• Nenhum resultado encontrado

QUADRINHOS VISIONÁRIOS

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2020

Share "QUADRINHOS VISIONÁRIOS"

Copied!
21
0
0

Texto

(1)

QUADRINHOS VISIONÁRIOS VISIONARY COMICS

Matheus Moura Silva <saruom@gmail.com> Doutorando em Arte e Cultura Visual, Poética e Processos de Criação, PPGACV – UFG http://lattes.cnpq.br/0461830182283000

RESUMO

O trabalho aqui exposto é um trecho da tese, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual na UFG, sobre processos criativos em quadrinhos visionários. Nele verso a respeito da interseção entre o conceito de Arte Visionária, desenvolvido por Laurence Caruana, no Primeiro Manifesto da Arte Visionária (2001), com o de histórias em quadrinhos. Para tanto, são feitas aproximações e distanciamentos entre autores de HQs como Alan Moore, Grant Morrison, Rick Veitch, Robert Crumb, dentre outros, com os paramentos propostos pelo artista, dividindo-os em três categorias: visionários verdadeiros; quase visionários; e falsos visionários. O intuito foi determinar quais autores de quadrinhos podem ou não ser tidos como pertencentes ao movimento. Apesar de usar critérios estanques nas definições de Caruana, a tabela criada não é determinante, sendo passível de ajustes baseados em novas informações a respeito dos processos criativos dos autores selecionados. No artigo a pergunta básica foi: quais obras de quadrinhos (e seus autores) podem ser tidas como visionárias (dentro do crivo de Caruana)? Para responder a esta pergunta, foi necessário seguir a estrutura de análise apresentada por Caruana e submeter obras e artistas ao mesmos padrões de análises, dividindo-os nas três categorias citadas. Como resultado cheguei a uma lista preliminar com 21 artistas visionários, 18 quase visionários e 15 falsos visionários – na maioria estrangeiros, mas com significativa participação de autores brasileiros. O estrato de análise, inicialmente foi determinado dentre 1970 e 2015, uma vez que não existem muitos autores de quadrinhos visionários. Porém, um criador fugiu a regra, Winsor McCay (1871-1934), com o trabalho Little Nemo, publicado entre 1905 e 1913, nos EUA. Nas considerações saliento o quão importante é aglutinar os autores de histórias em quadrinhos que utilizam de estados não ordinários de consciência (ENOC) para criarem. Sendo esta mais uma possibilidade aberta de interpretação sobre as obras e processos dos próprios artistas destacados e de outros por vir.

PALAVRAS-CHAVE: processo criativo; arte visionária;

estado não ordinário de consciência; quadrinhos ABSTRACT

The work exposed here is an excerpt of the thesis, developed in the Postgraduate Program in Art and Visual Culture in UFG on creative processes in visionary comics. This verse about the intersection between the concept of Visionary Art, developed by Laurence Caruana, in the First Manifesto of Visionary Art (2001), with the comic books. Therefore, similarities and differences are drawn between comic writers like Alan Moore, Grant Morrison, Rick Veitch, Robert Crumb, among others, with the parameters proposed by the artist, dividing them into three categories: true visionaries; almost visionaries; and false visionaries. The aim was to determine which comic authors may or may not be regarded as belonging to the movement. Despite using tight criteria in Caruana's definitions, the table created is not decisive and may be subject to adjustments based on new information about the creative processes of the selected authors. In the article the basic question was: which comic works (and their authors) can be seen as visionary (within Caruana sieve)? To answer this question, it was necessary following the analysis structure presented by Caruana and submit some works and artists to the same standards of analysis, dividing them into the three categories mentioned. As a result, I came to a preliminary list of 21 visionary artists, 18 almost visionaries and 15 false visionaries - mostly foreigners, but with significant participation of Brazilian authors. The stratum analysis, was initially determined from 1970 and 2015, since there are not many authors of visionary comics. However, a creator fled the rule, Winsor McCay (1871-1934), with the work Little Nemo, published between 1905 and 1913 in the US. The considerations emphasize how important it is bringing together the authors of comics that use non-ordinary states of consciousness (NOSC) to create. This being one more open possibility of interpretation of the works and processes of those outstanding artists and others to come.

KEYWORDS: creative process; visionary art; non-ordinary

(2)

INTRODUÇÃO

O termo visionário geralmente envolve a concepção de alguém além do próprio tempo, que possui ideias avançadas, um vanguardista. Porém, no pensamento de Laurence Caruana (2001), artista e pesquisador de arte, o termo visionário possui uma conotação diferenciada. Serve para indicar aqueles autores que buscam representar visões de estados não ordinário de consciência. Por se tratar de visões da mente, Caruana (2013) achou por bem batizar esse tipo de arte de Visionária.

Na esfera das histórias em quadrinhos, tendo como princípio o entendimento de Caruana (2013), é possível incluir determinados autores como participantes indiretos do movimento visionário. Compreender quem são esses autores e destacar as principais obras visionárias deles é um dos intuitos deste artigo. Parto de algumas perguntas como: quais obras de quadrinhos (e seus autores) podem ser tidas como visionárias (dentro do crivo de Caruana)? Existem semelhanças nítidas entres as obras de tais autores que possam homogeneizar seus trabalhos? Para responder a estas perguntas, foi necessário seguir a estrutura de análise apresentada por Caruana (2001) e submeter obras e artistas aos mesmos padrões de análises, dividindo-os em três categorias.

Como resultado cheguei a uma lista preliminar com 21 artistas verdadeiros visionários, 18 quase visionários e 15 falsos visionários – na maioria estrangeiros, mas com significativa participação de autores brasileiros – a totalizar 54 autores citados. O estrato para análise, inicialmente foi determinado entre os períodos de 1970 e 2015, uma vez que não existem muitos autores conhecidos de quadrinhos visionários e os principais atuaram após a década de 1970. Porém, um criador fugiu a regra, Winsor McCay (1871-1934), com o trabalho Little Nemo, publicado entre 1905 e 1913, nos EUA.

ARTE VISIONÁRIA

De maneira direta, arte visionária é todo produto artístico que visa retratar visões advindas de Estados Não Ordinários de Consciência (ENOC). Os quadrinhos visionários seguem a mesma premissa. São HQs que procuram narrar experiências com ENOC. O “Primeiro Manifesto da Arte Visionária”, de Laurence Caruana (2013), trabalha justamente a conceitualização desse tipo de arte e deixa claro ao leitor que os ENOC são alcançados sem o uso de substâncias extracorporais.

(3)

Não há necessidade do uso de nenhuma substância química (mesmo que natural) para se ter visões. Como é o caso da Respiração Holotrópica, do jejum para a Vision Quest dos Lakotas, ou mesmo os sonhos. Faço questão de reforçar a não necessidade de uso de alcaloides para não ocorrer ao leitor que para se fazer arte visionária é preciso usar alguma substância. Eu mesmo, para a construção da poética da tese, irei lançar mão de métodos que não utilizam alcaloides, como os sonhos lúcidos e a Respiração Holotrópica.

É bom salientar que o uso de substâncias expansoras da consciência, como LSD, DMT, mescalina, psilocibina, LSA, MDMA, e outras, é comum entre os mais diversos artistas. As principais obras do cenário da arte visionária são compostas por trabalhos derivados de visões de algumas dessas substâncias. Pablo Amaringo, por exemplo, é notório pelo uso de ayahuasca (DMT), assim como Alexandre Segrégio (MIKOSZ, 2014); Alex Grey, frisa como as visões de LSD foram e são importantes para ele (TEDS TALKS, 2013), da mesma maneira para Alan Moore (MILLIDGE, 2012), Philippe Druillet (SILVA, 2013), Christian Rätsch, Mark Henson (MIKOSZ, 2014) e tantos outros. No fim, o primordial é como retratar tais visões.

Caruana (2013) divide as visões em dois tipos básicos: as de luz e as de trevas – bem como Huxley em “As portas da percepção: Céu e Inferno” (HUXLEY, 2002). O primeiro é repleto de sentidos positivos e geralmente está envolto em cunho transcendental (CARUANA. 2013). O segundo já parte para o mundo do obscuro. São visões do submundo, de coisas grotescas e até mesmo infernais. São o lado sombra (JUNG, 2000) do sujeito a se aflorar para ele durante a jornada psicodélica. No livro The Psychedelic Experience: A Manual Based on the Tibetan Book of

the Dead, adaptado por Timothy Leary, Ralph Metzner e Richard Alpert (2000), é possível

encontrar a mesma dualidade com a diferença das trevas serem tidas como tentações – provações que o indivíduo deve passar para alcançar a evolução do ser. As imagens de criaturas monstruosas seriam demônios que visam distanciar o viajante do caminho para a iluminação – metáfora para o ego a lutar contra a sua dissolução e integração do indivíduo com o todo. Na própria ideia de xamanismo há dualidade parecida, mas sem a carga polarizada entre negativo e positivo – geralmente ainda há um terceiro elemento: o mundo material, humano, ou mesmo uma estratificação em diversas camadas (LEWIS-WILLIAMS; CLOTTES, 2009).

A partir da separação nesses dois tipos de visões, Caruana (2013) classifica ainda os principais temas vistos durante os ENOC. Por exemplo: criação, paraíso, a queda, o triunfo da morte, seres míticos, monstros, loucura, arquiteturas impossíveis, dentre outros. São tantos os

(4)

temas que o próprio autor menciona o quanto as fronteiras entre escolas e movimentos das artes se tornam nebulosas na busca por caracterizar o que seria ou não arte visionária. A história da arte em si é revisitada no manifesto em busca de mapear artistas e obras que se enquadrem nos termos da Arte Visionária. Para Caruana (2013), toda a história da arte – independentemente da cultura – possui representações de visões. Mikosz (2014) inclusive percebe a arte visionária como uma presença constante em vários movimentos artísticos como no Renascimento, no Maneirismo, no Romantismo, nos Pré-rafaelitas, no Simbolismo e na Art Nouveau, no Abstracionismo, no Surrealismo, na Art Brut e no Psicodelismo. A fim de demarcar tal fronteira, Mikosz (2014) identifica a arte visionária como sendo mais explicita quanto ao uso de estados não ordinários de consciência para a criação artística, diferentemente dos movimentos citados.

O conjunto de visões elencadas por Caruana (2013), e categorizadas em dois grupos principais, forma o que ele denomina de “qualidades visionárias originais”1. Longe de ser algo estanque, os exemplos citados por Caruana servem para direcionar e facilitar a identificação de motivos e abordagens dadas pelos artistas visionários. Para minimizar as dúvidas – apesar da subjetividade (MIKOSZ, 2014) – de quais seriam os autores genuínos ou não de arte visionária ao longo da história da arte, é elencada uma tabela (CARUANA, 2013, p. 9) dividida em três categorias: 1) visionários verdadeiros; 2) quase visionários; e 3) falsos visionários.

Para Caruana (2013), os artistas classificados como visionários verdadeiros são aqueles que buscam retratar o mais fiel possível suas visões. Não importa se há perícia técnica do artista ou não, desde que a visão seja o foco principal da obra. Geralmente buscam um sentido transcendente ou ao menos está repleto do “estilo atemporal dos arquétipos; o estilo primordial que se manifesta desde o princípio” (CARUANA, 2013, p. 6). Os quase visionários, apesar de flertarem com temas e motivos semelhantes dos artistas tidos como verdadeiros, se diferenciam por primarem em dar destaque às técnicas e materiais artísticos em detrimento da visão – a qual não necessariamente tiveram ou a retratam exatamente como visto. Assim, a maestria técnica exacerbada acaba por chamar mais atenção do que a imagem/visão representada na obra. Por outro lado,

1 Tais qualidades visionárias originais incluem até mesmo uma técnica de pintura chamada Mischtechnik, desenvolvida por Ernst Fuchs (CARUANA, 2013). A Mischtechnik consiste em criar efeitos de transparência e cor além de um acabamento refinado, que acaba por mascarar aspectos da execução do desenho, a dar-lhe um ar de realidade, quase fotográfico.

(5)

(…) a pintura visionária busca perfeição e delicadeza no acabamento. A razão disso é não dar ênfase à expressão gestual, como marcas de pinceladas, pontilhismos, materiais utilizados, tão valorizadas no impressionismo, expressionismo, entre outros, pois se procura justamente o contrário. Se no passado um quadro podia ser visto como uma janela para o mundo, mais tarde, nos movimentos modernos, deixou de ser essa janela para se tornar um objeto de arte autossuficiente. (…) Para os visionários, sua obra é como uma janela para o mundo interior ou para outros mundos. Valorizar as pinceladas, os materiais utilizados, por exemplo, seria como admirar os riscos nos vidros ou a própria janela. (MIKOSZ, 2014, p. 95-96)

Caruana (2013) e Mikosz (2014) não determinam quais seriam as características dos artistas enquadrados como “falsos visionários”. Ao analisar obras dos autores citados na categoria compreendo que: tais artistas, além de não2 terem tido, necessariamente, experiências com visões/ENOC para retratarem, buscam pintar elementos genéricos encontrados nas pinturas dos verdadeiros visionários. Seriam autores que criam a partir de referências dadas por outros artistas ou movimentos, daí serem tidos como “falsos”. Os trabalhos “verdadeiros” exaltam a visão, ela acaba por dominar o observador, o que não é percebido (está aí a subjetividade mencionada anteriormente) em trabalhos derivados. Ou seja, se não se retrata uma visão genuína, não há como ser arte visionária, pois a imagem acaba por não ter vivacidade. Para os quadrinhos parto de princípio similar, separo-os nas três categorias propostas por Caruana (2001) e busco avaliá-los a partir dos dados levantados por eles.

Figura 1: Primeira imagem, gravura do visionário William Blake (1794), The Ancient of Days in Europe a Prophecy copy K. Segunda imagem do quase visionário Vincent Van Gogh (1887), Interior of a Restaurant. A terceira imagem é

do falso visionário Caravaggio

2 Aqui há uma observação. Na tabela que criei para categorizar os autores, inclui nos “quase e falsos visionários” artistas que tiveram, sim, experiências com ENOC. Porém, não representaram visões propriamente ditas em seus quadrinhos, apesar de terem sido influenciados graficamente.

(6)

QUADRINISTAS VISIONÁRIOS

Não há intenção aqui de determinar todos os autores de quadrinhos visionários espalhados pelo globo. Até porquê a maioria deles acaba por ser desconhecida fora dos círculos aos quais trafegam. Darei, no máximo, o ponto de partida para novos levantamentos. Ressalto ainda que a lista a seguir não é fechada ao ponto de não permitir o transito dos artistas entre as categorias. Basta serem levantadas novas informações a respeito dos processos criativos envoltos para se atualizar a classificação.

Quadrinistas Visionários Verdadeiros Quadrinistas Quase Visionários Quadrinistas Falsos Visionários

Alan Moore Caza Charles Burns

Moebius Steve Clay Wilson Neil Gaiman

Phillipe Druillet Robert Williams Gilbert Shelton

Sérgio Macedo Victor Moscoso Jim Franklin

Xalberto Robert Crumb Angeli

Laudo Glauco Laerte

Vinícius Posteraro Mozart Couto Michel Quarez

Edgar Franco Gazy Andraus Jayme Cortez

Alain Vozz Fabio Cobiaco Flávio Colin

Jim Woodring Peter Max Jesse Reklaw

Rick Veitch Jim Starlin Steve Ditko

Frank Frazetta* Mary Fleener Jack Kirby

Michael Kaluta* M. Maraska Lourenço Mutarelli

Barry Windsor-Smith* Winsor McCay Irmãos Matuck

Berni Wrightson* Rick Griffin Paul Mavrides

Richard Corben* Steve Engleheart

Grant Morrison Frank Brunner

Alejandro Jodorowsky Alan Weiss

Mister Strange Julie Doucet Aleksandar Zograf

Todos os autores citados acima trabalharam, de uma maneira ou de outra com ENOC. Seja de modo direto, como a maioria dos quadrinistas visionários verdadeiros, ou por meio de

(7)

pesquisa sobre o tema, a exemplo de Flávio Colin. Este autor em especial, juntamente com Jayme Cortez, está na lista como quadrinistas falso visionário por conta de uma história em particular de cada. Ambos os autores, Colin e Cortez, são criadores tradicionais de HQs. Até onde consta, eles nunca tiveram pretensões de expressar visões com ENOC que, por acaso, viessem a ter. Na realidade, Colin criou uma HQ, chamada “DAIME”, publicada na revista “Pesadelo # 4”, em 1981, que trata sobre ayahuasca e, em algumas páginas, representa o que seriam as mirações das personagens. Porém, na biografia do autor (GONÇALO JUNIOR, 2009) não há menção dele já ter usado o chá para poder representar visões verdadeiras. Da mesma maneira Jayme Cortez na história “Zodiako”, publicada originalmente em 1974 e relançada em 2014 em comemoração aos 40 anos da personagem. Zodiako narra as aventuras metafísicas e existencialistas do herói homônimo. Mesmo não sendo fruto de alguma visão (MORAIS, 2014), graficamente Zodiako é tão chamativo que o editor da primeira versão – revista Crás! – publicou a história colorida com tons psicodélicos (MORAIS, 2014).

Fig. 1: Primeira página: Daime, (1981), de Flavio Colin a retratar a miração de uma das personagens. Segunda página: Zodiako, de Jayme Cortez (2014). Fonte: Pesadelo # 4, 1981 / Zodiako Premium,

(8)

No caso de Jack Kirby e Steve Ditko, não há indícios deles terem usado substâncias expansoras da consciência ou fazerem uso de qualquer técnica natural para tanto. Na prática, as informações apontam para eles terem sido avessos aos ENOC (HERR, 2012). Graficamente, acredito que ambos foram influenciados pela Pop Art e Psicodelismo – uma vez que as obras levadas em consideração aqui foram criadas, principalmente, na década de 1960. Em contrapartida, quadrinistas como Michel Quarez, Jim Franklin, Gilbert Shelton e Paul Mavrides, também criaram no mesmo período e até chegaram a usar LSD e outras substâncias expansoras. Mesmo assim, não identifiquei no trabalho ou em textos sobre os processos criativos deles menção direta a representações de imagens derivadas de ENOC. Alguns, como é o caso de Shelton e Mavrides, chegam a abordar o uso de drogas de modo explicito, mas sempre de maneira extrema e chocante. A ideia desses autores, que faziam parte da contra cultura estadunidense, era de realmente abalar os padrões do american way of life, ou seja, desconstruir a sociedade de então – e não representar suas visões advindas dos ENOC.

Charles Burns, Neil Gaiman, Jesse Reklaw, Angeli e Laerte flertam com temas comuns entre os visionários, mas, como os outros, não expressam visões. Burns possui um álbum, chamado Black Hole (2007), o qual a trama é focada em uma ambientação doentia. Gaiman, na série Sandman (2005), aborda o reino dos sonhos de modo lírico e poético. Cada um a seu modo usa de recursos gráficos encontrados em obras visionárias, mas sem terem tido suas próprias visões. Jesse Reklaw, em especial, produziu uma série de tiras, intitulada Slow Wave (mais tarde lançadas nos livros Dreamtoons, de 2000, e The Night of Your Life, de 2008, ambos inéditos no Brasil), a narrar os sonhos dele ou mesmo de leitores. Mas o modo como trabalha os sonhos foge da descrição da cena onírica em si, a ir para uma espécie de reordenação narrativa para dar coerência a tirinha – o que, ao meu ver, acaba por se distanciar da visão original. Já Angeli e Laerte, são influenciados pelos quadrinhos de Crumb, Shelton dentre outros, publicados na antologia Zap

Comics em 1968. Angeli, principalmente, possui diversos personagens, da década de 1980,

derivativos dos criados por Crumb – tanto na estética quando na temática das histórias. Lourenço Mutarelli e os Irmãos Matuck seguem caminho similar. Mutarelli, durante a década de 1980, sofreu de profunda depressão e passou a criar quadrinhos para se curar (SILVA, 2013). Deu certo, no entanto, apesar de tratar do seu estado mental do momento, ele não utiliza visões. Já os Irmãos Matuck, lançaram a HQ “As Aventuras de Sir Charles Mogadom & do Conde Euphrates de Açafrão” (2010), com ambientação onírica e narrativa fragmentada, porém sem haver representações de

(9)

sonhos reais.

Os quadrinistas da lista dos quase visionários, com exceção de Mozart Couto, Gazy Andraus, Winsor McCay, Caza e Fabio Cobiaco, possuem vasta experiência com psicodélicos em geral. A maioria deles, a saber: Steve Clay Wilson, Robert Williams, Victor Moscoso, Robert Crumb, Peter Max, Jim Starlin, Mary Fleener, M. Maraska, Rick Griffin, Steve Engleheart, Frank Brunner e Alan Weiss, foram bastante influenciados pelo uso do LSD. Entretanto, tal influência se deu na abertura criativa, no rompimento com possíveis amarras estéticas que estes autores teriam antes do contato com o LSD. Wilson, Williams, Moscoso, Crumb e Griffin seriam os principais desta listagem a exporem tal fato (CAMPOS, 2005), mas deixando claro que a influência se limitava a ampliação das possibilidades criativas deles de até então. Crumb, em particular, escreveu vários textos, publicados no Brasil no livro “Minha Vida” (CRUMB, 2010), em que narra suas experiências com LSD. Apesar dele dizer que “durante dez anos, meu trabalho foi alimentado por visões psicodélicas” (CRUMB, 2010, p. 107), sou inclinado a distanciá-lo dos verdadeiros visionários por não identificar representações específicas de visões – como as exemplificadas por Caruana (2013). “O LSD me libertou do ego por um breve período. Todos os meus desenhos vinham de dentro...uma visão interna...miraculosa. Foi a maior liberdade do subconsciente que tive na vida. De novembro de 1965 a abril de 1966, flutuei por ai sem ego, totalmente passivo” (CRUMB, 2010, p. 51). Mesmo após o comentário anterior de Crumb, o que percebo no trabalho dele é a liberdade gráfica de alguém que perdeu o pudor e não necessariamente a exposição de visões.

Fig 2: Primeiro página: ilustração do falso visionário Steve Ditko para uma história do Dr. Estranho (1965). Segunda página: desenhos de Jack Kirby para o Quarteto Fantástico (1966). Terceira página: Gilbert Shelton desenha The Fabulous Furry Freak Brothers (1970). Quarta página: Jesse Reklaw, Slow Wave (2000). Fontes: Strange Tales #138,

(10)

Com o intuito de elucidar como se deu a influência do LSD na criatividade de Robert Crumb, o pesquisador Matthew T. Jones (2007) desenvolveu o estudo intitulado The Creativity of

Crumb: Research on the Effects of Psychedelic Drugs on the Comic Art of Robert Crumb. O

referencial básico parte dos resultados obtidos pelos doutores Oscar Janiger e Marlene Dobkin de Rios (2003) no livro LSD, Spirituality, and the Creative Process.. A hipótese central levantada por Jones (2007) é de poder ser percebida a mudança de estilo gráfico e a ampliação imaginativa de Crumb ao comparar os trabalhos dele antes, durante e após o uso do LSD. A metodologia usada foi cruzar as 11 categorias de técnicas de alterações perceptuais, criadas por Janiger, com as técnicas de criação de quadrinhos descritas na literatura referente aos quadrinhos arte (JONES, 2007). Para a amostra, foram usadas as histórias disponíveis no livro The Complete Crumb Comics. Como resultado, Jones (2007) chegou a conclusão de que após o uso de LSD, Crumb passou a usar mais recursos gráficos que se enquadram nas técnicas de alterações perceptuais. O interessante, na verdade, é que o período pós-LSD, algo de ao menos dois anos depois de parar de usá-lo, Crumb passou a empregar mais intensamente os elementos que compõe as 11 técnicas.

Returning to the initial hypothesis, it can be concluded that Crumb’s post-LSD work (1977/1978 in the sample), though not created under the direct influence of psychedelic agents, still draws upon perceptual alterations to gain access to the fluidity of consciousness that facilitates blind variation and random combination. (JONES, 2007, p. 290).

Fig. 3: Primeira imagem: o quase visionário Winsor McCay, na série Little Nemo (1905). Segunda imagem de Jim Starlin para A Saga de Thanos (1973-1977). Terceira imagem: página de Luna Toon de Victor Moscoso (1969). Quarta imagem: Omo Bob Cavalga, de Rick Griffin, (1973). Fontes: comicstriplibrary.org/display/112 / A Saga de Thanos, editora Abril,

(11)

Chama atenção na conclusão de Jones (2007), destacada acima, quando ele diz que Crumb continuou a usar as alterações perceptuais para acessar a fluidez da consciência que facilita a variação cega e a combinação aleatória de imagens – duas das técnicas de Janiger. Ou seja, de acordo com o observado por Jones (2007), os psicodélicos beneficiaram Crumb basicamente em permitirem-lhe acesso mais efetivo a variações cegas e combinações aleatórias de temas para seus desenhos. Não há aí indicação explicita em representações de visões específicas. Crumb, mesmo nos referidos artigos, não menciona nada do tipo.

Para ficar claro o modo como o artista tratava suas práticas com LSD, destaco a história “Minha primeira viagem de ácido”, de 1973 e publicada no Brasil na coletânea “Minha Vida” (2010). Nessa HQ de uma página, Crumb demonstra bem a abordagem dada às suas experiências psicodélicas, sendo elas mais descritivas/analíticas do que necessariamente representativas dos estados mentais – como é possível conferir na imagem acima. Para a narrativa, Crumb prefere se ater aos efeitos visuais – causados de olhos abertos – ao invés de evidenciar as imagens internas, obtidas de olhos fechados. Quando decide tratar dos insights alcançados durante os ENOC, ele os descreve em texto e não em imagens, numa tentativa de zombar da situação. Uma postura totalmente contrária dos verdadeiros artistas visionários, os quais têm nas visões de ENOC um apreço especial, por compreendê-las como aberturas extrassensoriais para outros mundos (MIKOSZ, 2014).

Os demais artistas que estão na lista de quase visionários tendem a, também, usufruírem mais das novas qualidades gráficas descobertas com os ENOC do que necessariamente representar suas visões. Jim Starlim, por exemplo, na década de 1970 acabou por se beneficiar bastante dos motivos psicodélicos vistos durante o período em que usou LSD (HOWE, 2013) em séries como Warlock (1974), “Dr. Estranho” (1973) e Dreadstar (1982). Especialmente no caso de Glauco, cartunista brasileiro morto em 2010, membro-fundador de uma igreja do Santo Daime, chamada Céu de Maria, criou personagens de tiras influenciados pela ayahuasca. Ao todo são três. “Miraldinho”, corruptela de “miração”, termo usado na comunidade ayahuasqueira como forma de se referir as visões obtidas durante os efeitos do chá. Miraldinho foi publicado em 1998 no Jornal do Céu, criado pela igreja Céu de Mapiá, no Acre, somente para adeptos da igreja. Os outros dois personagens são: “Cacique Jaraguá” e “Mestre Alfa”, ambos publicados na Folha de São Paulo.

(12)

Com relação aos quadrinistas visionários verdadeiros, cinco nomes marquei com asterisco por terem sido dados como exemplo de quadrinistas visionários pelo próprio Caruana

(2013) no Manifesto. Grant Morrison, por sua vez, um dos principais roteiristas ingleses do século XXI, confessa ter criado algumas de suas obras mais famosas, como Flex Mentalo e “Os Invisíveis”, a partir da influência de psicodélicos.

I loved the psychedelic drugs which could twist my head, erase my name and address, open up my subconscious and turn my brain into a super-conductor, so I dosed like a madman for ten years, studied the effects and wrote it all down in The Invisibles and Flex Mentallo in particular. Zenith, Animal Man and Arkham Asylum are pretty straight edge and Doom Patrol shows the influence of shrooms from around the time of those Insect Mesh issues but I was mostly doing it straight. The 90s work emerged from the cockpit of a rocket-driven rollercoaster of LSD, cannabis, mushrooms, DMT, 2CB, ecstasy and champagne (MORRISON, 2005. s/p).

Fig. 4: "Minha primeira viagem de ácido”, de 1973 e publicada no Brasil na coletânea Minha

(13)

A sequencia inicial de Flex Mentalo (2013) é bem significativa (figura 6). Ela começa com um homem a lançar uma bomba que explode e dá início ao universo. As imagens seguem e o corte narrativo volta para o homem e dele para um ovo. Tal fluxo de imagens se assemelha muito com a sensação de plenitude com o todo proporcionada pelos ENOC, seria a sensação do numinoso, da integralidade individual com o cosmo – particularmente, já tive sensação similar e o resultado foi uma HQ intitulada O Todo (SILVA, 2013). Crumb menciona algo parecido na história “Minha primeira viagem de ácido” (figura 5), precisamente no primeiro quadro da quarta coluna. No caso de Crumb ele diz na HQ: “Estou enxergando de verdade pela primeira vez!! Tudo é cósmico” (CRUMB, 2010, p. 53). Na imagem, como é possível notar, Crumb se coloca como uma espécie de doente, agachado, abraçado às próprias pernas e com o olhar vazio. Morrison, ao contrário, em sua HQ resolve mostrar, dar um vislumbre, ao leitor do que seria essa noção de “tudo ser cósmico” – sendo essa, sim, a função do verdadeiro artista visionário.

Alejandro Jodorowsky, outro importante artista visionário, mais do que quadrinista também é ator, diretor de cinema e teatro, além de literato e mago. Porém, a mágica que desenvolve é de outro tipo. Como Jodorowsky mesmo diz, é uma psicomágica ou psicoxamanismo – um tipo especial de magia baseada na criação artística. No livro “A dança da realidade” (2009) ele trata do assunto e discorre sobre o quanto os sonhos lúcidos foram e são importantes para ele no fazer criativo.

Fig. 5: Página 1 e 2 de Flex Mentalo (2013), escrito por Grant Morrison e ilustrado por Frank Quitely.

(14)

Eu estava com mais de 50 anos quando, graças ao sonho lúcido, resolvi tentar o maior dos meus encontros: com o meu deus interior. (…) Tive a sensação de cair lentamente enquanto me sentia dissolver como se a luz fosse ácido. No final, com um grito que misturava euforia e paz abandonei minha última migalha de consciência individual e integrei-me ao centro. Explodi numa inconcebível sucessão de formas geométricas, milhares, milhões. Aquilo tudo formava mundos que evaporavam em oceanos de cores, palavras, frases, discursos em incontáveis idiomas que se cruzavam em colossais labirintos, o tempo transformado num instante eterno, palpitando e abrindo-se numa infinidade de futuros possíveis. Eu era o centro criador de tudo, explodindo sem cessar e sem fim, sem lacunas, em incontáveis, metamorfoses. (…) Depois dessa visão radical, que de certa maneira foi utilizada mais tarde na criação das histórias de Incal [feita em parceria com o também visionário Moebius], demorei muito tempo para sonhar de novo. (JODOROWSKY, 2009, p. 196; 200-201)

Julie Doucet e Aleksandar Zograf, seguem por caminhos similares. Doucet, a única autora apontada aqui, é canadense e publicou em 2006 o livro My most secret desire, no qual aborda os próprios sonhos – geralmente bizarros (visões das trevas na interpretação de Caruana). Zograf, quadrinista sérvio, também transpõe sonhos para as HQs. Talvez um dos mais conhecidos trabalhos de Zograf esteja na coletânea Flock of Dreamers – An anthology of dream inspired

comics, publicado em 1997. Nesta antologia, todos os autores se dedicam a representar sonhos.

Uns mais que outros podem ser tidos como visionários, como o caso de Zograf, Woodring e Veitch, porém, a maioria dos autores ali são interpretados por mim como quase visionários. No tocante a Zograf, na história dele inserida na coletânea, o autor narra parte do próprio processo criativo, a demonstrar como os quadrinhos, ou melhor tiras, formam sonhos e em qual estado de sono se encontrava para vê-las – uma vez que ele deixa bem claro a diferença entre sonho lúcido, sonho e alucinações hipnagógicas. Em Flock of Dreamers, Zograf participa ainda como editor, todavia assina com o nome verdadeiro: Saša Rakezid. Outras obras do autor a incluírem sonhos são: Pszichonaut (2006), Dream Watcher (1998) e a série de zines chamada Hypnagogic Review, atualmente no sexto volume (no site oficial não foi possível identificar a data de lançamento) e ainda em produção.

(15)

Alan Moore, quiçá, um dos autores de quadrinhos mais importantes dos últimos 30 anos é também um dos principais visionários da listagem. Após o primeiro contato com o LSD, ainda na adolescência, Moore mudou radicalmente sua compreensão de mundo (MILLIDGE, 2012). Tal revolução intelectual persistiu no autor depois de adulto. Ao fazer 40 anos, chegou a se declarar mago, sua magia, a escrita. O ritual para tanto inclui o uso de psicodélicos como Psilocybe

cubensis, vulgo cogumelo mágico, e Cannabis sativa, além de técnicas meditativas (MOORE, 2003).

A respeito ele diz:

You need something to get you there. It doesn’t have to be drugs. Drugs are one of the time-honored and original ways of getting you into that space, but there are lots of others as well: meditation, fasting, I suppose in extreme cases scourging, dancing or rhythmic drumming. Anything that will derange the senses, which all of those things will do if taken far enough. Now, for me, having grown up in the ‘60s and psychedelic drug culture having been something that I’ve always been very used to and comfortable With, it seemed like psilocybin mushrooms, which do have a very honorable magical pedigree going back to the first shamans in the cave, they seemed to be the mode of choice. How to actually propel myself into the magical space. (MOORE, 2003, s/p)

Vários dos trabalhos escritos por ele possuem aspectos que se enquadram no visionário, como em “Monstro do Pântano”. Na história “Abandonadas Casas” (2015), publicada originalmente em 1985, ao final as personagens principais, o Monstro e sua namorada, protagonizam cenas de sexo psicodélico. A ação se inicia com o Monstro a dar a ela um tubérculo alucinógeno que cresce em seu corpo. Ela come e ascende ao mundo transcendental.

Fig. 6: Primeira imagem: capa do livro Pszichonauta (2006), do visionário Zograf. Segunda imagem: página de Incal (1981-1988), escrita por Jodorowsky e ilustrada por Moebius. Terceira imagem: página dupla de Promethea (2000),

escrita por Alan Moore e ilustrada por J. H. Williams III. Fontes: Pszichonaut (2006) / Incal (1981-1988) / Promethea (2000).

(16)

Imageticamente é nítido para o leitor que as cenas retratadas ali são psicodélicas a remeterem a década de 1960. Mesmo sabendo do contato de Moore com os ENOC, não há como afirmar que as imagens em o “Monstro do Pântano” sejam, de fato, visionárias. Se essas imagens são incapazes de validar uma representação visionária verdadeira por parte de Moore, ao menos ensejou novas empreitadas no campo. Em “Promethea” (2015), lançada entre 1999-2005, Alan Moore desenvolve uma trama envolta em magia, criatividade e misticismo, de modo a explorar o próprio viés mágico. No depoimento abaixo ele explica, mesmo que superficialmente, o processo criativo de “Promethea”.

I find that whereas once I would have used drugs to explore all of the various spheres that I explore in Promethea‘s Kabbalah series–I mean, indeed I did use drugs to explore the lower five sephirot, but above that, I’m using my own mind, I’m using I suppose it’s what you’d call meditation, although it’s exactly what any writer does when they’re trying to get into a story, it’s just that the story in these instances is deeply concerned with these kabbalistic states, so getting into the story is almost the same as getting into the state. I find that that, in terms of the experience and the information, works just as well these days. (MOORE, 2003, s/p)

A história desenvolvida em “Promethea” é tão complexa que abordá-la, por si só, demanda uma tese a parte. Como a feita por Carlos Manoel de Hollanda Cavalcanti, no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais/EBA/UFRJ, intitulada “O Reencantamento do Mundo em Quadrinhos: uma análise de Promethea, de Alan Moore e J. H. Williams III”, defendida em 2013. Nela, Cavalcanti examina detalhadamente a parte gráfica, conceitual, filosófica e narrativa da HQ. Chega a destacar, mesmo que brevemente, a influência dos ENOC na criação de Promethea.

A arte psicodélica visa reproduzir, até onde possível, as sensações visuais provocadas pelo uso do LSD. Como dito acima, a saturação das cores e a fadiga visual, os intensos contrastes, a dificuldade de dissociação entre figura e fundo, as distorções, incluindo-se as formas e padrões flutuantes causadores de sensações estonteantes. A perturbação ali também possui função narrativa. Trata-se da alusão ao estado de transição entre o mundo sensível e o racional, seguido do metafísico. O que sobra, nesse ponto intermediário são os conteúdos que transitam na imaginação e no repertório sígnico dos leitores. (CAVALCANTI, 2013, p. 162-163)

Concordo com o exposto na citação acima de Cavalcanti (2013), mas com um adendo. Mais do que usufruir da estética da arte psicodélica, a qual “visa reproduzir as sensações visuais provocadas pelo LSD” (CAVALCANTI, 2013, p. 162), Moore, em Promethea, visou criar sensações nos leitores. O artista visionário consegue, de uma maneira ou de outra, levar o fruidor a

(17)

experienciar um estado não ordinário de consciência por meio da arte (BESERRA, 2014). Foi algo assim que Moore fez, ele provocou sensações nos leitores – as quais Cavalcanti identificou como “estonteantes” – o que vai além de apenas reproduzir um efeito visual. Como Alan Moore (2003) explica na citação anterior, Promethea foi construída a partir de estados cabalísticos e adentrar a história é quase como adentrar o estado metal no qual ela foi concebida.

Em relação aos outros autores visionários classificados como verdadeiros, Phillipe Druillet, francês, contemporâneo e conterrâneo de Moebius, já foi discutido por mim na dissertação (SILVA, 2013) e em outro artigo sobre ele e Sérgio Macedo (SILVA, 2015). Alain Vozz, autor franco-brasileiro, amigo pessoal de Macedo, foi com ele para a França na década de 1970 e juntos publicaram na antológica revista Metal Hurlant ao lado de Druillet, Moebius, Caza e tantos outros. Mister Strange é um quadrinista estadunidense que publicou de modo independente uma HQ chamada DMT Psychonautica – the cosmic comics (2014). Na abertura do livro Strange deixa claro a intenção da história: “Psychonautica is a series of postulations made after experiences with

DMT in an attempt to record the journey in as much detail as possible and dissect the experience by drawing correlations between this world and that of the psychedelic in which reality takes on a whole new meaning” (STRANGE, 2014, p. 4).

Edgar Franco, orientador desta pesquisa, já publicou algumas histórias, inclusive uma em parceria comigo, que são representações de visões – principalmente advindas do uso de psilocibina. Vinicius Posteraro, apesar da produção tímida, já há alguns anos se dedica a quadrinhizar sonhos (lúcidos ou não), com o propósito de serem o mais fiel o possível do sonho original – seus trabalhos podem ser vistos na revista brasileira Camiño di Rato e no livro português “Zona Gráfica”. Moebius, Sérgio Macedo, Xalberto e Jim Woodring são analisados individual e detalhadamente em outros artigos (SILVA, 2014; 2015a; 2015b; 2015c). Os textos sobre os processos criativos e as aproximações com a arte visionária de Rick Veitch e Laudo estão ainda inéditos, no prelo.

(18)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No início deste artigo apresento a conceituação de Arte Visionária, cunhada por Laurence Caruana (2001). E por meio dela determino o limite padrão do que venha a ser arte visionária, ou não, para poder aplicá-lo na análise de histórias em quadrinhos. Dentro do proposto, separo os quadrinistas – de diversos períodos de tempo, desde 1905 a 2015, que possuem em seus trabalhos relações com ENOC – entre visionários, quase visionários e falsos visionários. Ressalto ainda que a classificação não é determinista e está sujeita a atualizações. Seria arrogância estipular como regra fechada a manutenção dos nomes de qualquer um dos artistas em qualquer uma das classificações. Não é por uma ser tratada como “falsa” que há desmerecimento dos trabalhos dos autores mencionados. Longe disso. Serve apenas como uma leitura possível para as obras deles. Até porque, principalmente os “quase e falsos visionários”, nunca se declaram como tais. Ao contrário dos verdadeiros visionários. Nem todos, mas a minoria deles se auto denominam ou são chamados por outros de “visionários”.

Um dos aspectos da pesquisa com quadrinhos visionários (tese em desenvolvimento) é buscar, por meio dos limites determinados, indicar quais são os quadrinistas que fazem parte do movimento artístico estruturado por Caruana (2001). Geralmente os próprios autores não se interessam por classificações como essa ou mesmo não se vêem como participantes do movimento. Talvez, os autores e acadêmicos, que dirigem o centro de formação The Vienna

Academy of Visionary Art, na Áustria, também não reconheçam os quadrinistas citados aqui como

autores de Arte Visionária. Mas não importa.

O objetivo é muito mais levantar possibilidades de interpretação e apontar novas vias de percepção das obras dos quadrinistas citados, do que simplesmente fechá-los dentro de uma categoria artística. O importante é aglutinar os autores de histórias em quadrinhos que utilizam de estados não ordinários de consciência para criarem – seja por meio de suas próprias experiências, ou ao retratarem as visões de outros. No fim, esta também é uma forma de ampliar o entendimento do leitor a respeito das obras de determinados autores. Talvez seja ainda uma contribuição para se dissipar os preconceitos infundados e mitológicos no tocante aos ENOC.

(19)

REFERÊNCIAS

BESERRA, Fernando Rocha. Experienciando a Arte Visionária: uma compreensão junguiana da

interação de estudantes com a obra de Alex Grey. 2014. 195 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia

Clínica) – Pontifica Universidade Católica, São Paulo, 2014.

CARUANA, Laurence. O primeiro Manifesto da Arte Visionária. Curitiba: Ordem Rosacruz, 2013.

_____. First draft of a manifesto of visionary art. Paris: Recluse

Pub, 2001.

CAMPOS, Rogério de. Alter América, Alter Heros. In: CRUMB, Robert. Zap Comics. São Paulo: Conrad, 2005.

CAVALCANTI, Carlos Manoel de Hollanda. O reencantamento do mundo em quadrinhos: uma

análise de Promethea, de Alan Moore e J. H. Williams III. Tese (Doutorado em Artes Visuais) –

Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013.

COLIN, Flavio. DAIME. In: BARROS, Otacilio D'Assunção (Org). Pesadelo, 4, vl. 1, 113-132, 1981.

CRUMB, Robert. Zap Comics. São Paulo: Conrad, 2005.

_____. Minha Vida. São Paulo: Conrad, 2010.

DOBKIN DE RIOS, Marlene. LSD, spirituality and creative process. Vermont: Park Street Press, 2003.

HOWE, Sean. Marvel Comics – A história secreta. São Paulo: LeYa, 2013.

HUXLEY, Aldous. As portas da percepção: Céu e Inferno. São Paulo: Globo, 2002.

HEER, Jeet. Jack Kirby: Hand of Fire Roundtable. Disponível em: <

http://www.tcj.com/jack-kirby-hand-of-fire-roundtable-part-2/2/>. Acesso em: 01 jan. 2016.

JODOROWSKY, Alejandro. A dança da realidade – psicomagia e psicoxamanismo. São Paulo: Devir, 2009.

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

(20)

JONES, M.T. The Creativity of Crumb: Research on the Effects of Psychedelic Drugs on the Comic Art

of Robert Crumb. Journal of Psychoactive Drugs, 2007, n.39, v.3, p. 283-291.

LEWIS-WILLIAMS, David; CLOTTES, Jean. Los chamanes de la prehistoria. Barcelona: Ariel Prehistoria, 2009.

LEARY, Timothy; METZNER, Ralph; ALPERT, Richard. The Psychedelic Experience - A Manual Based

on the Tibetan Book of the Dead. New Yok: Citadel Underground, 2000.

MILLIDGE, Gary Spencer. Alan Moore - o Mago Das Histórias. São Paulo: Mythos Editora, 2012.

MIKOSZ, José Eliézer. Arte Visionária: Representações Visuais Inspiradas nos Estados Não Ordinários de Consciência (ENOC). Curitiba: Prismas, 2014.

MOORE, Alan. MAGIC IS AFOOT: A Conversation with ALAN MOORE about the Arts and the Occult. Portland: Arthur Magazine, 04 maio, 2003. Entrevista a Jay Babcock.

_____. A Saga do Monstro do Pantano livro dois. São Paulo: Panini, 2015.

_____. Promethea edição definitiva volume um. São Paulo: Panini, 2015

MORAIS, Fábio. Zodiako Premium. São Paulo: Opera Graphica, 2014

MATUCK, Artur; MATUCK, Carlos; MATUCK, Rubens. As Aventuras de Sir Charles Mogadom & do

Conde Euphrates de Açafrão. São Paulo: Terceiro Nome, 2010.

MORRISON, Grant. Flex Mentalo – o homem dos músculos mistério. Barueri: Panini Books, 2013.

_____. Grant Morrison. Los Angeles: Suicide Girls, 27 fev, 2005. Entrevista a Daniel Robert Epstein.

SILVA, Matheus Moura. Processos criativos de histórias em quadrinhos poético-filosóficas:

investigação teórica e produção poética. 2013. 232 f. Dissertação (Mestrado em Arte e Cultura

Visual) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2013.

_____. O Karma de Gaargot e La Nuit: vanguarda dos quadrinhos visionários. História, imagem e narrativas [online]. 2015a, v. 1 n.20, p. 1-16. ISSN 1808-9895.

http://www.historiaimagem.com.br/edicao20abril2015/karmagargot.pdf

_____. Ayahuasca e a influência na criação de Íncaro: Estórias daquele que voou. In: (Org.) BRAGA JR, Amaro Xavier; REBLIN, Iuri Andréas. Religiosidades nas histórias em quadrinhos. Leopoldina: ASPAS, p. 61- 78, 2015b.

(21)

Internacional de Artes Visuais da Unespar/Embap [online]. 2015c, v. 02 n. 01, p. 131-147. ISSN 2358-0437. http://periodicos.unespar.edu.br/index.php/sensorium/article/download/374/401

_____. A adaptação de Blueberry para os cinemas e a representação visionária. In: VII Simpósio Nacional de História Cultural: ESCRITAS, CIRCULAÇÃO, LEITURAS E RECEPÇÕES, 2014. São Paulo. Anais... São Paulo: História Cultural, 2014.

http://gthistoriacultural.com.br/VIIsimposio/Anais/Matheus%20Moura%20Silva.pdf

STRANGE, Mister. Psychonautica: DMT: A Graphic Novel. Middletown: Independente, 2014.

TEDS TALKS. Cosmic creativity how art evolves consciousness: Alex Grey. Disponível em:

<http://tedxtalks.ted.com/video/Cosmic-Creativity-How-Art-Evolv;TEDxMaui>. Acesso em: 10 dez.

2015.

THE MINDSCAPE of Alan Moore. Direção de DeZ Vylenz. Ingland: Shadowsnake Films, 2005.

Submissão: 21 de março de 2016

Avaliações concluídas: 09 de abril de 2016

Aprovação: 03 de agosto de 2016

COMO CITAR ESTE ARTIGO?

SILVA, Matheus Moura. Quadrinhos Visionários (Dossiê História em Quadrinhos: Criação, Estudos da Linguagem e usos na Educação). Revista Temporis [Ação] (Periódico acadêmico de História, Letras e Educação da Universidade Estadual de Goiás). Cidade de Goiás; Anápolis. V. 16, n. 02, p. 61-81 de 469, número especial, 2016. Disponível em:

<http://www.revista.ueg.br/index.php/temporisacao/issue/archive> Acesso em: < inserir aqui a data em que você acessou o artigo >

Imagem

Figura 1: Primeira imagem, gravura do visionário William Blake (1794), The Ancient of Days in Europe a Prophecy  copy K
Fig. 1: Primeira página: Daime, (1981), de Flavio Colin a retratar a miração de uma das personagens
Fig 2: Primeiro página: ilustração do falso visionário Steve Ditko para uma história do Dr
Fig. 3: Primeira imagem: o quase visionário Winsor McCay, na série Little Nemo (1905)
+4

Referências

Documentos relacionados

Tabela 16: Chi_Quadrado das diferenças entre os Resultados Descritivos entre os Parâmetros de normatividade tendo em conta o Meio de Proveniência na subescala

Nesta seção, abordaremos sobre o checklist desenvolvido para os aplicativos de apresentação de slides (vite Tabela 2). Com relação a primeira regra, os leitores de tela

O INSTITUTO EUVALDO LODI – IEL/CE, na qualidade de Agente de Integração de Estágio, responsável pelo Processo Seletivo de ESTAGIÁRIOS do TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Ofereceremos gratuitamente atividades como apresentação musical, oficina de construção de instrumentos (com cartilha de instruções disponibilizada aos participantes),

Para quem não é alérgico ou intolerante, estas substâncias ou produtos são completamente inofensivas.. prato Abrótea assada à

Os resultados obtidos mostraram que o bolo de banana elaborado com farinha de trigo (convencional) obteve somente notas no extremo superior da escala hedônica de gostei

Este artigo pretende mostrar como os HQs influenciam o cinema há muito tempo e ainda traça uma comparação sobre o Grafic Novell “A piada Mortal” de Alan Moore de 1988 e o

Qualquer outro tratamento desses dados que o fornecedor de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis possa querer efectuar para a comercialização dos