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Natalidade e educação em Hannah Arendt

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Academic year: 2021

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(1)1. UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE EDUCAÇÃO. Versão Revisada. CLAUDIO DOMINGOS FERNANDES. Natalidade e educação em Hannah Arendt. São Paulo 2020.

(2) 2. CLAUDIO DOMINGOS FERNANDES. Natalidade e educação em Hannah Arendt. Versão Revisada. Dissertação. apresentada. à. Faculdade. de. Educação. da. Universidade de São Paulo para Qualificação ao título de Mestre em Educação.. Área de concentração: Cultura, Filosofia e História da Educação.. Orientadora: Profa. Dra. Maria de Fátima Simões Francisco. São Paulo 2020.

(3) 3. Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. Catalogação da Publicação Ficha elaborada pelo Sistema de Geração Automática a partir de dados fornecidos pelo(a) autor(a) Bibliotecária da FE/USP: Nicolly Soares Leite - CRB-8/8204. _________________________________ Fn. Fernandes, Claudio Domingos. Natalidade e Educação em Hannah Arendt/ Claudio Domingos Fernandes; orientadora Maria de Fátima Simões Francisco. -- São Paulo, 2020. 117 p. Dissertação (Mestrado - Programa de Pós-Graduação Cultura, Filosofia e História da Educação) -- Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2019. 1. Hannah Arendt. 2. Educação. 3. Natalidade. 4. Amor Mundi. 5. Liberdade. I. Francisco, Maria de Fátima Simões , orient. II. Título. _________________________________.

(4) 4. FOLHA DE APROVAÇÃO. FERNANDES, Claudio Domingos. Natalidade e Educação em Hannah Arendt. Dissertação apresentada à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo para a obtenção do título de Mestre em Educação.. Aprovado em:____/ ____/____. Banca Examinadora. Prof. Dr.__________________________________________________________ Instituição: _______________________________________________________ Julgamento:_________________________________Assinatura: ____________. Prof. Dr.__________________________________________________________ Instituição: _______________________________________________________ Julgamento:_________________________________Assinatura: ____________. Prof. Dr.__________________________________________________________ Instituição: _______________________________________________________ Julgamento:_________________________________Assinatura: ____________.

(5) 5. Para. meus. pais. Antonio. Fernandes. e. Terezinha Filha de Jesus Fernandes e meus irmãos e irmãs.. Para Ione Viana de Souza, Victor Augusto Viana. Fernandes,. Tales. Benício. Viana. Fernandes, razões que me prendem ao existir.. Para o Prof. Antonio Joaquim Severino..

(6) 6. AGRADECIMENTOS. À pontual orientação da Profa. Dra. Maria de Fátima Simões Francisco. À criteriosa leitura e generosas observações das professoras Dra Dulce Critélli e Dra Crislei Custódio Aos amigos Geraldo Garippo, Marco Antonio Senna, Lidiane Santos, Luciene Azevedo, Marco Aurélio Pinheiro Maida, Aline Vieira, Zulene Souza..

(7) 7. “A educação é o esforço humano para humanizar. a. humanidade.... Ela. visa. despertar nos homens seu potencial de seres transitivos.” Emmanuel Mounier.

(8) 8. RESUMO. FERNANDES, Claudio Domingos. Natalidade e Educação em Hannah Arendt. 2019, 115f. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2019.. Trabalho de pesquisa teórico que parte do conceito de Natalidade de Hannah Arendt em seu ensaio A crise na educação. Neste artigo Hannah Arendt propõe a separação entre educação e política a fim de garantir e preservar a criança dos assuntos que dizem respeito aos adultos. Partindo de uma crise específica, a da educação nos Estados Unidos da América, por volta da metade do século XX, Hannah Arendt desenvolve uma instigante análise da crise na educação e a situa na crise geral das sociedades ocidentais e da era moderna, principalmente na crise de autoridade no mundo moderno e à influência da psicologia em assuntos pedagógicos e nas chamadas pedagogias progressistas. Procuramos compreender os conceitos que Arendt opera em seu pensamento político, a importância que a autora dá ao pensar para compreender e a relação que ela estabelece entre natalidade, política e educação. Concluímos que o processo educativo é um processo aberto do qual se pode ter esperança à medida que não se procura controlar ou determinar o futuro das novas gerações, preservando-lhes a capacidade de iniciarem, ato que garantiria a continuidade do mundo.. Palavras- Chave: Amor Mundi, Educação, Liberdade, Natalidade, Política, Pluralidade..

(9) 9. ABSTRACT. FERNANDES, Claudio Domingos. Natality and Education in Hannah Arendt. 2019. 115f. Dissertation (Master's). Faculty of Education, University of São Paulo, 2019.. Theoretical research work that starts from the concept of Natality of Hannah Arendt in his essay The crisis in education. In this article Hannah Arendt proposes the separation between education and politics in order to guarantee and preserve the child of the subjects that concern the adults. Starting from a specific crisis, that of education in the United States of America, around the middle of the twentieth century, Hannah Arendt develops an instigating analysis of the crisis in education and situates it in the general crisis of Western societies and the modern era, especially in the crisis of authority in the modern world and the influence of psychology on pedagogical subjects and on the socalled progressive pedagogies. We try to understand Arendt's concepts in his political thought, the importance that the author gives in thinking to understand and the relation that she establishes between birth, politics and education. We conclude that the educational process is an open process from which one can hope as one does not seek to control or determine the future of the new generations, preserving their ability to initiate, an act that would guarantee the continuity of the world.. Key words: Mundi Love, Education, Freedom, Natality, Politics, Plurality..

(10) 10. SUMÁRIO. INTRODUÇÃO. 11. CAPÍTULO I - COMPREENDER O MUNDO POR AMOR AO MUNDO. 20. 1.1 – Pensar sem corrimão. 24. 1.2 – Pensar exige o continuo repensar. 25. 1.3 – Partindo do ocaso da tradição. 30. 1.4 – A irreflexão produz monstros. 33. 1.5 – O mundo moderno e a alienação do mundo. 36. 1.6 – Dos pesadelos do homem moderno ao amor mundi. 42. CAPÍTULO II - A EDUCAÇÃO NUM MUNDO EM CRISE. 49. 2.1 – Chegamos ao ponto em que se solicita às crianças que mudem e melhorem o mundo?. 52. 2.2 – A educação inevitavelmente se relaciona com a política.. 56. 2.3 – A crise como perda do senso comum. 63. 2.4 – Preservar: o Amor mundi. 66. CAPÍTULO III – NATALIDADE: ESSÊNCIA DA EDUCAÇÃO. 73. 3.1 - Traços do conceito de natalidade na dissertação sobe o Amor em Santo Agostinho. 77. 3.2 – Oposição ao ser-para-morte. 80. 3.3 – Natalidade e comunicação. 85. 3.4 – NATALIDADE: raiz em que deita a Política.. 90. 3.5 – A Educação e sua politicidade. 94. CONCLUSÃO. 102. BIBLIOGRAFIA. 110.

(11) 11. INTRODUÇÃO. O humano é terreno e suas condições de vida na Terra exigem o domínio de conhecimentos específicos que transcendem a dimensão do mero estar vivo. De fato, “condicionado, mas não determinado”, a vida de homens e mulheres ganham sentidos diversos dentro de cada comunidade humana e suas teias de relações. E “Os homens são seres condicionados, porque tudo aquilo com que eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência." (ARENDT, 2017, p. 11). Através de suas atividades espontâneas e ou arquitetadas, os homens produzem um mundo que se interpõem entre eles, os une e os distanciam e estabelece a ação como meio a partir do qual se tornam efetivamente humanos. E este mundo, é artifício do próprio homem. De tal forma: Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que o possuem em comum, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam ao seu redor; pois, como todo espaço-entre [in-between], o mundo ao mesmo tempo separa e relaciona os homens entre si. (Idem, p. 64). E Hannah Arendt ressalta: [...] esse mundo comum só pode sobreviver ao vir e ir das gerações na medida em que aparece em público. É a publicidade do domínio público que pode absorver e fazer brilhar por séculos tudo o que os homens venham a querer preservar da ruína natural do tempo. (Idem, p. 68).. A era moderna coloca em crise a realidade do mundo comum, pois a publicidade do domínio público vê-se ameaçada pelo isolamento, em que ninguém parece concordar com ninguém e que homens e mulheres se tornam seres inteiramente privados de ver e ouvir os outros, e, de ser vistos e ouvidos por eles. E Nas circunstâncias modernas, essa privação de relações “objetivas” com os outros e de uma realidade garantida por intermédio destes últimos tornou-se o fenômeno de massa do desamparo, no qual assumiu sua forma mais extrema e mais anti-humana. O motivo pelo qual esse fenômeno é tão extremo é que a.

(12) 12. sociedade de massas não apenas destrói o domínio privado tanto quanto o domínio público; priva ainda os homens não só do seu lugar no mundo, mas também do seu lar privado, no qual outrora eles se sentiam resguardados contra o mundo e onde, de qualquer forma, até os que eram excluídos do mundo podiam encontrar-lhe o substituto no calor do lar e na limitada realidade da vida em família. (Idem, p. 72). E um dos pontos de crise da era moderna parece ser a incapacidade do homem de compreender e viver no mundo produzido por ele. Essa incapacidade traduzida por “crise da modernidade” é datada pelo advento da racionalidade técnico-científica, que promoveu uma desconfiança de nossas percepções sensoriais e a "perda da fé na capacidade das aparências de revelar a verdade” (ARENDT, 2008a, p. 390), que desde Galileu, e, sobretudo com Descartes, passou a investigar a realidade dos fenômenos matematicamente e coincidir conhecimento e produção, resultando na "convicção de que a verdade objetiva não é dada ao homem e que ele só pode conhecer aquilo que ele mesmo faz" (ARENDT, 2017, p. 21; 364). Consequentemente, para Hannah Arendt, O mundo no qual passamos a viver hoje é muito mais determinado pela ação do homem sobre a natureza, criando processos naturais e dirigindo-os para as obras humanas e para a esfera dos negócios humanos, do que pela construção e preservação da obra humana como uma entidade relativamente permanente. (ARENDT, 2003, p. 91). Da mesma forma, a atividade técnico-científica busca "tratar o homem como um ser inteiramente natural, cujo processo de vida pode ser manipulado da mesma maneira que todos os outros processos" (Idem, p. 90). O problema é que “a perda de contato entre o mundo dos sentidos e das aparências e a visão de mundo física” foram usurpadas pelos técnicos “que hoje abrangem a avassaladora maioria de todos os “pesquisadores”” (Arendt, 2003, p. 336). E o ativismo técnico-científico passou a integrar diretamente todas as dimensões do fazer humano, como o descreve Odílio A Aguiar (2009, p. 64) O controle técnico não se restringe mais apenas aos processos produtivos, mas a todas as formas de intervenção humana. Na primeira fase, técnico industrial, a tecnologia é submetida à vontade político-social. Na fase atual, a tecnologia passou de meio a fim em si mesma, implicando a "tecnologização" das decisões, escolhas e ações e faz prevalecer a coerção e a necessidade.

(13) 13. sistemático-burocrática dos âmbitos em que a "deliberação" deve ser tomada. É o fim das convicções, dos valores, do diálogo, do contato face a face, da lei e da paciência reflexiva.. E é neste sentido que Arendt ressalta que todo o moderno processo técnicocientífico lançou o homem moderno num acentuado processo de alienação em um duplo aspecto: “a fuga da terra para o universo e a fuga do mundo para a consciência” (ALMEIDA, 2011, p. 54), em que o senso comum, a tradição, a autoridade, a religião, colapsam, produzindo profundas transformações nas condições mundanas da existência humana e de seu sentido de pertencimento ao mundo. Dentre essas transformações destacam-se a diluição das fronteiras entre público e privado com a ascensão da sociedade de massa, a prevalência do consumo como busca da felicidade entendida como saciedade e, sobretudo, a emergência dos regimes totalitários como um acontecimento completamente novo na história da civilização ocidental. E “la vida y la história intelectual de Hannah Arendt están estrechamente ligadas a la experiência de lós modernos totalitarismos” (BÁRCENA, 2006, p.14). E desde este evento marcante, “o pensamento de Hannah Arendt foi um pensamento voltado para o fenômeno da ruptura, para a lacuna entre passado e futuro, que nela provocou e instigou um exame do presente” (LAFER, 2003, p. 24), em que foram perdidos os parâmetros e as regras em que nos apoiávamos, de modo que, segundo Arendt, "o que há de assustador no surgimento do totalitarismo não é o fato de ser algo novo, mas o fato de ter trazido à luz a ruína de nossas categorias de pensamento e de nossos critérios de julgamento” (ARENDT, 2008a, p. 341). Assim, sem o respaldo das categorias de pensamento e “a crescente falta de significado e perda do senso comum” (Idem, p. 339), Hannah Arendt lançou-se a “pensar sem corrimão” (Denken ohne Geländer), em que o pensamento “emerge de incidentes da experiência viva” que “são os únicos marcos por onde obter orientação” (Idem, 2003, p. 41), com o fito de movimentar-se na lacuna entre passado e futuro e sentir-se conciliada com o mundo. E esta conciliação “é intrínseca à compreensão” (Idem, 2008a, p. 330). Destarte, com o compromisso de pensar “do ponto de vista privilegiado de nossas mais novas experiências e nossos temores mais recentes” (Idem, 2017, p. 6),.

(14) 14. Hannah Arendt procurou compreender, ou, como ela mesma disse, sentir-se reconciliada com o mundo. E colocando-se a questão: “O que estamos fazendo?”, suas inquietações dizem respeito à condição humana e a constituição de um espaço em que os homens se manifestem uns aos outros “não como meros objetos físicos, mas qua homens”, que através da palavra falada “se identifica, anuncia o que fez, faz e pretende fazer”. Isto é, “revelam ativamente suas identidades pessoais únicas, e assim fazem seu aparecimento no mundo humano,...” (Idem, 2017, p. 218; 221; 222). Sob o fio da perplexidade ante o emergir dos sistemas totalitários e da “Solução final”, numa “reconsideração da condição humana”, Hannah Arendt configurará uma fenomenologia da vita activa, a partir das atividades do trabalho (labor) da obra (work) e da ação (action). Estas atividades e suas condições correspondentes [...] estão intimamente relacionadas com a condição mais geral da existência humana: o nascimento e a morte, a natalidade e a mortalidade. O trabalho assegura não apenas a sobrevivência do indivíduo, mas a vida da espécie. A obra e seu produto, o artefato humano, conferem uma medida de permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo humano. A ação, na medida em que se empenha em fundar e preservar corpos políticos, cria a condição para a lembrança [remembrance], ou seja, para a história. (Idem, p. 11). No desdobramento de sua fenomenologia da victa ativa, Arendt dará ênfase à natalidade, “o fato de que seres nascem para o mundo” (Idem, 2003, 223), com a “capacidade de iniciar algo novo, isto é agir” (Idem, 2017, p. 11). Fazendo uso de uma expressão de Agostinho de Hipona: Initium esset, creatus est homo, afirma Arendt que cada nascimento constitui um milagre que garante a continuidade do mundo, já que “a cada nascimento vem ao mundo algo singularmente novo”. E, “trata-se de um início que difere do início do mundo, pois não é o início de algo, mas de alguém que é, ele próprio, um iniciador” (Idem, 2017, p. 220). Central, então, em sua filosofia, a natalidade é característica fundamental da ação ou política. Para Arendt, a natalidade relaciona-se à ação, e “o fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável” (Idem, p. 220). Diferenciando natalidade de nascimento, para nossa autora, a natalidade radica-se na ação de que os novos seres humanos são capazes, em virtude de terem nascido. De tal modo “a condição.

(15) 15. humana da natalidade; o novo começo inerente ao nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir. Nesse sentido de iniciativa, a todas as atividades humanas é inerente um elemento de ação e, portanto, de natalidade.” Numa expressão, para Arendt, a natalidade é um milagre que “salva o domínio dos assuntos humanos de sua ruína normal, "natural"” (Idem, p. 306), conferindo ao mesmo fé e esperança. No seu percurso intelectual, Arendt irá elaborar instigante análise da era moderna e irá registrar em mais de uma ocasião a tendência moderna a despolitizar as relações entre os homens e a exaltar o trabalho e o consumo, tornando a esfera pública, próprio da ação política, em esfera de pura administração dos interesses econômicos. E procurando recuperar o sentido próprio da política, respondendo à pergunta: “Tem sentido a política?”, ela respondeu com firmeza: “o sentido da política é a liberdade” (Idem, 2003b, p. 38; 2008b, p. 161). Para ela, a política, é a mais elevada resposta humana ao fato que “não o Homem, mas os homens é que habitam este planeta” (ARENDT, 2009, p. 35). E “a meta da política é a liberdade, que se contrapõe às ideologias totalitárias” onde as ações são “forçadas, obtidas através do medo” e não “asseguram a lealdade do povo para além da temporária condição de opressão” (FRY, 2010, p. 72; 73). E como a ação é a atividade política por excelência, Arendt associa a liberdade à espontaneidade e à capacidade de início característico da natalidade, tomando a liberdade como um milagre. Diz nossa autora: “se o significado da política é a liberdade, isso quer dizer que nessa esfera e em nenhuma outra, nós temos efetivamente o direito de esperar milagres” (ARENDT, 2008b, p. 168). E, [...] o milagre da liberdade está inserido nesse poder iniciar, que, por sua vez, está inserido no fato (Faktum) de que todo homem, ao nascer, ao aparecer em um mundo que estava aí antes dele e que continuará a ser depois dele, é, ele mesmo, um novo início. (ARENDT, 2002, p. 120).. Devido ao fato de o mundo estar recebendo sempre um novo ser pelo nascimento, e um ser que não é apenas uma novidade, mas a própria possibilidade de dar início, começar algo novo, mediante a ação, os recém-nascidos ao chegarem ao mundo, nele entram como estranhos e precisam ser apresentados a ele, sendo nele.

(16) 16. inseridos aos poucos. No processo de acolher, apresentar e inserir os novos no mundo se deve preservar a capacidade de iniciar que cada recém-nascido porta consigo e que lhe permite se afirmar como um quem, e não um algo, na pluralidade de homens e mulheres que constituem o mundo. Acolher e apresentar o mundo e preservar a singularidade e a capacidade de iniciativa de cada novo ser que nasce é uma tarefa educativa. O mundo para o qual cada recém-nascido nasce [...] não coincide com o planeta Terra como ambiente natural em que o vivente humano encontra as condições biológicas que lhe permitem conservar e reproduzir a vida. Ele é, antes, uma criação do artifício humano, um legado de realizações materiais e simbólicas – objetos, instituições, práticas, princípios éticos, tradições políticas crenças, saberes – nas quais os recém-chegados (crianças e jovens) devem ser iniciados por meio da educação. (CARVALHO, 2017, p. 3).. No centro da educação ancora uma preocupação com esse legado materialsimbólico que constitui o mundo, sua durabilidade, em que “a serventia (usefulness) das coisas não tome o lugar do significado (meaningfuness) das ações humanas” (Idem, p. 29). E este mundo encontra-se em crise, e sua crise atinge a educação, que para corresponder a um modelo econômico utilitarista e pragmático, em que tudo precisa ter algum préstimo, abandona a ideia de formação que passa pelo significado e pela responsabilidade como correspondente à liberdade. Por sua preocupação constante em compreender como foi possível os totalitarismos e sua dedicação a pensar a política em vista de sua dignidade própria, como lugar do inter-esse, um estar entre homens em relação ativa, receptiva e responsiva, denunciando a pura aplicação técnico-administrativa aos negócios humanos, a fuga do indivíduo para o interior de sua subjetividade, a predominância da sociedade de consumo incapaz de cuidar de um mundo comum, a ameaça constante de aniquilamento não só das condições de vida no planeta Terra, mas do próprio planeta e da vida humana, Hannah Arendt dedica uma única atenção ao tema da educação, que se tornou um clássico, atraindo o interesse crescente de educadores, profissionais da educação e pensadores do campo. Voltando-se à crise educacional americana no fim da década de 1950, Hannah Arendt desenvolveu o ensaio A crise na.

(17) 17. educação (1958), presente em seu livro Entre o passado e o futuro, publicado no Brasil pela primeira vez em 1974. Neste texto único dedicado ao tema da educação, ela contesta as orientações de ensino tidas como as mais avançadas à época por pedagogos e educadores norte-americanos. E na contramão à busca por métodos inovadores que tornassem eficientes as práticas escolares, ela lança-se em uma indagação acerca dos elementos de crise geral das sociedades modernas que atingem a educação a ponto de torná-la uma questão política de primeira grandeza. E é como exercício de pensamento político que Hannah Arendt, debruçando-se sobre a crise na educação, irá declarar que “a essência da educação é a natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo” (ARENDT, 2003, p. 223). E, para ela, o fato de novos seres humanos nascerem para o mundo confere à educação a responsabilidade de acolher e introduzir os recém-chegados num mundo historicamente constituído e compartilhado com outros. É a partir da responsabilidade que todos nós, que fazemos parte de um mundo comum, temos em relação a este mundo e aos novos que a ele chegam a cada nascimento, que podemos aduzir o estreito vínculo da educação com a política. No entanto, segundo Arendt, mesmo havendo este laço, “cumpre divorciarmos decididamente o âmbito da educação dos demais, e acima de tudo do âmbito da vida política, para aplicar a ele um conceito de autoridade e uma atitude face ao passado que lhe são apropriados, mas não possuem validade geral” (Idem, p. 246). Segundo sua análise o núcleo central da crise na educação é a crise da nossa relação com o passado, um passado que perdeu o fio da tradição e da autoridade, numa sociedade que deposita no “presentismo”, marcado pelo consumo, sua expectativa de felicidade. A natalidade denota o fato de o mundo ser mais velho do que os recémnascidos, o que faz com que eles aqui cheguem como estrangeiros. E cabe a nós, já familiarizados com o mundo, diante dos que estão nascendo, assumir uma dupla responsabilidade: pelo bem-estar dos recém-chegados, inserindo-os no mundo; pela proteção do mundo contra o “assédio do novo que irrompe sobre ele a cada nova geração” (ARENDT, 2003, p 235). Neste sentido, Hannah Arendt reclama à escola a função de “ensinar às crianças como o mundo é, e não instruí-las na arte de viver” num.

(18) 18. sentido que “a aprendizagem volta-se inevitavelmente para o passado, não importa o quanto a vida seja transcorrida no presente” (Idem, 2003, p. 246). A partir destas noções preliminares, na presente dissertação: Natalidade e Educação em Hannah Arendt, procuramos destacar o conceito de natalidade de Hannah Arendt, apostando na importante contribuição deste termo da autora para pensarmos a Educação num sentido que resgate sua dignidade, enquanto guardiã e promotora do legado cultural-simbólico que herdamos e nos liga a nossos antepassados e às gerações futuras, reconhecendo sua capital importância para garantir a continuidade do mundo. Dividimos o trabalho em três capítulos. No primeiro, a partir da noção arendtiana de compreensão, passamos em revista o percurso intelectual arendtiano, sua preocupação com o advento dos sistemas totalitários que invadiu não só os âmbitos da política, mas sobremaneira, também, as esferas pré-políticas, como a criação dos filhos e a educação escolar. Destacamos os principais pontos de interesse de seus “exercícios de pensamento”, os conceitos que caracterizam sua obra, sua preocupação de sentir-se em casa, convidando-nos a assumir responsabilidade pelo mundo. No segundo capítulo, centrando-nos em seu ensaio A crise na educação (In ARENDT, 2003), abordamos os elementos dessa crise relacionados à crise geral das sociedades modernas, tais como a ascensão das sociedades de massa; a ideia de um mundo autônomo das crianças, os pressupostos das novas pedagogias, a crise da tradição e a exigência da autoridade, e o contundente divórcio entre educação e política que ela defende, a fim de preservar o potencial de iniciar algo inesperado e imprevisível de cada novo ser que nasce e precisa ser inserido no mundo. No terceiro capítulo, centramos nosso interesse em seu conceito de natalidade, objeto central desta dissertação, procurando compreender a dimensão deste conceito e sua aplicação ao conceito de educação. Se, de fato, “A essência da educação é a natalidade” e a natalidade está correlacionada à ação, cuja “essência é a liberdade”, o que propomos então é pensar educação e liberdade, em que a educação deve assumir a responsabilidade pelo “milagre que salva o mundo” e o domínio dos assuntos humanos de sua ruína normal, "natural", conferindo “aos assuntos humanos fé e esperança, essas duas características essenciais da existência humana...” e que “encontra sua.

(19) 19. expressão talvez mais gloriosa e mais sucinta nas breves palavras com as quais os Evangelhos anunciaram sua "boa-nova": "Nasceu uma criança entre nós”” (ARENDT, 2017, p. 306).

(20) 20. CAPÍTULO I - COMPREENDER O MUNDO POR AMOR AO MUNDO Todo indivíduo precisa se sentir conciliado com o mundo onde nasceu como estranho e onde sempre permanece como estranho, na medida de sua singularidade (Hannah Arendt). Hannah Arendt, “cujas opiniões não são facilmente rotuladas” (FRY, 2010, p. 11) é,. inegavelmente,. uma. das. principais. personagens. do. século. XX,. sendo. reconhecidamente tratada como uma das mais importantes pensadoras políticas de nosso tempo. Suas ideias atraem interesse desde sua primeira grande obra: Origens do totalitarismo, publicada em 1951. E “seu pensamento tem fundamentado várias pesquisas em diversas áreas das ciências humanas, como nas áreas de Política, Filosofia, História, Direito e, mais recentemente, no campo da Educação.” (LEITE, 2015, p. 1). No âmbito da Educação ela atrai interesse desde seu ensaio A Crise na Educação, publicado inicialmente na Partisan Review, em abril de 1957, e posteriormente incluído em sua obra Entre o Passado e o Futuro, em 1961. Único lugar em uma produção intelectual profícua em que Arendt aborda específica e criticamente o tema da Educação, A Crise na Educação “tem despertado um interesse notável e crescente entre educadores, intelectuais e profissionais de educação” (CARVALHO, 2017, p. 2). Uma explicação primeira para o interesse pelo pensamento arendtiano se sustenta pelo fato de ela lidar com o principal fenômeno do século XX: os regimes totalitários, e da crise política, social e, acima de tudo, moral que os possibilitou. Mais especificamente voltado ao tema da Educação, a importância de Hannah Arendt, de sua presença num vasto leque de interesses acadêmicos e de pesquisa, deve-se à sua compreensão da modernidade, confrontada nas relações entre o totalitarismo e a ruptura da tradição do pensamento político ocidental, que ela vincula à crise geral da educação. Para Arendt, a crise na educação encontra-se alicerçada à crise geral que acometeu o mundo moderno, de modo que ela só é compreendida no empenho de compreender as experiências políticas e o profundo mal-estar que se espalhou por todo.

(21) 21. o Ocidente a partir do término da Segunda Guerra Mundial. E de fato, uma das tarefas que Hannah Arendt se propôs foi a de compreender o colapso das instituições políticas e do ocaso da tradição; o desarraigamento e a superfluidade das sociedades modernas; o florescimento das sociedades de massa com o tipo humano apático, indiferente e hostil à vida pública que deu sustentação às soluções totalitárias. E foi a maneira aguda com que ela enfrentou essas questões que a tornou uma pensadora “forte e desconcertante” (OLIVEIRA, 2012, p. 133) que atrai o interesse de pesquisadores e estudiosos das mais diversas esferas do saber. Assim, o motivo maior de interesse por seu pensamento desponta da força deste pensamento, uma força que nos pode oferecer “um instante de lucidez em meio a um mundo em que genocídios e outras barbáries políticas se tornaram cotidianos.” (DUARTE, 2000, p. 7). Segundo Bárcena (2006), por defender frequentemente posições que constituem um desafio ao pensamento dogmático, Arendt [...] fue, sin embargo, una filósofa y una pensadora poco usual que consideraba que la defesa de la “verdade”, como algo separado del “sentido”, a menudo ejerce um poder tirânico sobre las opiniones de los hombres... [De onde, para ela:] “La comprensión precede y sucede al conocimiento...” (BÁRCENA, 2006, 1 p. 22) .. De tal modo, para Bárcena, a singularidade da reflexão arendtiana torna um desafio “ubicarla dentro de una corriente específica de pensamiento filosófico y político. Su lema fue siempre pensar por si misma y su rasgo más destacado uma inequívoca voluntad de comprensión de lós acontecimientos presentes.” (Idem, p. 27)2. Resumidamente, de Origens do totalitarismo, obra que a apresentou ao mundo acadêmico norte-americano e europeu, à sua última obra, A vida do Espírito, que ela, devido sua morte repentina, deixou inacabada, publicada em 1978, o pensamento de Hannah Arendt se debruça sobre “os eventos extremos do seu tempo que a atingiram 1. [...] foi, sem dúvida, uma filósofa e uma pensadora incomum que considerava que a defesa da "verdade", como algo separado do "sentido", frequentemente exerce um poder tirânico sobre as opiniões dos homens. [De onde, para ela:] “A compreensão precede e sucede ao conhecimento...” (Tradução nossa) 2. “Colocá-la dentro de uma corrente específica de pensamento filosófico e político. Seu lema foi sempre pensar por si mesma e sua característica mais destacado é uma inequívoca vontade de compreensão do acontecimentos presentes.” (Tradução nossa).

(22) 22. frontalmente e desafiaram sua capacidade de compreender” (CORREIA, 2007, 7). E compreender, para ela, é chegar a uma conciliação com a realidade, sentindo o mundo como nossa casa. Para Arendt a compreensão está na base de todo conhecimento e faz com que o conhecimento tenha sentido. E compreender “é um processo complexo que nunca gera resultados inequívocos” (ARENDT, 2008a, p. 330). É uma atividade interminável, “sem a preocupação em “desmascarar” o passado ou “projetar qualquer espécie de futuro utópico”” (Idem, 2003, p. 41). Em suma, dirá Arendt, compreender é atividade “em constante mudança e variação”, pela qual “chegamos a um acordo e a uma conciliação com a realidade, isto é, tentamos sentir o mundo como nossa casa” (Idem, 2008a, p. 330). E para “sentir-se em casa”, reconciliada com um mundo em ruínas e em risco de colapsar em virtude de nossas ações, Hannah Arendt esforçou-se por compreender os acontecimentos políticos que marcaram sua existência e que estabelecem os conflitos e rumos de nosso mundo comum. Nesse sentido ela esclarece: Para mim, o importante é o processo de pensar. Se consigo acabar de pensar alguma coisa, pessoalmente fico muito satisfeita. Se então consigo expressar de modo razoável meu processo de pensamento por escrito, isso também me deixa satisfeita. (ARENDT, 2008a, p. 33). Arendt explica que a compreensão se inicia com o nascimento e termina com a morte, e, nesse processo, “o pensamento emerge de incidentes da experiência viva e a eles deve permanecer ligados” (Idem, 2003, 41). De tal modo, diz ela: “não acredito que possa existir nenhum processo de pensamento sem experiência pessoal” (Idem, 2008a, p. 50). Em suas palavras, compreender [...] é a maneira especificamente humana de viver, pois todo indivíduo precisa se sentir conciliado com um mundo onde nasceu como estranho e onde sempre permanece como estranho, na medida de sua singularidade única. (Idem, p. 331).. Ancorada ao pensamento, a compreensão, segundo nossa autora, não se confunde com o conhecimento. Pelo contrário, “a compreensão precede e sucede o.

(23) 23. conhecimento. A compreensão preliminar, que está na base de todo conhecimento, e a verdadeira compreensão, que o transcende, têm algo em comum: conferem significado ao conhecimento” (ARENDT, 2008a, p. 334). Em síntese, para nossa autora: “a compreensão se baseia no conhecimento e o conhecimento não pode avançar sem uma compreensão tácita preliminar.” (Idem, p. 333). Para Adriano Correia, em Arendt, A compreensão é “o outro lado da ação”, na medida em que permite ao homem de ação se reconciliar com a indisponibilidade do passado “e a se reconciliar com o que existe de modo inevitável”. É também o que permite aos espectadores do grande jogo do mundo apreender seu significado, desde que recusem a condição de “intelectuais” (“uma palavra odiosa”) portadores de algum sentido oculto aos muitos. (CORREIA, 2017, p. XXVII).. Segundo Fernando Bárcena (2006), o pensamento arendtiano Se articula en torno a una doble preocupación. Por un lado, pensar lo político fuera de toda referencia a un absoluto, sea teológico o metafísico, natural o histórico; en segundo lugar, reconocer lo que cubre la acción humana cuando se articula según el exclusivo poder del puro comienzo. [...]. Sua filosofía se articula, entonces, en tres planos esenciales: el de una hermenéutica política, el de una crítica a la modernidad y el de una exploración (antropológica) de la condición humana. Todo ellos se sostiene en una tesis central: “La actividad 3 humana política central es la acción”. (BÁRCENA, 2006, p. 35; 36) .. Para nós, em termos arendtianos, podemos dizer que compreender trata-se de um constante exercício em que confrontamos nossos preconceitos e nossas generalizações de modo que nossas lutas não se reduzam a defesa de slogans revestidos de uma aparência revolucionária, mas que, ao fundo, revelam ambições totalitárias. E compreender é pensar, fazer surgir sentido, entender o que acontece, sem modelos explicativos ou parâmetros pré-determinados, isto é, “sem corrimãos”.. 3. Articula-se em torno de uma dupla preocupação. Por um lado, pensar o político destacada de todas as referências a um absoluto, seja teológico ou metafísico, natural ou histórico; em segundo lugar, reconhecer o que a ação humana esconde quando se articula de acordo com o poder exclusivo do puro começo. [...] Sua filosofia se articula, então, em três níveis essenciais: o de uma hermenêutica política, a de uma crítica da modernidade e a de uma exploração (antropológica) da condição humana. Todos eles são baseados em uma tese central: "A atividade humana política central é ação". (Tradução nossa)..

(24) 24. 1.1 – Pensar sem corrimão. A postura intelectual marcada pelo desejo de sentir-se em casa no mundo faz de Arendt uma pensadora livre e independente, defensora do pensar próprio e “por si mesmo”, tratando cada assunto “como se ninguém o tivesse abordado antes” (ARENDT, 2009, p. 27). Hannah Arendt sustenta tal postura, defendendo que perdemos os laços com a tradição. E por termos perdido o laço com a tradição, sustenta nossa autora, podemos “olhar o passado com novos olhos, sem o fardo e a orientação de quaisquer tradições... sem estarmos limitados por quaisquer prescrições sobre a maneira de lidar com esses tesouros” (Idem, p. 27). “Para mim”, diz Hannah Arendt, “o importante é o processo de pensar. Se consigo acabar de pensar alguma coisa, pessoalmente fico muito satisfeita” (ARENDT, 2008a, p. 33). E, retomando a importância que a experiência assume em seus “exercícios de pensamento”, Arendt enfatiza: “e meu pressuposto é que o próprio pensamento emerge de incidentes da experiência viva e a eles deve permanecer ligado” (Idem, 2003, p. 41). De tal modo, “o que proponho, portanto, é muito simples: trata-se apenas de refletir sobre o que estamos fazendo” (Idem, 2017, p. 6), exercitando o pensamento. Nesta perspectiva, do estar constantemente pensando o que estamos fazendo a partir dos fatos, das experiências, na lacuna que se abre com o ocaso da tradição do pensamento ocidental, o pensamento de Hannah Arendt é um pensamento, como ela denomina “sem corrimão”, situado entre o passado e o futuro, que instiga um exame do presente. Este exame do presente, Hannah Arendt realizou fundindo, na sua reflexão, o pensar e o estar vivo (Lafer, 1979). E em sua determinação de pensar e pensar o estar vivo em um “mundo sombrio”, Arendt não buscou apoio exclusivo em nenhuma das correntes de pensamento do presente ou do passado, mas tentou encontrar, por si mesma, as condições para o exercício de um pensamento político destituído de “amparos” firmes e inquestionáveis, uma forma de pensamento que ela denominou metaforicamente como um Denker ohne Geländer, [“pensar sem corrimão”]. (DUARTE, 2000, p. 127).

(25) 25. Desse posicionamento, o pensamento arendtiano vincula-se ao compromisso com o sentido de nosso existir e de nosso agir em que a ruptura da tradição libera o olhar e o pensamento sobre o passado e o relacionamento sempre problemático que mantém com o mundo, com a pluralidade de memórias e de anseios de quem o divide conosco, enquanto mundo comum. Sem pensarmos, descuidamos de nosso compromisso para com os novos, nos desresponsabilizamos por acolhe-los e inseri-los no mundo, preservando-lhes a capacidade de iniciar, de começar algo novo. Em Hannah Arendt, pensar sem corrimão, podemos resumir, é assumir responsabilidade pelo mundo e estar aberto ao inesperado que rompe da cadeia de acontecimentos e avança para além das esferas cognitivas direcionadas ao conhecer, para colocar-se a questão do sentido. 1.2 – Pensar exige o continuo repensar. Para Hannah Arendt, então, o pensar, diferentemente do que se possa acreditar, não é algo de que se possa esperar, ao final, qualquer sabedoria perene, qualquer novo conhecimento ou teoria acabada. Cada acontecimento, cada ocorrência, por não possuir um significado por si, pois se torna significativo apenas se o pensamos e o transformamos em uma história humanamente compreensível, exige o continuo pensar e repensar. Assim, Para Arendt: todo pensamento deriva da experiência, mas nenhuma experiência produz significado ou mesmo coerência sem passar pelas operações de imaginação e pensamento. Do ponto de vista do pensamento, a vida em seu puro estar-aí é sem sentido. (ARENDT, 2009, p. 106).. É significativo o fragmento que Arendt toma emprestado de Heidegger para abrir O Pensar, primeiro capítulo de sua última obra, A vida do espírito: O pensamento não traz conhecimento como a ciências O pensamento não produz sabedoria prática utilizável O pensamento não resolve os enigmas do Universo. O pensamento não nos dota diretamente com o poder de agir. (HEIDEGGER apud ARENDT, 2009, p.17).

(26) 26. Se, de acordo com a sentença heideggeriana, o pensamento não produz nada, não produz conhecimento científico ou mesmo sabedoria prática, para Arendt, ele não deixa de ter efeito sobre nós. Para nossa autora, a atividade de pensar promove a liberação do juízo, “que nos permite fazer distinções entre o certo e o errado, o belo e o feio, as quais são indispensáveis na avaliação de tudo que se passa no mundo” (JARDIM, 2011, p. 139). Mas os resultados de um pensamento nunca são conclusivos ou isentos de críticas, nunca chegam a verdades definitivas e estão sempre abertos a ulteriores análises. Em A Vida do Espírito (2009), Hannah Arendt testemunha que ao acompanhar o julgamento de Eichmann4, ela o percebeu como alguém absolutamente comum, uma pessoa normal, em quem não havia maldade, tendo pouco a ver com os “vilões” como geralmente os imaginamos. A seu juízo, Eichmann não agira por fraqueza, por inveja, cobiça ou soberba, apenas teria cumprido sua função, como um bom funcionário do mês. E a única característica notória que se podia perceber tanto em seu comportamento anterior quanto durante o próprio julgamento e o sumário de culpa que o antecedeu era algo de inteiramente negativo: não era estupidez, mas irreflexão. (ARENDT, 2009, p. 18).. O caso Eichmann leva Arendt a se indagar: “Será possível que o problema do bem e do mal, o problema de nossa faculdade para distinguir o que é certo do que é errado, esteja conectado com nossa faculdade de pensar?” (Idem, 2009, p. 19). De suas indagações, Hannah Arendt constata que a ausência de pensamento presente em Eichmann torna-se catastrófico. Nessa incapacidade de pensar enraíza-se o que ela denominou “a banalidade do mal”, um mal que não tem a ver com “decisões éticas ou 4. Otto Adolf Eichmann foi um tenente-coronel SS da Alemanha Nazista, e um dos principais organizadores do Holocausto. Apontado como um monstruoso carrasco nazista, foi encontrado num subúrbio de Buenos Aires. Um comando israelense o sequestrou e o conduziu a julgamento Jerusalém. Hannah Arendt cobriu o processo de Eichmann para a revista The New Yorker. Desta sua tarefa ela produziu cinco artigos que deram origem à mais polêmica de suas obras: Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil, publicado em 1963..

(27) 27. assuntos de consciência” (ARENDT, 2009, p. 19), mas com ausência de pensamento. Daí que, para ela, embora o uso do pensamento não nos exima de perigos e riscos, dele não podemos abrir mão. Contraposta à figura de Eichmann, Arendt toma a figura de Sócrates como modelo de sujeito pensante e se vale de uma expressão do filósofo: “é melhor estar em desacordo com o mundo inteiro que, sendo só, estar em desacordo consigo mesmo”, para estabelecer que o pensamento é um diálogo interno que estabelecemos com nós mesmos, nos momentos em que estamos sós, isto é quando dispomos apenas de nossa companhia. Para Arendt, Sócrates havia descoberto que não somos apenas um, que na atividade do pensamento nos cindimos. Sócrates, diz Arendt, descobriu a essência do pensamento: ser ao mesmo tempo em si e para si, ser dois-em-um em um diálogo silencioso. Assim, “o significado do que Sócrates fazia repousa nessa simples atividade. Ou em outras palavras: pensar e estar completamente vivo são a mesma coisa, e isso implica que o pensamento tem sempre que começar de novo.” (ARENDT, 2009, p. 200) E indiretamente contrapondo Sócrates a Eichmann, diz Arendt: [...] a única coisa que Sócrates tinha a dizer sobre a conexão entre o mal e a ausência de pensamento é que as pessoas que não amam a beleza, a justiça e a sabedoria são incapazes de pensar, enquanto que, reciprocamente, aqueles que amam a investigação e, assim, “fazem filosofia”, são incapazes de fazer o mal. (Idem, p. 201).. Mais adiante, dirá Arendt: “existencialmente falando, o pensamento é um estarsó, mas não é solidão; estar só é a situação em que me faço companhia”. (Idem, p. 207). Explicando esta passagem, Crislei de Oliveira Custódio (2017) diz que: Para [Arendt] estar só (solitude) significa que, apesar de sozinho, ainda disponho da minha própria companhia, tenho um eu interno com quem posso conversar de maneira que me cindo em dois para travar esse diálogo comigo mesmo e, uma vez interrompido por outra pessoa ou pelo início de uma atividade qualquer, volto a ser só, cessando o diálogo que estabelecera internamente (CUSTÓDIO, 2017, p. 199)..

(28) 28. Já a solidão (loneliness), é o estado no qual me encontro desacompanhado de mim e dos outros e, para que isso aconteça, não é preciso a total ausência de pessoas, pelo contrário, posso estar em meio a uma multidão e me sentir completamente solitário (Idem, p. 199-200).. Em suas explicações, Custódio chama a atenção para uma terceira modalidade do estar sozinho: o isolamento, que se dá quando “preciso me isolar da presença de outras pessoas e até de mim mesmo para que possa me concentrar em determinada atividade” (Idem, p 200). “Estas distinções”, conclui Custódio, “nos serve para compreender a condição e a natureza da atividade do pensamento”, uma atividade que “nunca chega a um fim definitivo e inequívoco” (Idem, p. 200). Tornando a Arendt, segundo nossa autora, “o que Sócrates descobriu é que podemos ter interação conosco mesmos, bem como com os outros, e os dois tipos de interação estão de alguma maneira relacionados.” (ARENDT, 2009, 211). No diálogo que nasce da figura socrática do dois-em-um, os parceiros do diálogo devem estar em bons termos, mesmo que estejam em desacordo com o mundo. Numa outra passagem, Arendt descreve o pensamento como “o modo de deitar raízes, de cada um tomar o seu lugar no mundo a que todos chegamos como estranhos” (ARENDT, 2004, p. 166, in CUSTÓDIO, 2017, p. 203). De tal modo, explica Custódio: O pensamento relaciona-se com o meu lugar singular no mundo, de onde apareço para os outros e da perspectiva de onde os percebo. Com isso, a opinião que formo a respeito do que passa comigo e com os outros no mundo se liga diretamente no exame que faço daquilo que aparece para mim e me parece, a partir da dimensão em que vejo. (CUSTÓDIO, 2017, p. 205). Um aspecto importante do pensar que Arendt destaca é sua tendência autodestrutiva em relação a seus próprios resultados. E para ilustrar tal característica, ela o descreve como a atividade de Penélope no aguardo do retorno de Ulisses. O pensamento, diz ela: [...] é como a teia de Penélope: desfaz-se toda manhã o que se terminou de fazer na noite anterior. Pois a necessidade de pensar jamais pode ser satisfeita.

(29) 29. por insights supostamente precisos de “homens sábios”. Essa necessidade só pode ser satisfeita pelo próprio pensamento, e os pensamentos que tive ontem irão satisfazer essa necessidade hoje apenas porque quero e porque sou capaz de pensá-los novamente. (ARENDT, 2009, p. 107).. Destarte, em Arendt, o pensamento assume um caráter tateante e instável, que, enraizado nas experiências cotidianas e delas brotando, assume uma fundamental centralidade para nossa convivência em um mundo comum. Pois, “mesmo que o mundo seja repleto de coisas que reprovamos, de acordo com Arendt, temos que buscar a conciliação com ele enquanto vivermos” (CUSTÓDIO, 2017, p. 210). Aqui se dá a correlação entre pensar e compreender: “Se no pensamento buscamos um acordo com nós mesmos, na compreensão a busca do acordo é com o mundo” (Idem, p. 209). Para Arendt, [...] todos podemos vir a nos esquivar daquela interação conosco mesmos [descoberta por Sócrates] [...]. Uma vida sem pensamento é totalmente possível, mas ela fracassa em fazer desabrochar a sua própria essência – ela não é apenas sem sentido, ela não é totalmente viva. Homens que não pensam são como sonâmbulos. (ARENDT, 2009, p. 214). Retomando aqui a distinção que nossa autora estabelece entre compreensão e conhecimento, para Arendt o fracasso moral que caracteriza nossa época, bem ilustrada na figura de Eichmann, não pode ser entendido como falta de conhecimentos, mas com a incapacidade de pensar, de dar sentido a nosso existir, nosso agir e nosso estar no mundo. Apesar das incertezas do pensamento, para Arendt, apoiada no adágio socrático: “a vida sem pensar não vale a pena”. E viver é buscar significado, interromper os afazeres cotidianos, geralmente cumpridos mecanicamente, e provocar uma ruptura no tempo-espaço dessa cotidianidade, para resignificar em um novo sentido o mundo. É preciso transitar dos conhecimentos para a compreensão; é preciso transitar do puro “saber fazer” para saber o porquê faz procurando o sentido ou significado do existir. E este transitar é, paradoxalmente, um suspender-se em pensamento. E, uma vez que “o pensamento acompanha a vida e é ele mesmo a quintessência desmaterializada do estar vivo” (ARENDT, 2009, p. 214), ele não garante, mas apresenta-se como uma possibilidade de incapacitar o mal..

(30) 30. Concluindo, o pensamento, segundo Arendt, “não cria valores; ele não encontrará o que é “o bem” de uma vez por todas; ele não confirma regras de conduta; ao contrário, dissolve-as. E ele não tem relevância política a não ser em situações de emergência.” (Idem, p. 214). Mas ele está inter-relacionado à faculdade do juízo, “que podemos chamar com alguma propriedade de a mais política das capacidades espirituais humana.” (Idem, p. 215). Assim, a manifestação do pensamento não é o conhecimento, “é a habilidade de distinguir o certo do errado, o belo do feio. E isso, nos raros momentos em que as cartas estão postas sobre a mesa, pode sem dúvida prevenir catástrofes, ao menos para o eu.” (Idem, p 216). Assim, “tudo o que impede o pensar é, portanto, pernicioso para a vita activa, pois abafa o impacto do sopro do pensamento no mundo das aparências.” (LAFER, 2003, p. 84). 1.3 – Partindo do ocaso da tradição. Como já colocamos, Arendt adverte o ocaso da tradição e a necessidade de olharmos para o passado sem um fio seguro que nos oriente, procurando recuperar nesse passado aqueles tesouros que nos ajudem a reconciliar-nos com o mundo e sentir-se em casa na convivência com os outros. Segundo nossa autora: “a tradição de nosso pensamento político teve seu início definido nos ensinamentos de Platão e Aristóteles. [E] chegou a um fim não menos definitivo com as teorias de Karl Marx.” (ARENDT, 2003, p. 43)5. Contra uma tradição que perdera “seu arké, seu começo e princípio”, destacamse, no parecer arendtiano, três personagens: Kierkegaard, Marx e Nietzsche que “haviam tido a experiência de algo novo, que tentaram quase instantaneamente superar e resolver em algo velho.” (Idem, p. 56). E cada um “à sua maneira particular, levou em conta aqueles traços da modernidade que eram incompatíveis com nossa tradição, e 5. Arendt reforça esta ideia com a seguinte passagem: “Nossa tradição de pensamento político começou quando Platão descobriu que, de alguma forma, é inerente à experiência filosófica repelir o mundo ordinário dos negócios humanos; ela terminou quando nada restou dessa experiência senão a oposição entre pensar e agir, que, privando o pensamento de realidade e a ação de sentido, torna a ambos sem significado.” (ARENDT, 2003, p. 52).

(31) 31. isso antes mesmo que a modernidade se houvesse revelado plenamente em todos os seus aspectos.” (Idem, p. 58). Como explica Fina Birulés (2017), com a ruptura da tradição perdemos a transmissibilidade do passado que se torna um grande amontoado de referências para as quais não temos instrumentos para acessá-los. Nesse sentido, “é como se aos poucos emergisse uma gigantesca indústria da memória, grandes estoques de matérias, dos quais é quase impossível a recordação.” (BIRULÉS, 2017, p. 128). Continuando, dirá Birules: “sem uma forma de se relacionar com o seu próprio passado, a realidade se torna opaca, ininteligível.” (Idem, p. 128). Nos passos de Arendt, por fim, Birulés pontua: “Um mundo sem passado nem futuro é um mundo natural, não humano, com um – por assim dizer – presente sempre idêntico a si mesmo. É um espaço em que não sabemos o que significa conservar nem o que significa inovar” (BIRULÉS, 2017, p. 128). O ocaso da tradição “não significa necessariamente que os conceitos tradicionais tenham perdido seu poder sobre as mentes dos homens” (ARENDT, 2003, 53). Assim, Pensar o fim da tradição do pensamento político ocidental era uma condição necessária para pensar o esquecimento do caráter traumático de sua própria constituição e o esquecimento dos traços característicos daquelas experiências políticas pré-tradicionais que se viram então recusadas. (DUARTE, 2000 p. 158). No seu percurso, segundo Duarte (2000), Arendt apoia-se em Heidegger e Benjamin, “os pensadores que melhor perceberam o “caráter irreparável da ruptura da tradição”, assumindo que tal situação requeria uma nova relação para com o passado e com o presente” (p. 127), e encontrou o seu próprio caminho de pensamento que lhe permitiu elaborar um modo particular de recuperar certos fragmentos do passado que a própria tradição filosófica ocidental esquecera e eclipsara. Junto ao acúmulo de referências do passado, o mundo moderno caracteriza-se pela vitória do animal laborans6 e “a prevalência de uma mentalidade atrelada ao mero viver via trabalho e consumo.” (CORREIA, 2014, p 71). 6. Com o termo animal laborans, Hannah Arendt caracteriza o indivíduo cuja vida social é gregária, mas sem mundo comum, isto é, distanciada do domínio público. Em A Condição Humana, Hannah Arendt se dedica a analisar as implicações desse sujeito nas crises do mundo moderno..

(32) 32. Em termos de uma “mentalidade”, um “modo de vida”, esse animal laborans [...] é análogo ao último homem de Nietzsche, na medida em que supõe ter inventado ou encontrado a felicidade e anda na Terra aos pulinhos, a tudo apequenando. Esse animal laborans não clama por redenção do aprisionamento à necessidade no processo vital, uma vez que encerra na própria necessidade o horizonte da sua “felicidade”. (CORREIA, 2014, p. 98).. Ele provoca um alheamento radical com relação ao mundo. Desprovido de relações comunitárias, laços sociais e interesses comuns, promove uma “fuga da realidade”. Disperso na sociedade de massa crê que “tudo é possível” e “anseia por um mundo mentalmente dedutível, previsível e compreensível, que lhe permita escapar das ocorrências singulares e acidentais” (ALVES NETO, 2009, p. 31). Com a vitória do animal laborans os regimes totalitários encontram a brecha para exercer o seu domínio. Eles encontram na superfluidade do animal laborans, no seu desinteresse e desligamento do mundo comum e dos assuntos de interesse público “a fonte e a inspiração do seu projeto de tornar absolutamente supérfluo os homens e tudo que resulta da espontaneidade, iniciativa e auxílio humanos” (Idem, p. 33). Diante deste quadro tenebroso, a tarefa à qual Arendt se propôs era árdua: “tornar claro que toda essa terrível novidade da conjugação totalitária entre terror e ideologia buscou implementar soluções para a miséria política, social e econômica do mundo moderno.” (Idem, p. 32). Deste modo, ela mergulha nas entranhas do fenômeno totalitário “encarando-o atentamente” para “examinar e suportar o fardo que os acontecimentos colocaram sobre nós” (Arendt, 1989, 21), compreendendo-os. 1.4 – A irreflexão produz monstros. Como já tivemos oportunidade de aludir, acompanhando o caso Eichmann, Arendt afirma ter se defrontado com uma ausência de pensamento que tornavam os atos de Eichmann mostruosos. No entanto, “o agente – aquele que estava em.

(33) 33. julgamento – era bastante comum, banal, e não demoníaco ou monstruoso” (Arendt, 2009, p. 19). De fato, Arendt achou Eichmann um homem pouco inteligente, mas sua falha de caráter mais significativa era a incapacidade de olhar para qualquer coisa a partir da perspectiva do outro. Essa inaptidão para imaginar-se no lugar dos outros contribui para sua insensibilidade e disposição para participar das práticas brutais dos nazistas. (FRY, 2010, 46). O caso Eichmann alinha-se à preocupação de fundo que norteia todo o percurso intelectual de Hannah Arendt: compreender as inéditas experiências vividas pelo surgimento das sociedades de massa modernas, que possibilitaram a degradação da existência humana e do mundo comum, submetidos às ideologias totalitárias e a formas totalitárias de governo. Assim, A experiência de um profundo desenraizamento do mundo comum, sofrido por milhares de homens no período “entre guerras”, fez Hannah Arendt refletir sobre as próprias condições mundanas da existência humana e suas possíveis degradações. A finalidade da reflexão arendtiana foi vincular o advento do totalitarismo com uma radical alienação do mundo vivida pelo homem moderno no século XX. (ALVES NETO, 2009, p. 24-25). E Eichmann é tomado por nossa autora como um caso exemplar de um traço de personalidade própria dos indivíduos das sociedades de massa. Como descreve Eduardo Jardim (2011, p. 11): “O traço principal de sua personalidade não era a estupidez, mas a irreflexão, isto é, a total incapacidade de submeter os fatos à inspeção do pensamento.” Arendt conjecturou que esses traços da personalidade de Eichmann caracterizam os movimentos totalitários e estão presentes em todas as sociedades modernas de massa. Assim, “apatia política, isolamento dos cidadãos, superfluidade dos homens, irresponsabilidade e indiferença com relação ao mundo, desenraizamento e alienação do mundo comum” (ALVES NETO, 2009) sustentam e potencializam o colapso do mundo comum e a instalação de formas de organizações conduzidas por ideologias totalitárias. Segundo Eduardo Jardim,.

(34) 34. O ano de 1943 foi decisivo na trajetória de vida de Hannah Arendt. O choque por que passou ao tomar conhecimento da existência dos campos de extermínio nazistas constituiu o ponto de partida e a motivação de toda a sua obra. Origens do totalitarismo, escrito nos anos seguintes, representou para a autora a única saída para lidar com a experiência traumática. (JARDIM, 2011, p. 21). Assim, em Origens do Totalitarismo, [...] encontramos as primeiras formulações sobre a instalação, a preservação e a degradação do mundo humano e comum. As análises históricas e a reflexão política sobre os elementos diretamente envolvidos com o processo de formação e desenvolvimento do totalitarismo esclarecem de que modo os governos totalitários de esquerda e de direita buscaram organizar as condições necessárias para que os homens pudessem prescindir absolutamente do mundo. (ALVES NETO, 2009, p. 23). Para Arendt, os regimes totalitários impuseram uma ruptura radical em relação às instituições políticas precedentes, pondo em questão nossas categorias de pensamento e nossos critérios de julgamento moral. A experiência dos regimes totalitários “dissolveram os tradicionais elementos do nosso mundo político e espiritual num amálgama, onde tudo parece ter perdido seu valor específico, escapando da nossa compreensão e tornando-se inútil para fins humanos” (ARENDT, 1989, 12). Descrito como uma forma de dominação própria da modernidade, baseada na organização burocrática das massas, no terror e na ideologia, segundo Arendt, na raiz do totalitarismo encontramos o anti-semitismo moderno, o racismo e o imperialismo surgidos nos países europeus no século XIX. Segundo André Duarte Arendt concluiu de suas análises do fenômeno totalitário que a uniformidade essencial dos modos políticos de vida e de governo se fora, mesmo se o sentido desta mudança ainda estava oculto para nós, que vivemos “cercados por uma mistura inexplicável de tradições muito velhas, que ainda não compreendemos”. O totalitarismo impusera uma “quebra radical” em relação às instituições políticas precedentes, pondo em questão nossas “categorias de pensamento” e nossos “critérios de julgamento moral” (DUARTE, 200, p. 76).

(35) 35. Rodrigo R. A. Neto (2009) seguindo o mesmo entendimento de Duarte diz que na base do totalitarismo encontra-se a solidão, fruto de uma perda de confiabilidade no mundo e nos homens: [...] A solidão é a experiência básica da qual emerge o totalitarismo, porque esse regime político exerceu o seu domínio sobre “homens solitários”, supérfluos e desenraizados do mundo, absorvidos inteiramente no processo de repetição incessante da relação produçãp-consumo, enfim, envolvidos somente com o esforço desempenhado para satisfazer as necessidades vitais, tendo em vista a manutenção do processo vital da sociedade. A solidão é a experiência de perda de confiabilidade no mundo como “criação do homem” e perda do relacionamento com o mundo enquanto “humano”, isto é, ao mesmo tempo abrigo e assunto de homens plurais. (p. 36). E para este autor, A mais importante lição arendtiana consiste em demonstrar que os métodos totalitários de organização das massas modernas se mostram como solução terrivelmente habilidosa num mundo progressivamente sombrio, inumano e marcado pela superfluidade e pelo desenraizamento dos homens. [...] Hannah demonstrou que o totalitarismo tentou administrar o desenraizamento e a superfluidade experimentadas pelas massas modernas desde o começo da Revolução Industrial, desde o surgimento do imperialismo no fim do século XIX, e desde a dissolução das instituições políticas tradicionais produzidas pelas guerras. (ALVES NETO, 2009, p. 38). É característico dos regimes totalitários o impulso por aniquilar qualquer traço de espontaneidade no homem. Contra tal impulso, Arendt enfatiza a ideia de nascimento, condição ontológica da ação e dos seres humanos, em condição de pluralidade. Assim ela mantém, ante o mundo sombrio impretado pelos regimes totalitários, um tom positivo, lembrando que [...] permanece também a verdade de que todo fim na história constitui necessariamente um novo começo; esse novo começo é a promessa, a única “mensagem” que o fim pode produzir. O começo, antes de tornar-se evento histórico, é a suprema capacidade do homem; politicamente, equivale à liberdade do homem. Initium ut esset homo creatus est – “o homem foi criado para que houvesse um começo”, disse Agostinho. Cada novo nascimento garante esse começo; ele é, na verdade, cada um de nós. (ARENDT, 1989, p. 531). Se Origens do totalitarismo tornou Hannah Arendt conhecida na cena acadêmica americana, apresentando-a ao mundo, “foi com A condição humana, publicada em.

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