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Francisco de Assis e a Comunhão das Criaturas

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Academic year: 2021

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Gilberto Gonçalves Garcia**

Resumo: este artigo interpreta o pensamento de Francisco de Assis, seus escritos e suas

biografias, desde a compreensão de criação como ordem (ordo), ordenamento, para justificar o modo como ele entende a pertença comum originária das criatu-ras e o modo de ação de Deus. O conceito de “ordem”, na palavra de Francisco, indica a unidade imediata e indeterminada de todas as relações possíveis das criaturas. Assim, as criaturas constituem um todo e são constituídas pelo todo de acordo com uma pertença mútua. Para o pensamento místico em Francisco, além do mais, o modo de ser da ordem da criatura, em sua articulação, é pensado em igualdade de condições com o modo de ser da ordem divina. Há sempre, por isso, ordem e não “uma” ordem. Esta compreensão aparece claramente em outro nome que Francisco frequentemente atribui a Deus: “Sumo Bem”.

Palavras-chave: Criação. Mística medieval. Espiritualidade franciscana. Plenitude.

Ele-vação. Liberdade.

A IDEIA DA CRIAÇÃO PENSADA COMO RECIPROCIDADE ENTRE AS CRIATURAS

P

ara Francisco de Assis a criação é concebida como um caminho no qual cada cria-tura trilha sua própria operação. Compreender isso significa acolher sua via espi-ritual como um amplo engajamento pela finitude e “corporeidade” do homem e FRANCISCO DE ASSIS

E A COMUNHÃO DAS CRIATURAS*

–––––––––––––––––

* Recebido em: 25.11.2013. Aprovado em: 15.12.2014.

** Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor nos programas de pós-graduação stricto sensu em Ciências da Religião e História da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Atuante na área de fenomenologia da religião. E-mail: garciagilberto@ uol.com.br.

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do mundo. Em sua mística, toda criatura parece sustentar seu caminho autônomo para Deus e a base desse pensamento está na ideia prévia do condicionamento mútuo entre criaturas.

Neste sentido, a palavra de Francisco começa desde a compreensão de essência do mundo como ordem, ordenamento. É o modo como entende a pertença comum origi-nária das criaturas e o modo de ação de Deus (CELANO, 1982a, p. 236). A es-sência da natureza é pensada como co-interação prévia das criaturas, na qual os seres se estabelecem em pertença mútua e pelo qual os seres alcançam sentido próprio. A criação é pensada, consequentemente, como estruturação de mundo em diferentes níveis (BAGNOREGIO, 1982, p. 525). Cada criatura “está” na sua essência, desde que “apreenda” sentido próprio. Desse modo também é possível pensar a natureza, as coisas, as pessoas, não como meros sujeitos ou objetos, mas como momentos do mundo criado, em sua essência. As criaturas constituem um todo e são constituídas pelo todo de acordo com uma pertença mútua.

Para Francisco, a co-pertença originária entre as criaturas não é um traço secundário de sua natureza. É, antes, uma condição. É um constituinte de cada criatura, tomada individualmente. As criaturas são momentos de uma constituição mais ampla que elas mesmas não são. Por este princípio, o relacionamento das cria-turas já pressupõe os relacionados como “ser para o outro”, de modo que o outro nunca pode ser tomado por si a não ser que seu ser em “si” seja um “ser para”. Uma característica notável da ideia do condicionamento mútuo das criaturas é a de que o condicionamento faz com que a criatura possa ser apresentada nela mesma ou no dar-se daquela criatura que ela não é. Chamamos este fenômeno de relacionalidade das criaturas (ROMBACH, 1988 p. 26).

O sentido do ser, no pensar de Francisco, entende que, na relação, a criatura nunca pode se manifestar como auto apropriação (CELANO, 1982a, p. 235-7). Ela só pode ser o que é no seu “efeito”. Seu efeito é “ser-para”. A efetividade de cada criatura, assim descoberta, é, simplesmente, “ter que ser” na relação com o outro. Sua transcendência é se projetar para seu efeito. No ser “com” e ser “contra” do condicionamento relacional, a criatura se mostra como ela “é”. A criatura se “guarda” a si no condicionamento “a” outro. Ela se encontra “suspensa”, simultaneamente, por sua identidade e por sua diferença (ROM-BACH, 1988, p. 27).

Para nossa compreensão comum, é bastante difícil, porém, pensar a reciprocidade do condicionamento das criaturas. Tendemos, na maioria das vezes, a compreen-der as criaturas como seres previamente dados e, só a partir de então, dispostos para uma relação. Para se conceber a ideia de mundo, nos termos de Francisco, assim como para toda medievalidade ocidental, é decisivo o entendimento de que a “parte” (criatura) não se compreende desde si e por si. Ela só se mantém em seu sentido e em sua verdade a partir de um todo. O conceito de “ordem”,

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na palavra de Francisco, indica a unidade imediata e indeterminada de todas as relações e relacionalidades possíveis (CELANO, 1982a, p. 235-7).

Uma ordem, porém, não se manifesta ao modo de reunião de indivíduos “no interior” de um todo. Para a experiência da criação como ordem, os seres são apenas manifestações possíveis. Uma ordem não tem partes. Ela só pode ser sempre pensada como totalidade. Assim é o “ver” na mística de Francisco. Por isso ele entende que nenhuma criatura pode se dar a não ser em vizinhança com outra. Nestas circunstâncias é que, no se apresentar do diferente (do outro), o “próprio” adquire sentido. A ideia de pertença mútua das criaturas inaugura, pois, uma “in-timidade” de vizinhança entre elas. Radicalmente falando, o “outro” nunca pode ser um “estranho” na relação (BAGNOREGIO, 1982, p. 515). Numa ordem, a criatura se determina, desse modo, na totalidade relacional da vizinhança e, se está adequada plenamente na ordenação, ela é também o todo, ao mesmo tempo. Identidade, portanto, equivale a ser “não outro” em “si mesmo”. Cada criatura é

de-terminada pela condição de outra criatura (ou, de outras criaturas, conforme a amplitude relacional). O todo, numa certa medida, pode ser apreendido como a vizinhança relacional da criatura. A vizinhança relacional garante, com essa determinação, a identidade da criatura com o nexo relacional: o todo mantém identidade com a criatura (ROMBACH, 1988, p. 33).

Isto significa, nos termos da mística cristã da idade média, que a criatura não pode se dar a não ser enquanto voltada para outras criaturas. Até mesmo os anjos, como criaturas. Esta é uma condição que não pode ser evitada. Embora o pen-samento medieval parta da unidade do ser, que é Deus, não se deve identificar a questão da identidade e diferença do ser apenas em seu sentido mais radical, ou seja, no nível da relação entre o absoluto e a parte. A relação “todo e parte” há de ser desvelada em diferentes níveis de desdobramentos possíveis (BAG-NOREGIO, 1982, p. 525).Se o “todo” se refere a Deus ou a outra totalidade, por ora, não importa.

Nesta visão, no todo não existe falta. Na intuição de Francisco se faltar a criatura tam-bém falta o todo. Por isso nunca falta parte no todo. Se do todo algo for tirado, ou o todo desaparece ou se transforma noutro todo. As criaturas são, assim, pensadas como formas do todo. O mundo criado é “mundo” na medida da condição de identidade do todo.

Se para a mística de Francisco o ser existe apenas enquanto Deus, então só poderá haver outros seres enquanto lhes for concedido o ser numa relação eterna. A regra da identidade abre diferenças em momentos “criaturais” idênticos com o todo. A condição de identidade com o todo é, pois, uma medida. Assim, se entende que numa ordem há um princípio regulador da relação entre as criaturas e que esta regulação responde pela sustentação dos modos de identidade no interior da ordem (FRANCISCO DE ASSIS, 1982c, p. 161).

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Nesta acepção, a regra que sustém a identidade coloca igualmente as criaturas em di-ferenciação, as quais, tomadas em sua correlação, são idênticas com o todo. Na acepção mística: as criaturas, tomadas individualmente, são distintas entre si. Vistas em sua correspondência, porém, são idênticas. Tomadas como um todo são idênticas a Deus. A regulação da ordem corrige as criaturas para si próprias, com vistas à identidade. Identidade é, cada vez, a correspondência a uma totalidade. Não importa o grau de totalidade (FRANCISCO DE ASSIS, 1982c, p. 163).

Na intuição de Francisco, a precisão da criatura é o grau de sua correspondência à determi-nação do “reino de Deus”. Assim compreendido, numa ordem não existem “coisas” diferentes. O que pode haver é sempre o “mesmo” em relação permanente. Aquilo que se pode atribuir a uma criatura, se diz do todo, igualmente. Mas a criatura, por não ser algo “fixado”, é sempre passível de se enunciar em transformação.

Mas, os seres, em sua precisão, não são algo de extraordinário. São as criaturas em seus estados mais simples e comuns. São as coisas como se mostram na proximidade de nossa lida no cotidiano. Está na natureza em sua pujança, na utilidade da água e do fogo, na luta subsistente dos animais. Está na disposição humana para o empe-nho, para o planejamento, para o cuidado, para o conhecimento. Precisão exprime o vigor da finitude da criatura. Lidar com o mundo é sempre conhecê-lo em suas múltiplas precisões (FRANCISCO DE ASSIS, 1982g, p. 70-2).

O princípio de um “todo prévio” é uma perspectiva ainda bem distante da ideia de tota-lidade, assumida como ordem na espiritualidade da idade média, em especial, no pensar de Francisco. O “todo prévio” tem o modo de ser de um desenvolvi-mento progressivo. O todo, em nossa compreensão usual, aparece “para além” das partes, como um princípio “controlador” das mesmas.

Na mística franciscana, inversamente, o singular parece preceder o todo. O desempenho do todo depende da relação dos momentos que o constituem. O que não quer dizer, ne-cessariamente, que o todo se dê a partir das singularidades. Uma criatura nunca é “ela mesma” se não se compuser enquanto “sentido” no todo da ordem. Tornar-se “concre-to” é, primeiramente, “assumir” um sentido. Para a espiritualidade da criação, a identidade de uma criatura é co-identitária com a identidade de outras criatu-ras, pois “ser criado” é “ser” na condição de identidade com todo (BAGNO-REGIO, 1982, p. 525).

Na imaginativa mística medieval, a criação é sempre um “autodeclarar-se”. Em seu “interior” as criaturas não podem ser interpretadas como elementos em corres-pondência recíproca, simplesmente. As criaturas são tomadas como concre-ções ao modo de significaconcre-ções junto com o todo da criação, de forma que o “sentido” de ser alcançado pela criatura seja sempre o resultado de sua remis-são “para” outra criatura. A criatura só se realiza quando ela se assume no todo criacional, ou melhor, quando está decidida a “tomar” seu lugar na criação.

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Na intuição de Francisco, ser criatura pressupõe uma decisão, um “salto” para a vida. Quando a criatura salta para a vida, o todo se decide, igualmente, com ela para a vida. Até mesmo Deus! Numa visão plenamente dinâmica da criação, as criaturas são percebidas como “dadas” a si, a partir de relações não previamente estabelecidas.

Neste pensar, as virtudes são compreendidas como disposições dos seres para o salto da vida. E Francisco atribui virtudes a todas as criaturas (O ESPELHO DA PERFEIÇÃO, 1982, p. 973-4).Assim, se retoma a compreensão grega de vir-tude como força, poder, de alguma coisa. A espiritualidade medieval atribui às virtudes a capacidade de dispor as criaturas e, em especial o homem, sólida e firmemente para a vida. Elas são “qualidades” da alma, segundo Santo Tomás: “aquilo que faz com que cada ser seja o que é” (AQUINO, 1972, p. 89, tradu-ção minha), como afirma. Virtude indica, por isso, um modo como o homem se dispõe para o salto da vida e junto ao qual determina seu “lugar” na cria-ção: um modo de decisão. No entender da mística, pela virtude a criatura se “distende”, encontra sua “soltura” na criação e expõe para si a multiplicidade de diferenças como parte de sua pertença. As virtudes cumprem a elasticidade realizadora do homem, concebido como totalidade.

Nesta concepção mística de mundo criado, o sentido de “não limite” se aplica a to-dos os moto-dos de totalidade ordenantes possíveis, não somente à totalidade pensada em sentido mais potencial (o que, todavia, não pode ser pensado como um fim). Uma singularidade pode constituir uma totalidade com outra singularidade, numa relação (ROMBACH, 1988, p. 33).As aproximações e distanciamentos “entre” as criaturas não podem ser resultados de medidas físico-espaciais. O “outro” para uma criatura é justamente o “não limite” que se estabelece entre ela e a outra criatura. A vizinhança do mundo criado se constitui como falta de demarcação de limites. A contiguidade entre as cria-turas não pressupõe linha demarcatória. Assim, na linguagem mística cristã medieval, quando se fala em proporções entre céu e terra, de diferenças entre criaturas, de diferentes níveis e constituições de graus do ser, se está indicando a dimensão do ilimitado que se estabelece “entre” as coisas. O “outro” é assim interpretado apenas como uma intensificação do “próprio”.

Todos os modos de descrição dos seres em comparações por níveis e graus, muito comuns na literatura mística medieval, descrevem intensificações do todo em singularida-des e não a contiguidade de singularidasingularida-des em proporção (BAGNOREGIO, 1998, p. 295).Há sempre um “outro” no ilimitado que se “concretiza” em tensão com o “anterior”. Em cada grau, o “ser si mesmo” de uma singularidade nada mais repre-senta que a constância de seu “ter que ser”, sempre de novo e criativamente, pois a cada coisa agrada estar no seu lugar natural e próprio. Ademais, a tensão privativa da singularidade repercute na tensão do todo, em simultaneidade. Na criação, por

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consequência, nada está pronto; tudo está por se fazer sempre de novo. Realização, como fenômeno, descreve a característica na qual todas as “coisas” têm que ser, enquanto permanência no fluxo concreto da totalidade. Nenhuma delas, porém, al-cança seu “fim”.

A exigência de medida própria por parte das criaturas não é, todavia, o caminho mais “fá-cil” para as mesmas, em seu processo de auto realização. Um caminho de medi-da próprio exige encargo maior que aquele que se submete à normativimedi-dade prévia. Por ser livre, a criatura está em vias de se perder mais facilmente, uma vez que, em última instância, a medida própria não dispensa norma alguma. A norma própria, a ser alcançada, é algo que há de ser buscado e assumido, e não está garantido que a autenticidade do caminho não decaia numa “não-autenticidade” exterior. Todo agir ético é, para tal concepção mística, o resultado desta interpretação. Francisco, assim como os demais grandes místicos medievais, compreendem que a ética per-feita não se dirige a uma normatividade geral. A ética também pode ser pensada como resultado de uma ontologia da realização: não importa a amplitude do agir humano, ele nunca pode ser reduzido a normas gerais. São as tarefas con-cretas da vida, em sua dimensão comunitária, que determinam valores e normas (FRANCISCO DE ASSIS, 1982a, p. 168-9).

A CRIAÇÃO COMO ORDENAMENTO

Das observações precedentes, temos, pois, que, de acordo com a espiritualidade de Francisco, a norma de “vida realizada” é diferente em cada um. Este entendi-mento é que irá fundamentar a compreensão do ser em degraus, tão reiterada no pensar místico medieval. Nesta acepção, o espaço do “mundo” é dado pelo mundo à medida que este se realiza. A criatura se desenvolve, desse modo, na medida em que se desenvolve espaço para seus “momentos”, de forma que cada mundo encontra sua espacialidade própria. A solidez de cada realidade só é alcançada quando esta descobre seu espaço próprio de realização: seu “valor de lugar” (BAGNOREGIO, 1998, p. 305).

O pensamento místico em Francisco vê o mundo criado como uma ordem (ordo), cuja lei é a autodeterminação de seus momentos na reciprocidade em que se encon-tram, isto é, em seu ordenamento próprio. Isto é suficiente. Na retomada dessa condição, embora nenhum segmento do mundo criado desfrute do caráter de autonomia isolada no ordenamento, cada criatura expõe, em sua singularida-de, o todo da relacionalidade que a constitui. Em cada criatura pode estar a concentração do todo das criaturas “em seu momento preciso”. Por isso toda criatura é decisiva “em seu momento”, em sua realidade concreta, aqui e agora. Há que se admitir que, para se pensar o mundo como ordem (ordo), deve-se pressupor

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princí-pio é pensado, em Francisco, simplesmente enquanto a sintonia das criaturas. Ele interpreta o mundo como uma ordem, cuja lei só pode ser tomada em sen-tido figurado, pois ela, a lei, tem de ser vista e interpretada apenas enquanto “fluxo” ordenador, para empregar um termo recorrente em suas palavras. Este modo de pensar o sentido de ordem (ordo), cuja lei só pode ser tomada como

fluxo ordenador, não, portanto, como uma determinação prévia, “acima da ordem”, é algo bem original tanto na visão mística de Francisco como para toda espiritualidade da idade média. Vale, aqui, uma ilustração oportuna, desde uma célebre intuição de Francisco, de Assis. Conta Tomás de Celano, seu primeiro biógrafo, que Francisco ao ser interpelado sobre a redação da regra e o princípio de vida dos frades, afirmara que tanto a lei quanto o supe-rior geral dos frades deveria ser ninguém menos que o Espírito Santo. Quis mesmo pôr estas palavras na regra, mas a bula papal as omitiu (CELANO, 1982b, p. 424).Francisco entendia que o Espírito Santo deveria ser o “fluxo” ordenador do modo de ser dos frades e não uma regra temporal. Ele compre-endia o sentido originário da lei (regra) como resultado da determinação do “portar-se” do frade frente aos demais confrades, bem como do “portar-se” do frade perante toda ordem dos frades: um “comportamento”. A individua-lidade de cada frade, entendia Francisco, nem poderia estar disposta previa-mente, nem poderia estar do “lado de fora” do sentido de ser da ordem dos frades, ou do seu ordenamento. A lei e a obediência dos frades designam uma totalidade de relações que só poderiam ser auscultadas e realizadas em cada frade como lei da totalidade. Este todo, para Francisco, era o Espírito Santo, que podia ser percebido em sua “abreviação” e se mostrava na determinação do reto comportar-se de cada frade.

A lei, como ordem temporal é interpretada, em sua experiência mística, como mero au-xílio interpretativo. Elas têm valor de oportunidade e são justificáveis enquan-to as relações recíprocas não se enquan-tornam mais claras. Para Francisco, o sentido de ser da ordem dos frades menores é tão óbvio, que a lei escrita tem pouco ou nenhum sentido, pois a regra, entendida como lei, só se urge da necessidade de se aclarar para si uma determinada realidade em sua relação. Quando essa urgência não se manifesta, tanto a realidade quanto a sua relação são experi-mentadas a partir de um fluxo ordenador próprio: o “Espírito Santo”. Quanto mais claras as relações num todo, tanto menor a lei de determinação.

A interpretação mística de “ordem” fornece uma importante indicação para poder pe-netrar o sentido originário de ser de “mundo criado” na compreensão medie-val. Francisco deixa entender que uma ordem (ordo) é uma dimensão do ser e que significa um “conjunto” em seu mundo próprio. Ordem pode indicar, ademais, diferentes dimensões e amplitudes de dimensões: uma criatura, um par de criaturas, um reino de criaturas semelhantes, um reino de criaturas

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dis-tintas, um ser humano, uma sociedade, uma corporação. Tudo numa ordem compreende um lugar e valor de lugar.

A compreensão de criação, como campo de relatividade positiva, de fato, determinou for-mas bem concretas de construção da vida e do mundo na idade média: corpos, corporações, ordens. Tudo o que é real e verdadeiro deve estar incluído numa ordem, de antemão (DUBY, 1982, p. 93). O que no interior da ordem se pode encontrar de diverso, sempre pode ser reconduzido a uma forma de igualdade, do mesmo modo como, numa corporação de ofício, um bloco bruto de madeira pertence às ferramentas da oficina, numa relação de igualdade e diversidade. As criaturas também constituem “formas de autonomia”. Quando uma natureza se

“dá”, ela exclui, em conjunto, tudo que não lhe é próprio: “o fogo produz fogo; se ele pudesse transformar em fogo tudo que está próximo dele, ele o faria” (ECKHART, 1963, p. 588, tradução minha). À natureza de uma criatura pertence somente seu mundo circundante, pois ela se estrutura à medida que interpreta seu mundo circundante, tornando-o “seu”. Por isso, na mística me-dieval, o sentido do ser da criatura aparece como modo de exclusividade: ele é forma de inclusão da diferença. O “outro” está sempre incluso na identidade de ser de um ente. Rigorosamente falando, para uma criatura não há o “outro”. A exclusividade das ordens da criação é uma forma de inclusão.

Num tal pensar, cada ordem, por ser infinita em si, não pode pensar além de si “um outro” ou “um mais”. A experiência da pluralidade das criaturas é compreendida como um modo de singularidade. Esta ontologia da realização “guarda” um sentido ontológi-co de pluralidade que só pode ser interpretado ontológi-como multiplicidade exclusiva. Deve ser cada vez interpretado como exclusividade singular da ordem. Para o pensamento místico em Francisco, além do mais, o modo de ser da ordem da criatura, em sua articulação, é pensado em igualdade de condições com o modo de ser da ordem divina. Há sempre, por isso, ordem e não “uma” ordem. Esta compreensão aparece claramente em um outro nome que Francisco frequentemente atribui a Deus: “Sumo Bem” (FRANCISCO DE ASSIS, 1982c, p. 163).

LIBERDADE COMO FUNDAMENTO CONSTITUTIVO DAS CRIATURAS

Ordenação é a possibilidade real de uma configuração. Em Francisco, ela aparece como auto elaboração da criação: o “tecimento” da criação, com suas contradições e superação de contradições. Por isso ele também pensa no papel corretivo que acompanha a criação, uma vez que todo ordenamento deve trazer consigo um processo auto adaptativo que responda pelas transformações das criaturas em seu curso criativo.

Os entes criados são o que são (essência), e o são como são (existência), junto ao valor de lugar que “guardam” na unidade do ser. A experiência do “ser outro”, desde

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a perspectiva da criatura, representa a experiência do ilimitado entre o dar-se de seu “ser si próprio” e o dar-se de sua diferença. O “ser outro” é, dessa for-ma, simplesmente assumido como intensificação do “ser próprio”. Neste sen-tido, em Francisco, mesmo Deus pode ser compreendido como intensificação do “ser próprio”: O “Sumo Bem” (FRANCISCO DE ASSIS, 1982c, p. 155, 163). No plano ético, por exemplo, todos os empenhos humanos são apreendi-dos, em sua mística, como concreções de uma proporcionalidade ontológica, na qual o agir ético é inter pretado como uma vantagem a ser alcançada pelo homem em todas as suas posturas como forma de igualdade.

O processo corretivo das criaturas é condição de possibilidade de liberdade. Nunca pode deixar de haver correção, se a questão é vida. Mesmo nas criaturas, em cujo ritmo vital parece não haver mudança, o movimento retro relacional da proporção do ser deve atuar. A mística vê o processo corretivo do ser atuando até mesmo nas mais baixas dentre as coisas inanimadas, inanimata corpora (BAGNOREGIO, 1982, p. 551).

Para Francisco, a orientação para a condução do espírito é desenvolvida sobre a ética da “não-segurança”. A única segurança concreta é a libertação de todas as se-guranças. Por essa experiência, o homem é convocado a se responsabilizar por aquilo que lhe é dado como ser. Essa é a sua liberdade. Ela lhe foi dada e só pertence a ele porque seu modo de ser está aberto para ela. Por esta liberdade primordial o homem também se dispõe na abertura para consigo mesmo, para com o mundo criado e para com Deus: este é o sentido da liberdade cordial huma-na, que coloca o homem na “proximidade” com o mundo e com Deus. Francisco chama esta liberdade primitiva de “pobreza”, pobreza cordial da finitude do mun-do (BAGNOREGIO, 1982, p. 474-5).Ela é descrita como descoberta e o “vazio” é seu sentido originário. Através do vazio, o mundo se doa na circunstância da auto responsabilização humana. Por isso é que, para a mística de Francisco, ao assumir essa condição originária, o homem amplia sua responsabilidade pelo sentido das coisas. O princípio de retidão ética ou religiosa em Francisco começa com o tema da responsabilização do homem por sua finitude criada, interpretada como lugar da liberdade. Em sua liberdade originária, o homem deve conduzir suas ações no mundo para um sentido sempre mais elevado. A ética é pensada como condição ontológica: o homem “possui” o mundo e “possui”

a Deus, assim, como possibilidade de merecimento. Por isso a criatura, do ponto de vista teológico de sua mística, em sua “finitude terrena”, também participa do grande acontecimento da “salvação”. Um único evento onto-lógico inclui a doação do ser na criação: “graça divina”. E a “divinização” dessa doação do ser como redenção: “obra humana”. Tudo pertence ao plano da redenção. O homem não cria o sentido do ser concedido na criação, mas tem de assumir responsavelmente o sentido do ser assim concedido: nisso se

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resume a doutrina da liberdade na espiritualidade mística de Francisco. Nela, a obra humana coincide com a tarefa de se colocar, sempre de novo, por parte do homem, numa atitude de alegria de busca. Isso não lhe advém por acaso, ou escolha, mas enquanto condição (FRANCISCO DE ASSIS, 1982f, p. 174). A correção das criaturas é, como tal, condição do ser e não produto de uma privação.

O arrependimento ou a “regeneração” (nova geração), como consequência, não é um processo que acrescenta algo à condição humana. A regeneração, ou geração renovada, é concebida como processo de transformação. É criação nova (FRANCISCO DE ASSIS, 1982d, p. 68).A regeneração, pela expiação da culpa, não é necessária uma vez que ela precisa ser corrigida como falta, mas a experiência da falta só é possível onde acontece uma culpa permanente. É o ser da mobilidade corretiva do espírito que origina a falha e não a falha que predispõe o homem à regeneração. A geração renovada, ou regeneração, como correção humana, é mais originária que o sentimento da falha. Disso depende a vida do espírito.

A visão da ordem da criação é interpretada, dessa forma, de acordo com o grau de possibilidade de mobilização do ser. Vida é, desse modo, a capacidade da cria-tura de se auto proporcionar em sua mobilidade ontológica. Isto mostra que o olhar místico de Francisco observa o mundo como um conjunto permanente de transformações em ritmos e níveis variados. Para ele, o mundo se dá ao modo de permanente tensão. A criação se coloca, a todo o momento, em um jogo de significação contextual, desde o nível das “coisas” do uso às “coisas” da vida e do espírito. É possível perceber a tensão do mundo em muitas cir-cunstâncias. As “correções” do mundo pela tensão se verificam nas mudanças de estados físicos da natureza, na modificação de estados vitais, nas transformações dos humores, na alteração do espírito, na palavra corretiva dos “ministros” (FRAN-CISCO DE ASSIS, 1982c, p. 137).A tensão é um fenômeno cuja intensidade se dá de modo distinto na determinação da vida em singularidades. Cada ordem do ser corresponde a um grau do ser. A cada grau do ser correspondem graus de ten-são. No entender da mística medieval, a intensidade do espírito é diretamente “proporcional” ao grau de tensão. Quanto maior a tensão constitutiva, tanto mais espírito possui a criatura.

O mundo criado, assim concebido, é mundo enquanto “mundo reconstituído” e não, sim-plesmente para a característica segundo a qual uma criatura, em seu processo cons-titutivo, ao se retomar corretivamente, alcança sua diferenciação própria. O fenô-meno da diferenciação do ser é frequentemente denominado, no discurso místico, com o termo “elevação” (BAGNOREGIO, 1998, p. 295). A elevação é um modo especial de correção da criatura. Ela é assumida como uma consequência intensifi-cada de autocorreção. A mística pensa a elevação como o processo de reconstituição da criatura pelo qual ela ganha sua distinção na criação. Nele entra em jogo uma

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visão real do mundo como transformação. “Trans formação” é, aliás, uma ca-tegoria fundamental para toda a ontologia mística da idade média.

O sentido mais original do conceito de transformação dos entes foi experimentado na espiritualidade medieval junto com o conceito de “conversão” (CELANO, 1982a, p. 253-4). “Conversão”, entretanto, não na significação usual do termo, tomada como ato da vontade humana na direção de uma mudança comporta-mental, ou adesão à confissão de fé. Conversão tem, para a mística, o sentido primaz de “achado”, “descoberta”. Como tal, ela jamais pode ser percebida imediatamente. Uma circunstância de conversão só pode ser percebida pos-teriormente como mudança exterior de um estado ou comportamento. Sua percepção imediata é impedida pelo fato de que, na conversão, não é apenas “algo” que se converte, mas junto com ele se converte o todo de uma ordem geral das coisas, conjuntamente. Na conversão nunca sou “eu” que me trans-formo. “Minha” transformação é trans formação de tudo que me transforma. A conversão particular esboça a conversão do todo. O todo será sempre a con-dição de possibilidade de percepção da transformação do particular.

Pelo processo de conversão contínua das criaturas, o caráter da diferenciação singular da criatura se acentua, é bem verdade. Mas a criatura só se sustenta em sua distinção quando esta distinção é sustentada pela posição de outras criaturas. O mundo, como tal, se “encorpa”. Torna-se denso. A conversão das criaturas expõe a vitalidade das ordens dos seres, nas quais todos os comportamentos se justificam, plenos de sentido. É a “harmonia” dos seres.

O sentido de harmonia praestabilita (BAGNOREGIO, 1982, p. 525), firmado pela visão cosmológica da filosofia medieval, é, aqui, resgatado em seu sentido eminente. A harmonia dos seres é apreendida, na mística, enquanto equilíbrio mútuo entre as criaturas. O equilíbrio mútuo é alcançado pela pertença comum relacional dos seres na medida em que as criaturas são “projetadas” como medidas fixadas através do jogo da confluência recíproca. A densidade projetada (“para fora” da unidade dinâmica) dá “corpo” à criatura. A criatura “ganha” objetividade (voltar-se “para fora”) pela fixação de sua identidade singular em equilíbrio na cadeia relacional da ordem a que pertence (seu mundo). Este é o sentido autên-tico de objetividade no pensamento medieval. Harmonia é a coerência dos seres em unidade relacional. Na coerência da unidade que sustentam (harmonia), as criaturas carregam o todo em sua expressão. O prefixo “pré” do termo

praes-tabilita indica a transcendência das criaturas enquanto remissão prévia à cadeia relacional. Francisco de Assis só reconhece, assim, a realidade do mundo em seu fundamento dinâmico (BAGNOREGIO, 1982, p. 525).

Liberdade aparece aqui, de certo modo, como o esboço de uma ontologia da finitude concebida, porém, não como mero pensar o significado de ser do mundo e do homem. Uma autêntica ontologia da finitude se proporciona à medida que o

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pensamento assume a constituição da realidade pelo sentido da autodetermi-nação, ou, na acepção da mística medieval, como processo de autodoação das criaturas.

A FINITUDE E O SENTIDO DE PLENITUDE DAS CRIATURAS

A “espiritualidade mística” de Francisco e de sua escola é a concretização de uma ontologia da finitude. Nela está configurada a responsabilização humana pela acolhida da existência concreta e finita. O homem não pode explicar sua exis-tência e nem mesmo consegue se compreender naquilo que é, e, apesar disso, tem que buscar e agir naquilo como ele é. O modo de ser da finitude humana está ligado à tarefa de ter que assumir sempre de novo o seu ser.Ademais, ele precisa atuar para esse propósito, pois esse “operar” é uma tarefa inalienável. Ela é cada vez sua. O homem “opera” a partir de um vazio, experimentado como sua libertação. Por isso, o sentido de perfeição religiosa, em Francisco, não pressupõe a mortificação do corpo como melhoria humana, mas o engajamento concreto do homem em sua propriedade histórica. Esta é sua alegria plena, ou, per-feita alegria (FRANCISCO DE ASSIS, 1982f, p. 174).

O resgate da nobreza da finitude, em Francisco, aparece no entendimento de que o homem, em sua individuação e consciência, não é um ser “ao lado de” ou “voltado para” suas atividades. A constituição da humanidade do homem acontece no salto (atuar), para o qual tudo retorna e onde ele é encontrado em tudo. O indivíduo se constitui mediante suas ações elas mesmas. No sen-tido especulativo da mística franciscana, o homem é apreendido como um “reflexo” tardio de uma ordem. As obras humanas surgem e se esvaem por si mesmas genera tivamente e assim produzem primeiramente o indivíduo (ser si próprio). É a ocupação humana e seu fruto, a obra, que fazem aparecer o indivíduo, não o contrário.

No pensar de Francisco, a transformação permanente das criaturas, pelo princípio de seu condicionamento mútuo, sempre irá retratar o desempenho do ser das cria-turas em seu recomeço. Esta circunstância é também denominada na mística cristã de nascimento e nascimento de Deus na alma (ECKHART, 2006, p. 248). O “nascimento” se mostra, nesse entendimento, como força constitutiva e autotransformadora da vida. Vida é, de certa forma, visão de sentido novo da realidade.

Vida, portanto, em todos os modos possíveis, é vida como a proporção do ser das criaturas acolhida em diferentes níveis de libertação. Nestes termos se en-tende que a plenitude tanto indica a plenitude das criaturas em sua individu-alidade como a plenitude do todo das criaturas. O sentido de plenitude pode ser tomado, consequentemente, em diferentes acepções. Por esse motivo,

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Francisco vê a possibilidade de seu desempenho em todas as coisas, e em diferentes dimensões: na castidade da água; na preciosidade dos astros; na beleza do sol; no vigor do fogo; na cordialidade humana nas tribulações; no encontro pela liturgia; na reverência aos clérigos; no engajamento humano através da misericórdia. É possível perceber o processo de plenificação das criaturas, desde as mais ínfimas às mais proeminentes. Tudo que se retoma e se recobra em sua origem é próprio de plenitude (FRANCISCO DE ASSIS, o 1982g, p. 70-2).

Liberdade, como modo de ser da origem das criaturas, pressupõe a visão da realidade enquanto níveis permanentes de plenificação: plenificação de cada criatura, tomada nela mesma; plenificação do conjunto das criaturas entre si e plenifica-ção do todo com o conjunto das criaturas. A elevaplenifica-ção da existência humana é apenas um caso exemplar. Mas ela não é o único modo real de elevação. Tudo é passível de elevação (BAGNOREGIO, 1998, p. 298). Nos níveis mais ele-vados da natureza, o registro criativo se manifesta ao modo da concretização por obras e ações. Servem como exemplo as obras e instituições humanas; o empenho por uma vida melhor, o cuidado etc. Mas, em outros níveis, também se manifesta na luta animal pela sobrevivência, na vitalidade das plantas e na densidade da matéria bruta, por exemplo. Francisco de Assis parece ter plena consciência dessa realidade.

Na imagem mística de Francisco, onde houver criação haverá sempre repetição e trans-formação das criaturas. Toda transtrans-formação do ser da criatura pressupõe, des-sa forma, um tempo novo. Nesse sentido, a conversão humana é um novo tempo e, quiçá, outro tempo. Todo tempo é, por isso, um tempo que supera um tempo. No entender de Francisco a plenitude só é percebida pela existência que vivencia a força da revelação da verdade na posição em que ela verdadei-ramente se revela.

Toda ação humana carrega, desse modo, seu tempo próprio. Quando se cumpre, no tra-balho humano, o princípio fundamental da plenitude [desfecho do ciclo criati-vo], então a repetição da mesma tarefa leva a uma unidade criativa. O contrário projeta o homem para a experiência de tempo como algo longo e moroso, como no dizer do grande místico cristão Mestre Eckhart: “Se o dia te enfado-nha e o tempo te parece longo e moroso, volta-te para Deus, em quem não há demora tediosa, onde todas as coisas se encontram em repouso” (ECKHART, 2006, p. 188).

Uma interessante passagem na biografia de Francisco de Assis vale a pena recolher aqui. Nela se pode ver como sua mística entende o sentido de “tempo pró-prio” das coisas. Conta-se, pois, que Francisco admoestava seus confrades, na aplicação diária do trabalho, a sempre começar tudo de novo. A utilidade do trabalho, para ele, deveria ser experiência de recomeço: “Vamos começar tudo

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novamente, meus irmãos, porque até agora fizemos pouco ou nada” (CELA-NO, 1982a, p. 253-4). Francisco entende que na rotina do trabalho diário o homem deve experimentar seu tempo próprio, sua plenitude. Para ele, toda repetição deve começar como novidade a fim de não se consumar como operação estéril, destituída de sentido nela mesma. É o que seu biógrafo conclui: “Não pensava que já tivesse conseguido dominar-se, mas firme [...] estava sempre pensando em começar” (CE-LANO, 1982a, p. 253-4).

O que, assim, na rotina do trabalho humano se processa como experiência de enfado e cansaço está condicionado ao sentido do trabalho. Tudo o que, nas rotinas humanas, ganha ou perde sentido está sempre incluído em seu tempo próprio. Não há nenhuma tarefa que não esteja inserida no seu tempo. Tudo tem seu momento de se manifestar e de desaparecer, como instrui a passagem do Ecle-siastes 3, 1-8:

Tudo tem seu tempo, há um momento oportuno para cada empreen dimento debaixo do céu. Tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar e tem-po de colher a planta. Temtem-po de matar e temtem-po de sarar; temtem-po de destruir e tempo de construir. Tempo de chorar e tempo de rir. [...] Tempo de ajuntar pedras e tempo de ajuntá-las; tempo de abraçar e tempo de separar. Tempo de buscar e tempo de perder; [...] tempo de calar e tempo de falar (BÍBLIA SAGRADA, 1983, p. 789).

A harmonia das criaturas, sobretudo a harmonia humana, na visão de Francisco, tra-zida neste ensaio, não descreve a experiência da necessidade de uma ascese articulada por exercícios que conduzam à efetiva operação de virtudes. Talvez até pressuponha do homem exercícios concretos, empenho pessoal, tomada de decisões e coisas do tipo. Isto tudo, no entanto, não é a montagem que está em jogo na visão da harmonia das criaturas em Francisco.

A LIBERDADE ENQUANTO PLENITUDE DE VIDA EM COMUNHÃO

No entender de Francisco, todo ordenamento do ser possui uma dinâmica na forma de uma mobilidade própria. A essa dinâmica pertence a ideia de um “ciclo” da criatura, no sentido da admissão de um princípio e um fim nela mesma. Sua imagem da criação se elabora junto com a evidência de que todo ser comporta sua temporalidade própria, pela qual se articulam múltiplos sentidos, verda-des, coerências e adequações com o mundo. A compreensão de finitude na criação é apreendida pela ideia da ordem do ser vista em seu “intervalo” de começo e de fim. Não é possível, portanto, supor criação, como gênese, sem a noção de intervalo de começo e fim.

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A ideia da criação como surgimento para Francisco, não deve, no entanto, ser enten-dida como um processo aleatório do começo do ser das criaturas. Nesse sen-tido, liberdade, como fundamento, não se proporciona para uma “ontologia do acaso”. No âmbito da compreensão de vida como liberdade, todo começo é apreendido como mudança da impossibilidade para a possibilidade. A natu-reza “nasce”. Seu nascimento é possibilidade tornada. Uma possibilidade tor-nada, porém, não no sentido de possibilidade aberta para a experiência. “Ser possível” é se abrir e se iluminar como um campo próprio. A criatura, entende Francisco, já “nasce” como experiência de si mesma e de suas pertenças de mundo (BAGNOREGIO, 1982, p. 525).

A criatura, e em especial o ser do homem, por mais que se tenha desempenhado, estará sempre de novo no “começo” de si, visto que jamais abandonou o ponto da impossibilidade, no qual e pelo qual “começou”. A criatura se dá sempre neste instante “em que agora se encontra”, como se dá a si todo o tempo. O ponto de sua impossibilidade é a possibilidade de seu salto para a realidade (CELANO, 1982a, p. 254).

Vida, assim compreendida, é, pois, uma constituição genética. Em seu fundamento ela é um salto sempre novo para formas originárias de vivência. A característica fatídica de “ter que ser” a partir de suas ações faz com que o indivíduo seja sempre imprevisí-vel, único e irrepetível. A existência humana experimenta ao mesmo tempo, desse modo, a unicidade da possibilidade, a identidade dessa possibilidade com o todo e a identidade de todos os eventos com essa possibilidade.

Liberdade como “libertação” só vale para aquela mudança cujo caminho conduz as criaturas, em especial o homem, a superar graus interpretativos da existência, de tal modo que as coisas e seus estados se transformem com o homem. Por-quanto cada criatura, reunindo em si o “todo” das criaturas, deve repercutir adiante em direção à consumação do todo. A amplitude de percurso da vida humana, em seus níveis, deve transformar, desse modo, a moral, os costumes, a ética, o comportamento. Transformar o pensamento, a vontade. Transformar a doutrina, a pedagogia. Transformar o estado, a comunidade.

Liberdade é, assim, para Francisco, o caráter de vivência interna da dinâmica complexa das criaturas, e isso de tal forma inevitável, que liberdade pode ser tomada jus-tamente como critério do surgimento da natureza das criaturas. Para o sentido de natureza existem formas de liberdade em todos os níveis da dinâmica da vida, não só para a natureza do homem. Por isso, na espiritualidade medieval, a natureza, tanto no seu todo como nas criaturas singulares, é reconhecida como dimensão criacional corresponsável com o homem no sentido de prover e de cuidar de suas possibilidades de liberdade. É a partir deste princípio que Francisco de Assis se coloca em reverência contínua à criação. Célebre é um escrito seu a este respeito.

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Francisco de Assis, até o fim da vida, queria ver o mundo inteiro num estado de louvor permanente a Deus pela criação. No outono de 1225, debilitado pelas enfermida-des, quase cego, retirou-se para um casebre rústico, em estado febril e atormen-tado por ratos, para deixar para a humanidade um dos mais profundos versos de louvor a Deus pela liberdade da criação e comunhão dos seres:

Altíssimo, onipotente, bom Senhor. Teus são o louvor, a glória, a honra e toda bênção. [...] Louvado sejas, meu senhor, com todas as tuas criaturas, especial-mente o senhor irmão Sol, que clareia o dia e com sua luz nos alumia. E ele é belo e radiante. Com grande esplendor: de ti, Altíssimo, é a imagem. Lou-vado sejas, meu Senhor pela irmã Lua e as Estrelas, que no céu formastes claras e belas. Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão o Vento, pelo ar, ou nublado, ou sereno, e todo tempo, pelo qual às criaturas dás sustento. Lou-vado sejas, meu Senhor pela irmã Água, que é mui humilde e preciosa e cas-ta. Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão Fogo, pelo qual iluminas a noite. E ele é belo e jucundo, e vigoroso e forte. Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã a mãe Terra, que nos sustenta e governa, e produz frutos diversos e coloridas ervas. Louvado sejas meu Senhor, pelos que perdoam por teu amor, e suportam enfermidades e tribulações. Bem aventurados os que as sustentam em paz. [...] Louvado sejas meu Senhor, por nossa irmã a Morte corporal, da qual homem algum pode escapar. [...] Louvai e bendizei a meu

Senhor, e dai-lhe graças, e servi-o com grande humildade (FRANCISCO DE

ASSIS, 1982a, p. 70-1).

No seu “Cântico do Irmão Sol”, Francisco entende que existe nas criaturas inferiores uma reciprocidade com o homem na responsabilidade para com o todo da cria-ção. Dessa forma ele atribui, no poema, virtudes humanas aos elementos da natureza. O sol é belo, a água é humilde e casta e o fogo é jucundo. Ademais, ressalta o caráter de fraternidade (condicionamento mútuo) das criaturas no processo da liberdade da criação.

A emergência da liberdade, como modo próprio de desempenho das criaturas, é tanto maior quanto mais complexo for o nível do ser da criatura. Por isso, a liberda-de criativa não se elabora apenas na criatura humana. No pensar liberda-de Francisco, não pode haver liberdade isolada. O homem é livre quando as demais criaturas e obras são livres também. Uma liberdade criadora pode abrir outros níveis de liberdade. Tudo vai depender do grau de ordenamento e de conexão com outras ordens de criaturas. Uma liberdade criativa que não for excludente pode desencadear diferentes níveis de libertação em diferentes ordens paralelas de criaturas. Esta evidência, no entanto, só pode advir do olhar que vê previa-mente as criaturas em seu condicionamento mútuo e que vê a desenvoltura

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da liberdade da criação em, pelo menos, três grandes níveis: a liberdade vista como a liberdade de cada criatura em reciprocidade com outra; a liberdade vista como liberdade do todo das criaturas na relação recíproca; e, por fim, liberdade do todo com cada criatura em reciprocidade.

FRANCIS OF ASSISI AND THE COMMUNION OF CREATURES

Abstract: this article interprets the thought of Francis of Assisi, his writings and his

biogra-phies, from the understanding of creation as order (ordo), to justify the way he un-derstands the original mutuality of creatures and the action of God. The concept of “order”, in the words of Francis, indicates the immediate and indeterminate unity of all possible relations of creatures. Thus, the creatures constitute a whole and are constituted by the whole according to a mutual relationship. For the mysti-cal thought in Francis, moreover, the mode of being of the order of the creature, in its articulation, is thought on equal terms with the mode of being of divine order. There are always, therefore, order and not “an” order. This understanding clearly appears in another name that Francis often attributes to God: “Su-preme Good”.

Keywords: Creation. Medieval mysticism. Medieval franciscan spirituality. Fullness.

Elevation freedom.

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