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Memória e ficção: as publicações literárias do jornal Diário da Tarde - Ilhéus, como construto de memória da Região do Cacau

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

ANTONIO VALTER SANTOS BARRETO

MEMÓRIA E FICÇÃO: As publicações literárias do jornal Diário da Tarde – Ilhéus, como construto de memória da Região do Cacau.

NATAL – RN

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ANTONIO VALTER SANTOS BARRETO

MEMÓRIA E FICÇÃO: As publicações literárias do jornal Diário da Tarde – Ilhéus, como construto de memória da Região do Cacau.

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN como requisito para a conclusão do curso de Doutorado em Literatura Comparada.

ORIENTADOR: Prof. Dr. Humberto Hermenegildo

de Araújo

NATAL – RN

2018

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Barreto, Antonio Valter Santos.

Memória e ficção: as publicações literárias do jornal Diário da Tarde - Ilhéus, como construto de memória da Região do Cacau / Antonio Valter Santos Barreto. - 2018.

256f.: il.

Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem. Natal, RN, 2018.

Orientador: Prof. Dr. Humberto Hermenegildo de Araújo.

1. Jornal - Tese. 2. Textos Literários - Tese. 3. Memória - Tese. 4. Arquivo - Tese. 5. Representação - Tese. I. Araújo, Humberto Hermenegildo de. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 82-94(813.8)

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ANTONIO VALTER SANTOS BARRETO

MEMÓRIA E FICÇÃO: As publicações literárias do jornal Diário da Tarde – Ilhéus, como construto de memória da Região do Cacau.

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, como requisito para a conclusão de Doutorado em Literatura Comparada.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________________________ Prof. Dr. Humberto Hermenegildo de Araújo

Orientador – UFRN

________________________________________________________________ Prof. Dr. Derivaldo dos Santos - Interno - UFRN

________________________________________________________________ Prof. Dr. José Luiz Ferreira – Interno - UFRN

________________________________________________________________ Prof. Dr. Giuseppe Roncalli Ponce Leon de Oliveira – Externo - UFCG

________________________________________________________________ Prof. Dr. Herasmo Braga de Oliveira Brito – Externo - UESPI

Natal, RN 2018

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AGRADECIMENTOS

Recordo-me como se fosse agora, em um exercício de rememoração ou de buscas na memória, de outra oportunidade que tive de fazer agradecimentos em um trabalho acadêmico e, a muitos daqueles que agradeci, voltarei a fazê-lo agora, mesmo sendo isto pela terceira vez.

Primeiramente agradeço a Deus que, mais uma vez em sua infinita bondade e misericórdia, pois muitos foram os percalços para chegar a esse momento, permitiu que eu terminasse esse trabalho acadêmico, sendo este muito mais laborioso e tão prazeroso quanto os anteriores.

Também quero agradecer a aqueles que fizeram e fazem parte da minha vida, pois estão guardados em minha memória e nas boas recordações e rememorações dos momentos felizes que vivemos. A minha amada mãe Hilda, aos meus avós Altino, Tertuliana e Maria América, a minha saudosa irmã Eliana e ao meu estimado filho Jackson, que partiu tão cedo.

Agradeço mais uma vez ao núcleo familiar, que sempre me deu apoio, tendo paciência em meus momentos de nervosismo, birra, impaciência, carinho e força em meus momentos de fraqueza e desespero. A minha esposa Ana Lúcia, aos meus filhos Javan, Tarciso, Leonardo, Roberto Fontanelli e, em especial, à minha eterna, pequena e única filha Gabrielle, bem como, de igual modo, aos meus netos Kauan, João Pedro, Ana Luisa, Júlia, Elis e Antônio. Ao meu Pai Walter e ao meu irmão Luis Paulo, às minhas irmãs Teresa, Cristina e Gilneide, aos meus sobrinhos queridos Gabriel Nascimento, Maycon Gonzaga e às minhas queridas Jacqueline, Yasmin e Carla Munick.

Agradeço à Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC e à Coordenação do Centro de Documentação e Memória - CEDOC, na pessoa de Estela, bem como a alguns amigos e amigas que fiz no Mestrado em Letras, dentre eles meu orientador o professor Dr. Cláudio do Carmo, as colegas Debora Chaves e Rosangela Cidreira e as professoras Drs. Vânia Torga e Patrícia Pina.

Mais uma vez retorno ao meu núcleo familiar, com muito carinho, para agradecer a três mulheres exemplares, responsáveis pelas primeiras letras e por profecias que ainda hoje se cumprem em minha vida, - você será doutor, são elas: Maria Marta, Maria da Glória e Maria Maura, mulheres de fibra e de valor que não se pode mensurar.

Finalmente, agradeço em especial ao Professor Dr. Derivaldo dos Santos, por sua compreensão em um momento de grande dificuldade, e ao meu orientador, o Professor Dr. Humberto Hermenegildo de Araújo, que muito se empenhou para que essa tese resultasse no melhor trabalho possível. Assim, eximo-o desde já de qualquer falha que possa haver nesta pesquisa. Mais do que um orientador acadêmico, Humberto se tornou um grande amigo e, com carinho, vou guardar para toda uma vida o que por ele me foi transmitido.

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Guardar

"Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não se guarda coisa alguma.

Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso, melhor se guarda o voo de um pássaro, do que de um pássaro sem voos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se declara e declama um poema:

Para guardá-lo:

Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda: Guarde o que quer que guarda um poema: Por isso o lance do poema:

Por guardar-se o que se quer guardar. "

Cícero

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MEMÓRIA E FICÇÃO: As publicações literárias do jornal Diário da Tarde – Ilhéus, como construto de memória da Região do Cacau.

Autor: Antonio Valter Santos Barreto

Orientador: Prof. Dr. Humberto Hermenegildo de Araújo

Resumo

A presente tese elege como objeto de investigação os textos literários publicados no jornal Diário da Tarde de Ilhéus, nos anos de 1929, 1931, 1933, 1935 e como estes, a um só tempo, constroem e representam a memória da sociedade de Ilhéus e região do cacau, que compreende o sul e parte do extremo sul do Estado da Bahia, no campo da literatura, da religião, da história e das memórias. O jornal pode ser visto como um lugar ou arquivo de memória, pois em suas publicações é possível interpretar fatos e acontecimentos da primeira metade do século XX, sejam eles literários, religiosos ou culturais, uma vez que o suporte jornalístico também pode ser visto como um guardião de fatos e acontecimentos, ou seja, apresenta e representa, ao mesmo tempo, uma memória guardada, arquivada, sacralizada em seus vestígios. Sendo a memória aquela que guarda, arquiva e representa fatos e acontecimentos de épocas passadas, ela está aberta à dialética da lembrança e do esquecimento. Para tal, os estudos sobre lembrança e esquecimento foram embasados em teóricos como Maurice Halbwchs (2006), Paolo Rossi (2010), Janice Theodoro (1998), sobre arquivo e lugar de memória partimos das concepções de Pierre Nora (1993), Foucault (2002), Elisabeth Roudinesco (2006), Derrida (2001), bem como como sobre a imprensa, o romance folhetim e o uso do pseudônimo, algo bem frequente nas notícias literárias publicadas no Diário da Tarde, em Socorro de Fátima (2007), Myrian Sepúlveda (2003) e Marlyse Meyer (1996). Os conceitos desses e de outros teóricos foram debatidos com o propósito de inserir o jornal ilheense nesse arquivo de representações e lugar de memória a serviço de uma elite, de um povo e de uma região considerada rica e lugar de coronéis, ao mesmo tempo em que mantinha considerável produção literária com publicações no suporte jornal.

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MEMORY AND FICTION: The literary publications of the newspaper Diário da Tarde - Ilhéus, as memory construct of the Cacao Region.

Autor: Antonio Valter Santos Barreto

Orientador: Prof. Dr. Humberto Hermenegildo de Araújo

Abstract

The present thesis chooses as object of investigation the literary texts published in the newspaper Diário da Tarde de Ilhéus, in the years 1929, 1931, 1933, 1935 and how these, at the same time, construct and represent the memory of the society of Ilhéus and region of cacao, which comprises the south and part of the southern tip of the State of Bahia, in the field of literature, religion, history and memories. The newspaper can be seen as a place or archive of memory, because in its publications it is possible to interpret facts and events of the first half of the twentieth century, be they literary, religious or cultural, since journalistic support can also be seen as a guardian of facts and events, that is, presents and represents, at the same time, a memory guarded, archived, sacralized in its vestiges. Since memory is that which stores, records and represents facts and events of the past, it is open to the dialectic of remembrance and oblivion. For this, studies on memory and forgetfulness were based on theorists such as Maurice Halbwchs (2006), Paolo Rossi (2010), Janice Theodoro (1998), on file and place of memory from the conceptions of Pierre Nora (1993), Foucault (2002), Elisabeth Roudinesco (2006), Derrida (2001), as well as how about the press, the novel and the use of the pseudonym, something very frequent in the literary news published in Diário da Tarde, Socorro of Fatima (2007), Myrian Sepúlveda (2003) and Marlyse Meyer (1996). The concepts of these and other theorists were debated with the purpose of inserting the ilheense newspaper in this archive of representations and place of memory in the service of an elite, a people and a region considered rich and place of colonels, at the same time maintained considerable literary production with publications in the newspaper support.

Keywords: Journal. Literary texts. Memory. Archive. Representation.

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MEMORIA Y FICCIÓN: Las publicaciones literarias del periódico Diario da Tarde - Ilhéus, como constructo de memoria de la Región del Cacao.

Autor: Antonio Valter Santos Barreto

Orientador: Prof. Dr. Humberto Hermenegildo de Araújo

Resumen

La presente tesis elige como objeto de investigación los textos literarios publicados en el periódico Diario da Tarde de Ilhéus en los años 1929, 1931, 1933, 1935 y como éstos a la vez construyen y representan la memoria de la sociedad de Ilhéus y región del cacao que comprende el sur y parte del extremo sur, del Estado de Bahía, en el campo de la literatura, de la religión, de la historia y las memorias. El periódico puede ser visto como un lugar o archivo de memoria, pues en sus las publicaciones es posible interpretar hechos y acontecimientos de la primera mitad del siglo XX, ya sean literarios, religiosos o culturales, ya que el suporte periódico, también puede ser visto como un guardián de hechos y acontecimientos, es decir, presenta y representa, al mismo tempo, una la memoria guardada, archivada, sacralizada en sus vestigios. Siendo la memoria aquella que guarda, archiva y representa hechos y acontecimientos de épocas pasadas, está abierta la dialéctica del recuerdo y del olvido. Para ello, los estudios sobre recuerdo y olvido se basaron en teóricos como Maurice Halbwchs (2006), Paolo Rossi (2010), Janice Theodoro (1998), sobre el archivo y el lugar de la memoria partimos de las concepciones de Pierre Nora (1993), Foucault (2002), Elisabeth Roudinesco (2006), Derrida (2001), así como sobre la prensa, la novela y el uso del pseudónimo, algo muy frecuente en las noticias literarias publicadas en el Diário da Tarde, en Socorro de Fátima (2007), Myrian Sepúlveda (2003) y Marlyse Meyer (1996). Los conceptos de estos y otros teóricos fueron debatidos con el propósito de insertar el periódico isleño en ese archivo de representaciones y lugar de memoria al servicio de una élite, de un pueblo y de una región considerada rica y lugar de coronales, ao mismo tempo que mantenía considerabel produción literaria com publicaciones em el suporte diario.

Palabras-clave: Periódico. Textos Literarios. Memoria. Archivo.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ... 011

2. A MEMÓRIA COMO ARQUIVO E REPRESENTAÇÃO... 018

2.1. A MEMÓRIA COLETIVA ... 018

2.2 ARQUIVO E MEMÓRIA ... 040

2.3 O JORNAL: ARQUIVO E REPRESENTAÇÃO DESDE O IMPÉRIO ... 059

3. UMA MEMÓRIA DO DIÁRIO DA TARDE: ÍNDICE CLASSIICATÓRIO ... 076

3.1. A IMPRENSA – JORNAL – COMO ARQUIVO DE MEMÓRIA ... 088

3.2. O CONTEXTO DO JORNAL NA PRIMEIRA METADE DO SÉC. XX ...096

3.3.ÍNDICE GERAL CLASSIFICADO DE ASSUNTOS ... 104

4. O SUPLEMENTO LITERÁRIO NO DIÁRIO DA TARDE... 146

4.1. DIÁRIO DA TARDE DE ILHÉUS: LUGAR DE MEMÓRIA ... 162

4.2. DIÁRIO DA TARDE DE ILHÉUS: ESPAÇO DE DISCUSSÃO POLÍTICA E DE POESIA ... 182

4.3. DIÁRIO DA TARDE: UM LUGAR DE NARRATIVAS LITERÁRIAS ...176

4.4 DIÁRIO DA TARDE: OS TEXTOS LITERÁRIOS QUE COMPÕEM A MEÓRIA REGIONAL ... 194

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 217

6. REFERÊNCIAS ... 222

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1. INTRODUÇÃO

Este estudo parte da concepção de que os textos literários publicados nos jornais, desde o final do século XIX, podem ser vistos como construto de memória de uma sociedade e de uma região, visto que trazem, para os jornais, um novo público consumidor de cultura. Juarez Bahia (1990) afirma que, no Brasil, desde o período da Colônia, o jornalismo oral e escrito adquire expressões políticas e sociais, utilizando as sátiras de poetas panfletários ou considerados marginalizados pelo poder instituído, como Gregório de Matos1, para criticar o poder dominante da época. Alguns dos sonetos de Gregório não escondem as críticas feitas pelo poeta baiano à corte portuguesa, que tinha apenas interesse em saquear suas colônias, especialmente, o Brasil. Dentre eles, é possível destacar “Descrevo que era Realmente Naquele Tempo a Cidade da Bahia” e “Triste Bahia”2.

Os textos literários nos jornais podem ser considerados fontes de grande importância na interpretação de fatos e aspectos do século XIX, pois esses periódicos circulavam com maior facilidade em regiões ricas, porém periféricas como a cidade de Ilhéus, e podiam ser adquiridos com mais facilidade por terem um custo menor que o livro. Dessa forma, uma parte importante da história da região sul da Bahia, especialmente a região do cacau do século XIX e XX, pode ser vista, contada e rememorada através destes textos. Já no início do século XX, as notícias de jornal adquirem uma nova concepção e podem ser equiparadas a uma narrativa desde o formato até o detalhe estilístico com novos contos, notas, publicações.

Dentro de tais perspectivas, os textos literários publicados nos jornais do Brasil, seja no Império ou na República, podem ser vistos como acervo, arquivo e lugar de

1 A poesia de Gregório de Matos foi composta, segundo Laurence Hallewell em O livro no Brasil (1985),

entre os anos de 1660 e 1692, mas, só foi publicada em 1904.

2 Triste Bahia

Triste Bahia! Ó quão dessemelhante /Estás e estou do nosso antigo estado! Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,/Rica te vi eu já, tu a mi abundante. A ti trocou-te a máquina mercante, /Que em tua larga barra tem entrado, A mim foi-me trocando, e tem trocado,/Tanto negócio e tanto negociante. Deste em dar tanto açúcar excelente /Pelas drogas inúteis, que abelhuda Simples aceitas do sagaz Brichote.

Oh se quisera Deus que de repente /Um dia amanheceras tão sisuda Que fora de algodão o teu capote! (Gregório de Mattos)

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12 memória (Cf. YATES, 2007). Sendo a memória um elemento importante na construção da vida, ela será sempre carregada por grupos vivos, está em permanente estado de mudança, portanto, estará sempre aberta à dialética da lembrança e do esquecimento.

Os estudos sobre lembrança e esquecimento serão embasados em teóricos como Paolo Rossi (2010) e Janice Theodoro (1998). Para esses estudiosos, grande parte da memória histórica corresponde a ausências, perdas, exclusões, e aquilo que não está registrado não faz parte da narrativa tradicional. Partindo desta concepção, é possível entender que, quando aceitamos o desafio de trabalhar com a preservação da memória, devemos considerar que memória e esquecimento são dois processos correlatos, pois muitos dos momentos esquecidos, perdidos na memória são mais fortes e viscerais, quando trazidos à tona, do que aqueles que podemos lembrar.

Segundo Juarez Bahia (1990), desde o século XIX os jornais, em boa parte do mundo, mantinham um documento em sua programação de ação que vale como carta de princípios, e essa carta servia como uma orientação interna para com a comunidade, daquilo que o jornal iria publicar. Dessa forma, ela servia como um modelo de compromisso ideológico, porque procurava manter um manual de conduta ética e ideológica e que esse modelo só se propagou mesmo a partir do século XX. Ele afirma que os textos literários publicados em periódicos e jornais, a partir do século XVII, eram uma das poucas formas de se protestar contra a colonização portuguesa no Brasil e, até a vinda da corte para cá em 1808, o único interesse de Portugal era o de saquear as colônias. Seja na África, seja no Novo Continente. Bahia ressalta que:

Nos séculos XVII e XVIII, o jornalismo brasileiro sem tipografia é praticamente a única forma de ação persistente para expressar o conflito entre colonizados e colonizadores. Pela sátira poética, pelo panfleto, pela carta, pela gazeta manuscrita, pela canção, pelo repente, a colônia reage à opressão política e econômica. (BAHIA, 1990, p.33).

Em seu livro O jornal e Literatura: a imprensa brasileira no século XIX, Socorro de Fátima Pacífico Barbosa (2007) traz uma discussão sobre essa ideologia que os jornais imprimem naqueles que os leem, mesmo porque se nos dias atuais a ideologia que tem maior supremacia é aquela do poder dominante, no século XIX essa supremacia era praticamente imposta àqueles que tinham menor poder aquisitivo. Isso pode ser constatado no Nordeste, durante muito tempo, com os chamados votos de “curral” ou de “cabresto3”. Barbosa (2007, p. 30) afirma ainda que:

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13 O termo “literário”, quando associado a um jornal, está sempre relacionado a outras palavras. São Político, Literário Crítico, ou Político, Literário e Comercial, ou Literário, Recreativo e Noticioso, e até mesmo, Científico, Literário e Crônico. Do que podemos concluir que o literário une um variado número de tendências, assuntos, ideologias, agregando, como se deduz, um grupo variado de leitores.

O jornal, o arquivo e o documento passam, a partir dessas mudanças, a serem instrumentos de comunicação, além de serem também instrumentos de educação, pois guardam informações como guias de sepultamento, contratos de locação, atas de reuniões, comunicados, notas de aniversário, avisos de aulas de corte e costura, de violão, de Francês e Latim, línguas consideradas de suma importância para uma elite letrada. Francês, porque é a língua da burguesia e Latim porque é a língua da religião, visto que, até os anos 50 do século XX, as missas da Igreja Católica, no Brasil, eram celebradas com o padre de costas para o público e na Língua Latina. Assim, é possível entender que as notícias e os textos literários publicados nos revelam, inclusive no Diário da Tarde de Ilhéus, a cotidianidade da vida dos povos, das regiões, das sociedades e das cidades.

Esta pesquisa se propõe a um estudo sobre as publicações literárias do jornal Diário da Tarde, de Ilhéus, que são veiculadas na página 2, em um suplemento literário publicado ou nas publicações especiais que circulam nas datas comemorativas do jornal, fazendo um recorte nos anos 1929, 31, 33 e 354.

Os textos literários do Diário da Tarde são publicações de autores que hoje fazem parte do cânone literário e têm projeção nacional e mundial, além de outros que não são nem identificados, porque publicam com pseudônimos, como é o caso do “Pajé Tupiniquim”. As publicações literárias são de autores como Jorge Amado e seu irmão James Amado, Adonias Filho, Jacinto Gouveia, entre muitos outros e os textos, em sua grande maioria, são crônicas, contos e poesias, trechos de romances (denominados de romance folhetim), críticas e cartas, o que demonstra a circulação de uma grande variedade de gêneros literários.

Quando essas publicações literárias saem da página 2, elas vão para um suplemento literário publicado, especialmente, nas datas festivas ou comemorativas do jornal. Nos dias em que o jornal não publicava um texto literário nessa página 2 era porque

4 Há uma impossibilidade de usar o ano de fundação do jornal, 1928, pois os jornais em poder do CEDOC

da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC – não estão em condições de serem manuseados e o acervo ainda não foi microfilmado.

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14 seriam publicadas notícias e informes da Prefeitura Municipal de Ilhéus, do Instituto de Cacau da Bahia, da Recebedoria de Contas do Estado ou da Estrada de Ferro Ilhéus Conquista5, matérias essas que eram de caráter pago, de interesse local, sobre

acontecimentos nacionais ou mundiais.

O principal objetivo desta pesquisa é investigar como as publicações literárias do Diário da Tarde são importantes para a construção da memória da cidade de Ilhéus e região do cacau, além de estabelecer a relação do jornal como arquivo e construção de memória, apontando as várias estratégias de publicação e como os gêneros literários, especialmente, os contos, as crônicas e as poesias são construídos e utilizados para manter a memória da região.

Também pretendemos investigar como é possível inserir as publicações literárias do Diário num construto6 de memória do povo da cidade de Ilhéus e da região do cacau, entendendo esta região como uma das mais ricas e promissoras do estado da Bahia naquele período. Essa riqueza e opulência estão baseadas no plantio e cultivo do cacau, considerado como o fruto de ouro, seja pela cor7 ou pelo valor monetário alcançado durante quase todo o século XX.

Usaremos como fundamentação os conceitos de arquivo e documento de Jacques Le Goff, Michel Foucault, Sigmund Freud e Jacques Derrida, bem como as noções de lugares de memória defendidas por Pierre Nora; as noções de memória coletiva, baseados em Maurice Halbwachs e Myriam Sepúlveda dos Santos; as noções de arquivo e memória, bem como arquivo e representação, segundo os estudos de Frances Yates.

Também serão definidos, neste estudo, dois tipos de representação: o primeiro diz respeito às representações internas que estão ligadas aos dispositivos dos processos informativos, ou seja, as representações mentais; o segundo, às representações externas que são as representações públicas. Nesse conjunto de processos e representações, sejam

5 A Estrada de Ferro Ilhéus Conquista teve seu primeiro trecho fundado em 1910 entre as cidades de Ilhéus

e Itabuna, foi uma grande divulgadora dos jornais da região, pois era através dela que estes eram levados aos seus assinantes e teve seu fechamento no ano de 1958.

6 O construto de identidade de memória e da região do cacau se dá a partir da sustentação de que o construto

identitário tem como elementos de sustentação os discursos, objetos, lugares, práticas simbólicas e discursivas que posicionam, sustentam e afirmam o lugar que tal comunidade ou região ocupa no mundo em relação a outros lugares e comunidades, seja pela importância econômica, política, social ou literária. A noção de construto identitário será aprofundada no terceiro capítulo desta tese e tem por base teóricos como Stuart Hall e Vera França.

7 O fruto do cacaueiro, antes do processo de clonagem que se deu na região após o aparecimento da

vassoura-de-bruxa (final da década de 80 do século XX), era de um amarelo ouro intenso e vem dessa semelhança a denominação de frutos de ouro.

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15 as intras ou intersubjetivas, entendemos que as representações internas dos sujeitos ou de apenas um sujeito, de uma forma ou de outra, afetam ou interferem nas representações externas de outros sujeitos através das modificações de seus ambientes comuns, seja esse um ambiente letrado ou não.

A justificativa para este estudo parte de concepção de que os textos literários publicados nos jornais podem ser vistos como construto de memória de um povo e de uma região, visto que estes textos, desde o final do século XIX, vêm alcançando um novo público consumidor de cultura. Os jornais podem ser considerados fontes de grande importância na interpretação de certos aspectos do século XIX e início do XX e, assim como nos livros que relatam a história do Brasil (em gêneros literários ou não), a história do país deste século pode ser vista através dos textos literários publicados em jornais. No início do século passado, as notícias de jornal passaram a assumir forma de disfarce e podem ser equiparadas a uma narrativa desde o formato até o detalhe estilístico com novos contos, notas, publicações e já não há uma separação rígida entre fato e ficção, separação esta que é abandonada cada vez com maior frequência. Essa não separação será discutida no primeiro capítulo, no qual trataremos do jornal como arquivo e representação.

O jornal, o arquivo e o documento, a partir dessas mudanças, ampliam-se ainda mais como instrumentos de comunicação, além de serem também instrumentos de educação, pois guardam informações variadas sobre a vida dos povos, das cidades e das sociedades.

Assim, essa pesquisa elege como corpus as publicações literárias no jornal Diário da Tarde de Ilhéus e como este pode ser visto como construto de memória da sociedade local e regional.

Nossa problematização parte da seguinte pergunta: Em que medida os textos literários do jornal Diário da Tarde de Ilhéus apresentam e representam um construto de memória da sociedade de Ilhéus e região do cacau?

Nossa hipótese inicial é de que – compreendendo que os jornais do século XIX e início do XX são os verdadeiros acervos que, além de transmitir informações, publicar textos literários, notas de casamentos, atas de reuniões, avisos de compra e venda etc., são também os guardiões da memória e são eles que mantêm os principais registros da vida literária, social e cultural do país dessa época, visto que publicar no Brasil era algo

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16 muito difícil – os referidos jornais também podem ser transformados em lugares de memória.

Assim, os textos literários do Diário da Tarde publicados em quase todo o século XX, especialmente, as publicações da primeira metade desse século, se constituem como um arquivo de memória da região cacaueira.

Outro ponto importante desta pesquisa é identificar as publicações literárias do Diário; apresentar as várias estratégias de publicação do jornal e como tais estratégias, especialmente, as de publicações literárias, são construídas para manter a memória da região do cacau; discutir a relação do jornal como arquivo de memória, representação e fonte de construção da memória da região, estabelecendo-o como lugar de memória. A proposta de investigação presente neste estudo nos remete a uma pesquisa bibliográfica na qual o foco serão as publicações literárias selecionadas para a compreensão de um dado fenômeno que será interpretado à luz das teorias dos autores citados, que dão suporte à pesquisa.

Para investigar como as publicações literárias, contidas nas páginas do periódico referido, são utilizadas para a construção e preservação da memória da sociedade, se faz necessário um levantamento das estratégias de publicação do jornal, como tais: a construção das estratégias que fazem parte da memória da região; a análise de como essas estratégias são utilizadas nas várias seções do jornal; analisar as formas dos textos literários, de acordo com a definição dos gêneros (contos, crônicas, poesias, trechos de romances); além de estabelecer a relação dos textos literários do jornal como arquivo e fonte de construção da memória e como tal suporte sempre publica os textos literários em colunas ou em um suplemento literário especial.

A tese está organizada em três capítulos. O primeiro discute, com aporte teórico voltado para as questões do jornal como arquivo de memória, as noções acerca da memória como arquivo e representação, elegendo como subtítulos as questões da memória coletiva, o arquivo, a memória e o jornal.

Os conceitos de Memória Coletiva, Lugares de Memória, Memória Literária, Romance Folhetim e Pseudônimo como uma arte da escrita dos jornais do século XIX e, especialmente do XX, serão estudados no segundo capítulo dessa Tese. Também abordaremos os conceitos da imprensa – jornal – como um arquivo da memória nacional, local e regional, bem como os textos literários publicados em jornais na primeira metade

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17 do século XX, uma vez que essa é uma prática frequente tanto nas grandes cidades como nas pequenas.

No terceiro capítulo analisaremos os textos publicados no suplemento literário, na página 2 e 4 do Diário da Tarde de Ilhéus e como, a partir da leitura e análise destes textos é possível transformar o Diário em lugar de memória e arquivo de memória da literatura regional. Também serão analisados os vários gêneros textuais publicados no referido jornal e como estes podem ser inseridos no contexto de lugares de memória e construtores de uma identidade regional, local, nacional, universal e que esses textos tratam, em seus conteúdos, de temas locais, nacionais e universais.

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2. A MEMÓRIA COMO ARQUIVO E REPRESENTAÇÃO

Os estudos sobre memória, representação e suas relações com as várias formas de se conceber o arquivo acompanham a produção do conhecimento humano e se relacionam com o percurso da história. Se quiséssemos fazer uma história das teorias da memória no ocidente, seria preciso fazer coincidir o seu início com o da própria história do pensamento em suas raízes gregas.

Segundo Benedict Anderson (2005), o conceito de nação está relacionado ao conceito de comunidade imaginada, pensada, construída, logo, todas as comunidades são imaginadas, pensadas e construídas, porque até mesmo na menor nação existente é preciso que seus membros imaginem e tenham consciência da existência de outros seres e comunidades. Segundo esse raciocínio, a maioria dos membros de um mesmo país nunca ouvirá falar da maioria dos outros membros desse mesmo país mas, mesmo sendo dessa forma, na mente de cada cidadão dessa comunidade se constrói uma imagem de nação que é construída a partir das lembranças, fatos, histórias vividas e contadas por eles. A construção de identidade de um povo se dá, portanto, pelo exercício da sua própria memória.

Nesse sentido, as noções acerca da memória estiveram também sujeitas às mesmas modificações que, ao longo do tempo, foram inseridas nas matrizes do pensamento e que podem ser, de certa forma, concebidas como historicamente modificáveis. Neste capítulo, serão discutidas as noções de memória coletiva à luz de Maurice Halbwachs, de arquivo e memória de Michel Foucault e arquivo e representação de Jacques Le Goff, dentre outros.

2.1. A memória coletiva

O conceito de memória e a maneira como ela funciona vem sendo tema dos estudiosos há séculos. Este conceito vem se modificando e se adequando às funções, às utilizações sociais e à sua importância nas diferentes sociedades humanas. Em cada época, procurou-se explicar a memória, utilizando-se de metáforas compreensíveis, construídas em torno de conhecimentos que caracterizavam o momento histórico. Tais

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19 considerações implicam perspectivas teóricas nem sempre convergentes, como se verá na recapitulação a seguir.

Para Aristóteles (s.d.), a memória propunha pensar o passado como algo anterior, ou seja, algo passado; como a coisa já percebida. Para ele, “[...] se se produziu o que, de ordinário, acontece posteriormente, produziu-se igualmente o que aconteceu anteriormente; por exemplo, se nos esquecemos de uma coisa, quer dizer que anteriormente a sabíamos” (p. 141).

Para os antigos gregos, a memória era sobrenatural. Um dom a ser exercitado. A deusa Mnemosine8, mãe das nove musas, protetora das artes e da história, possibilitava

aos poetas lembrarem-se do passado e transmiti-lo aos mortais. A memória e a imaginação têm a mesma origem, pois lembrar e inventar têm ligações profundas. Para os gregos, o registro era visto como forma de enfraquecimento da memória, transferindo-a ptransferindo-artransferindo-a fortransferindo-a do corpo do sujeito. Eles desenvolvertransferindo-am muittransferindo-as técnictransferindo-as ptransferindo-artransferindo-a preservtransferindo-ar transferindo-a lembrança sem lançar mão do registro escrito. Além disso, reservavam ao sujeito que lembra um papel social fundamental.

Estudos recentes afirmam que o conceito e, sobretudo, o funcionamento da memória, ganhou importantes aportes das ciências sociais e psicológicas. A Psicologia tem a memória individual e coletiva como um de seus campos de investigação. Esses estudos envolvem, necessariamente, os conceitos de retenção, esquecimento e seleção. Como elaboração, a partir de variadíssimos estímulos, a memória é sempre uma construção feita, no presente, a partir de vivências, experiências e dados armazenados que ocorreram no passado.

A obra de Maurice Halbwachs (2006) é, inegavelmente, uma das que mais contribui para a compreensão do significado de memória coletiva. Para entendermos sua tese sobre esse tipo de memória, é importante observarmos que suas teorias estão articuladas em abordagens epistemológicas que faziam dos estudos da estrutura matéria dos grupos e das populações, seu ponto de partida. Para ele, a memória, aparentemente, mais particular remete a um grupo. O indivíduo carrega em si a lembrança, mas está sempre interagindo com a sociedade, seus grupos e instituições.

8 Para os gregos a deusa Mnemosine, mãe das nove musas, era a divindade que mantinha os fatos vivos,

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20 Dentro do contexto destas relações é que construímos as nossas lembranças. A rememoração individual se faz na tessitura das memórias dos diferentes grupos com que nos relacionamos. Ela está impregnada das memórias dos que nos cercam, de maneira que, ainda que não estejamos em presença destes, o nosso lembrar e as maneiras como percebemos e vemos o que nos cerca se constituem a partir desse emaranhado de experiências que percebemos, qual um amálgama.

Essas experiências são vistas de forma misturada e heterogênea, mas, mesmo parecendo uma unidade que pode ser só nossa, o resultado de nossas lembranças vem de tudo aquilo que vivenciamos e que nos acompanha ao longo de nossa trajetória de vida, e podendo proceder dos nossos espaços, grupos que representamos ou que nos representam.

As lembranças se alimentam das diversas memórias oferecidas pelo grupo ao qual cada um se faz presente e participante, ou seja, ao grupo que cada cidadão tem como referência. Tanto nos processos de produção de memória, como na rememoração, o outro tem papel fundamental.

Halbwachs (2006, p.30) afirma que:

Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas, por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isso acontece porque jamais estamos sós. Não é preciso que outros estejam presentes, materialmente distinto de nós, porque sempre levamos conosco certa quantidade de pessoas que não se confundem.

Assim, a memória, tanto a individual quanto a coletiva, tem a importante função de contribuir para o nosso sentimento de rememoração e pertencimento a um grupo de passado comum, que compartilha memórias e garante o sentimento de identidade do indivíduo calcado numa base compartilhada não só no campo histórico, do real, mas, sobretudo, no campo simbólico, mesmo porque a memória individual está enraizada em diferentes contextos que a simultaneidade ou a contingência aproxima por um instante. A rememoração pessoal está situada na encruzilhada das redes de solidariedades múltiplas, em que estamos envolvidos, enquanto que a coletiva nos envolve em uma teia de lembranças na qual estão envolvidas outras pessoas, lugares, situações, emoções, sentimentos, etc.

Segundo Le Goff (1996), nas sociedades ágrafas, cabia aos homens-memória ou aos membros mais velhos e influentes das comunidades serem os guardiões da história.

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21 Para ele, a memória coletiva se organizava em torno de três grandes interesses que eram: o mito, o prestígio de tais pessoas e famílias dominantes e o saber profissional ligado à magia religiosa. Se aos homens-memória eram concedidos privilégios com o exercício da memória, aos outros esses privilégios não eram permitidos e não lhes era concedido o direito de lembrar ou rememorar. Para o autor, a prática mnemônica ligada ao aparecimento da escrita dá origem à memória comemoração (representar em documentos/monumentos) e à celebração de um acontecimento memorável através de documentos escritos que permitem, de um lado, o armazenamento de informações, oferecendo um processo de marcação, memorização e registro; e de outro lado, a passagem do oral para o visual, que permite que sejam reexaminadas, reordenadas, retificadas frases e/ou palavras isoladas9.

A partir dessas compreensões de memória é possível que o indivíduo carregue, em si, lembranças que, mesmo sendo particulares, remetem a um determinado grupo ou sociedade, pois é no contexto dessas relações que se constroem as lembranças. A recondução e rememoração da memória individual se manifesta nos diferentes grupos sociais, tais como família, igreja e amigos, com os quais nos relacionamos, favorecendo-nos com suas impressões, ideias e vivências. Dessa forma, mesmo que estejamos sozinhos, nossas memórias, lembranças e percepções se constituem a partir do emaranhado coletivo. Partindo desses conceitos, entendemos que as memórias individuais não sobrevivem sem as memórias coletivas, pois os elementos construídos e vivenciados pelos grupos são mais fortes e têm maior valor histórico e social que os elementos construídos e vivenciados pelos indivíduos em particular. Assim, há uma distinção entre memória histórica e memória coletiva. A primeira pressupõe a reconstrução dos elementos do presente na vida social dos sujeitos e os projeta sobre um passado reinventado; a segunda recompõe de forma promissora e mágica esse passado vivido e reinventado pelos sujeitos.

A memória coletiva é pautada na continuidade e deve ser vista sempre no plural (memórias coletivas). Ora, é justamente porque a memória de um indivíduo ou de um país está na base da formulação de uma identidade, que a continuidade é vista como característica marcante. A História, por outro lado, encontra-se pautada na síntese dos

9 A discussão sobre a escrita, no Brasil, será retomada como um fator de modernização da nossa sociedade,

no capítulo em que trataremos do jornal Diário da Tarde, pois, é ela a principal responsável pelo avanço das notícias e do desenvolvimento do país.

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22 grandes acontecimentos da história de uma nação. Para Halbwachs (2006, p.72), “[...] nós só conseguimos lembrar aquilo que vimos, fizemos, sentimos ou pensamos num momento do tempo, ou seja, nossa memória não se confunde com a dos outros”. Segundo o autor, para que nossa memória se aproveite da memória dos outros não basta, apenas, que estes nos apresentem seus testemunhos. É preciso também, que a nossa memória não tenha deixado de recordar junto com as memórias deles, pois é preciso que existam muitos pontos de contato entre uma e outra para que a lembrança que nos faz recordar venha a ser construída sobre uma base comum.

Ora, se aquilo que nos faz lembrar e recordar é construído sobre uma base comum é porque nossa memória está sempre se alimentando da memória dos outros; dessa forma, para que os acontecimentos de uma coletividade ou grupo de base comum tenham influência ou sirvam de ponto de referência sobre uma memória individual é preciso que esses testemunhos, fatos e acontecimentos (como os textos literários publicados no Diário da Tarde ou em qualquer outro jornal), tenham muitos pontos em comum.

Nossas lembranças, partindo das observações de Halbwachs, se alimentam de inúmeras memórias que nos são oferecidas pelos mais variados grupos, que ele chama de “comunidade afetiva”. Essas comunidades afetivas podem ser formadas pela cultura, pela religião, pela história, pela literatura etc. e se não fosse assim seria impossível nos lembrarmos de algo acontecido conosco fora deste quadro de referência. Assim, tanto nos processos que constituem a produção da memória, seja ela individual ou coletiva, como nos que fomentam a rememoração, o outro tem papel de fundamental importância. Halbwachs (2006, p. 31) afirma que:

[...] Em todos esses momentos, em todas essas circunstâncias, não posso dizer que estivesse sozinho, que estivesse refletindo sozinho, pois em pensamento eu me situava neste ou naquele grupo, o que eu compunha com o arquiteto e com as pessoas a quem ele servia de intérprete junto a mim... outras pessoas tiveram essas lembranças em comum comigo. Mais do que isso, elas me ajudaram a recordá-las e, para melhor me recordar, eu me volto para elas, por um instante adoto seu ponto de vista, entro em seu grupo, o qual continuo a fazer parte, pois experimento ainda sua influência e encontro em mim muitas das ideias e maneiras de pensar a que não me teria elevado sozinho, pelas quais permaneço em contato com elas.

Para Myriam Sepúlveda dos Santos, essa afetividade da memória acontece porque essa faculdade está presente em tudo que fazemos. Para ela, ao rememorarmos precisamos lançar mão de toda a nossa construção do passado, sendo essas lembranças boas ou ruins

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23 além de precisarmos de todo o contexto social que nos cerca, seja do passado, seja do presente:

A memória está presente em tudo em todos. Nós somos tudo aquilo que lembramos; nós somos a memória que temos. A memória não é só pensamento, imaginação e construção social; ela é também uma determinada experiência de vida capaz de transformar outras experiências, a partir de resíduos deixados anteriormente. A memória, portanto, excede o escopo da mente humana, do corpo, do aparelho sensitivo e motor e do tempo físico, pois ela também é o resultado de si mesma; ela é objetivada em representações, rituais, textos e comemorações. (SANTOS, 2003, p.25/26).

Dessa forma, podemos afirmar que a memória coletiva tem importante função no processo de construção do nosso sentimento de pertencimento a um grupo (escola, família, igreja, amigos, etc.) e junto com esse grupo é que construímos um passado comum que compartilha memórias. Essa memória garante ao indivíduo o sentimento de identificação e pertencimento a um grupo no campo material da realidade como também nos campos do imaginário e simbólico. Assim, mesmo entendendo que a memória individual existe, é possível afirmar que sua existência está alicerçada na memória coletiva, pois nossas lembranças e rememorações estão ligadas de forma incondicional à teia de construções e rememorações dos grupos comuns de convivências com os quais estamos envolvidos.

A representação da memória é discutida como aquela que carrega em si a vida e é levada por grupos vivos. Está aberta à dialética da lembrança e do esquecimento inconsciente de suas deformações sucessivas; já a história, na sua concepção tradicional, é uma versão do que não existe mais: uma representação do passado, um discurso sobre outro discurso, uma versão possível que sempre depende de arquivo, como afirma Janice Theodoro (1998, p. 62), o tempo corrói muita coisa, mas a história corrói mais. Segundo ela, a história corrói porque seleciona e define o caminho que deve ser seguido por todos, justifica e padroniza os espaços do que deve ser visto e do que deve esmaecer com o passar dos dias, dos anos e dos séculos. Portanto, diferentemente da memória que lança mãos de arquivos, museus, monumentos, rememorações, etc., a história sempre estará recorrendo ao arquivo como forma de priorizar aquilo que ela define como importante para o aprendizado dos indivíduos.

Para Theodoro (1998), grande parte da memória histórica corresponde às perdas, às exclusões e tudo que não está registrado pode não fazer parte da memória ou da narrativa tradicional. Assim, segundo a autora, quando pretendemos ou aceitamos o

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24 desafio de trabalharmos com a preservação da memória da nossa região, cidade, país ou até mesmo as nossas memórias, devemos lembrar que memória e esquecimento são pares inseparáveis e, portanto, correlatos. Só há lembranças porque há esquecimento.

Segundo Paolo Rossi (2010), para recuperar algo da memória se faz necessário buscar em uma coleção ou se fazer uma seleção de imagens, acrescentado a essa coleção ou seleção uma referência temporal. A renovação e recuperação não é algo passivo, mas, sim, a busca de algo que foi anteriormente experimentado. Voltar a lembrar de, ou rememorar, requer, segundo ele, um esforço deliberado da mente; é uma espécie de escavação ou de busca voluntária dos conteúdos da alma (ROSSI, p. 16). Para ele10:

Entre as razões que explicam as paixões atuais pelo tema da memória há, sem dúvida, uma grande “demanda de passado” e uma renovação do interesse pelos argumentos e temas que pareciam superados ou marginais, tanto para os teóricos da invasão geral do mundo moderno, quanto para os teóricos da superação do capitalismo e da revolução mundial: o localismo, o nacional, o regional, o urbano, o bairro, as minorias, os grupos, suas culturas etc. (ROSSI, 2010, p. 25).

Pierre Nora (1993) verificou o desaparecimento da memória nacional e, portanto, segundo ele, era necessário realizar um inventário dos lugares onde ela se encontrava presente, seja pelo desejo dos homens ou através do passar dos tempos. Esses lugares poderiam ser formados por festas, emblemas, monumentos e comemorações, mas também por elogios, dicionários e museus. Assim como todos os lugares de memória, os jornais, os arquivos, os documentos e os monumentos estão dentro dessa perspectiva da história, e, como tal, desafiam leituras e interpretações, mas, diferentemente de todos os objetivos da história, os lugares de memória não têm, em princípios, referentes na realidade, eles mesmos são seus próprios referentes.

Segundo o autor, esses lugares de memória são seus próprios referentes pelos sinais que devolvem a si mesmo, são sinais em estado puro. Não que os mesmos não tenham conteúdo, presença física ou história, muito pelo contrário. O que define esses

10 Segundo ele, Lowenthal afirma corretamente que a história é mais e menos que o passado, e esta tem

uma interpretação e distanciamento do passado, enquanto que a memória implica sempre em uma participação quase que emotiva desse passado, pois é sempre vaga, fragmentária e sempre tendenciosa. A memória toma sempre por base fazer com que os dados caibam em esquemas conceituais, sempre reconfigurando o passado para que este sirva às exigências do presente. Lowenthal (1998, p. 66) afirma que “Memória e História são processos de introspecção (insight); uma envolve componentes da outra, e suas fronteiras são tênues. Ainda assim, memória e história são normalmente, e justificadamente, diferenciadas: a memória é inevitável e indubitável prima-facie; a história é contingente e empiricamente verificável.

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25 lugares de memória é aquilo pelo que, exatamente, eles escapam da história Templum: eles são recortes no indeterminado do profano – são espaço ou tempo, ao mesmo tempo em que também são espaço e tempo. Nesse sentido, o lugar de memória é um lugar duplo: um lugar de excesso, fechado em si mesmo, fechado sobre sua identidade e, recolhido sobre seu nome, mas, constantemente aberto sobre a extensão de suas significações. Para Ecléa Bosi (1994), a linguagem, seja ela oral ou escrita11, é um elemento

importante na construção desse caráter social da memória e faz com que todas as trocas, as vivências, as experiências e as informações que os grupos sociais desenvolvem só se tornam possíveis através dela:

O instrumento decisivamente socializador da memória é a linguagem. Ela reduz, unifica e aproxima no mesmo espaço histórico e cultural a linguagem do sonho, a imagem lembrada e as imagens da vigília atual. Os dados coletivos que a língua sempre traz em si entram mesmo no sonho – situação limite da pureza individual. (BOSI, 1994, p. 56).

Além da linguagem há outro elemento que interfere na forma como os grupos e os indivíduos colocam em prática suas vivências e rememorações. Este elemento é o espaço ao qual o indivíduo pertence (podendo ele ser geográfico, cultural ou social), que com sua materialidade leva, ao mesmo tempo, a nossa marca e a marca dos outros, pois todos os elementos que constituem um determinado espaço (além de serem construídos, transformados, adequados, vividos e socializados pelos indivíduos) desempenham um papel importante dentro da memória coletiva. Todos os indivíduos, de uma forma ou de outra, estão ligados ou inseridos em um lugar que foi fundado por seus membros e fundamentado pelas relações sociais.

A memória também se modifica e se articula conforme a posição que os cidadãos ocupam no tempo (século em que viveu ou vive) e no espaço (país, estado, cidade, região, comunidade), além das relações que estes estabelecem nos diferentes grupos aos quais pertencem, bem como as formações religiosas, políticas e econômicas que precisam ser compreendidas a partir das investigações e de práticas coletivas. Somente o estado empírico das formas, por que os grupos sociais ou organismo se constituíam, poderiam explicar os interesses, formas de trabalho, serviços e situações assumidas por esses mesmos grupos.

11 No caso desta pesquisa serão analisados textos literários, como contos, crônicas, poesias e trechos de

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26 Um ponto importante é que a memória está submetida a questões inconscientes, como o afeto, a censura, entre outros. As memórias individuais alimentam-se da memória coletiva e histórica, além de incluir elementos mais amplos do que a memória construída pelo indivíduo e seu grupo.

Outro aspecto discutido por Halbwachs (2006) é que a transmissão da tradição12

pelas experiências vividas desenvolve uma enriquecedora reflexão analítica sobre o cotidiano e as práticas coletivas. Para ele, o estudo da memória coletiva permite investigar sobre a consciência entre as pessoas que têm seus segredos e seus depósitos, tratando, portanto, da variedade de experiências humanas vividas, as maneiras e formas pelas quais uma memória coletiva atua e reconstitui-se nas significações dos indivíduos e grupos, no tempo e espaço, através do depoimento das lembranças que, por sua vez, reforçam o desejo de interpretar os processos pelos quais se transmite a tradição de uma ordem cultural.

Dessa forma, ele apresenta a memória coletiva como as vivências humanas, que recompõem o passado, através de uma consciência coletiva individual capaz de defini-la nas múltiplas experiências do tempo. Contudo, quando essa lembrança reaparece, não é consequência, apenas, de um conjunto de reflexões, mas de uma aproximação de percepções determinadas pela ordem em que apresentam objetos sensíveis, ordem essa de sua posição no espaço.

Para o autor, é possível decifrar as diversas formas que podem reconstruir uma memória coletiva. Ele aponta com especial interesse as práticas sociais do dia a dia dos homens, isto é, onde se passa a trama da vida coletiva e se manifesta a individualidade dos sujeitos. Em tais circunstâncias, os indivíduos evocam e dispõem de um variado conjunto de experiências compartilhadas, inclusive, aquelas que são do domínio e exclusividade da própria individualidade, pois a memória coletiva de fato não se vale só da individualidade dos homens, mas também intervém nela para se fazer existir por meio de lembranças.

Em Como as sociedades recordam, Paul Connerton (1999) afirma que só nos é possível lembrar de algo porque usamos como suporte uma memória que se ancora na memória dos outros. Para ele, a memória das pessoas vive uma em auxilio das outras,

12 O conceito de tradição será retomado sob a égide de tradição literária e cultural baseado no conceito de

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27 pois, por mais que uma recordação ou acontecimento seja pessoal ela precisará de outras recordações ou referências tais como: lugares, pessoas, datas, palavras, formas de linguagem, isto é, para rememoramos precisamos revisitar toda uma vida material da sociedade da qual fazemos ou fizemos parte. Isto se aplica tanto às memórias recentes como as mais antigas ou distantes, pois aquilo que une essas memórias não é o fato de estarem perto ou distante no tempo, mas por fazerem parte de um conjunto de pensamentos de um dado grupo ou grupos com os quais nos relacionamos ou tivemos contanto, seja num passado recente ou distante.

Assim, quando queremos evocar essas memórias, basta-nos dirigir a nossa atenção para os interesses prevalecentes do grupo e seguir o curso da reflexão que lhe é habitual, o mesmo se aplica quando queremos recordar memórias mais distantes. Os grupos dotam os indivíduos de quadros mentais no interior dos quais as suas memórias se localizam e são marcadas por uma espécie de cartografia.

Para Halbwachs (2006, p.41) “talvez seja possível que um número enorme de lembranças reapareça porque os outros nos fazem recordá-las”. Assim, as lembranças dos indivíduos além de se organizarem de duas maneiras se inter-relacionam. A partir dessa concepção, as lembranças se distinguem entre as da vida pessoal, que têm como foco principal apontar os aspectos singulares da vida dos sujeitos e as de caráter impessoal que interessam aos grupos e dão referência a uma vida em conjunto. Essas duas ordens sociais, a individual e a coletiva, contribuem para as maneiras de recordar dos indivíduos. Para a rememoração individual é possível afirmar que nós só nos lembramos daquilo que vemos, sentimos ou fizemos em certo momento do tempo ou do espaço. O mesmo acontece com nossas memórias coletivas só que de forma mais estreita e em momentos mais distanciados.

Agrada-nos dizer que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, e que esse ponto de vista muda segundo o lugar que nele ocupamos e que, por sua vez, esse lugar muda segundo as relações que mantemos com outros grupos e meios.

Halbwachs (2006, p.67) afirma que as lembranças mais difíceis de serem lembradas são aquelas que só dizem respeito a nós mesmos, são aquelas que nos são mais particulares, um bem exclusivo. Ora, essa dificuldade de rememoração é fundamentada a partir da noção de que os homens se apoiam nas palavras e ideias que são capazes de elaborar no conjunto de suas vidas, assim como da perspectiva de que não há sentido para

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28 as palavras e ideias a não serem em coletividade. Assim, as dificuldades de rememoração que são exclusivas e particulares dos indivíduos se tornam as mais complexas desse emaranhado de informações. Portanto, a memória coletiva é a principal responsável pela recomposição das ideias dos indivíduos, pois os mesmos fazem parte de grupos de características, exclusivamente, ideológicas e sociais. Na rede dessa transmissão, o passado dá uma forte demonstração de como são recompostas as ideias que se apresentam no presente.

Só nos é possível entender a importância da memória coletiva se nós compreendermos que ela serve de complemento para revermos os processos de continuidade e descontinuidade da vida. Assim, é através das categorias de tempo e espaço, que fazem parte da vida particular dos indivíduos, que encontramos os componentes expressos das práticas cotidianas e que se tornam elemento necessário para a afirmação dessa dita memória coletiva.

Para estudiosos como Halbwachs, a memória coletiva tem uma relação intrínseca com o tempo e todos nós sofremos a influência impiedosa deste sobre as nossas vidas, nossas recordações ou até sobre a própria memória que, com o passar dos anos vai, assim como nosso corpo, perdendo a força e a vitalidade. Para ele, é natural que os homens se sintam apreensivos sobre as ações do tempo sobre a memória, pois este nada mais é que a ação necessária da natureza sobre as nossas vidas que nunca para. Para ele, a divisão do tempo e sua duração são fixadas pelos homens e resultam de convenções e costumes, porque, inevitavelmente, o tempo expressa uma ordem sobre a qual se sucedem as várias fases das nossas vidas e dos grupos aos quais pertencemos:

Um indivíduo isolado poderia ignorar que o tempo passa e seria capaz de medir sua duração, mas a vida em sociedade implica em que todos os homens entram em acordo sobre tempos e durações, e conhecem muito bem as convenções de que são objeto. Por isso existe uma criação coletiva do tempo. (HALBWACHS, 2006, p.112)

O tempo tem a mesma dimensão e a mesma divisão para todas as pessoas e grupos de uma determinada sociedade, porém, se observarmos uma criança e uma pessoa idosa esses momentos não terão a mesma duração nem a mesma dimensão, uma vez que a criança estará ou irá procurar ocupação para todos os momentos do seu dia, sem fazer nenhuma relação com os acontecimentos de dias, meses ou anos anteriores, ou seja, a criança não dará à memória o valor que o adulto dá, enquanto que a pessoa idosa achará que o tempo passou de forma muito lenta durante aquele mesmo período, uma vez que

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29 sua ocupação estará relacionada aos acontecimentos de toda uma vida, fazendo das lembranças e rememorações sua ocupação diária.

Para Ecléa Bosi (2003), uma parte importante da memória dos velhos é ocupada de forma significativa e isto tem uma função social muito importante. A memória na velhice é uma construção de pessoas que já trabalharam e vivenciaram muitas experiências. Essas memórias fazem parte da narrativa de pessoas, agora idosas, que já tiveram algum tipo de atividade ou importância dentro dos grupos sociais aos quais eles pertencem há bastante tempo. Para algumas sociedades, as experiências dos mais velhos têm muita importância e eles são vistos como as pessoas mais importantes da comunidade, exatamente, porque guardam tudo aquilo que os grupos mais novos não vivenciaram.

Outro fator importante que os mais velhos desempenham, mesmo porque uma parte deles já não são mais membros ativos no mercado de trabalho, é a função de lembrar e relatar para os mais jovens a sua história, os parentes que vieram antes deles, como eles devem se portar diante de tais circunstâncias e acontecimentos. Na idade avançada, as pessoas que já não são aceitas no mercado de trabalho e, seja pela idade, pela substituição ou pela aposentadoria, se tornam a memória da família, do grupo ao qual ela pertence ou da sociedade da qual faz parte.

Dentro da construção do tempo e de vivência o homem, na sua juventude, em sua grande maioria, não está preocupado com as questões da memória, visto que suas ocupações e afazeres na modernidade ocupam boa parte de seu tempo. Dos jovens, a sociedade espera que eles se ocupem com o processo de produção, na indústria, na agricultura, no comércio, na intelectualidade etc., e, muitas vezes, esses jovens nem se dão conta do processo ideológico que está implícito aí. Já dos velhos, em se tratando de sociedades mais tradicionais como a japonesa, que eles cumpram o papel que lhes compete: lembrar-se dos fatos e acontecimentos importantes. Quando a atividade de lembrar dos mais velhos não é valorizada como uma função social, como acontece em sociedades como a nossa, há um esvaziamento e uma desvalorização dessa nova etapa na vida dos idosos. Bosi afirma que:

Quando um acontecimento político mexe com a cabeça de um determinado grupo social, a memória de cada um de seus membros é afetada pela interpretação que a ideologia dominante dá a este acontecimento. Portanto, uma das faces da memória pública tende a permear as consciências individuais. (BOSI, 2003, pp. 21-22).

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30 Outra posição de Halbwachs é que, para estabelecer as divisões do tempo, é melhor que nos guiemos pelas mudanças que ocorrem nos corpos materiais que se reproduzem de modo bastante regular, permitindo nos reportar sempre a eles. Na realidade, o que escolhemos como pontos de referência nesse retorno periódico de certos fenômenos materiais é a oportunidade oferecida a nós e aos outros. Para ele, o conjunto desses momentos nos leva a constituir um painel com a finalidade de recompor, regularizar e simplificar essas ações do tempo.

Assim, a partir das definições que o autor nos apresenta, entendemos que cada grupo, localmente definido, tem sua própria memória e uma representação só dele e de seu tempo. As cidades, províncias e povos se fundem em uma nova unidade, enquanto que o tempo comum se amplie ou, a princípio, se estenda por um bom período do passado, pelo menos para alguns do grupo, que agora fazem parte das tradições mais antigas. Halbwachs afirma que:

Parece que a memória coletiva tem de esperar que os grupos antigos desapareçam, que seus pensamentos e sua memória tenham desvanecido, para que se preocupe em fixar a imagem e a ordem de sucessão de fatos que agora só ela é capaz de conservar. Certamente é necessário procurar a ajuda de testemunhos antigos, cujos vestígios subsistem em textos oficiais, jornais da época, memórias escritas por contemporâneos. (HALBWACHS, 2006, p. 133). Os tempos coletivos, segundo Halbwachs, são distinguidos não porque uns passam mais depressa que os outros. Para ele nem se pode dizer que esses tempos passam, que cada consciência coletiva pode se lembrar, e a subsistência do tempo parece muito bem ser uma condição da memória. Assim, vemos que os acontecimentos se sucedem no tempo, mas o tempo em si é um contexto imóvel. Outra constatação interessante é que os tempos são mais ou menos vastos, permitem que a memória retroceda mais ou menos longe no que se convencionou chamar de passado.

Dessa forma, sendo o cidadão membro de diversos grupos sociais como igrejas, clubes, família, escola, etc., e participante de vários momentos e pensamentos sociais, como já dissemos anteriormente, ele não tem como impedir ou querer que seus olhares, pensamentos e memórias não perpassem por vários outros momentos, grupos e memórias coletivas. Outro ponto importante é que a memória usa esses momentos e pensamentos como um elemento de diferenciação individual e o situcionaliza em um mesmo período e região do espaço, pois, geralmente, não é dentro das mesmas correntes e ideologias que os homens se dividem.

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31 A pesquisa feita no jornal Diário da Tarde de Ilhéus toma por base a noção de que os textos literários, veiculados no jornal no início do século XX, carregam em si o testemunho, as mudanças, as inovações e as memórias de uma região rica e promissora no sul da Bahia. Dessa forma, o arquivo do jornal guarda em si vestígios dessa época, marcada por novas descobertas e um franco desenvolvimento provido pela ferrovia que interliga as várias cidades da região do cacau.

No Diário da Tarde essa tendência de mudanças, de acordo com a condição social e ideologia de cada cidadão ou grupo ao qual ele pertence, pode ser vista em notícias que marcam a chegada de novos imigrantes, entre eles muitos cidadãos que vêm fugindo da seca do Estado de Sergipe, para a região de Ilhéus, sejam por terra ou por mar. A notícia veiculada no Diário de número 1.503, do dia 03 de Abril de 1933 traz três chamadas que mostram a carga ideológica empregada pelo jornal ao divulgar a chegada dos imigrantes:

As dores dos flagelados

Fugindo dos quadros terríveis da seca e encontrando sofrimentos peores13 Mais uma leva de infelizes nordestinos chegou hontem à cidade

O principio da solidariedade humana é muito forte, mas não justifica absolutamente o silencio da imprensa em face dos remorsos subsequentes e numerosos de flagelados para essa zona, onde eles chegam, conduzindo o fardo atroz de suas dores e das suas humilhações, nos navios da Baíana, nas barcaças, em quasi todos os meios de transportes marítimos que possam conduzi-los da capital para esta cidade. Ilhéus tornou-se assim, há algum tempo, o centro de convergência das levas de desamparados que aqui chegam atraídos pela fama de riqueza da terra, convertida para eles numa Canaam Afortunada, quando vista à distancia, ignorando todos que as condições atuais desta região já não favorecem muito aos que vêm de longe procurar trabalho a subsistência que lhes faltaram nos sertões, varridos pelo aceite terrível da soalheira14 impiedosa. Ainda hontem pelo vapor “Canavieiras” chegou uma nova leva de flagelados. Assistimos ao seu desembarcar que constrangeu-nos o coração os aspectos daquela miséria coletiva, a desgraça nua e crua daquela gente humilde que desfilava, como um bando de vencidos, entre as alas dos curiosos, alguns apiedados, outros indiferentes, não raros achando divertido o espetáculo... Vimos famílias numerosas, homens, mulheres, crianças, algumas ainda de peito, todos revelando na fisionomia triste, abatida, macilenta15, os vestígios dessa jornada de sofrimentos para a terra da promissão.

E é aqui essa terra. Trazem para aqui um punhado de esperanças. Vêm iludidos com a perspectiva enganos de encontrar fortuna, começar nova vida, esperando dias melhores, mais propícios ao aceno fácil da prosperidade.

13 Muitas palavras no inicio do século XX tinham grafia diferenciada das de hoje, por isso palavras como

hontem, peores, Baíana, quasi, creanças, etc., foram transcritas na forma original do início do século.

14 Segundo o Dicionário Online, soalheira é um substantivo feminino que significa calor muito forte do

sol; calma. Soalheira é sinônimo de: ardor, calor, canícula e solina.

15 Adj. Pálido, descorado; magro, descarnado: a doença deixou-lhe um aspecto macilento. / Adormecido,

Referências

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