• Nenhum resultado encontrado

A dogmática jurídica da “efetivação de direitos sociais e econômicos” no banco dos réus: reflexões metodológicas a partir de uma abordagem contextualista

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A dogmática jurídica da “efetivação de direitos sociais e econômicos” no banco dos réus: reflexões metodológicas a partir de uma abordagem contextualista"

Copied!
26
0
0

Texto

(1)

65 Revista de Estudos Empíricos em Direito

A DOGMÁTICA JURÍDICA DA “EFETIVAÇÃO DE DIREITOS

SOCIAIS E ECONÔMICOS” NO BANCO DOS RÉUS:

TGƔGZȣGU

OGVQFQNȡIKECUCRCTVKTFGWOCCDQTFCIGOEQPVGZVWCNKUVC

//

Charles Borges Rossi

1

Palavras-chave:

efetivação de direitos sociais e econômicos / meto-dologia da pesquisa em direito/ estudos empíricos em direito.

Sumário:

1 Introdução

2 O discurso da “Ciência do Direito” preso na cultura da dupla dualidade estrita 3 A “mudança de contexto” que aprisionou

Q FKUEWTUQ EKGPVȜƓEQ GO FKTGKVQ GO matéria de efetivação dos direitos sociais e econômicos

4 A instrumentalização da velha

“hermenêutica jurídica”

5 Fazer ciência não é elaborar parecer  # FKƓEWNFCFG GO RTQFW\KT UGPVKFQ PC

GNCDQTCȖȒQ FQ FKUEWTUQ EKGPVȜƓEQ GO direito no contexto de atribuição

7 O problema do cobertor curto: novas patologias metodológicas a vista

8 A objetividade como valor e a metodologia como fonte de validação do discurso EKGPVȜƓEQFGFKECFQCQDLGVQUFGPCVWTG\C deontológica

 # KPUWƓEKșPEKC FQ EQORTQOKUUQ

metodológico: o problema da causalidade nas ciências sociais e o abismo em relação à comunidade política

10 A apreensão da realidade pode viabilizar a efetivação do direito, mas o seu HWPFCOGPVQƓNQUóƓEQUGORTGUGTá moral  %QPUKFGTCȖȣGUƓPCKU

12 Referências

Resumo

No campo do direito, têm proliferado nos últimos anos discursos acadêmicos materializados em ar-tigos, livros, e mesmo peças processuais e decisões judiciais voltados a propor soluções jurídicas para o problema da efetivação dos direitos sociais e eco-nômicos no Brasil. Na maior parte das vezes, porém, esses esforços desconsideram os critérios objetivos e subjetivos de validação do discurso científico desti-nados a preencher de sentido os enunciados que o compõem, resultando na sua baixa capacidade de convencimento no contexto da produção científica considerada como um todo. Partindo da premissa da predominância da tese da dupla dualidade estrita na epistemologia do direito no Brasil em contraposi-ção ao que se observa no cenário metodológico mais amplo, este ensaio teórico busca identificar algumas dificuldades metodológicas enfrentadas pelo jurista interessado em produzir um discurso acadêmico des-tinado a propor soluções jurídicas para os problemas relacionados à efetivação de direitos sociais e econô-micos. Para tanto, este trabalho utiliza o arcabouço conceitual da filosofia analítica da linguagem combi-nada com a literatura em epistemologia das ciências humanas para defender a consideração e pondera-ção, nos estudos em direito, de princípios corriquei-ros nos processos de investigação científica nas disci-plinas relacionadas a essa problemática.

1 Doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo. Contato: charles.rossi@usp.br.

(2)

THE BRAZILIAN LEGAL DOGMATICS OF THE “REALIZATION OF

SOCIAL AND ECONOMIC RIGHTS” UNDER TRIAL: Methodological

TGƔGEVKQPUDCUGFQPCEQPVGZVWCNKUVCRRTQCEJ

Charles Borges Rossi

Keywords

Brazilian legal culture/ Law effectiveness/ Methodol-ogy of legal research / Empirical legal studies.

Abstract

The Brazilian law community has seen a proliferation of legal essays and academic papers in recent years focused on proposing legal solutions to the problem of realization of social and economic rights. In most cases, however, these efforts ignore the epistemolog-ical and methodologepistemolog-ical difficulties imposed on the task of giving meaning to the statements that com-pose them, resulting in a semantic emptiness of the discourse as a whole. This article surveys some recent contributions on philosophy of language, on contex-tualist epistemologies, on theory of law and on devel-opment studies, fields directly linked to the problem addressed here, to identify the methodological chal-lenges imposed on the discourse building process that engage the scientist of law devoted to the prob-lem of the realization of the social and economic con-stitutional rights in the Brazilian context, arguing that its meaning depends on the weighing and balancing of methodological principles observed by scientists of other fields, but still ignored by most of the Brazil-ian legal community.

(3)

A dogmárica jurídica da “efetivação de direitos sociais e eco- 67

1 Introdução

Já é de certo modo antiga a constatação de que houve um gradativo desvirtuamento do processo de elaboração do discurso científico no âmbito do direi-to em países como o Brasil. Para alguns, o principal culpado por esse vício foi o fenômeno da positivação do direito, que colocou na vontade humana o único parâmetro para definir os limites e possibilidades do que poderia ser coletivamente alcançado pela em-preitada social a que aprendemos a denominar de Estado. Para T. Ferraz Jr. (1997, p. 168), por exemplo, a positivação “castrou” os fundamentos de legiti-mação requeridos pelo direito, que, antes função de princípios metafísicos muitas vezes de origem reli-giosa, passaram a ser elaborados com base na busca pela legitimação de interesses e “posições partidá-rias”, em sacrifício do ideal de verdade científica. À medida, porém, que o processo de construção deste discurso “deixou de procurar a verdade como condição para o consenso para passar a buscar o consenso como condição de verdade” (idem, p. 168), num contexto crescentemente marcado pela fragmentação dos diversos ramos e subdivisões do direito e, consequentemente, da gradativa redução do universo no qual se busca este consenso, consoli-dou-se neste campo do saber uma cultura científica fundada no que denomino aqui de “ditadura da tese da dupla dualidade estrita”, que isolou epistemolo-gicamente a produção do discurso científico em di-reito em relação às outras ciências que ditam a pro-dução da verdade científica de objetos aos quais o direito necessariamente se refere.

Cada vez menos, porém, o consenso dos partícipes do debate científico em direito consegue suprir a ne-cessidade da busca pela verdade a que todo discur-so científico se volta. Ocorre, usando os conceitos da linha contextualista da epistemologia das ciências humanas2, uma “mudança de contexto” que amea-ça os critérios que conferem “valor de verdade” ao discurso científico por eles chancelado nos ambien-tes em que se produzem esses “consensos partidá-rios”. Nesta mudança, os “padrões convencionais de justificação” se tornam mais exigentes e passam

2 Alguns textos que abordam o contextualismo epistemológico a que fazemos referência neste trabalho incluem Jackman (2010), Neta (2003) e Cohen (2000).

a incluir novas regras até agora desconhecidas pela grande massa de “cientistas do direito”.

Este trabalho busca elucidar uma variante desta mudança de contexto no âmbito específico da pro-dução do discurso da ciência do direito no que se refere ao problema da efetivação dos direitos sociais e econômicos previstos na CF/1988. Para tanto, ini-ciaremos com a discussão em torno do que entende-mos por “discurso científico em direito”, explicitan-do o problema da consolidação da “tese da dupla dualidade estrita” na epistemologia da ciência do direito no Brasil no contexto do cenário contem-porâneo da epistemologia das ciências humanas. Posteriormente, apresentaremos duas facetas da supracitada “mudança de contexto” verificadas no âmbito da teoria do direito e nas ciências do desen-volvimento nos anos recentes, utilizando este novo cenário como pano de fundo para explicitar alguns problemas metodológicos no processo de constru-ção desta espécie de discurso científico. Por fim, alguns comentários serão destinados a explicitar limites à superação dos problemas anteriormente apontados.

2 O discurso da “Ciência do Direito” preso na cultura da dupla dualidade estrita

O discurso científico em direito foi analisado por di-versos autores no Brasil e no exterior, explicitando conflitos de diversas naturezas na sua conceituação. Este trabalho, porém, limita-se a adotar como pre-missa que esse discurso particulariza-se por voltar--se a contribuir para o sistema de conhecimento a respeito da realidade jurídica, devendo, para tanto, submeter-se a um conjunto de critérios metodológi-cos aptos a garantir sua aceitabilidade como “conhe-cimento”, ainda que este seja provisório e questioná-vel sob aspectos que variam no tempo e no espaço. Na abordagem que se propõe aqui, tanto a realidade como o modo de interpretá-la exercem papel disci-plinador fundamental na validação dos argumentos que compõem esse discurso, reconhecendo que os termos e enunciados que compõem o direito e a ciên-cia dedicada ao seu estudo conectam-se a elementos exteriores ao direito.

(4)

conjun-to de “padrões convencionais de justificação” que se encontram materializados na metodologia utilizada na elaboração e validação desse discurso é cada vez menos de domínio exclusivo de “juristas”, originan-do-se de debates travados no âmbito de diversas ciências que compartilham a mesma preocupação com a produção de um discurso com “valor de ver-dade”, ainda que a respeito de objetos de natureza muitas vezes distinta.

Quando utilizamos a expressão “cada vez menos” no parágrafo precedente, fazemos alusão à premissa de que ocorre uma instabilidade no que diz respeito ao contexto relevante para a validação do discurso cien-tífico em direito. Primeiro, na parte que diz respeito às conexões de termos e enunciados com elementos externos ao direito, objeto de preocupação, no cam-po metateórico, da teoria semântica da referência sistematizada na obra de Frege (1978) e complemen-tada pela obra de outros autores que incluem Kri-pke (1977), Davidson (1972), dentre outros. Depois, naquilo que se refere aos supracitados questiona-mentos a respeito das convenções sociais sobre “pa-drões de justificação”, entendidos como os critérios socialmente aceitos para conferir “valor de verdade” ao discurso científico, preocupação das teorias con-textualistas da epistemologia das ciências humanas, sistematizadas nas obras de autores como os já cita-dos Jackman (2010), Neta (2003) e Cohen (2000). Outra premissa que se adota neste trabalho é o compromisso3 historicamente firmado da parte da comunidade de juristas encarregados da produção do discurso científico em direito no Brasil com o que se denomina de “tese da dupla dualidade estrita”, expressão que se dá neste trabalho à postura de de-fender duas ordens de separação radical no campo metodológico: uma das ciências humanas em rela-ção ao das ciências da natureza e outra da ciência do direito em relação ao restante das ciências compor-tamentais e sociais do ponto de vista dos princípios

3 O termo “compromisso” neste contexto se aproxima da noção de “convenção” quando utilizada no contexto da expressão “padrões convencionais de justificação”, presente na literatura epistemoló-gica da filosofia da linguagem para se referir ao conjunto de cri-térios aceitos como necessários e suficientes para que o discurso que os observa garanta seu “valor de verdade” (Martin, 2010; Tar-ski, 1944, 1956).

epistemológicos, da metodologia e do uso de méto-dos e técnicas de investigação e de produção de sen-tido. Entendida de forma caricaturada, esta postura epistemológica só se faz presente em ciências estri-tamente formais como a matemática pura e a física teórica, ciências que rejeitam a vinculação metodo-lógica com a realidade empírica e com valores mo-rais, supostas “fontes de ilusões de ótica do mundo sensível” (Artstein, 2014). No direito, entretanto, esta postura se associou a um modo de produção do dis-curso científico comprometido com partes interessa-das desejosas de garantir sua legitimação na esfera de interesses tutelados pela ordem jurídica, compro-metendo a principal fonte da legitimidade da própria ciência que é justamente o ideal da busca da verdade desinteressada (Ferraz Junior, 1997). Na sua pior ver-são, a adoção da tese da dupla dualidade estrita im-plicou na rejeição acrítica das conclusões extraídas das ciências empíricas com base na ideia manique-ísta de que a ciência do direito possui epistemologia, metodologia e ontologia próprias e desvinculadas daquelas das outras ciências.

3 A “mudança de contexto” que aprisionou QFKUEWTUQEKGPVȜƓEQGOFKTGKVQGO matéria de efetivação dos direitos sociais e econômicos

Muitos são os debates travados em torno da produ-ção de significado pelos múltiplos discursos da cha-mada “Ciência do Direito”. Dito de maneira abran-gente e retomando uma ideia apresentada no tópico precedente, essa ciência consistiria num bem arti-culado “sistema de conhecimentos sobre a realida-de jurídica” (Ferraz Junior, 1997, p. 147), ainda que, por “sistema”, “conhecimento”, “realidade” e “jurídi-co” pairem longas tradições de debates travados no campo da epistemologia e da metodologia. Neste contexto, como regra, o cientista do direito no Bra-sil se manteve afastado dos desdobramentos desses debates, permanecendo fiel aos princípios epistemo-lógicos em voga no pensamento positivista dos sécu-los XVIII e XIX, que buscava estruturar o conhecimen-to científico em sistemas estáticos e formalizados do seu objeto, no caso, a “lei positivada”4. A ciência do

4 Esta orientação epistemológica a que fazemos referência inspira--se, em primeiro lugar, na preservação do essencialismo viabiliza-da pela separação rígiviabiliza-da entre a metodologia viabiliza-das ciências

(5)

huma-A dogmárica jurídica da “efetivação de direitos sociais e eco- 69

direito equiparou-se, nesse paradigma, a uma “ciên-cia dogmática do direito”, na qual a veracidade das suas proposições se basearia no significado intrínse-co dos termos que as intrínse-compõem (essencialismo) inde-pendentemente de qualquer conexão com o mundo exterior, onde habitam a experiência e os valores mo-rais. Muito se buscou, com esse compromisso, aproxi-mar a ciência do direito das ciências formais, para as quais a “prova” de uma proposição consiste na dedu-ção lógica feita a partir de definições preconcebidas. Desses traços gerais se originaram as convenções so-ciais compartilhadas por muitos juristas para conferir “valor de verdade” ao discurso científico na área do direito sintetizadas na noção anteriormente apre-sentada da tese da dupla dualidade estrita. Se, de um lado, esse compromisso sobrevive em comunida-des de juristas de países como o Brasil, de outro, já se constata há pelo menos cinquenta anos a discussão no âmbito da teoria do direito sobre a crise do jus-positivismo e sobre as suas limitações para a concre-tização da justiça na sociedade contemporânea (ver quadro abaixo). Nestas discussões, consolida-se a convicção de que a redução do direito a uma estru-tura formal apartada da moral e de conteúdo com pretensão universal e atemporal deflagrou a sua in-suficiência para cumprir com sua função de oferecer resposta às grandes questões de repercussão social e moral que estão na raiz de alguns dos principais pro-blemas da sociedade contemporânea.

nas em relação às das outras ciências, identificada, por exemplo, na obra de W. Dilthey (1979), que dedica parte importante da sua obra ao projeto de formular uma metodologia própria e específica para as ciências humanas negando a estas a noção de explicação causal, comum nas ciências da natureza (Schmidt, 2006, p. 29-48). Depois, no juspositivismo da tradição jurídica românica, que sepa-rou radicalmente a metodologia da ciência do direito em relação às das outras ciências sociais, com base na distinção idealizada apriorística das noções de “ser” e “dever ser” presente na “Dou-trina do Direito” de I. Kant (1785) e posteriormente incorporada por H. Kelsen em sua “Teoria Pura do Direito” (1939). Por fim, nos métodos clássicos de classificação elaborados originalmente por Carl Linnaeus em seu Sistema Naturae (1735), que, inaugurando a taxonomia clássica no âmbito da biologia, passou posteriormente a influenciar outras áreas do conhecimento. O advento de outras influências intelectuais (como as teorias darwiniana e newtonia-na), contudo, tornou mais questionáveis estas posturas metodoló-gicas com o passar do tempo nas mais diversas áreas do conheci-mento. Para um estudo mais abrangente destes tópicos, consultar Ereshefsky (2000).

Nestes debates, portanto, a ciência do direito con-cebe o seu objeto como dotado de uma função, que pode ser bem ou mal desempenhada. A partir desta constatação, patrocinou-se a abertura da teoria do direito, de um lado, aos valores ético-políticos, de-fendendo a indissociabilidade entre direito e moral e a inclusão dos princípios como forma de garantir respostas fundamentadas num discurso racional, co-erente e universal. De outro, aos fatos, entendendo o direito não como uma construção abstrata, mas como uma complexa realidade empírica de nature-za deontológica, criada pela atividade humana, for-mado por entidades linguísticas (como as diretrizes normativas5) e extralinguísticas (como as crenças e comportamentos), determinadas por fatores psíqui-cos, culturais e históricos e com impactos significa-tivos sobre a realidade social entendida de maneira mais ampla (Faralli, 2006).

Esta abertura epistemológica trouxe profundas con-sequências para a forma que se concebe o direito na literatura teórica. Muitos conceitos que antes eram considerados elementos externos ao direito passa-ram ou voltapassa-ram a figurar como verdadeiros pilares de sustentação de sistemas conceituais atualmente muito influentes. Verificou-se este fenômeno, por exemplo, a partir da introdução da noção de “conven-ção social” no pensamento de juspositivistas como H. Hart (2012); de “fato social” no pensamento de realistas como N. Llwellyn (2011); de “impactos nômicos” na concepção das escolas de análise eco-nômica do direito, como a representada por R. Pos-ner (2004); de “hegemonia política”, nas abordagens dos Critical Legal Studies; de “princípios do direito natural”, nas abordagens da teoria de direito natural, como por exemplo, de J. Finnis (2011); de “institui-ções”, na abordagem de N. MacCormick (1986); e de “princípios morais”, na teoria de R. Dworkin (1986)6, para citar somente alguns.

Em contrapartida, permanece forte e dominante no Brasil o compromisso dos juristas com as supracita-das teses epistemológicas radicais que negam o ca-ráter aplicado e dependente do direito em relação a esses elementos externos admitindo, no máximo,

5 No sentido conferido por A. Ross (1971).

6 Para uma visão panorâmica dos principais conceitos dessas es-colas, consultar Golding (2008).

(6)

a incorporação do universo empírico da própria lei e de suas possíveis interpretações feitas a partir de sua literalidade. Alegam, para sustentar sua posição, que os critérios que conferem “valor de verdade” ao discurso jurídico são oriundos do próprio discurso da norma positivada, que, por meio de uma metodolo-gia apropriada, sistematizada na chamada “herme-nêutica jurídica”, pode ser revelada e imposta a situ-ações fáticas que demandam uma “decisão jurídica”. Em ciências com essas características, tomadas ao extremo, não há confronto do discurso científico com a realidade a ele vinculada, e, desse modo, não há ve-rificação e superação de teorias7. Também há pouca

consideração das conexões envolvendo a linguagem jurídica e os elementos do mundo externo a que faz muitas referências, exceto para, uma vez revelada a “prescrição verdadeira” oriunda da “lei pura”, a ele se impor com o aval do Estado, detentor do monopólio da força.

Por outro lado, os desdobramentos dos debates metodológicos travados em diversas ciências têm municiado um crescente questionamento a essas convenções que ainda sobrevivem entre os produ-tores do discurso científico no direito que adotam o dogmatismo como postura epistemológica, dadas as transformações recentes do contexto relevante para a validação desse tipo de discurso. Consideremos, para esclarecer essa ideia, a noção de “conhecimen-to em direi“conhecimen-to” como sendo o discurso compos“conhecimen-to por proposições que atendem dois critérios de validação que lhes conferem “valor de verdade”: um no plano objetivo do que “deve ser” para uma dada socieda-de, parcialmente incorporada no direito vigente e que inclui as conexões entre os seus termos e o mun-do externo; e outro no plano subjetivo mun-dos “padrões convencionais de justificação” compartilhados entre os usuários desse discurso8.

7 Nas palavras de Ferraz Jr. (1997, p. 148), historicamente o juris-ta foi conduzido “a cuidar apenas das relações lógico-formais dos fenômenos jurídicos, deixando de lado o seu conteúdo empírico e axiológico”.

8Neste trecho, adota-se a noção de “conhecimento” da filosofia analítica da linguagem tal como descrito em Barber & Stainton (2010, p. 94-96, p. 189-191).

No dogmatismo, esses critérios são fixos para qualquer proposição dada9, isto é, há uma me

todologia relativamente rígida para a apreensão do sentido do “dever ser” dado pelo direito, os elemen-tos externos são internalizados e traduzidos de modo a se adaptar a essa linguagem prescritiva apriorísti-ca10; e a comunidade de juristas que depende dessa

construção científica se encarrega de convencionar no seu interior os critérios de justificação para a de-marcação do discurso científico no campo. No âm-bito do contextualismo epistemológico, contudo, o valor de verdade de uma dada proposição é função do contexto no qual ela é produzida, havendo múlti-plos níveis de “verdade”, a depender dos critérios em uso e da função que a proposição desempenha nesse contexto (Cohen, 2000; Jackman, 2010; Neta, 2003). Numa tal linha de argumentação, é “verdadeira” a proposição que, num dado contexto, cumpre com a função esperada pelos atores do ato comunicativo. Conforme este ato produz resultados mais dissemi-nados, abrange um conjunto mais amplo de atores ou o contexto exige uma maior segurança no ato de lhe conferir “valor de verdade” para evitar prejuízos indesejados, os critérios de justificação se tornam mais exigentes e um mesmo enunciado anteriormen-te “verdadeiro” pode anteriormen-ter sua validade questionada e revogada pela “comunidade relevante” (Jackman, 2010, p. 94-95).

O predomínio das teses epistemológicas dogma-tistas no campo da produção do discurso científico em direito condenou os seus criadores a reproduzir padrões de justificação relativamente baixos e de consistência insuficiente no trato das conexões entre os termos/enunciados e os elementos a eles vincula-dos provenientes do mundo externo ao direito. Esse argumento é especialmente válido para o discurso científico voltado a oferecer condições suficientes de decidibilidade para problemas complexos como os

9 A tese da rigidez dos critérios de demarcação do que constitui um “enunciado verdadeiro” é compartilhada entre os dogmatistas e os invariantistas, com a diferença que os padrões invariantistas são relativamente mais exigentes do que aqueles observados pe-los dogmatistas, já que, ao contrário daqueles, estes não admitem questionamentos céticos em relação aos dogmas que incorporam no seu discurso (Jackman, 2010, p. 94).

10 É o que Ferraz Jr. (1997, p. 149) denomina de “ciência dogmá-tica” do direito.

(7)

A dogmárica jurídica da “efetivação de direitos sociais e eco- 71

Ciência do direito no para-digma da dogmática jurídi-ca

Abertura da ciência do direito aos valores ético-morais

Abertura da ciência do direito ao mundo empírico P a r a d i g m a teórico no direito e al-gumas obras de referência

- Dogmática jurídica com base no direito positivo (Kelsen, 1939)

- Teoria de direito natural (Alexy, 1989, 2009, 2010; Finnis, 2011),

- Pós-positivismo (Dworkin, 1978, 1985, 1986)

- Realismo jurídico norte-americano (Cook, 1927, 1933, 1949; Holmes Jr, 1899a, 1899b, 2009a, 2009b; N. K. Komesar, 1984; Llewellyn, 1930, 1940, 1996, 2011a, 2011b; Nourse & Shaffer, 2009) - Análise econômica do direito (Calabresi, 1985, 1991; Calabresi & Bobbitt, 1978; Coase, 1960, 1992, 2012; N. K. Komesar, 1984, 1994, 1997a, 1997b; Posner, 1972, 1983, 1993, 2004, 2007, 2014) - Critical legal studies (Duncan Kennedy, 1973, 1976, 1981, 1986; Tushnet, 1983, 2000; Unger, 1976, 1983, 1996)

P a r a d i g m a epistemoló-gico

Lógica e hermenêutica. Herança das Institutas de Gaio e das Ins-titutas do Corpus Juris Civilis. Reelaborações contemporâneas incluem, no Brasil, Pontes de Mi-randa (1972) e Ferraz Jr. (1997). No exterior, Aarnio (1987, 2011) e MacCormick (1992) merecem destaque. Lógica, hermenêutica e metafísica (Alexy, 1989; Dilthey, 1979; Heidegger, 2002, 2010; Marmor, 1991; Pavlakos & Alexy, 2007; F. Schleiermacher & Bowie, 1998; F. D. E. Schleierma-cher, 1986)

Ciências empíricas, incluindo a antropologia, a sociolo-gia, a ciência política, a economia e a psicologia. A fun-damentação epistemológica aqui é subdividida em três principais vertentes: a analítica (Durkheim, 2014; Mill, 1974; Quetelet, 1835, 1869, 1870; Spencer, 1873, 1895), a compreensiva (Sombart, 1929; Sombart & Nussbaum, 1933; Tonnies, 1940, 1957, 2014; Weber, 1978, 2004, 2009) e a dialética (Engels, 2010; Lukács; Marx, 1876, 1892).

Quadro 2.

Atributos dos critérios de demarcação do discurso científico em direito no

contexto da recente abertura epistemológica

Ciência do direito no paradigma da dogmática jurídica

Abertura da ciência do direito aos valores ético-morais

Abertura da ciência do direito ao mundo empírico Crit érios de demar caç ão do discur so com “v alor de v er dade ” Capacidade de legitimação axiológica

Baixa (construção formal aparta-da de valores)

Alta (facilita a fundamentação axiológica do discurso)

Alta (desde que explicitados os pressupostos e limites das con-clusões). Sensibilidade às especificidades do objeto no tempo e no espaço

Baixa (pouca vinculação entre o discurso e a realidade condicio-nada por variáveis localizadas no tempo e no espaço – foco na vali-dade formal)

Baixa (pouca vinculação entre o discurso e a realidade condicio-nada por variáveis localizadas no tempo e no espaço – foco em valores universais)

Alta (Dependência direta da realidade empírica formada por fenômenos localizados no tempo e no espaço)

Grau de genera-bilidade e uni-versabilidade

Baixa (critérios de validação re-stritos ao âmbito de validade da norma – ex: território nacional)

Alta (critérios de demarcação as-sentados em valores universais e atemporais)

Alta (critérios de demarcação assentados na busca pela obje-tividade científica)

Fonte: Elaboração do autor.

Fonte: Elaboração do autor com base em Borgatta & Montgomery (2000); Porter, Porter, & Ross (2003); Golding & Edmun-dson (2008); Schmidt (2006); Gray (1999); Faralli (2006), Oliveira (1976; 1995) e nos textos originais citados no quadro.

Quadro 1.

Fundamentos teórico-epistemológicos da recente abertura da ciência do

(8)

que envolvem a concretização de objetivos constitu-cionais e a efetivação de direitos sociais e econômi-cos. Em poucas palavras, o modo pelo qual o jurista brasileiro aprendeu a conferir sentido ao seu discur-so científico no campo do direito desconsiderou a evolução do debate metodológico em matéria de produção de enunciados com pretensão de expres-sar verdades científicas sobre o seu objeto, minando a sua capacidade de influência, legitimidade e con-vencimento em esferas argumentativas mais amplas. Nos próximos tópicos, exploraremos essa ideia a par-tir da adoção de um recorte específico para “discurso científico em direito” que abranja somente o proble-ma da efetivação dos direitos sociais e econômicos previstos na Constituição Federal de 1988. Trabalha-remos algumas dificuldades metodológicas aponta-das na literatura envolviaponta-das na problemática tarefa de conferir sentido aos enunciados normativos dos textos

Fundamentos teórico-epistemológicos da recente abertura da ciência do direito aos valores e ao mun-do empírico-legais ao mesmo tempo evitanmun-do o seu hermetismo em relação à realidade social ou o seu esvaziamento semântico quando articula conceitos epistêmicos ou argumentos causais.

4 A instrumentalização da velha “hermenêutica jurídica”

A Constituição de 1988 elenca os objetivos do Estado brasileiro em seu artigo 3º, supostamente vinculando o sentido da sua ação. A doutrina constitucionalista classifica esse artigo como uma “norma de eficácia limitada por princípios programáticos” dependente da elaboração de políticas públicas. Caso tais po-líticas sejam inexistentes ou insuficientes, isso dá ao eventual prejudicado o direito de exigir judicial-mente a sua concretização (da Silva, 2007). Dentre os objetivos previstos nesse artigo está a busca do de-senvolvimento apto à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sem pobreza e marginalização e tendente à redução das desigualdades11. Além do

artigo 3º, diversos outros dispositivos constitucionais

11 Objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil nos termos do art. 3º da CF de 1988.

dispõem sobre os direitos sociais e econômicos, in-cluindo os direitos à educação, à saúde, ao trabalho, à previdência social, à moradia, à segurança, ao lazer, à proteção à maternidade e à infância, à assistência aos menos favorecidos, além de vários outros pre-ceitos destinados a prever finalidades, programas, tarefas, diretrizes e normas a serem perseguidos pelo Estado e pela sociedade. Essa gama de dispositivos é considerada por muitos “um avanço extraordinário na consolidação dos direitos e garantias fundamen-tais” (Piovesan & Vieira, 2006, p. 130), devendo o Po-der Judiciário garantir a sua efetivação por meio de suas decisões, devidamente provocadas pelos deten-tores desses direitos, no caso, todos nós. Trata-se do que alguns têm denominado de “justiciabilidade dos direitos sociais e econômicos” (Alves, 2013; Courtis, 2008; Cunha, 2005; Piovesan & Vieira, 2006).

Toda essa construção interpretativa estruturada em torno desses dispositivos constitucionais fundamen-ta uma infinidade de discursos da “ciência do direito”, materializados não somente em artigos e livros, mas também em peças e decisões judiciais que utilizam esses discursos em suas estruturas argumentativas, muitos dos quais com efeitos significativos sobre a atividade do Estado e sua efetividade, sobre o com-portamento do cidadão no exercício dos seus direitos e sobre o restante da sociedade que, mesmo excluída dos seus efeitos diretos, arca com suas consequên-cias de maneira difusa.

Apesar dessa relevância, muitos desses discursos não incorporam na sua estrutura qualquer conside-ração metodológica que lhes permita alcançar um nível de validade superior a uma mera opinião, ainda que fundada em conclusões de estudiosos da área do direito e de outras disciplinas. Quando muito, extra-em o sentido dos seus conceitos segundo os precei-tos do essencialismo aristotélico resgatado pelo ide-alismo de Pufendorf, Grotius e Kant (Wieacker, 1995), posteriormente complementados pelos princípios da tradição hermenêutica da filosofia continental12,

que, no campo epistemológico, adotam a tese da du-pla dualidade estrita, muito questionada nos atuais debates metodológicos. Nas suas versões mais

per-12 Refiro-me aqui à tradição iniciada nos trabalhos de F. Schleier-macher, W. Dilthey, M. Heidegger, H. Gadamer, dentre outros, di-daticamente abordados no texto panorâmico de Schmidt (2006).

(9)

A dogmárica jurídica da “efetivação de direitos sociais e eco- 73

niciosas, resvalam para relativizações reducionistas fundadas na noção de “direito como comunicação, mas fora da linguística” (Ferraz Jr., 2000) para, pelo menos no nível retórico, lidar com as complexidades do mundo real ignorados pela estrutura hermética desta “ciência essencialista do direito”. O “caráter jurídico” destes discursos encontra lastro na obser-vância dos “princípios operacionais da teorização jurídica” (Ferraz Jr., 2000), construídos, contudo, em total desconexão com qualquer debate metodológi-co destinado à descrição da realidade.

Com esta estratégia discursiva, o jurista foge ao mes-mo tempo da camisa de força imposta pelos “limites fechados dessa Ciência do Direito” (Grau, 1982, p. 231) e das contingências metodológicas impostas pela difícil tarefa de lidar com o mundo empírico, deixando aberto o caminho para as arbitrariedades na construção semântica do saber jurídico que pau-ta a efetivação (ou não) do direito. Ao trapau-tar o direi-to como sistema semiótico povoado de conceidirei-tos abertos e indeterminados, disponibiliza-se aos ope-radores do direito ampla liberdade para expressar qualquer vontade sob a roupagem da legitimidade científica, sem a correspondente submissão aos im-perativos metodológicos construídos para garantir a fidelidade na interpretação de suas dimensões empí-rica e axiológica.

Não é por acaso que a vigente pluralidade de aborda-gens que atualmente disputam a primazia na tarefa de identificar os elementos originadores de “sentido” para discursos que carregam alguma pretensão de cientificidade ainda não é refletida na construção do discurso científico em direito. No caso específico dos discursos fundamentados nos dispositivos constitu-cionais relativos aos direitos sociais e econômicos, notamos que a sua construção na maioria das vezes serve unicamente para fundamentar pretensões sub-jetivas a direitos fundamentais (o acesso à saúde, à moradia, ao salário digno, dentre outras), confundin-do o interesse desse sujeito abstrato (subjetivo) ao interesse geral da sociedade (objetivo), sem conside-rar as consequências oriundas de sua eventual efeti-vação. Por exemplo, abundam em decisões judiciais do STF enunciados como:

“O fato inquestionável é um só: a inércia estatal em

tornar efetivas as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela Constituição e configura comportamento que revela um incompre-ensível sentimento de desapreço pela autoridade, pelo valor e pelo alto significado de que se reveste a Constituição da República” (BRASIL, Supremo Tribu-nal Federal, RE 763.667 AGR / CE, Relator: Min. Celso de Mello, 2013).

Nesses enunciados, são frequentes as arbitrarieda-des que só um sistema linguístico livre das amarras metodológicas13 próprias da ciência permite expres-sar, revelando a estreiteza do alcance do princípio da obrigatoriedade de fundamentação das decisões ju-diciais na mais alta corte brasileira. Nestes, o proble-ma da efetivação dos direitos sociais e econômicos é um defeito moral de um ente personificado (o Poder Público) que se recusa a se comportar aceitavelmen-te, sendo papel da autoridade judicial obrigá-lo a se moldar ao que manda a Constituição. Nesta toada, a “doutrina real do direito14” (Grau, 1982, p. 230-234), pretensamente dotada de legitimidade científica, viabiliza a consideração do direito como um amplo catálogo de conceitos, enunciados e discursos (sis-tema semiológico) flexivelmente associáveis entre si com o fim de permitir a aplicação do direito segun-do critérios inacessíveis, somente inscritos no íntimo da (in)consciência de cada autoridade jurisdicional. Acaba sobrando pouca margem para a construção de discursos protegidos contra as suas arbitrariedades. Raros são os argumentos que escancaram as conse-quências do predomínio da tese da dupla dualidade estrita na atividade de preencher o direito de senti-do, já há muito tempo discutidas nas ciências sociais. Para preservar sua legitimidade científica, o discurso acadêmico no campo do direito contenta-se com a mera incorporação de ideias isoladas de renomados cientistas (que, na melhor das hipóteses, correspon-de a mais resumida versão da sua essência), sem reconhecer que sua legitimidade decorre em grande medida justamente do modo como articulam me-todologicamente os seus argumentos, observando,

13 Refiro-me às técnicas de preenchimento de sentido de concei-tos e enunciados que gozam de legitimidade científica.

14 Noção criada por E. Grau em contraposição à de “ciência formal do direito” para defender o caráter pluridimensional do direito, o que significa reconhecer seu conteúdo empírico e axiológico.

(10)

questionando e reinventando os padrões convencio-nais de justificação que viabilizam sua validação na esfera científica. Deste modo, autores como A. Sen, E. Ostrom, T. Piketty, R. Posner, dentre outros, são citados do mesmo modo que outros doutrinadores, como se sua autoridade argumentativa também de-corresse do seu status social no meio jurídico ou da sua competência jurisdicional15.

Atualmente diversos autores do campo do direito re-conhecem a importância desse tipo de reflexão. Não por acaso, mesmo no âmbito de algumas das princi-pais escolas de pensamento da teoria do direito ex-cluídas dos grandes movimentos de “estudos empíri-cos em direito”, como é o caso do positivismo jurídico contemporâneo, é crescente a incorporação de esfor-ços para “explicar a existência de normas e institui-ções legais” evitando as “armadilhas do idealismo” (MacCormick & Weinberger, 1986, p. 6-9). Isso sem fa-lar na crescente importância do trabalho de autores agrupados em categorias que incluem o denominado “novo realismo jurídico” (Nourse & Shaffer, 2009), o movimento da Law and Society (Friedman, 1986), e a escola da Law and Economics (Cooter & Ulen, 2013), inquestionavelmente comprometidas com as cone-xões entre o direito e fenômenos do mundo real16. Komesar (2013; 1997a, 1997b), por exemplo17, ao

lon-go de muitos anos, tem adotado uma postura meto-dológica robusta para defender que só se pode falar em análise jurídica quando se realiza uma análise de escolhas institucionais, já que as instituições são ne-cessariamente a ligação entre o direito e os objetivos por ele pretendidos. Para esse autor, entre o direito abstratamente considerado e a sua concretização no

15 Exemplos deste tipo de construção argumentativa incluem inúmeras decisões judiciais recentes proferidas pelo STF, como se pode consultar em BRASIL (2012, 2013a, 2013b).

16 Ver quadro 1.

17 Komesar é um dos autores que costuma ser incluído na cate-goria de autores do “novo realismo jurídico”, defendendo uma abordagem interdisciplinar nos estudos em direito, ainda escas-sos como o próprio autor admite em seus textos (Nourse e Shaffer, 2009, p. 85-86). O “novo realismo jurídico” no âmbito da ciência do direito é associado à percepção da insuficiência das abordagens formalistas alheias ao caráter institucional das relações humanas e à liberdade de autodeterminação da sociedade cuja proeminên-cia estaria assoproeminên-ciada a graves problemas soproeminên-ciais tais como a crise econômica eclodida em 2008 (Nourse e Shaffer, 2009, p. 63-71).

mundo dos fatos18, encontram-se as instituições, que

devem ser analisadas por meio de estudos compa-rados de escolhas institucionais. Como veremos em diversos outros exemplos adiante, essa não é a única forma de preencher de sentido um discurso científico em direito levando em conta padrões convencionais de justificação corriqueiros em diversas ciências, já que cada sistema teórico articulado metodologica-mente com métodos e técnicas de investigação tem seu próprio modo de fazê-lo. No Brasil e em outros países de tradição românica, porém, essa preocupa-ção é escassa, contribuindo para o atual cenário de ausência de paradigma teórico no campo do direito, como esclarece Spector (2004, p. 264).

A construção de discursos científicos em direito desti-nados a oferecer soluções jurídicas para a efetivação de direitos sociais e econômicos parece, entretanto, uma tarefa hercúlea. Isso porque outros diversos campos disciplinares correlatos ao direito também vivenciaram recentemente aberturas epistemológi-cas do mesmo modo que se verificou no âmbito da supracitada teoria do direito. Nos estudos de desen-volvimento econômico, por exemplo, tem sido muito discutida a recente flexibilização das suas antes pou-co questionadas prescrições de política (portanto, do mundo do dever-ser), baseadas nas premissas uni-versais e atemporais da microeconomia neoclássica e no seu fundamentalismo de mercado19. Agora,

cres-centemente se admite a incorporação de interpreta-ções até então marginalizadas a respeito de como ocorre o processo de desenvolvimento, evidencian-do um novo pluralismo teórico-metoevidencian-dológico20.

5 Fazer ciência não é elaborar parecer

Dito de maneira provocativa, a construção do discur-so científico em direito ou em qualquer outra área do saber em nada se assemelha ao processo de ela-boração de um parecer jurídico, pelo qual se busca

18 O direito se materializa no mundo dos fatos quando são pro-feridas decisões judiciais eficazes ou quando tomam a forma de políticas públicas, por exemplo.

19 Ver Williamson (1989).

20Textos que abordam a ascensão desse pluralismo incluem, na literatura internacional, World Bank (2005, 2008) e Rodrik (2006). Na literatura nacional, mais sensível às especificidades brasileiras, os trabalhos de Bianchi (2010) e de Gala e colaboradores (2003) merecem destaque.

(11)

A dogmárica jurídica da “efetivação de direitos sociais e eco- 75

fundamentar uma convicção predeterminada, nor-malmente o interesse subjetivo de quem paga pela sua elaboração. Não se pretende negar aqui a sua im-portância para a prática profissional do advogado e para o funcionamento do sistema jurisdicional, mas somente distinguir suas funções e contextos relevan-tes de validação.

O discurso científico busca o ideal de verdade e é va-lidado em contextos funcionalmente especializados na produção e avaliação de teorias científicas, que não necessariamente obedecem às divisões disci-plinares reforçadas pelos juristas cultores da tese da dupla dualidade estrita. É julgado segundo o critério “verdade/não verdade”. O discurso dos pareceres não precisa buscar se aproximar de nenhum ideal de verdade, porque destina-se tão somente ao conven-cimento num contexto de validação específico com relação direta com o interesse do seu elaborador. É julgado segundo o critério do “funciona/não funcio-na”. Claro que essa divisão não se apresenta de forma tão caricaturada na realidade, ainda mais numa cul-tura jurídica que sempre acreditou no “direito como ciência” (graças a Kelsen e suas inspirações) e em que nos acostumamos a ver as figuras de advogados, juízes e promotores confundidas com as de acadêmi-cos nas principais escolas do país.

Ao contrário do que prescrevem os princípios da “doutrina real do direito” (Grau, 1982), o preenchi-mento dos conceitos e enunciados jurídicos no âm-bito da ciência do direito não é ditado pela “finalida-de “finalida-de viabilizar a aplicação “finalida-de normas jurídicas” em favor de alguém que teve seu direito lesado (o que delimita, nesta visão, o contexto relevante de sua va-lidação, que decidirá se o discurso funcionará ou não para esse fim). É, isso sim, ditado pelo seu grau de aderência à realidade que delimita o seu objeto, mes-mo reconhecendo que a sua demarcação (da realida-de) inevitavelmente dependerá do olhar do cientista que produz esse preenchimento.

Este grau de aderência vincula-se ao argumento, defendido neste trabalho, de que o significado dos enunciados do discurso científico depende direta-mente das evidências a favor e contra a sua

demarca-ção como “verdadeira21”. Vincula-se também à ideia

de que, sendo uma ciência aplicada, tem seu discurso formado tanto por sentenças analíticas, que extraem o seu “valor de verdade” a partir de deduções lógicas feitas a partir de suas definições apriorísticas, quanto as sintéticas, que o extraem da sua correspondência em relação aos fatos do mundo empírico.

A implicação direta desses argumentos para o discur-so científico é que o método de verificação dos seus argumentos é fator determinante para o seu signifi-cado, que só pode existir se determinadas condições epistêmicas capazes de conferir aos seus enuncia-dos o atributo de “verdadeiro” estiverem presentes (Callaghan & Lavers, 2010, p. 403-405). Ter ou não esse atributo, contudo, depende diretamente do con-texto no qual este discurso é produzido (Neta, 2003), o chamado “contexto relevante” mencionado ante-riormente que, à medida que se amplia no tempo e no espaço, eleva seus padrões de exigência. Essa am-pliação decorre da natureza da atividade científica, que constantemente persegue o ideal de universali-dade e irrefutabiliuniversali-dade sujeitando-se às imposições resultantes do compromisso com a aderência do seu discurso à realidade, independentemente de como esta seja compreendida. No caso de uma ciência so-cial aplicada, como é o caso do direito, a aderência do discurso científico à realidade demanda a sua vinculação a termos e referências originados fora do universo discursivo jurídico sempre que a realidade exija novos modos para a sua compreensão, tarefa que pode demandar mecanismos mais sofisticados de depuração de seus limites e alcance.

A dinâmica que envolve a mudança de contextos relevantes na produção de sentido para o discurso científico em geral é estudada pela corrente con-textualista da epistemologia, que compreende esta dinâmica por meio da identificação de pelo menos três contextos distintos e interdependentes de signi-ficação, que interagem entre si no processo de atri-buição de “valor de verdade” aos enunciados que o compõem (Jackman, 2010). Primeiro, o contexto no qual aquele que produz o enunciado se insere (Annis, 1978), chamado de “contexto do sujeito”. Segundo, o

21 Tese proposta por R. Carnap (1968, 1988), cujas ideias foram descritas na epistemologia como a teoria semântica verificacio-nista (Callaghan & Lavers, 2010).

(12)

contexto no qual se avalia se aquele que produziu o enunciado conhece ou não o seu significado (DeRo-se, 2002; Hawthorne, 2004), denominado de “contex-to de atribuição”. Por fim, o contex“contex-to no qual se avalia como “verdadeiro” ou “falso” a conclusão extraída do segundo contexto (MacFarlane, 2005), que deno-minamos aqui de “contexto de avaliação em última instância”, que opera, nessa abordagem, como um ideal de objetividade.

Neste trabalho, podemos reapresentar esse argu-mento usando como exemplo o seguinte enuncia-do, adaptado a partir do texto de Piovesan e Vieira (2006):

Enunciado: É fundamental que o cidadão acione de forma crescente o Poder Judiciário para garantir a efetividade do direito à saúde, tornando real a exigi-bilidade dos direitos econômicos e sociais como ver-dadeiros direitos públicos subjetivos.

Quadro 3 Contexto do sujeito Contexto de atribuição Contexto de avaliação em última instân-cia Grau de a b r a n

-gência Círculo acadê-mico restrito que produz o discurso cien-tífico numa determinada área do direi-to, no caso, na área dos direi-tos humanos.

Círculo acadê-mico mais am-plo em que se avalia a relação entre os termos e elementos do mundo exterior ao discurso cien-tífico do contex-to do sujeicontex-to, incluindo os valores morais e o mundo dos fatos. Ideal inaces-sível, mas im-possível de ser descartado: A ciência tomada como um todo indivisível e co-erente capaz de identificar a ver-dade de qual-quer argumento num dado mo-mento. A t r i b u i “valor de verdade” ao enun-ciado?

Sim Não Não

Tese epis- temológi-ca domi-nante Monismo: O sentido do discurso cien-tífico em di-reito só pode ser acessado por meio de um método h e r m e n ê u -tico próprio do direito, es-sencialmente diferente dos métodos das outras ciên-Pluralismo: O sentido do dis-curso científico em direito de-pende do uso de métodos de di-versas ciências, cada qual me-lhor adaptado para captar as-pectos comple-mentares que, em conjunto, garantem o seu “valor de verda-Monismo ide-al, inexistente: Consiste no ide-al de consenso metodológico na ciência fruto do processo de diálogo entre todos os par-ticipantes dos debates episte-mológicos. Universo de pes-quisa Lei positivada, dogmática ju-rídica, filoso-fia moral. Lei positivada, filosofia, socio-logia, psicosocio-logia, economia, es-tatística, mate-mática, dentre outros. A realidade em toda a sua com-plexidade to-mada como um todo.

Fonte: Elaboração própria, adaptado a partir de Ja-ckman (2010), Annis (1978), DeRose (2002), Hawthorne (2004) e MacFarlane (2005).

No enunciado que adaptamos a partir do texto de Piovesan & Vieira (2006), identificamos uma proposta de solução para o problema da efetividade de um dos direitos sociais e econômicos tutelados pelo ordena-mento jurídico brasileiro, o direito à saúde. Na sua estrutura, identifica-se uma relação de causa e efeito envolvendo o acionamento crescente do Judiciário da parte do cidadão e a maior efetividade do direito à saúde. Esse argumento, no contexto subjetivo for-mado pelo círculo acadêmico restrito que produz o discurso científico na área de direitos humanos, tem “valor de verdade”, uma vez que observa os princí-pios e regras metodológicos aceitos pela respectiva comunidade relevante.

Porém, à medida que reconhecemos a ampliação do contexto relevante para a atribuição de valor de ver-dade à relação de causaliver-dade explicitada no

(13)

enun-A dogmárica jurídica da “efetivação de direitos sociais e eco- 77

ciado22, aumenta também o grau de exigibilidade dos

respectivos critérios de validação, tornando falsos enunciados antes identificados como verdadeiros num contexto mais restrito. No nosso caso, isso pode ocorrer, por exemplo, quando a comunidade rele-vante passa a constituir um círculo acadêmico mais amplo que se importa com a relação entre elementos do mundo exterior (as variáveis do mundo empírico) e o discurso científico do contexto mais restrito. Esse processo de ampliação contextual pode se estender indefinidamente até um limite inatingível represen-tativo da objetividade científica entendida como um ideal, que forma o contexto de avaliação em última instância23.

6 #FKƓEWNFCFGGORTQFW\KTUGPVKFQPC GNCDQTCȖȒQFQFKUEWTUQEKGPVȜƓEQGO direito no contexto de atribuição

Os argumentos colocados até este momento evi-denciam diversas dificuldades metodológicas que passam a ser enfrentadas pelo cientista do direito que elabora o seu discurso no contexto ampliado de atribuição (ver quadro anterior), em que ganha im-portância a relação envolvendo os enunciados e os elementos exteriores ao sistema semiológico a que aprendemos a denominar no passado de “ciência do direito”. É importante destacar neste ponto que o conhecimento acerca dos fenômenos jurídicos e, mais especificamente, a interpretação do sentido da norma jurídica, não é prerrogativa privativa do que se denomina “comunidade jurídica”, sendo o contexto relevante para a consolidação de critérios de valida-ção do discurso com “valor de verdade” mais amplo

22 As relações de causalidade constituem parte fundamental da linguagem, tanto quando a entendemos de maneira ampla quan-to quando nos referimos especificamente à linguagem científica. Deste modo, a forma pela qual se estabelecem os critérios de va-lidação dessas relações, a depender da natureza do objeto que se analisa, abrange construções linguísticas originadas em múltiplos círculos acadêmicos, cujo uso raramente se limita ao contexto sub-jetivo que elabora o discurso que as utiliza (Sullivan, 2010). 23 Na atividade científica, a impossibilidade de alcançar o ideal de conhecimento universal e irrefutável não justifica o abandono deste esforço, o que constitui um valor fundamental de qualquer atividade investigativa que adota a postura epistemológica de combate ao ceticismo extremado. Entende-se por ceticismo extre-mado neste contexto o pensamento que considera ser impossível a aproximação de uma “verdade científica” (Cohen, 2000; Feld-man, 2001; Neta, 2003).

do que muitos colegas estão dispostos a admitir24.

No âmbito da filosofia da linguagem, a produção de sentido por termos, enunciados e discursos relacio-nados a elementos do mundo exterior à própria lin-guagem é objeto de estudo de autores como Frege (1978), para quem o “sentido” é entendido como o “significado passível de ser comum a toda a comu-nidade relevante” que está por sua vez associado a uma “referência” que lhes confere uma “pretensão de verdade” valorável como sendo “verdadeiro” ou “falso”, ainda que provisoriamente25. .Apesar de sua

insuficiência para a compreensão de diversas varian-tes de linguagem (Martin, 2010), essa abordagem nos permite aproximar o conteúdo desses enunciados de um ideal de objetividade perseguido pela atividade investigativa, afastando-nos de construções argu-mentativas assentadas em meras “representações” de enunciados extraídos de diversas fontes, ainda que estas sejam teorias sociais, econômicas ou filo-sóficas.

Apresentados esses argumentos, podemos voltar o foco da análise para o problema da produção de sentido do discurso científico em direito em matéria de efetivação de direitos sociais e econômicos para concluir que se trata de tarefa complexa e minuciosa. Tarefa que esbarra, antes de tudo, nas dificuldades metodológicas decorrentes da maior extensão dos universos de pesquisa abrangidos pelas disciplinas científicas relevantes para o tema e que compõem o contexto ampliado de validação do discurso científi-co voltado a este objeto, de natureza transdisciplinar. Estes universos ampliados exigem a consideração de uma grande pluralidade de sistemas teóricos no seu interior, cada qual com seus próprios fundamentos, conceitos, hipóteses, métodos e técnicas de investi-gação. Desta pluralidade também emergem múlti-plas linguagens científicas, cada qual com sua pró-pria sintaxe e sistema de significados, que tornam

24 Para uma defesa apaixonada e bem fundamentada dessa ideia para a realidade jurídica norte-americana no que se refere à Cons-tituição dos EUA consultar, por exemplo, Tushnet (1983, 2000). 25 No pensamento de G. Frege, o “sentido” de um enunciado, ain-da que essencialmente distinto do enunciado em si (a referência) tem caráter objetivo em relação à sua mera “representação”, que tem caráter puramente subjetivo, não sendo esta (a representa-ção) passível de valoração quanto à sua objetividade ou poder de transmitir uma mensagem relevante (Frege, 1978).

(14)

complicada a tarefa de interpretar suas diversas con-tribuições. Além disso, a efetivação desses direitos envolve questões epistemológicas presentes na teo-ria do direito e nas ciências do desenvolvimento, ci-ências ao mesmo tempo diversas e complementares, sem falar nos desafios que se associam ao processa-mento das conclusões empíricas. Por fim, também pesa a expectativa imposta ao cientista do direito para que sempre apresente proposições normativas condizentes com o ordenamento jurídico vigente, o que demanda a combinação de uma apreensão cor-reta dos limites das conclusões sistematizadas no âmbito das ciências empíricas com um posiciona-mento axiológico e procedimental condizente com o sistema normativo, sem deixar de considerar os po-tenciais efeitos (os desejados e os colaterais) da sua adoção26 sobre a realidade social27.

7 O problema do cobertor curto: novas patologias metodológicas a vista

O “problema do cobertor curto” se coloca toda vez que a busca pela solução de um tipo de problema cria novas frentes de vulnerabilidade antes imper-ceptíveis. Ao buscar cobrir os braços, os pés ficam descobertos. O enfrentamento dos desafios

metodo-26 Não se pretende com este argumento defender uma aborda-gem “de ponto de chegada” para a prática científica na área de direito para o problema da efetivação dos direitos sociais e eco-nômicos, tal como identificada na literatura do Law and Develop-ment (Schapiro & Trubek, 2012). Nesta literatura, consideram-se fracassadas diversas experiências históricas de criação de arran-jos institucionais de desenvolvimento racionalizados nos termos da microeconomia ortodoxa tal como expressos no “Consenso de Washington”, nas políticas de “desestatização” e na crença acrítica nas “instituições de mercado”. Não há dúvidas de que essa cons-tatação impõe restrições para a extração de conclusões e atribui-ção de “valor de verdade” às proposições articuladas no discurso científico que já sustentou sua universalização. Atualmente, a con-sideração dos argumentos metodológicos presentes nas diversas literaturas relacionadas a essa problemática permite vislumbrar novas e promissoras agendas científicas que incorporam o expe-rimentalismo, o aprendizado e a descoberta na sua construção. Exemplos atuais neste sentido incluem Burman & MacLure (2005), Greene, Kreider, & Mayer (2005) e Lankshear & Leander (2005). 27 É possível que o processo de concretização de uma proposta criada nesses termos acabe por produzir um efeito indesejado su-ficientemente relevante para subverter o objetivo originalmente pretendido, ocasião na qual seu valor de verdade precisa ser re-lativizado, como ocorreu com a tentativa de universalização das prescrições de política originadas da microeconomia clássica cita-da na nota anterior.

lógicos até agora postos para a construção do discur-so científico voltado ao tema da efetivação dos direi-tos sociais e econômicos coloca o cientista do direito diante de uma nova gama de fragilidades. A escolha por comentar esses problemas neste ponto decorre do reconhecimento de que não existe solução sim-ples para os problemas levantados, e, na defesa de uma postura pluralista, da fundamental importância da ponderação entre princípios epistemológicos que para muitos problemas do mundo real se mostrarão inevitavelmente conflitantes. Neste ponto, apoio-me na noção de “patologia metodológica” construído por Oliveira Filho (1995) com base nos seus estudos sobre os fundamentos epistemológicos dos proces-sos de investigação social das ciências sociais. Por “patologia” aqui se entende os tipos de vulnera-bilidade que o discurso científico adquire quando incorpora vícios no processo de acoplamento entre sistema teórico, métodos e técnicas de pesquisa, que precisam guardar certa harmonia entre si.

Nesta linha, o autor identifica em primeiro lugar o indesejável “ecletismo”, que pode ser entendido de duas formas. De um lado, como a confusão entre a palavra (sinal) que expressa um conceito e o próprio conceito, o que está frequentemente as-sociado ao seu uso fora do seu esquema conceitual; e, de outro, como uma confusão de funções, em que se atribui função teórica a expressões descritivas28 e

função descritiva a expressões teóricas29. Depois, do

tão frequente “reducionismo”, que também aparece sob duas roupagens. A primeira, consistindo na ado-ção pouco criteriosa de procedimentos metodológi-cos das ciências naturais nas ciências humanas como fundamento para uma argumentação pretensamen-te objetiva e inquestionável; e a segunda, que consis-te na rejeição acrítica das concepções empiristas na construção dos enunciados científicos nas ciências sociais (dualismo extremado), amplamente dissemi-nada entre alguns adeptos das abordagens metodo-lógicas “dialéticas” e “hermenêuticas”.

28 Por exemplo, quando se pressupõe conclusões com pretensão universal e atemporal com base em observações extraídas da rea-lidade empírica especificamente situadas no tempo e no espaço. 29 Por exemplo, quando se pressupõe a existência de uma estrutu-ra econômica injusta num determinado setor produtivo específico com base em ideais gerais e abstratas de mercado perfeitamente competitivo e com livre fluxo de informações e de fatores.

(15)

A dogmárica jurídica da “efetivação de direitos sociais e eco- 79

Quadro 4 - Metodologia e epistemologia das principais correntes teóricas no campo do direito. Corrente na teoria do di-reito Fonte de validade do enunciado jurí-dico Pressupostos metodo-lógicos: Conhecer o direito é... Abordagens me-todológicas pre-dominantes Afinidade teórico- metodológica

Influência dos des-dobramentos meto-dológicos nas ciên-cias da natureza1 Direito natu-ral Adequação aos princípios inerentes à natureza humana.

Identificar a sua razão de ser, o elemento que o define e justifica a sua existência independen-temente de qualquer ato de vontade.

Hermenêutica/

i n t e r p r e t a t i v a , dogmática.

Metafísica, filosofia moral, filosofia po-lítica.

Dupla dualidade es-trita. Po s i t i v i s m o jurídico Adequação formal ao ordenamento. Regra de reconhe-cimento e regra se-cundária (Hart).

Identificar e compreen-der os enunciados pres-critivos emanados do poder competente. Formalismo lógi-co, hermenêutica/ i n t e r p r e t a t i v a , dogmática.

Com as ciências for-mais, no âmbito da filosofia analítica, filosofia da lingua-gem e da lógica. Dualismo (separação em relação às ciên-cias empíricas, mas não às formais). Cons-trução do discurso restrito ao método lógico-dedutivo. Realismo jurí-dico Capacidade de pre-ver a decisão (im-posição) dadas as características do caso concreto.

Explicar e compreender o comportamento dos en-volvidos nas instâncias decisórias. Modelos formais de escolha ra-cional, análise i n s t i t u c i o n a l , etnografia. Com as ciências empíricas, no âm-bito da psicologia, sociologia, ciência política e antropo-logia. Posições monistas e dualistas, em versões atenuadas. Análise eco-nômica do di-reito Adequação ao prin-cípio de maximiza-ção do resultado desejado. Identificar e explicar a solução institucional mais vantajosa para o fim que se pretende al-cançar.

Modelos formais de escolha racio-nal, análise insti-tucional e análise da dinâmica social subjacente ao di-reito.

Com as ciências em-píricas, no âmbito da economia, ciên-cia política, socio-logia econômica e história econômica.

Predominância das teses monistas, em versões extremadas e atenuadas, mas tam-bém com a presença das teses dualistas, especialmente nas correntes mais próxi-mas da sociologia e da história. Critical legal studies Denúncia da subor-dinação à vontade política hegemôni-ca.

Identificar soluções para a emancipação em rela-ção ao poder hegemôni-co opressor. Dialético marxista e fenomenologia. Metafísica, filosofia, sociologia, história, antropologia. Predominância das teses dualistas.

Feminismo Denúncia das diver-sas modalidades de opressão decorren-tes das relações de gênero.

Identificar soluções para a emancipação dos opri-midos em decorrência das relações de gênero.

Dialético marxista e fenomenologia. Metafísica, filosofia, sociologia, história, antropologia. Predominância das teses dualistas.

(16)

Essas fragilidades consistem em novos obstáculos que a busca pelo valor de verdade no contexto de atribuição trará e que sempre se mantiveram invisí-veis diante da predominância da concepção de ciên-cia do direito como um sistema semiótico abstrato, flexível e hermético, separado dos elementos exterio-res a que faz referências.

O estudo sistemático dessas patologias metodológi-cas para as denominadas “ciências morais” foi pionei-ramente proposto por J. S. Mill (1974)30, que dedicou

uma importante parte de sua obra a reflexões sobre o sentido e sobre a objetividade dos enunciados que as compõem. Ao fazê-lo, tentou identificar os princí-pios metodológicos mais adequados à investigação da natureza humana e das realizações do homem em sociedade em contraposição à tradição até ali predo-minantemente baseada no pensamento meramente especulativo, sustentando a sua teoria geral da cau-salidade no âmbito das ações humanas e inspirando de maneira irreversível toda a tradição que coloca na busca do “valor de verdade” seu valor supremo na elaboração de “enunciados dotados de sentido”. Superar o esvaziamento do discurso nessas ciências, para o autor, sempre implicou no tratamento das in-dispensáveis bases metodológica e empírica.

8 A objetividade como valor e a

metodologia como fonte de validação do FKUEWTUQEKGPVȜƓEQFGFKECFQCQDLGVQUFG natureza deontológica

Apesar dos muitos e, pelo menos aparentemente, insuperáveis desafios epistemológicos impostos à tarefa de fazer ciência do direito em matéria de efe-tivação de direitos sociais e econômicos, diversos autores têm conquistado avanços importantes nes-se nes-sentido, colocando no cerne de nes-seus trabalhos a preocupação com as relações envolvendo teoria e metodologia na tentativa de avaliar os critérios de validação do seu discurso.

Um primeiro exemplo pode ser identificado na obra de R. Posner (2007), que, em seu Problemas de Fi-losofia do Direito, trata de vários desses pontos propondo como solução uma teoria do direito cujo

30 Em especial no Livro VI, A Lógica das Ciências Morais (Mill, 1974).

fundamento coincida com aquele da microeconomia neoclássica, com seus mesmos pressupostos lógicos, epistemológicos e ontológicos, esquema conceitual e processos de investigação. Ao adotar esse posicio-namento, o autor reduz ao mínimo os problemas de coerência interna e de adequação do sistema teórico aos processos de investigação que fornecem a base empírica para a sustentação de suas proposições. Convém destacar que este campo da teoria econô-mica constrói seu discurso usando modelos formais elaborados com base no método lógico-dedutivo acoplados com técnicas de testes de hipóteses em consonância com os princípios epistemológicos ob-servados nas ciências naturais (predomínio das teses monistas).

Deste modo, esta linha teórica no campo do direito aproveita-se da longa tradição da escola clássica da economia que já desenvolveu um arsenal teórico--metodológico que combina a precisão conceitual e lógica desses modelos com métodos sofisticados de depuração de relações causais da estatística e da econometria, capazes de conferir alto grau de ade-rência de suas diversas proposições positivas e nor-mativas em relação à realidade empírica.

Nesta proposta, como consequência lógica extraída de um sistema teórico bem compreendido nas suas limitações, a máxima efetivação do “valor justiça” depende de que todo o ordenamento jurídico se submeta à função de maximizar o bem-estar da so-ciedade, operando em harmonia com a grande força motriz da sociedade, o interesse individual que nos caracteriza. A função do ordenamento, nesse con-texto, é deduzida da solução de um problema de otimização em que se busca o máximo de bem-estar social (composto pela riqueza e sua respectiva distri-buição), viabilizada por uma divisão de funções entre o legislativo e o judiciário, em que o primeiro, dado seu poder de tributação e de alocação de recursos, deve concentrar sua atividade nos problemas distri-butivos, ao passo que o segundo, dada a sua relativa neutralidade em relação à atuação dos grupos de interesse, deve se concentrar na maximização da ri-queza social. A sua proposta cuida de garantir, assim, a harmonização teórica das funções dos três poderes republicanos em prol do objetivo comum de

Referências

Documentos relacionados

Em que pese ausência de perícia médica judicial, cabe frisar que o julgador não está adstrito apenas à prova técnica para formar a sua convicção, podendo

O tema proposto neste estudo “O exercício da advocacia e o crime de lavagem de dinheiro: responsabilização dos advogados pelo recebimento de honorários advocatícios maculados

Proposal 1 – The approaches based on an SCM logic have been decisively influ- enced by other areas of knowledge that may justify it: the military area, the biologi- cal area,

No universo infantil, os conhecimentos prévios podem ser considerados como o resultado das concepções de mundo das crianças, estruturado a partir das interações sensoriais, afetivas e

Dos docentes respondentes, 62,5% conhe- cem e se sentem atendidos pelo plano de carreira docente e pelo programa de capacitação docente da instituição (que oferece bolsas de

As análises serão aplicadas em chapas de aços de alta resistência (22MnB5) de 1 mm de espessura e não esperados são a realização de um mapeamento do processo

Como parte de uma composição musi- cal integral, o recorte pode ser feito de modo a ser reconheci- do como parte da composição (por exemplo, quando a trilha apresenta um intérprete

O relatório encontra-se dividido em 4 secções: a introdução, onde são explicitados os objetivos gerais; o corpo de trabalho, que consiste numa descrição sumária das