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Academic year: 2021

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Universidade Federal da Bahia

Instituto de Psicologia

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

ANDRÉ LUÍS PRADO DÓRIA

ETIQUETAS MÉDICAS NO CAMPO DA SAÚDE MENTAL

Salvador 2015

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ANDRÉ LUÍS PRADO DÓRIA

ETIQUETAS MÉDICAS NO CAMPO DA SAÚDE MENTAL

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação

em

Psicologia

do

Instituto de Psicologia da Universidade

Federal da Bahia como requisito parcial

para obtenção do título de Mestre em

Psicologia.

Área de concentração: Psicologia do

Desenvolvimento

Orientadora: Prof. Dra. Maria Virgínia

Machado Dazzani

Salvador 2015

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Dória, André Luís Prado.

D695 Etiquetas Médicas no Campo da Saúde Mental [Manuscrito] / André Luis Prado Dória.- 2015.

110f., enc.

Orientadora: Professora Dr.a

Maria Virgínia Machado Dazzani.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Instituto de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia.

Bibliografia: f.102-110.

1. Saúde mental 2. Psicanálise 3. Etiquetas médicas.

4. Reforma psiquiátrica. 5. Medicalização. 6. Diagnósticos psiquiátricos.

I. Maria Virgínia Machado Dazzani II. Universidade Federal da Bahia. III. Instituto de Psicologia IV. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. V. Título.

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TERMO DE APROVAÇÃO

ETIQUETAS MÉDICAS NO CAMPO DA SAÚDE MENTAL

André Luís Prado Dória

BANCA EXAMINADORA:

Profa. Dra. Maria Virgínia Machado Dazzani (Orientadora) Universidade Federal da Bahia - UFBA

Prof. Dr. Marcelo Frederico Augusto dos Santos Veras Universidade Federal da Bahia - UFBA

Profa. Dra. Lucíola Freitas de Macedo

Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais – IPSM-MG

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Agradecimentos

A Virginia Dazzani, por ter sempre permitido que as questões que moveram esse trabalho surgissem, e por ter me ajudado a dá-las uma direção. Por não sucumbir a uma orientação que apazigua ânimos e que me ajudou a transformar a angústia em alguma criação.

A Marcela Antelo, pela escuta e pontuações que me ajudaram a chegar até aqui. E que, sobretudo, me ajudam a continuar.

A Marcelo Veras, que também me forneceu direções. No plural. Dentre os valiosos caminhos indicados, esse me pareceu um possível diante das minhas limitações.

A Vládia Jucá, pelas suas considerações nos seminários de qualificação I e II, mais especificamente no II, que ajudaram significativamente na condução do trabalho.

A Lucíola Macêdo, por ter aceitado o convite para compor a banca examinadora.

Aos profissionais do CAPS em que trabalho, e onde esse estudo aconteceu, que tiveram paciência e bancaram minhas ausências. Comecei essa empreitada com colegas de trabalho e terminei com amigos no trabalho. Muito Obrigado.

A Nina, Dona Laura e demais usuários do CAPS. Vocês me fizeram achar que um trabalho que não nasce das histórias de pessoas está no campo da cibernética.

A Caroline Severo, Isabel Castelo Branco, Cláudio Melo e demais integrantes da equipe da clínica onde também trabalho, que sustentaram minhas ausências nos plantões que coincidiam com os compromissos do mestrado.

Aos professores do POSPSI, pela dedicação e ensinamentos.

Aos valorosos colegas da minha turma do mestrado, cujo apoio mútuo, intensificado nessa reta final, foi fundamental para mim.

Aos amigos que fiz nessa trajetória, em especial à Verônica, meu grilo falante acadêmico que levarei daqui para vida.

A Clara, uma das minhas mais belas causas no mundo.

A Malu, barbarella-companheira de muitas aventuras e desventuras.

A Torquato, Helena de Tróia, Badjara, João, Gabriel, Têca, Azinha, Dona Lia e cia, pelo afeto que nunca enferruja.

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“Aqui tens uma grande caixa com o rótulo: caixa. Se a abrires, encontrarás nela uma caixa com o rótulo: caixa tirada de uma caixa com o rótulo: caixa. Se a abrires – agora me refiro a esta caixa não àquela –, encontrarás nela uma caixa com o rótulo etcetera; e se continuares assim, encontrarás, depois de infindáveis fadigas, uma caixa infinitamente pequena com um rótulo tão miúda que, por assim dizer, se evapora diante de teus olhos. É uma caixa que existe só na tua imaginação. Uma caixa totalmente vazia.” Modelo da Teoria do Conhecimento Hans Magnus Enzensberger

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Dória, André (2015). Etiquetas Médicas no Campo da Saúde Mental. Dissertação de Mestrado. Instituto de Psicologia, Programa de Pós Graduação em Psicologia, Universidade Federal da Bahia, Salvador.

RESUMO

A clínica em Saúde Mental é atravessada atualmente por uma epidemia das classificações, adquirindo uma lógica protocolar, baseada em questionários diagnósticos em detrimento da escuta do sujeito. As etiquetas médicas que por vezes são coladas aos sujeitos, ou às quais os próprios sujeitos se alienam, apresentam uma lógica coletivizadora, de um nome comum para todos, que vai na contramão da clínica do caso a caso. Muitos sujeitos já chegam aos serviços de Saúde Mental com um autodiagnóstico, a partir da proliferação dos nomes oriundos da ciência. Este estudo apresentou como objetivo geral analisar os discursos e as práticas acerca dos diagnósticos psiquiátricos em usuários e técnicos de um CAPS da cidade de Salvador, a partir do referencial teórico da psicanálise. Os objetivos específicos foram descrever o funcionamento de um CAPS, analisar as possibilidades de identificação ao diagnóstico por parte dos usuários e discutir as possibilidades de institucionalização de usuários ao serviço. A própria instituição foi tomada como estudo de caso, a partir de fragmentos de casos de usuários e de acontecimentos no serviço que se relacionaram com o problema de pesquisa. O estudo trouxe a questão de que por vezes o próprio sujeito pode fazer uso do diagnóstico como forma de inserção em uma comunidade que traria um apaziguamento do seu sofrimento psíquico. O transtorno bipolar do humor foi tomado como ilustração da banalização das etiquetas médicas. Se uma das características do modelo anterior de assistência em Saúde Mental era a tendência em promover a institucionalização, esse estudo indicou que os serviços substitutivos também podem estar submetidos a esse risco.

Palavras Chave: Saúde Mental, Psicanálise, Etiquetas Médicas, Medicalização, Reforma Psiquiátrica.

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Dória, André (2015). Medical Labels in the Field of Mental Health. Master's thesis. Instituto de Psicologia, Post-graduation Program in Psychology, Universidade Federal da Bahia, Salvador.

ABSTRACT

The clinic in Mental Health is currently crossed by an epidemic of the classifications, thus acquiring a protocolar logic, based on diagnostic questionnaires in detriment of listening to the individual. The medical labels which sometimes are pasted at the individuals, or to which the subjects themselves become alienated, present a collectivizing logic, of denomination common to all, that goes against the case-to-case clinic. Many individuals already come to Mental Health services with an self-diagnosis, as from the proliferation of names coming from science. This study presented as general goal to analyse the discourses and the practices concerning psychiatric diagnostics in users and technicians of a CAPS (Psychosocial Care Center) from the city of Salvador, from the theoretical referencial of Psychoanalysis. The specific objectives were to describe the functioning of a CAPS, analyze the possibilities of identification to the diagnosis by the users and discuss the possibilities of institutionalization from users of the service. The institution itself was taken as case study, from fragments of users' cases and from occurrences in the service that related with the research problem. The study brought a question that sometimes the individual himself can make use of the diagnosis as a way of insertion in a community which would bring an appeasement of his psychic suffering. The bipolar disorder was taken as illustration of the banalization of the medical labels. If one of the characteristics of the previous assistance model in Mental Health was the tendency in promoting the institutionalization, this study has indicated that the substitutive services may also be submitted to this risk.

Keywords: Mental Health, Psychoanalysis, Medical Labels, Medicalization, Psychiatric Reform.

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Sumário

INTRODUÇÃO ... 10

CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS...16

OBJETIVO GERAL ... 17

OBJETIVOS ESPECÍFICOS ... 18

CAPÍTULO 1–O BIOPODER, A BIOPOLÍTICA E AS ETIQUETAS MÉDICAS ... 21

1.1 O normal e o patológico ... 24

1.2 Etiquetas médicas ... 30

1.3 DSM: a referência das etiquetas médicas ... 33

CAPÍTULO 2–AREFORMA PSIQUIÁTRICA E OS DESAFIOS NO COTIDIANO DE UM CAPS ... 40

2.1 A implantação do CAPS: dos números aos sujeitos ... 46

2.2 A Capsização da Reforma Psiquiátrica ... 49

CAPÍTULO 3–ALIENAÇÃO AO DIAGNÓSTICO, A MANÍACA CLÍNICA DAS CLASSIFICAÇÕES E INSTITUCIONALIZAÇÃO ... 51

3.1 Nina e a seratonina ... 51

3.2 A maníaca clínica das classificações ... 62

3.2.1 Uma breve história psiquiátrica do transtorno bipolar do humor ... 63

3.2.2 A questão diagnóstica ... 64

3.2.3 A melancolia e a mania: uma leitura psicanalítica ... 69

3.2.4 A epidemia bipolar ... 75

3.3 Dona Laura, a usuária ... 81

3.3.1 Clínica, política e institucionalização ... 82

3.3.2 A placa em homenagem a Dona Laura: dois aspectos da torção entre o sujeito e a instituição ... 87

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 95

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Introdução

O interesse por esta pesquisa surgiu da minha prática como psicólogo clínico, de orientação psicanalítica, em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) na cidade de Salvador, Bahia. A Lei 20.216, de 6 de abril de 2001, que implementou a Reforma Psiquiátrica no Brasil, promoveu a transição do modelo hospitalocêntrico — representado pela experiência do hospital como o núcleo do tratamento dos sujeitos em sofrimento psíquico — para o modelo substitutivo, constituído pelos serviços alternativos ao modelo hospitalar, dos quais os CAPS são os dispositivos principais. Minha atuação profissional nesse CAPS desde sua fundação, em 2006, possibilitou um lugar de observação sobre os discursos e as práticas que permeiam o cotidiano do serviço.

A mudança do paradigma na Saúde Mental, com o estabelecimento da chamada clínica biopsicossocial, promoveu o empoderamento de outras profissões e saberes na abordagem da loucura. Psicólogos, terapeutas ocupacionais, enfermeiros, educadores físicos, assistentes sociais ganharam voz em um campo em que, até então, o discurso médico era preponderante. No entanto, o caminho percorrido para o estabelecimento dessas outras categorias profissionais no desafio de lidar com a loucura por vezes não encontra eco para além dos muros dos CAPS, em uma época em que o discurso científico, especialmente o psiquiátrico, desenvolve uma busca incessante para encontrar causas orgânicas, marcadores biológicos que estejam na origem dos transtornos mentais.

Apesar do fracasso em encontrar as raízes da bipolaridade, ou da esquizofrenia, no cérebro, o impulso classificatório da psiquiatria contemporânea cria diagnósticos e reconstrói os antigos, que, com a popularização pelos meios de comunicação, surgem no discurso de alguns dos sujeitos atendidos (denominados usuários pela nova semântica da Reforma

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Psiquiátrica) nos CAPS. É grande o número de sujeitos que chegam ao serviço com um pré-diagnóstico, um autopré-diagnóstico, em uma espécie de reflexo da banalização das classificações psiquiátricas que ocorre na atualidade. Essa forma de entrada no CAPS pode marcar a trajetória dos sujeitos na instituição. A prevalência do discurso médico como principal resposta ao sofrimento psíquico não raramente chega incorporada ao discurso do usuário.

Foram as semelhanças observadas, e não as esperadas diferenças na prática cotidiana de um hospital e de um CAPS, que configuraram o ponto de partida deste estudo. Se no hospital psiquiátrico o discurso médico é prevalecente em virtude da natureza institucional desse modelo — o hospital é uma instituição médica —, no CAPS, a demanda pela resposta médica diante do sofrimento psíquico se dá a partir da escolha, por parte dos usuários e familiares, dos psicofármacos como o principal vetor no alívio dos sintomas. Essa escolha é percebida no aumento expressivo da quantidade de usuários durante os dias de plantão do médico psiquiatra. Nas entrevistas de acolhimento a novos usuários, não é incomum escutarmos falas como “acho que sou bipolar”, “será que tenho TOC?”, ou ainda “você pode me passar algum remédio?”.

A supervalorização da medicação é fomentada pelo poder econômico da indústria farmacêutica na atualidade, associado ao predomínio de uma clínica baseada em protocolos que exclui a escuta do sujeito em detrimento do preenchimento de questionários, cujo objetivo seria uma suposta precisão no ato diagnóstico e a consequente emissão de uma etiqueta médica à qual alguns pacientes acabam por se alienar. O casamento do cientificismo com o capitalismo produz uma tirania da avaliação, não somente no campo da Saúde Mental, mas na sociedade em geral. Cria-se uma disciplina que submete o corpo e seus sentidos, transformando o sujeito avaliado em objeto do discurso científico, educando-o e medicando-o para adequá-lo à norma pré-estabelecida (Gana, 2011).

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A produção de novas categorias nosográficas por vezes não vem apartada da produção de drogas indicadas para seu tratamento. Preciado (2013) descreve a ciência como a nova religião da contemporaneidade, pois teria a capacidade de criar, e não somente descrever, a realidade. A autora prossegue relatando que o sucesso da tecnociência se deu em transformar a depressão em Prozac, a masculinidade em testosterona, a ereção em Viagra, inaugurando subjetividades caracterizadas pela substância consumida. Há os prozac, os sujeitos-viagra, os sujeitos-ritalina. Esse primado da substância também encontra eco nas palavras de Laurent (2002):

Estamos, hoje, mergulhados no medicamento. Ele é onipresente em nosso campo. Transforma a clínica. Define ideais de eficácia, transforma as instituições médicas, triunfa sobre as tradições e os significantes mestres. Ele é objeto de demandas neuróticas, de exigências psicóticas e de usos perversos. (p. 25).

Encontramos na literatura de ficção um exemplo irônico dessas questões. O romancista e ensaísta norte-americano Jonathan Franzen lançou em 2001 As correções, livro que lhe concedeu os prêmios National Book Award e James Tait Black Memorial Prize, além de torná-lo finalista dos prêmios Pulitzer e International IMPAC Dublin Literary Award. Nessa obra, Franzen narra uma viagem de cruzeiro pela costa leste norte-americana de um casal de idosos oriundo do meio oeste daquele país. Em determinado momento da viagem, o marido, diagnosticado com o mal de Alzheimer, sofre uma intensa crise de agitação psicomotora dentro da pequena cabine da embarcação, que leva sua aflita esposa, Sra. Enid, a procurar o médico do navio, Dr. Hibbard. Na consulta, o profissional não consegue escutar que o motivo da visita era a crise do marido e prescreve um remédio chamado Aslan Cruzeiro para a mulher, que acaba convencida do intuito do médico — para ele, era a própria Sra. Enid que precisava ser medicada. Segue-se o diálogo:

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— E o que ele faz? [pergunta Sra. Enid referindo-se ao Aslan Cruzeiro].

— Absolutamente nada, respondeu Hibbard, se você tiver uma saúde mental perfeita. Mas na verdade, vamos e venhamos, quem é que tem?

— Ah, e se não tiver?

— O Aslan produz a melhor regulagem dos neurotransmissores que já foi produzida. Os melhores remédios aprovados para uso americano, em comparação, são como dois Marlboros e uma cuba-libre.

— É um antidepressivo?

— O termo é grosseiro. Eu prefiro ‘otimizador de personalidade’.

— E o Cruzeiro?

— O Aslan otimiza dezesseis dimensões químicas, explicou Hibbard pacientemente. Mas tem mais. O ótimo para uma pessoa num cruzeiro turístico não é o ótimo para uma pessoa no trabalho. As diferenças químicas são sutis, mas se somos capazes de um controle fino, por que não oferecer? Além do Aslan ‘Básico’, a Farmacopea [laboratório que produz o medicamento] vende oito combinações específicas. O Aslan ‘Esqui’, o Aslan ‘Hacker’, o Aslan ‘Performance Ultra’, o Aslan ‘Teen’, o Aslan ‘Club Med’, o Aslan ‘Anos Dourados’ e estou esquecendo qual? O Aslan ‘Califórnia’. Muito popular na Europa [...]. E você vai me perguntar, qual é a característica especial do ‘Cruzeiro’? Ele desliga totalmente a ansiedade. Deixa o ponteiro na posição zero. Diferente do Aslan ‘Básico’, porque para o funcionamento do dia-a-dia precisamos de um nível moderado de

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ansiedade. Estou tomando o ‘Básico’, por exemplo, porque estou trabalhando.

— Sei, mas como é que posso comprar mais de casa?

— De que parte do país você é?

— Do meio-oeste. Saint Jude.

— Bem. Sua melhor opção seria o Aslan ‘Mexicano’ [...]. Claro, se você gostar do remédio e quiser um acesso sem nenhuma dificuldade, sempre pode fazer mais um cruzeiro pela Pleasurelines. (Franzen, 2001, pp. 330-331).

Historicamente, o discurso médico e psiquiátrico esteve ao lado da manutenção das normas sociais, classificando e propondo o controle das condutas consideradas desviantes. Scliar (citado por Veras, 2009) fornece o exemplo do médico norte-americano Samuel A. Cartwright, quem em 1851 publicou no New Orleans Medical and Surgical Journal a descoberta da drapetomania, patologia que consistia no impulso dos negros escravos em fugir, correndo, dos trabalhos forçados. Segundo Cartwright, com acompanhamento e aconselhamento médico apropriado, o impulso dos negros em fugir poderia ser prevenido.

Nas entrelinhas desse discurso já existia a transformação do lugar do sujeito ao lugar de objeto do discurso médico, reduzindo-o a um corpo orgânico passível de enquadramento e controle. Da drapetomania, no século XIX, à Síndrome das Pernas Inquietas,1 no século XXI, a classificação das condutas consideradas desviantes da norma pelo discurso médico avançou em níveis significativos, consolidando sua natureza de enquadramento e controle, abrangendo todas as etapas da vida, patologizando comportamentos historicamente tolerados e ampliando

1 De acordo com os critérios do DSM–V, essa síndrome é caracterizada pela necessidade de movimentar as

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e reconstruindo semanticamente diagnósticos antigos. Com isso, aumentou-se a abrangência e o alcance da intervenção psiquiátrica, a área do discurso médico que interessa a este estudo.

Em uma época em que a clínica é dominada pelos protocolos diagnósticos, as crenças que orientam as ações dos profissionais dos serviços de saúde são fundamentais para a desconstrução, ou manutenção, da acrítica ao diagnóstico médico, que reduz o sujeito ao lugar de objeto do discurso da ciência e que, consequentemente, poderia marcar seu desenvolvimento até fases posteriores da vida. Para Costa (2004), a dúvida quanto à eficácia da intervenção profissional consiste em saber se tal intervenção não irá, ao invés de sanar o mal, perpetuar a doença.

O risco de assumir uma posição clínica embasada numa postura acrítica e em etiquetas diagnósticas pré-estabelecidas é o de reproduzir essas etiquetas em uma espécie de homogeneização dos sujeitos. Essa condição gera uma situação em que não há margem para juízos provisórios, suscetíveis a falhas, em detrimento de juízos inabaláveis, imutáveis, cristalizados, que acabam por forjar um preconceito que sustentaria uma prática clínica míope. As discussões em torno da nova edição do DSM–V — Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders, o Manual Diagnóstico e Estatístico para os Transtornos Mentais —, lançada em maio de 2013 pela Associação Psiquiátrica Americana, tornam ainda mais pertinente e atual a reflexão sobre o predomínio das etiquetas médicas na resposta ao sofrimento psíquico.

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Considerações Metodológicas

Diante dessas questões, surgiu a pergunta que originou esta pesquisa: quais são os discursos e as práticas relacionadas aos diagnósticos psiquiátricos no cotidiano de um CAPS?

Esta pesquisa é baseada no referencial teórico da psicanálise e, em virtude disso, algumas considerações se fazem necessárias, dadas as distinções entre o campo epistemológico da ciência e o campo epistemológico da psicanálise. Sá (2006) relata que, para obter o estatuto de científica, uma pesquisa precisa ser replicável. Um pesquisador que se proponha a seguir os passos do pesquisador anterior deverá encontrar os mesmos resultados. Nesse sentido, a função da ciência visaria “exaurir o real, capturá-lo em alguma medida, para, eventualmente, nele intervir” (p. 82). Não há, portanto, como considerar o sujeito da pesquisa, pois o predomínio do método, dos procedimentos metodológicos, de uma determinada forma de execução da pesquisa com vistas à construção de resultados precisos e, sobretudo, replicáveis apaga a dimensão do que é particular a cada sujeito.

Haveria algo de fantasioso se considerássemos a hipótese de que a ciência deveria abarcar o que é singular do sujeito. A penicilina não existiria se tivesse que ser testada caso a caso. Em certa medida, o apagamento do sujeito não impediu notáveis avanços no campo das ciências biológicas, por exemplo, e talvez não fosse possível outra condição. Entretanto, o que notamos é uma adaptação do modelo metodológico das “ciências duras” — física, química, matemática — para a psicologia, que reivindica o seu estatuto de ciência. A psicanálise se situa justamente nesse hiato entre as ciências duras e as ciências psicológicas, não somente por constituir um saber derivado do que a ciência apaga — por questões intrínsecas à natureza do discurso científico — a singularidade do sujeito, mas também por considerar as relações do saber com uma instância que a ciência nem sequer apaga, pois não a reconhece, o inconsciente. Nas palavras de Poli (2006),

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para Freud o modelo era outro. O problema com o qual a ciência de sua época se confrontava, e no qual a psicanálise interveio com a hipótese do inconsciente, era o da causalidade mecanicista. O saber médico operava com essa lógica, que a histeria questiona, mostrando, que entre causa e efeito há uma hiância de saber. É aí que a psicanálise situa seu objeto. (p. 43).

Mas essas questões não devem apartar a psicanálise do resto do mundo, inclusive o acadêmico. Freud (1919/1996), em Sobre o ensino da psicanálise nas universidades, sugere que a entrada da psicanálise no ensino da medicina lançaria questões importantes que não eram consideradas. A importância dos laços transferenciais no tratamento era uma delas. Em uma formação médica eminentemente biológica e organicista, pôr em cena a transferência nos parece uma tradução do que Sá (2006) descreve como uma instabilidade que o discurso analítico pode provocar nos discursos estabelecidos. Esse autor descreve ainda que um corte proposto por Lacan estendeu a psicanálise para além da clínica e das questões internas de seu campo, não recuando diante da possibilidade de fornecer contribuições sobre os impasses e as questões que dizem respeito ao sujeito contemporâneo, com base nas especificidades de cada caso. Os seguintes objetivos foram traçados para realização deste estudo:

Objetivo geral

Este estudo teve como objetivo geral analisar os discursos e as práticas de usuários e técnicos relacionados aos diagnósticos psiquiátricos no cotidiano de um CAPS.

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Objetivos específicos

Com base no objetivo geral, foram traçados os seguintes objetivos específicos: 1. identificar e descrever o funcionamento cotidiano de um CAPS;

2. analisar a possível alienação ao diagnóstico em usuários do serviço;

3. identificar a prevalência dos diagnósticos com base na análise de prontuários; 4. discutir a possibilidade de institucionalização dos usuários ao CAPS.

Allones (1989, citado por Iribary, 2003) descreve cinco grandes variações no que se refere ao estudo de caso e à comunicação das análises da pesquisa. Essas variações são marcadas por diferenças epistemológicas e metodológicas e descritas das seguintes formas pelo autor:

 no campo da psiquiatria, o ponto de partida é a anamnese para a construção do diagnóstico, com o objetivo de formar uma semiologia e nosografia das doenças pesquisadas;

 no campo da psicopatologia, o estudo de caso busca ampliar a explicação dos processos psicopatológicos por meio da relação causalista entre a patologia estudada e o comportamento do sujeito adoecido;

 no campo da sociologia, o estudo de caso é construído por meio de técnicas que utilizam as histórias de vida e as questões familiares, por exemplo, como veículos de abstração do elemento cultural formador da subjetividade;

 no campo da psicologia clínica, o estudo de caso não contempla a avaliação e o diagnóstico, privilegiando a evolução de uma biografia no plano clínico;

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 na psicanálise, o modelo paradigmático de Freud inaugura um estilo de relato documental sobre a evolução do paciente que servirá como modelo para a metapsicologia freudiana.

Embora esta pesquisa seja fundamentada na psicanálise, seu método não envolveu a construção de casos clínicos, mas a análise de fragmentos de casos ocorridos no CAPS ao longo da trajetória profissional do autor desta dissertação. Esses casos possibilitaram uma análise das questões apresentadas no problema de pesquisa. O CAPS foi tomado como estudo de caso, com base em fragmentos de casos envolvendo usuários e técnicos, mas considerando também os discursos clínicos e políticos que atravessam a instituição.

Este estudo está organizado em três capítulos. O primeiro apresenta uma proposta sobre o processo histórico de construção das etiquetas médicas, a partir do estabelecimento do biopoder e da biopolítica, do empoderamento da medicina e da consequente demarcação das fronteiras entre o normal e o patológico. Conclui-se com um histórico sobre a construção dos DSMs. No segundo capítulo, são apresentadas considerações sobre a Reforma Psiquiátrica, sobre os desafios e impasses na prática cotidiana de um serviço substitutivo e sobre o processo de implementação do CAPS onde ocorreu este estudo.

No terceiro capítulo é apresentada a análise, construída a partir de fragmentos de casos, acontecimentos do cotidiano da instituição e recortes das discussões nas reuniões técnicas que se relacionam ao problema de pesquisa e aos objetivos da pesquisa. A primeira seção da análise, denominada “Nina e a seratonina”, foi desenvolvida com base nas entrevistas de acolhimento de Nina,2 nos registros dos seus atendimentos e em fragmentos de sua passagem pela instituição, a partir dos quais analisamos a possibilidade de alienação ao diagnóstico por parte do sujeito. Partimos da terceira modalidade de identificação freudiana

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até chegarmos à proliferação dos nomes oriundos da ciência, na atualidade, e suas ofertas para identificações.

A segunda seção da análise, denominada “A maníaca clínica das classificações”, foi desenvolvida por meio da consulta a uma lista3 dos 188 usuários ativos do CAPS, a partir da qual fizemos um levantamento dos diagnósticos mais comuns e frequentes. Tomamos o transtorno bipolar do humor, por sua prevalência e, sobretudo, por suas fronteiras indefinidas — a forma clássica que descrevia episódios bem delimitados de depressão e mania hoje dá lugar à noção de espectro bipolar, tornando suas fronteiras imprecisas. Construímos um histórico sobre esse transtorno para tomá-lo como ilustração das questões relacionadas ao furor classificatório da psiquiatria contemporânea e às diferenças entre o diagnóstico psiquiátrico, fenomenológico, e o diagnóstico estrutural, fundamentado na psicanálise. Por fim, propomos uma reflexão sobre o impasse na negociação do que é considerado patológico em um transtorno que caracteriza a aceleração psíquica como critério diagnóstico em um mundo marcado pelo apelo à velocidade do pensamento, da troca de informações.

A terceira seção da análise, denominada “Dona Laura, a usuária”, foi construída a partir dos fragmentos da história de Dona Laura que possibilitaram uma análise sobre a institucionalização — que por muito tempo foi característica do modelo hospitalocêntrico — nos serviços substitutivos, sobre os impasses diante da polarização da Reforma Psiquiátrica em uma dimensão clínica e uma dimensão política e sobre a transferência como ponto de partida de seu acompanhamento na instituição.

3

Esta lista é construída e atualizada com frequência pelo setor administrativo da instituição. Seu objetivo é fornecer de forma célere dados dos usuários, tais como nome, endereço e diagnóstico, facilitando o acesso a essas informações para preenchimento de fichas, marcação de consultas ou contato por telefone.

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CAPÍTULO 1

O BIOPODER, A BIOPOLÍTICA E AS ETIQUETAS MÉDICAS

As transformações ocorridas nos séculos XVII e XVIII com a Revolução Científica,4 o Renascimento Cultural e o Iluminismo marcaram uma profunda mudança nos mecanismos de poder dos Estados perante seus cidadãos. A partir do século XVII, o poder sobre a vida desenvolveu-se em dois polos complementares. Em um dos polos, caracterizado por uma anatomopolítica do corpo oriunda das práticas disciplinares, das quais a escola, o exército e as oficinas profissionalizantes são exemplares, o corpo foi transformado em máquina, adestrado, docilizado, com o objetivo de aumentar suas aptidões. Em outro polo, surgido em meados do século XVIII e caracterizado por uma biopolítica das populações, emergiu o corpo-espécie, marcado por processos biológicos de reprodução, nascimento, mortalidade, longevidade e níveis de saúde. Esses dois eixos que marcaram o desenvolvimento do biopoder ainda se encontravam separados no século XVIII (Foucault, 2010, 2009).

O biopoder tornou-se fundamental para o desenvolvimento do capitalismo, a partir da demanda pelo corpo controlado pelas práticas disciplinares, em consonância com a adequação das populações e em nome das relações de produção econômica que se inauguravam. Em outras palavras, o corpo-máquina encontrava o corpo-espécie: o corpo dócil, utilizável, deveria estar inserido em uma população potencialmente saudável, capaz de fornecer mão de obra para a nova ordem econômica.

Novas tecnologias políticas foram desenvolvidas a partir da assunção do corpo como objeto de cuidado e controle. A saúde, as formas de moradia, a alimentação, todo o espaço da existência passaram a ser esquadrinhados e redefinidos com base nas estratégias biopolíticas

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que tinham como objetivo o bem-estar individual e coletivo. Na modernidade, não somente a posse de recursos naturais, mas, sobretudo, a qualidade de vida de seus trabalhadores se constituiriam na fonte de riqueza de um Estado (Birman, 2007).

Para Foucault (2010), a assunção da qualidade de vida como objeto principal das estratégias da biopolítica proporcionou ao sexo uma função política sem precedentes, situando-o justamente na articulação entre os dois eixos do biopoder. No que se refere às disciplinas do corpo, o sexo estava relacionado à docilização dos corpos e a uma série de condutas normativas ligadas às questões de gênero. No eixo político, estava relacionado ao controle das populações.

Em outras palavras, no aspecto disciplinar, o sexo fundou um micropoder sobre o corpo por meio das “vigilâncias infinitesimais, a controles constantes, a ordenações espaciais de extrema meticulosidade, a exames médicos ou psicológicos infinitos...” (Foucault, 2010, p. 158). No eixo político, “dá margem a medidas maciças, a estimativas estatísticas, a intervenções que visam todo o corpo social ou grupos tomados globalmente” (Foucault, 2010, p. 159). Ainda de acordo com Foucault (2010),

o sexo é acesso, ao mesmo tempo, à vida do corpo e à vida da espécie. Servimo-nos dele como matriz das disciplinas e como princípio das regulações. É por isso que, no século XIX, a sexualidade foi esmiuçada em cada existência, nos seus mínimos detalhes; foi desencavada nas condutas, perseguida nos sonhos, suspeitadas por trás das mínimas loucuras, seguida até os primeiros anos da infância; tornou-se a chave da individualidade [...]. De um polo a outro dessa tecnologia do sexo, escalona-se toda uma série de táticas diversas que combinam, em proporções variadas, o objetivo da disciplina do corpo e o da regulação das populações. (p. 159).

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A política do sexo desenvolveu-se em quatro linhas. O diálogo entre a disciplina, marca do controle sobre o corpo individual, e a regulação populacional, marca do controle sobre o corpo social, foi, então, estabelecido. As duas primeiras linhas foram forjadas pela demanda da regulação populacional — registro do social — mas seus efeitos se fizeram notar na disciplina — registro do individual — por meio da sexualização da criança e da histericização do corpo feminino, marcando o início da história da medicalização da infância e da mulher, respectivamente. No que se refere à mulher, a histericização de seu corpo conduziu, nas palavras de Foucault (2010), “a uma medicalização minuciosa de seus corpos, de seu sexo, em nome da responsabilidade que elas teriam no que diz respeito à saúde de seus filhos, à solidez da instituição familiar e à salvação da sociedade” (p. 160). As duas linhas seguintes foram originadas pela demanda disciplinar — registro do individual — mas seus efeitos se revelaram na regulação das populações — registro do coletivo — por meio do controle da natalidade e da“psiquiatrização das perversões” (p. 162).

Essa nova estratégia de poder, em que o sexo se torna o eixo principal, é marca de uma transformação, na modernidade, de uma sociedade simbólica do sangue para uma sociedade

analítica da sexualidade. Se o sangue estava situado ao lado da lei e do soberano,

simbolizando a morte quando a primeira era transgredida e o segundo era desrespeitado, a sexualidade estava situada ao lado da norma, da vida, do saber e das disciplinas (Foucault, 2010).

Na contemporaneidade, os dispositivos disciplinares se sofisticaram na esteira dos avanços tecnológicos que permitiram novas formas de controle dos corpos. Os dispositivos clássicos — o hospital, o quartel, a prisão — em sua versão contemporânea, deixam de estar situados fora do corpo para agirem em seu interior. As novas drogas — ritalina para regular a atividade psíquica, fluoxetina para regular o humor, sildenafila para regular a atividade

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sexual — podem ser lidas como a nova forma nanotecnológica de controle dos corpos (Preciado, 2013).

Segundo Mandil (2007b), um dos efeitos da biopolítica é o esvaziamento da noção de povo e a emergência de uma nova categoria, a população, definida por Miller (citado por Mandil, 2007b) como “um agregado de corpos nascentes, vivos, copulando e morrendo e eventualmente se agredindo uns aos outros” (p. 1). O sujeito idealizado é aquele capaz de promover um governo de si, de gerenciar seus estudos, seu trabalho, sua saúde. Um sujeito normal.

1.1 O normal e o patológico

O desenvolvimento da biopolítica e o consequente empoderamento da medicina como um de seus mecanismos fizeram surgir uma lógica que permeou as relações sociais e que se impôs para além da lei jurídica: a norma. A lei do direito fornecia ao soberano o direito de provocar a morte, transformando-a, assim, em instrumento para a manutenção da ordem social e do progresso. Porém, o surgimento do biopoder marcava uma mudança radical na natureza desse instrumento: a morte, punição máxima imposta pelo Estado aos cidadãos que transgrediam as leis, saiu de cena e deu lugar à vida, pois a população saudável, educada e útil ao desenvolvimento econômico de uma nação tornou-se objeto de novas políticas. Tais políticas eram mais voltadas para o aprimoramento da qualidade de vida das populações do que para o aprimoramento de novas técnicas de manutenção do poder pela antiga política do sangue, em que a morte era o maior trunfo (Foucault, 2010, 2005).

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Nesse cenário, a lei passou a assumir uma característica de norma, com a integração da instituição jurídica a um conjunto de aparelhos reguladores (escola, exército etc.), em especial, a medicina. Segundo Foucault (citado por Castro, 2009, p.310):

Nós nos convertemos em uma sociedade essencialmente articulada pela norma. O que implica um outro sistema de vigilância, de controle. Uma visibilidade incessante, uma classificação permanente dos indivíduos, uma hierarquização, uma qualificação, o estabelecimento de limites, uma exigência de diagnóstico. A norma converte-se no critério de divisão dos indivíduos. Desde o momento em que é uma sociedade da norma a que está se constituindo, a medicina, posto que ela é a ciência por excelência do normal, do anormal e do patológico, será a ciência régia.

A medicina, “ciência por excelência do normal”, se desenvolve em dois eixos: a medicina individual, clínica, e a medicina social, promotora da higiene social, com a reformulação da paisagem das cidades por meio dos dispositivos sanitários. A epidemiologia e a demografia são desenvolvidas segundo a lógica coletiva da medicina social. Porém, essas duas dimensões pelas quais a medicina se estabelece não são estanques. O eixo clínico-individual influencia, e é influenciado, pelo eixo social, pois a lógica da medicina clínica individual permanece em frequente diálogo com a lógica estatística e probabilística da medicina social (Birman, 2007).

Dessa nova constituição da medicina, emergiram as categorias normal, anormal e patológico, que nortearam o percurso de medicalização da sociedade moderna, intensificado na sociedade contemporânea. A medicina social buscava a normalização, tentando impedir que as anormalidades se transformassem em patologias por meio da intervenção nos espaços sociais (como exemplo, as condições sanitárias das cidades passaram a ser esquadrinhadas). Ao mesmo tempo, a clínica atuava sobre o patológico já constituído, visando a sua cura.

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Nesse sentido, loucura e criminalidade foram os objetos principais da medicalização do social, por meio da qual a normalização se realizava. A gênese da psicopatologia situou-se na intersecção entre criminalidade e delinquência, em conformidade com a ideia de que existiria um instinto na origem das ações criminais, conceito que escapava à racionalidade do direito. Ao mesmo tempo em que a psiquiatria forense se estabelecia com base em suas influências sobre o campo jurídico, a psiquiatria ia constituindo sua especificidade teórica, deslocando-se do campo da higiene social para o da clínica (Birman, 2007).

As fronteiras entre a medicina social e a individual parecem ter sido diluídas, e a lógica da probabilidade da primeira parece ter influenciado a lógica individual da segunda. O resultado pode ter sido um apagamento da escuta do sujeito, a quem a medicina clínica se destina, criando um sujeito desconhecido, produto das probabilidades estatísticas da medicina social da época, precursora da medicina cientificista contemporânea na qual a psiquiatria e seus protocolos diagnósticos se ancoram.

Foucault (2009), ao diferenciar a norma da lei, acaba por oferecer uma espécie de antevisão do que seria o produto do cientificismo médico, em especial psiquiátrico, que silencia o singular em nome da lógica do coletivo. São características da norma, segundo o autor: estar relacionada a um campo de comparação das condutas dos sujeitos e, por consequência, de regras de conduta com base em uma média estabelecida pelos comportamentos; diferenciar os sujeitos de acordo com uma média estabelecida e que deve ser alcançada; medir e, a partir disso, hierarquizar em termos de valor a capacidade dos sujeitos; com base nessa valoração das condutas, estabelecer uma conformidade que se deve buscar, homogeneizar; e, finalmente, traçar as fronteiras a tudo que lhe é exterior: a anormalidade. De acordo com Foucault (1994),

se os juristas dos séculos XVII e XVIII inventaram um sistema social que devia estar dirigido por um sistema de leis codificadas, pode se afirmar que

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os médicos do século XX estão a inventar uma sociedade da norma e não da lei. Não são os códigos que regem a sociedade, mas a distinção permanente entre o normal e o patológico, a tarefa perpétua de restituir o sistema de normalidade. (p. 50).

As condutas e o corpo humano são integrados à medicina, que amplia seu campo de intervenção para além das enfermidades. O termo medicalização faz referência a esse fenômeno, que, em seu percurso histórico, encontra a modernidade como uma época de ampliação de seu alcance, produto da sedimentação do biopoder e da biopolítica, e, finalmente, a contemporaneidade como seu auge. As raízes históricas da medicalização estão situadas em discursos e práticas sobre o corpo que passam longe de qualquer saber fundado em bases biológicas.

Birman (2007) retoma a antiguidade clássica como ponto de partida para definir, com base na noção do mal, três momentos históricos que marcam a trajetória ocidental dos discursos sobre o corpo e a saúde. Na tradição grega, o homem era muito mais objeto do que protagonista do mal, pois os deuses o teriam enlouquecido, eximindo-o assim da responsabilização por sua loucura. Com o cristianismo, essa lógica se inverteu e o homem passou a ser responsabilizado por suas transgressões aos preceitos divinos, trazendo à luz a questão da culpa e uma lógica da salvação, o que inaugurava um registro religioso da relação do sujeito com o mal. O ideal cristão da redenção, cujo produto seria a vida eterna, encontrou no surgimento da modernidade um abalo com a ideia de cura fundamentada na constituição da medicina moderna.

Se antes estava inscrito no registro do religioso, cabendo à religião a função da salvação, a partir da modernidade, o mal se transformou em doença, e a medicina, em salvação. Como exemplo desse estado de coisas, muitos sujeitos com epilepsia foram condenados à morte na fogueira durante a Idade Média. Séculos mais tarde, o

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desenvolvimento da farmacologia e da medicina salvaria a vida de sujeitos com epilepsia e todo um rol de doenças que no passado poderiam estar associadas a uma sentença de morte.

É inquestionável o aumento da expectativa e da qualidade de vida das populações com o avanço da medicina e dos dispositivos em seu entorno, tais como o sanitarismo, a epidemiologia e a farmacologia. O valioso avanço técnico e terapêutico da medicina na contemporaneidade por vezes se traduz, no campo da psiquiatria, por uma clínica protocolar, caracterizada por critérios diagnósticos que enquadram, classificam e diagnosticam com base não na singularidade do sujeito e de sua história, mas nas identificações diagnósticas coletivas que tornam cada vez mais frágil a fronteira entre o normal e o patológico. Esta Essa fronteira é imprecisa para diversos indivíduos considerados simultaneamente, mas é perfeitamente precisa para um único e mesmo indivíduo (Canguilhem, 2010). Em algum momento, a lógica coletiva da epidemiologia teria influenciado a lógica do particular da medicina clínica, embaralhando os conceitos de normal, anormal e patológico?

Para Canguilhem (2010), o médico constrói a norma com base em três conhecimentos complementares entre si: da fisiologia, caracterizada como a ciência do homem normal; da sua experiência vivida de seu funcionamento orgânico; e da representação social da norma em um dado momento histórico. O autor prossegue descrevendo que os dois primeiros quase sempre se confundem, já que é muito difícil dissociar o conhecimento da fisiologia da experiência pessoal com o próprio corpo quando se trata de diagnosticar e tratar uma patologia da qual o próprio profissional já padeceu. No sentido meramente fisiológico, o estado normal determina o estado habitual e ideal dos órgãos, e a terapêutica médica tem como objetivo restituir ao corpo esse seu estado original. No que se refere ao terceiro conhecimento, da norma como representação do que é comum ao espírito de um tempo, o normal está para além da restituição orgânica dos órgãos, relacionando-se à restituição da função social e econômica do corpo.

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Nos dois exemplos que se seguem, o primeiro elucida as questões relacionadas aos benefícios trazidos pelo progresso da ciência médica, enquanto o segundo lança luz ao que esta pesquisa denomina de “restos” desse desenvolvimento. O primeiro exemplo é citado por Canguilhem (2010), ao relatar o caso de um homem ferido gravemente no braço por uma serra circular. Graças a uma intervenção médica rápida e precisa, o braço não precisou ser amputado. Após a cirurgia de reparação, o braço não pode ser considerado normal se comparado ao outro membro, que não sofreu nenhum acidente. No entanto, o fato de o homem voltar a desempenhar as atividades relacionadas à sua profissão após o tratamento o reinsere em um contexto de normalidade, sem prejuízo das funções sociais e econômicas, restituindo-lhe sua dignidade no que se refere às suas condições laborativas e, consequentemente, psíquicas.

O segundo exemplo é a já citada descoberta da drapetomania pelo médico norte-americano Samuel A. Cartwright (1851). Nas entrelinhas do discurso em torno dessa nova patologia, já existia a redução do lugar do sujeito ao lugar de objeto do discurso médico, excluindo-o de seu contexto social, cultural e econômico — neste caso, um regime escravocrata — e reduzindo-o a um corpo orgânico passível de enquadramento e controle. Nota-se nesse exemplo um significativo embaraçamento das fronteiras entre o normal, o anormal e o patológico e suas repercussões nos sujeitos a quem a intervenção médica por muitas vezes se destina. Considerar o escravo fugidio passível de tratamento significa afirmar que sua conduta é patológica. Essa conduta estaria mais próxima da anormalidade do que da patologia, a não ser por uma licença poética descrita a seguir.

Para Canguilhem (2010), ser anormal está relacionado com um afastamento da maioria dos pares com os quais se deve ser comparado. Em outras palavras, a anormalidade é um desvio estatístico. Com relação à patologia, Canguilhem (2010) relata que sua origem “[...] implica em pathos, sentimento direto e concreto de sofrimento e impotência, sentimento

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de vida contrariada” (p. 96). Assim sendo, os escravos fugidios estariam doentes de escravidão, e não de liberdade, para a qual sua conduta patologizada pretendia conduzi-los. Se há um sentido para a patologização dessa conduta, ele é encontrado em Jaspers (1987), para quem, mais do que a avaliação do médico, é o julgamento dos pacientes e, sobretudo, das ideias dominantes do meio social que determina o que se chama doença.

A classificação das condutas consideradas desviantes da norma pelo discurso psiquiátrico avançou em níveis significativos na contemporaneidade, abrangendo todas as etapas da vida, patologizando comportamentos historicamente tolerados e ampliando o repertório diagnóstico com a criação de novas etiquetas médicas. Estas, por vezes, são coladas aos sujeitos, silenciando o que há de singular em sua história ao enquadrá-los em um nome comum para todos, produto de uma classificação diagnóstica.

1.2 Etiquetas médicas

As revoluções científicas dos séculos XVII e XVIII retiraram da religião uma espécie de patenteamento exclusivo para a explicação dos fenômenos naturais, gerando o desencantamento e a dessacralização da natureza e o consequente surgimento e fortalecimento da racionalidade científica (Birman, 2007). É nesse cenário que pensadores como René Descartes e Francis Bacon articulam as relações entre saber e poder. Esse é também o solo fertilizado de onde brotaria a relação entre a ciência e a técnica. A posse do saber proporcionaria a constituição do poder. O discurso das ciências passou a ser a sustentação das novas práticas técnicas. Na modernidade, com a Revolução Industrial, residiria o auge do

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triunfo da técnica sustentada pela ciência, mas, na contemporaneidade, a técnica é ainda mais empoderada, em razão do casamento da ciência com o capitalismo.

Os protocolos diagnósticos nos fornecem o exemplo desse estado de coisas: para cada doença diagnosticada com sua suposta precisão técnica, medicamentos específicos e um protocolo de tratamento. Os protocolos vêm antes, na confecção do diagnóstico, e depois, na indicação da melhor terapêutica. Tivemos um exemplo recente no Brasil: em 10 de março de 2015, o Ministério da Saúde publicou em seu site a informação de que foram incorporadas ao SUS (Sistema Único de Saúde), e serão disponibilizadas gratuitamente à população, cinco novas drogas para o tratamento do transtorno bipolar, perfazendo um investimento de R$ 750 milhões em cinco anos. O texto publicado no site também descreve a criação de um PCDT (Protocolo Clínico e Diretrizes Diagnósticas) “que servirá como guia para orientação do diagnóstico, tratamento e acompanhamento desses doentes [...] feito com base em evidências científicas disponíveis [...] de forma a ter uma padronização no tratamento desse transtorno”.5

É uma conquista inegável à população a disponibilidade desses medicamentos. Porém, o que seria feito com os casos que escapam “às evidências científicas disponíveis”?

No que se refere às relações da saúde com a técnica, Sfez (1995) descreve uma utopia

da saúde perfeita, forjada por uma espécie de purificação geral do homem e do planeta, em

uma espécie de reatualização, em finais do século XX, do higienismo que vigorou na transição entre os séculos XIX e XX. O avanço das ciências traz em seu bojo a possibilidade de erradicar doenças antes mesmo de elas existirem. Como exemplo, Sfez menciona o projeto Genoma, uma grande conquista científica que mapeou o código genético humano com o objetivo, entre outros, de prevenir os males que estariam inscritos no código genético. Não está em questão nesse estudo a pertinência e importância do progresso científico e da técnica.

5

Disponível no site do Ministério da Saúde do Brasil:

http://www.blog.saude.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=35266&catid=564&Itemid=101. Acesso em 21 de março de 2015.

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No entanto, por muitas vezes o cientificismo, acompanhado do tecnicismo, no campo da Saúde Mental, gera a exclusão do sujeito.

Como exemplo desse estado de coisas, a clínica psiquiátrica assume cada vez mais uma característica protocolar. Existem protocolos para diagnosticar transtornos mentais, como depressão e síndrome do pânico, em que os pacientes respondem a um questionário para preencher critérios em nome de uma precisão diagnóstica que exclui a escuta do sujeito.

Diversos autores estudam esse percurso cada vez mais tecnicista — que conduz a uma leitura biologizante do sofrimento psíquico — da clínica psiquiátrica, em consonância com o progresso da indústria farmacêutica (Fendrik, 2011; Izaguirre, 2011; Laia, 2013; Laurent, 2012; Rodrigues, 2003). O produto final é a descoberta de novas doenças para novos medicamentos ou do uso de antigos medicamentos para novas doenças. Segundo Foucault (citado por Castro, 2009, p. 300): ”o corpo humano entrou duas vezes no mercado: primeiro pelo salário, quando o homem vendeu sua força de trabalho; depois, mediante a saúde”.

Em outras palavras, para cada etiqueta médica descoberta, ofertam-se identificações que são o motor propulsor de um mercado lucrativo para todos: para a indústria farmacêutica; paraos profissionais que encontram conforto com seus novos instrumentos protocolares, que fornecem uma suposta precisão no diagnóstico e na prescrição do psicofármaco; e para os pacientes, que, ao se alienarem a uma etiqueta, encontrariam alívio para seu sofrimento psíquico.

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1.3 DSM: a referência das etiquetas médicas

A Segunda Guerra Mundial, e suas consequências no estado psíquico de soldados, familiares e sujeitos da população civil, criou uma demanda por classificações desses novos quadros, que não respondiam às categorias clássicas da psiquiatria (Fendrik, 2011). Além disso, a necessidade de uniformizar estatísticas oriundas de hospitais psiquiátricos, de sistemas de categorização usados pelo exército norte-americano e dos levantamentos realizados por membros da Associação Psiquiátrica Americana fez com que essa entidade criasse uma ferramenta capaz de oferecer alguma uniformidade aos dados estatísticos e diagnósticos.

Em 1952, surgia a primeira edição do DSM — Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders (Manual Diagnóstico e Estatístico para os Transtornos Mentais), fortemente influenciado pela psicanálise em razão do predomínio da psiquiatria dinâmica, que considerava os transtornos mentais como secundários à angústia originada por conflitos inconscientes. O conceito freudiano das neuroses ainda encontrava espaço na primeira edição do manual. No entanto, o apelo ao empiricismo, inspirado pelo comportamentalismo, tornou essas categorias imprecisas, exigindo um suposto rigor científico para as classificações.

Foi nesse cenário que a segunda edição do manual foi lançada, em 1958. Foram estabelecidos graus diferentes para a chamada ansiedade neurótica, mas a divisão entre a ansiedade neurótica e a ansiedade perante perigos reais foi mantida. O caminho para estabelecer a diferença ainda era questionar o paciente. Na anamnese, ao reconhecer que sua ansiedade não encontrava objeto correspondente, o paciente abria espaço para as questões inconscientes, que acabavam por se constituir em um empecilho para a almejada objetividade científica (Fendrik, 2011; Izaguirre, 2011; Rodrigues, 2003).

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A entrevista com o paciente, principal ferramenta para a precisão diagnóstica, passou a se constituir em seu maior obstáculo por trazer à luz as questões inconscientes, que ainda encontravam espaço no DSM–II. Em nome da objetividade científica, o sujeito foi sendo silenciado nas edições seguintes do manual, dando lugar à construção de categorias e critérios nosológicos fundamentados em questionários que, uma vez preenchidos, forneceriam um determinado diagnóstico.

Décadas antes da construção dos DSMs, Freud (1916/1996a) anteviu o movimento contraditório que se inauguraria com a clínica psiquiátrica baseada em questionários diagnósticos que excluem a escuta do sujeito. Em suas palavras, “é de se esperar que, em futuro não muito distante, perceber-se-á que uma psiquiatria cientificamente fundamentada não será possível sem um sólido conhecimento dos processos inconscientes profundos da vida mental” (p. 262). Com o avanço das classificações baseadas em questionários, a psiquiatria foi se distanciando da clínica baseada na escuta do paciente. Laia (2013) considera que a destituição da dimensão da linguagem inseriu a psiquiatria no campo da neurologia. Esse foi o caminho seguido pelas edições seguintes dos DSMs.

A terceira edição do DSM marcou um novo paradigma para a elaboração dos diagnósticos psiquiátricos e pode ser considerada como resultado de um processo histórico, iniciado décadas antes de a primeira equipe de psiquiatras designados para sua construção reunir-se pela primeira vez. Os anos 1950 foram o ponto de partida de um tecnicismo biologizante da clínica psiquiátrica, por meio da chamada revolução psicofarmacológica, cujos efeitos foram percebidos na publicação, em 1980, da terceira edição do DSM (Rodrigues, 2003). Dois movimentos marcaram a época gestacional da clínica psiquiátrica tecnicista e biologizada da atualidade. Embora nos dias de hoje pareçam antagônicos, à época eram complementares: ao tempo em que o primeiro neuroléptico, a clorpromazina, era

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descoberto, em 1952, a psicanálise encontrava o auge da sua influência na clínica psiquiátrica nas décadas de 1950, 1960 e 1970.

A descoberta dos primeiros antidepressivos e dos primeiros neurolépticos, associada à forte influência da psicanálise na psiquiatria dinâmica, suscitava um consenso de que o uso de psicofármacos seria mais eficaz quando associado à psicoterapia. Ehrenberg (citado por Rodrigues, 2003) relata que essa associação entre a psicofarmacologia e a psicoterapia “era o grande credo francês dos anos 1950 e 1960” (p. 13). Esse cenário foi se modificando com a promessa de eficácia e eficiência das novas medicações, que eliminariam os sintomas indesejáveis em poucas semanas. O lançamento da fluoxetina, no fim da década de 1980, é emblemático do fenômeno do empoderamento da psicofarmacologia como solução principal para o sofrimento psíquico. Ao inaugurar uma nova classe de antidepressivos, chamados de ISRS — Inibidores Seletivos de Recaptação da Serotonina — que apresentavam menos efeitos colaterais e toxicidade do que a geração anterior de antidepressivos, a fluoxetina teve seu uso popularizado; seus efeitos foram potencializados de tal forma que, nos Estados Unidos, passou a ser chamada de “pílula da felicidade”.

O empoderamento da psicofarmacologia, com o aumento da eficácia das novas medicações e das intensas campanhas de marketing, transformou as pílulas em promessa de felicidade, de produtividade, de concentração, de bom desempenho escolar, profissional e até sexual. Diante desse estado de coisas, as contribuições psicanalíticas foram perdendo espaço no campo da clínica psiquiátrica. Se há uma oferta expressiva de tratamentos químicos que prometem resultados rápidos, o surgimento de uma demanda por esse tipo de produto é uma questão de tempo. No entanto, essa oferta não só se tornou um sucesso absoluto de vendas como passou a influenciar na determinação de novos quadros nosológicos (Fendrik, 2011; Rodrigues, 2003).

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Segundo Aguiar (2004), até meados do século XX, o médico prescrevia a medicação a ser produzida por um farmacêutico. Esse ato ainda continha algo de especificidade, uma fórmula para cada paciente. Com o empoderamento da indústria farmacêutica, a partir da década de 1950, essa lógica se inverteu: os propagandistas da indústria passaram a visitar os médicos, levando-lhes as novas substâncias farmacológicas e suas posologias pré-definidas pela empresa farmacêutica.

Rodrigues (2003) nos fornece um exemplo de uma doença “descoberta” por meio das pesquisas do psiquiatra da Universidade de Nova York Donald Klein, em 1959. Klein utilizou a imipramina em pacientes com quadro de ansiedade, em função de sua semelhança molecular com a clorpromazina, descoberta dez anos antes. A clorpromazina se mostrara eficaz no tratamento das chamadas angústias psicóticas, terminologia que ainda apresentava influência da psiquiatria dinâmica e que compreendia a manifestação psicopatológica como uma forma severa de apresentação da angústia.

Um grupo de participantes com quadro de ansiedade grave foi utilizado como amostra. Os sujeitos não haviam respondido bem ao tratamento com clorpromazina, e apresentavam como característica comum a ausência de sintomas psicóticos. Com o uso da imipramina, houve uma grande alteração do quadro, e percebeu-se que o que existia em comum entre os que responderam positivamente à imipramina eram episódios agudos de ansiedade. Esses resultados levaram Klein a propor uma diferenciação entre ansiedade crônica e ataques de pânico. Em 1980, o DSM–III incorporou essa distinção. Pela primeira vez, uma categoria nosológica era criada com base em uma resposta clínica a uma substância farmacológica, abrindo espaço para o que viria nas décadas seguintes: uma espécie de tecnicismo que encerra a ideia de que, quanto mais uma doença é corretamente descrita, mas é eficazmente tratada.

Coser (2010) afirma que as primeiras descobertas da psicofarmacologia se deram segundo um fenômeno denominado serendipidade, termo cunhado por Horace Walpole, em

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1784, para designar a descoberta acidental de resultados não esperados. É o que ocorreu com os estudos de Klein com a imipramina, e também com a iproniazida, derivada da isoniazida (utilizada para tratamento da tuberculose), que produzia elevação no humor dos pacientes, tornando-se a precursora dos antidepressivos.

Retornando aos manuais diagnósticos, a marca inaugural do DSM–III foi o descolamento das formulações teóricas ou das hipóteses etiológicas para a formação de categorias nosológicas, em nome de uma pretensa objetividade que só uma leitura descritiva e ateórica dessas categorias poderia fornecer. O DSM–III marcou o divórcio da clínica psiquiátrica com a influência psicanalítica. Nas palavras de Rodrigues (2003),

o DSM então, se propõe a não colocar a etiologia em questão, restringindo-se a fazer uma descrição ateórica do fenômeno [...]. Trata-restringindo-se de uma abordagem neokrapleniana [...]. Ao invés de doenças, como em Kraeplin, fala-se de síndromes, abordagem que, do ponto de vista prático, faz muito pouca diferença. O que não se faz pertinente é o abandono do que está subjacente ao sintoma, que poderíamos chamar de experiência singular. Abandonar a singularidade humana em benefício da generalização não é, entretanto, um descuido do DSM–III, mas ao contrário, o seu próprio objetivo [...]. A época dos grandes pensadores da psiquiatria termina. O saber só tem sentido e valor caso se adapte ao rigor da metodologia cientificista-biologicista-farmacológica. (pp. 14-15).

Com o lançamento da quarta e quinta versões do manual, em 1980 e 2013, respectivamente, evidenciou-se a tendência de proliferação dos diagnósticos, presentes desde a primeira edição. A história dos DSMs em números mostra que, em sua primeira edição, havia 106 categorias de transtornos mentais em 130 páginas. A segunda edição contava com 182 categorias em 134 páginas. Na terceira edição, apareciam 265 categorias em 494 páginas

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que, em uma edição revisada sete anos após seu lançamento, se transformaram em 292. A quarta edição trazia 297 categorias em 886 páginas. A última versão, o DSM–V, recentemente lançada, traz 300 patologias distribuídas por 947 páginas. Tal evolução quantitativa é citada frequentemente como sinal de uma tendência à patologização (Fendrik, 2011, Forbes, 2012; Izaguirre, 2012; Laia, 2013; Rodrigues, 2003).

Particularmente a quinta e última edição teve seu lançamento, em 2013, cercado de críticas. As mais contundentes partiram do National Institute of Mental Health (NIHM), Instituto Nacional de Saúde Mental, principal entidade financiadora de pesquisas na área de Saúde Mental nos Estados Unidos. Seu diretor, Thomas Inse (2013), publicou no site oficial da instituição um comunicado em que declarou a independência do DSM–V e fez críticas ao seu conteúdo:

o NIHM irá reorientar sua pesquisa para longe das categorias do DSM–V. Daqui pra frente iremos apoiar projetos de pesquisa que olhem além das categorias atuais — ou que subdividam as categorias atuais — para que comece a se desenvolver algo melhor [...] Ao contrário de nossas definições de doenças isquêmicas do coração, linfoma ou AIDS, os diagnósticos do DSM–V são baseados em um consenso sobre um grupo de sintomas clínicos, e não em qualquer medida objetiva de laboratório.

Davies (2013) esclarece a direção peculiar na construção do diagnóstico pela psiquiatria, afirmando que, com raras exceções, a medicina geral opera da seguinte forma: uma vez descoberta a origem física de um problema, dá-se um nome, como fibrose cística, câncer ou doença de Crohn. Porém, segundo o autor, a psiquiatria opera amplamente em um sentido oposto, ou seja, nomeando uma desordem considerada mental antes de identificar qualquer base patológica no corpo.

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Laia (2013) mostra o fracasso da tentativa de apontar marcadores biológicos para os transtornos mentais na última edição do DSM mencionando a contradição nos discursos de dois dos principais representantes da psiquiatria na atualidade, Thomas Inse, diretor do NIMH, e Allen J. Frances, chefe da força-tarefa responsável pelo DSM–IV. Enquanto o primeiro defende que o DSM–V terá mais aplicabilidade entre os clínicos do que entre os pesquisadores, o segundo sustenta exatamente o contrário. A questão levantada por Laia é: como o que teria alguma validade clínica poderia ser invalidado pela pesquisa, e como o que teria algum alcance no âmbito da pesquisa poderia ter pouca aplicabilidade no âmbito da clínica? Essa confusão nos discursos pode ser gerada quando se pretende medir o que não se conhece bem. A suposta aparência científica dos critérios diagnósticos do DSM–V poderia fornecer alguma segurança ao profissional, ancorado em seus protocolos, e ao paciente que demanda respostas rápidas e simples ao seu sofrimento psíquico (Laurent, 2012).

É no contexto descrito no presente capítulo que a proliferação das etiquetas médicas e seus desdobramentos nas subjetividades aportam no campo da Saúde Mental. O capítulo a seguir traz considerações sobre a mudança de paradigma nesse campo após a Reforma Psiquiátrica.

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CAPÍTULO 2

AREFORMA PSIQUIÁTRICA E OS DESAFIOS NO COTIDIANO DE UM CAPS

Após quase quinze anos da implantação da Reforma Psiquiátrica no Brasil, a mudança de paradigma na abordagem da Saúde Mental ainda enfrenta impasses no que se refere à abordagem da loucura no campo da clínica e no campo político, as duas principais vertentes delimitadas pelo movimento reformista, embora esta pesquisa também procure se ocupar da impossibilidade de dissociação entre esses campos. Outro aspecto da mudança do paradigma da assistência em Saúde Mental refere-se à fragilidade em encontrar um significante que a represente. Veras (2010) relata que “o simbólico rateia diante da pluralidade discursiva. Assim, a Saúde Mental é barrada por não tratar o sujeito em sua integralidade, tal como ambiciona a abordagem biopsicossocial” (p. 113). Diante dessas considerações iniciais, tentaremos traçar um breve histórico da Reforma Psiquiátrica no Brasil, contemplando alguns dos impasses na prática profissional em um CAPS.

Um dos consensos verificados na literatura relacionada à Reforma Psiquiátrica no país é a tese de que o movimento foi impulsionado, em grande medida, pela reivindicação de melhorias nas deficitárias condições de trabalho e de remuneração das equipes técnicas, associadas às críticas ao modelo hospitalocêntrico até então predominante (Amarante, 2008; Lougon 2006). Essas duas temáticas são os elementos que marcam o período germinativo do processo, de 1978 a 1987 (Lougon, 2006), que fomentou o projeto de lei do deputado federal Paulo Delgado. Esse projeto foi construído em 1989 e aprovado em 6 de abril de 2001, transformando-se na Lei Federal n. 10.216, a Lei da Reforma Psiquiátrica. Nas palavras de Delgado (2009),

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