vida ao acaso e que não pusera ao estudo e ao trabalho com a força de que era capaz. Sentia-me repelente, repelente de fraqueza, de falta de decisão e mais amolecido agora com o álcool e com os prazeres... Sentia-me parasita adulando o diretor para obter dinheiro... Às minhas aspirações, àquele forte sonhar da minha meninice eu não tinha dado as satisfações devidas. A má vontade geral, a excomunhão dos outros tinham-me amedrontado, atemorizado, feito adormecer em mim o Orgulho, com seu cortejo de grandeza e de força. Rebaixara-me, tendo medo de fantasmas e não obedecera ao seu império. (...) Sentia-me sempre desgostoso por não ter tirado de mim nada de grande, de forte e ter consentido em ser um vulgar assecla e apaniguado em um outro qualquer. Tinha outros desgostos, mas esse era o principal. Por que o tinha sido? Um pouco devido aos outros e um pouco devido a mim. (Barreto, 2012, p.300-301)

Este é o destino de muitos negros no Brasil, que tenta esconder sua face preconceituosa com discursos como “ser contra a cota porque os negros têm a mesma capacidade” e “os negros também são racistas”. Estes discursos só ignoram o fato de que o caminho que os negros e pardos percorrem pra chegar onde almejam é, quase sempre, mais árduo do que o do branco. Podemos evocar um caso atual de homem negro brasileiro “que deu certo”, o ministro Joaquim Barbosa. Pessoas utilizam sua imagem para veicular mensagens com dizeres que indicam que se ele conseguiu chegar

todos os desfavorecidos (negros e pobres) também conseguem sem cotas, mas esquecem de citar que o cenário que ele encontra é de um poder judiciário onde apenas 13% dos juízes são negros e pardos, e estes ganham em média 14% a menos do que seus colegas brancos. Além disso, ignoram que a herança escravocrata ainda faz cegar alguns olhos do quadro social brasileiro com seus reflexos de forma nítida. Há quem ainda ache natural termos uma quantidade imensa de “patrões” de cor branca e “peões” de cor negra e parda, num país onde sua maioria populacional é composta por negros, pardos e mestiçosi.

Neste ensaio tentamos demonstrar como a educação e o conhecimento são utilizados como ferramenta para se alcançar o reconhecimento perante a sociedade e a ascensão social. No entanto ainda hoje para muitos brasileiros não há garantias de êxito nesta busca, pois há os empecilhos impostos por uma sociedade ainda muito marcada pela escravidão e os preconceitos entre classes de cor.

Isaías Caminha, personagem de Lima Barreto, demonstra a trajetória de muitos jovens brasileiros, em sua maioria vindos das periferias, que tentam trilhar um caminho de sucesso, mas acabam barrados pelos preconceitos e dificuldades impostas em sua educação formal.

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i Cerca de 191 milhões de brasileiros em 2010, 91 milhões se classificaram como brancos, 15 milhões

como pretos, 82 milhões como pardos, 2 milhões como amarelos e 817 mil indígenas. Registrou-se uma redução da proporção brancos de 53,7% em 2000 para 47,7% em 2010, e um crescimento de pretos (de 6,2% para 7,6%) e pardos (de 38,5% para 43,1%). IBGE - 2011.

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BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010.

BOURDIEU. A economia das trocas lingüísticas. Trad. Paulo Montero. São Paulo: Ática, 1994. (Original: Langue Française, 34, maio 1977)

FERNANDES, Florestan. O desafio educacional. São Paulo: Cortez; Autores Associados, 1989. _____. Educação e sociedade no Brasil. São Paulo: Dominus Editora, 1966.

_____. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Dominus Editora, 1965. GNERRE, Maurizio. Linguagem, Escrita e Poder. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

GOULART, Serge. Racismo e Luta de Classes. Florianópolis: Conhecer, 2002.

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MUNANGA, Kabengele, LINO GOMES, Nilma. O negro no Brasil de hoje. São Paulo: Global, 2006. (Coleção para entender)

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

PRADO, Antonio Arnoni. Lima Barreto: o crítico e a crise. São Paulo: Duas Cidades. 1989.

SOUZA NETO, João Clemente de. A trajetória do menor a cidadão: filantropia, municipalização, políticas sociais. São Paulo: Arte Impressa. 2011

Referências Bibliográficas:

A busca por reconhecimento através da educação e os entraves socioculturais de uma classe de cor

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