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Cabelo e Véu No Imaginário Judaico e Greco-Romano como Simbologia de Exclusão Social e Reclusão Doméstica da Mulher no Século I

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KEILA MATOS, IVONI RICHTER REIMER

Resumo: investigação do uso do cabelo e do véu no imaginário judaico e Greco-romano no século I partindo do contexto da carta Paulina 1Cor 11, 2-16, que envolve problemas de usos e costumes na comu-nidade cristã de Corinto.

Palavras-chave: cabelo, véu, imaginário, exclusão social, reclusão doméstica CABELO E VÉU NO IMAGINÁRIO JUDAICO

E GRECO-ROMANO COMO SIMBOLOGIA DE EXCLUSÃO SOCIAL E RECLUSÃO DOMÉSTICA DA MULHER NO SÉCULO I

N

osso ponto de partida para observar o uso de cabelo e véu no imagi-nário judaico e greco-romano no século I é o texto do Novo Testa-mento, encontrado numa das cartas do apóstolo Paulo, especificamente 1Co 11,2-16. A partir dele e nele buscaremos obter informações so-bre nosso tema. Primeiro, porém, julgamos importante tecermos al-gumas observações preliminares importantes no processo interpretativo e na análise histórico-cultural.

TECENDO UM REFERENCIAL

O texto em questão é um dos textos neotestamentários polêmicos que en-volvem as relações de gênero dentro do tema amplo de usos e costu-mes nas culturas mediterrâneas antigas. Como tal, ele reflete determinada mentalidade dentro de seu contexto. Mas não apenas isto, pois textos também são resultados de processos traditivos e, como tais, estão

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repletos de intenções e efeitos narrativos, sendo que podem ser vistos também como ‘modelo de ação’1: “Textos são formas específicas de um agir humano; são ações simbólicas que se utilizam de signos polissêmicos e por isto necessitam da interpretação” (THEISSEN, 1974, p. 37, nossa tradução). É assim que eles relatam, através de processos de seletividade e intencionalidade, sobre algo que existe ou como algo deveria de ser. Em se tratando de cartas paulinas que, sendo circunstanciais, querem intervir no tema-conflito em questão, o texto pode ser entendido como narrativa elaborada subjetivamente e que procura dar respostas para uma situação atual, no caso, conflitiva. Nós não sabemos exatamente do que se trata em 1 Co 11. A questão envolve problemas com o uso de cabelo e véu na comunidade cristã em Corinto, por volta dos anos 50-60. O acesso que temos a esta realidade é por meio de uma linguagem altamente simbólica e interpretativa de tradições antigas e costumes existentes, especialmente veterotestamentárias no confronto com tradições helênicas e roma-nas que circulavam no mundo habitado do Mar Mediterrâneo. Neste sentido, “é impossível perceber qualquer realidade fora de um deter-minado quadro conceitual, sendo a linguagem que a descreve sempre interpretativa” (ATLAN apud GUERRIERO, 2002, p. 98). Esta lin-guagem simbólica está inserida no campo do imaginário que apre(e)nde algo somente na medida em que a percebe e a interpreta.

Na forma comunicativa de carta, simultaneamente pessoal e embutida da autoridade apostólica, percebemos a importância da abordagem do imaginário naquilo que Paulo comunica para a comunidade, visto que:

a vida social produz, além de bens materiais, bens simbólicos e imateriais, um conjunto de representações, cujo domínio é a comunicação, ex-pressa em diferentes tipos de linguagem, discursos que se materiali-zam em textos ‘imagéticos’, iconográficos, impressos, orais, gestuais, etc. (SWAIN, 1994, p. 46).

São dois os tipos de registros nos quais o imaginário opera: a paráfrase (repe-tição sob outro invólucro) e a polissemia (criação de novos sentidos, deslocamento de perspectivas). Em ambas perspectivas, o imaginário pode “reforça(r) os sistemas vigentes/instituídos e ao mesmo tempo atua(r) como poderosa corrente transformadora” (SWAIN, 1994, p.

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52). É importante perceber que a ação do imaginário social sempre é política e pode operar rupturas e/ou continuidades não apenas comu-nicativas, mas também sociais. No contexto das abordagens textuais,

os imaginários sociais constituem ‘representações’ cujos sentidos de-vem ser apreendidos nos textos dos próprios imaginários. [... para] tentar perceber como tais imaginários ‘constituem’ a própria realida-de, inclusive a social. [...] O imaginário social é assim uma força reguladora da vida coletiva que, ao definir lugares e hierarquias, di-reitos e deveres, constitui um elemento decisivo de controle dessa mesma vida coletiva, aí incluído o exercício de poder (FALCON,

2000, p. 101).

O uso de cabelo e véu, indicado no texto em questão, funciona como repre-sentação portadora de sistemas simbólicos, que carregam sentidos ocultos e se internalizam no inconsciente coletivo, apresentando-se como ‘naturais’. No intuito de apre(e)nder estas realidades passadas, presentes em 1Co 11, recorremos ao conceito do imaginário como

sistema de idéias e imagens de representação coletiva que os homens [sic!], em todas as épocas, construíram para si, dando sentido ao mundo. [...] O imaginário comporta crenças, mitos, ideologias, conceitos, valores, é ‘construtor de identidades e exclusões’, hierarquiza, divide, aponta semelhanças e diferenças no social. Ele é um saber-fazer que organiza o mundo, ‘produzindo a coesão ou o conflito’ (PESAVENTO,

2004, p. 43, nossos destaques).

O imaginário assim construído e (re)elaborado é uma forma de realidade, um “regime de representações, tradução mental não-reprodutora do real, que induz e pauta as ações” (PESAVENTO, 2004, p. 44). O imaginário tornou-se, assim, uma categoria (p)referencial para ex-pressar a capacidade humana de representar o mundo e os valores nele construídos. Nele se entrecruzam o mundo das coisas do cotidi-ano e o mundo das coisas do desejo, sendo que estes dois mundos são inseparáveis: o real e o imaginário:

O real é sempre o referente da construção imaginária do mundo, mas não é o seu reflexo ou cópia. O imaginário [...] remete às coisas [...] do

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, Goiânia, v. 6, n. 2, p. 269-283, jul./dez. 2008 272272272272272 cotidiano da vida dos homens [sic!], mas comporta também utopias e elaborações mentais que figuram ou pensam sobre as coisas que, con-cretamente, não existem. Há um lado do imaginário que se reporta à vida, mas outro que se remete ao sonho, e ambos os lados são constru-tores do que chamamos de real (PESAVENTO, 2004, p. 47).

Neste sentido, queremos compreender dimensões culturais mais profundas, expressas no texto bíblico em questão, que reflete um “processo mental da realidade, produtor de coesão social e de legitimidade a uma ordem instituída, por meio de idéias, imagens e práticas dotadas de significa-dos que os homens [sic!] elaboravam para si” (PESAVENTO, 2004, p. 24). A dimensão simbólica torna-se relevante para analisar as formas de organização social e religiosa, porque nelas são observadas formas cifradas de representar o mundo. Palavras e imagens apontam para além daquilo que está registrado. A história das mentalidades e a histó-ria cultural ajudam a perceber como as elaborações mentais eram arti-culadas com as realidades cotidianas e como as experiências cotidianas se traduziam e fixavam como valores e normas. Passou-se a perceber, portanto, que “aquilo que se convencionava chamar de real era dado por objetos discursivos, fixados historicamente pelos homens [sic!]” (PESAVENTO, 2004, p. 33).

ADENTRANDO NO MUNDO SOCIOCULTURAL DO TEXTO É neste sentido que percebemos documentos antigos que relatam que no mundo judaico das famílias fiéis à Lei e greco-romano conservador era comum a marginalização de mulheres, e tal marginalização lhes subjugava à exclusão social e reclusão doméstica. O véu como parte do vestuário feminino era sinônimo de status social e símbolo de honradez patriar-cal tanto no mundo greco-romano como no judaico.

Segundo Jeremias (1983), a mulher judia não participava da vida pública no Oriente, o que também acontecia no judaísmo do tempo de Jesus nas famílias judaicas fiéis à Lei. Para sair de casa, a mulher tinha de esconder o rosto com um manto que se dividia em duas partes, uma cobria-lhe a cabeça, a outra cobria a fronte e caía até o queixo, de forma que o rosto da mulher não podia ser reconhecido. A mulher que saísse de casa sem o véu que lhe ocultava o rosto, conversasse na rua ou ficasse do lado de fora da sua casa, dava ao marido a

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nidade de se separar dela sem precisar pagar a quantia que pertencia à esposa em caso de divórcio. Algumas mulheres não se descobriam sequer dentro de casa. Dizia-se que o cabelo era uma coisa tão sagra-da que nem as traves sagra-da casa os viam. Somente no dia do casamento a esposa aparecia de cabeça descoberta, caso não fosse virgem ou fos-se viúva. Preferia-fos-se que a mulher não saísfos-se de casa, em particular a moça antes de seu casamento.

Yose ben Yohanan (apud JEREMIAS, 1983, p. 474), um dos mais antigos escribas, sentenciava: “Não converse com uma mulher”. As regras de normas morais proibiam o homem de encontrar-se sozinho com uma mulher. Caso a mulher fosse casada, outro homem não podia sequer olhar para ela, muito menos cumprimentá-la, ainda mais se o ho-mem fosse aluno de escriba (JEREMIAS, 1983). Para o judeu Fílon (apud JEREMIAS, 1983), de Alexandria, as mulheres moças deviam ficar confinadas nos quartos das mulheres e evitar o olhar dos ho-mens, mesmo de parentes próximos, e as mulheres casadas deviam ter como limite a porta do pátio. Para ele, toda a vida pública era feita para homens (negócios, conselhos, tribunais, procissões festi-vas, reuniões).

Em relação à vida privada, a situação da mulher correspondia à exclusão da vida pública. Em razão disso, a maioria das mulheres passava a maior parte do tempo envolvida com afazeres que se restringiam ao espaço privado. Até os doze anos, a autoridade do pai era soberana sobre a filha. Ela não tinha o direito de possuir nada. Todo rendimento do trabalho dela era dado ao seu pai. A aceitação ou recusa de um pedi-do de casamento pertencia exclusivamente ao seu pai e até os 12 anos e meio uma jovem não tinha o direito de recusar o casamento decidi-do por ele. O pai podia também, até os 12anos, vendê-la como es-crava (JEREMIAS, 1983).

Acima dos 12 anos e meio, a filha tinha o direito de decidir seu noivado sem o consentimento paterno, mas o pagamento feito pelo noivo pertencia ao pai dela. Casando-se, a mulher passava da submissão ao pai para a submissão ao esposo. Na vida conjugal, a mulher podia ser mantida, exigindo a aplicação desse direito perante o tribunal, com alimento, vestuário, habitação, medicamentos, sepultura, velório com dois tocadores de flauta (no mínimo) uma carpideira e um discurso fúnebre. Os deveres da mulher no matrimônio eram atender às ne-cessidades do lar: moer, cozinhar, lavar, amamentar, fazer a cama do

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marido, fiar e tecer a lã (para compensar sua manutenção), levar e preparar a bacia para o marido, lavar-lhe o rosto, as mãos e os pés. Como o pai dela, o marido tinha direito à renda do trabalho dela, bem como podia anular os seus votos. A mulher devia total obediên-cia ao marido (JEREMIAS, 1983).

Nessa época a poligamia por parte do homem era permitida. Por isso a mulher devia tolerar concubinas ao seu lado. O direito de divórcio era só do homem, salvo os casos em que o homem fosse coletor de excrementos e curtidor de peles, atacado de lepra, de pólipos ou a obrigasse a compromissos abusivos à sua dignidade. Somente nesses casos a mulher podia requerer o divórcio diante do tribunal, reivin-dicando o pagamento da quantia garantida no contrato matrimoni-al, caso fosse mandada embora ou seu marido morresse (JEREMIAS, 1983). A falta de filhos era uma desonra. Sendo mãe, a mulher era valorizada, pois, desse modo, dava ao marido o mais precioso pre-sente: filhos. Quando uma mulher não podia ter filhos, pensava-se que isso podia ser castigo divino.

Mesmo viúva, a mulher continuava ligada ao marido. Nesse caso, a viúva tinha de esperar que irmãos do falecido contraíssem com ela o casa-mento levirático ou lhe manifestassem a recusa, sem a qual ela não podia tornar a se casar. Essas eram as condições que refletiam as pres-crições da legislação religiosa à época. Do ponto de vista religioso, a mulher não era igual ao homem e devia sujeitar-se às proibições da Torá e a todo rigor da legislação civil e penal.

Nas sociedades judaica e greco-romana, cabelo comprido, penteado, “com tranças que circuncidavam a cabeça como um boné” ou uma es-pécie de tiara (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2002, p. 2006, SCHÜSLLER FIORENZA, 1992, p. 266), com faixa, fita ou tule, com um adorno com pérola ou de ouro chamado “cidade de ouro” ou “Jerusalém de ouro”, uma espécie de diadema cremada (JEREMIAS, 1983, p. 18-9) ou bem preso era sinal de dignidade feminina. Já cabelo solto significava estímulo erótico. Na tradi-ção judaica, cabelo solto era o mesmo que a mulher estivesse nua (FOULKES, 1996, p. 284).

Tanto na sociedade judaica quanto na greco-romana, somente os homens usavam cabelo curto. A Bíblia de Jerusalém (2002, p. 2006) comenta em nota de rodapé que “cabelo curto denotava a homossexualidade feminina”. Não era comum, tampouco correto àquela época, homens

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com cabelos compridos e mulheres com cabelos curtos ou raspados. A cultura do primeiro século determinava que era fundamental man-ter estigmas que distinguissem, notoriamente, os sexos. A construção e reprodução do imaginário sócio-religioso funcionam, aqui, como poderoso instrumento de organização e visibilização das diferenças de gênero, incorporadas na vida cotidiana de mulheres e de homens. Champlin (2002, p. 175) extraiu do Talmude um trecho que narra uma história que demonstra a importância do véu para as mulheres no antigo Israel:

As mulheres judias costumavam considerar uma imodéstia permitir que outros lhes vissem os cabelos. Por essa razão cuidavam, tanto quanto possível, em escondê-los sob uma cobertura. Certa mulher, sujo nome era Kimchith, tinha sete filhos; e todos ministravam como sumos sacerdotes. Os sábios lhe perguntaram de certa feita: Que fi-zeste, que é mulher tão digna? E ela respondeu: Todos os dias os caibros de minha casa nunca viram as madeixas de meus cabelos; isto é, nunca foram vistos por qualquer pessoa, nem mesmo no interior de minha casa.

A importância cultural dada ao uso de cabelo e véu era notória, e a exigên-cia procurava ser observada tanto por causa da convicção pessoal quanto por pressão/coesão social. O imaginário atua, aqui, como força de coesão e de manutenção do status instituído como manifestação de pertencimento a determinado grupo, no caso, o que segue a prescri-ção das normas e costumes. Afinal, a mulher com o cabelo solto re-presentava as seguintes situações:

• indício de luto por causa de morte de ser querido (FOULKES, 1996, p. 284);

• infidelidade da mulher contra o homem. A Bíblia de Estudo de Genebra (1999, p. 1358) cita em comentário de rodapé Nm 5, 18 para exemplificar a prova pela qual a mulher infiel tinha de passar: “Apresentará a mulher perante o Senhor e soltará a cabeleira dela...”. Nessa situação de adultério, a legislação israelita estabelecia que a mulher devia ser apresentada “também em público com os cabelos soltos como forma de punição” (FOULKES, 1996, p. 284-5); • adoração à Deusa Ísis, Afrodite ou ao Deus Dionísio. A Deusa

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pes-, Goiâniapes-, v. 6pes-, n. 2pes-, p. 269-283pes-, jul./dez. 2008 276276276276276

coço”. Nos cultos à Ísis, as “mulheres usavam cabelos soltos e os homens, raspados”. Nos cultos a Dionísio, Deus do vinho, havia na celebração “ritos orgiástico-religiosos” (FOULKES, 1993, p. 88-9; 1996, p. 285). No templo de Afrodite, “as sacerdotisas eram prostitutas sagradas que estavam no templo a serviço do culto sexual” (SILVA, 2002, p. 126). Essas sacerdotisas usavam seus cabelos soltos.

A cabeça raspada de mulheres representava que eram prisioneiras de guerra. Estas tinham suas cabeças raspadas como punição, expressão de hu-milhação (Dt 21, 10-14; Is 3, 16, 24).

Em relação ao uso do véu, no judaísmo, uma mulher era considerada de-cente, caso se apresentasse tanto na sinagoga quanto em público com o cabelo preso e com véu. Segundo Hoover (1999, p. 82), o véu simbolizava submissão no papel de esposas, mas também segurança, pois as autorizava a se apresentarem em público sem seus maridos. No entanto, a sociedade greco-romana não insistia nesse costume. Ora as

mulheres apareciam usando parte de seus xales sobre a cabeça, ora apresentavam-se com a cabeça descoberta. Somente as mulheres de classes mais humildes e tradicionais se cobriam com o véu ao sair de casa (FOULKES, 1996, p. 286).

As mulheres romanas eram praticamente excluídas dos papéis ativos na vida religiosa comunitária, mas havia exceções. Um certo número de pa-péis sacerdotais e de sacrifícios, considerados restritos para homens, estava nas mãos de mulheres como, por exemplo, as Vestais, sacerdo-tisas públicas (SCHEID, 1990).

No mundo romano, as diferenças sociais eram integradas à vida cotidiana das pessoas. As mulheres eram englobadas nesse modo de integração, sendo que a esposa legítima cobria corpo e cabelo. As mulheres livres e proprietárias de escravos preocupavam-se com o aumento de nú-mero de servos, o que era garantido pelos pelas mulheres escravas. A separação entre pessoas livres e escravas era nítida.

Às escravas cabiam duas funções: proporcionar prazer ao seu senhor e pro-criar. Tanto em Roma como na Grécia, o senhor era automaticamen-te dono dos bens dos escravos. Ele controlava até mesmo os nascimentos nas famílias de escravos. Em razão disso, proibia o casamento de seus escravos com os de outro senhor. Se uma mulher livre se unisse com um escravo sem o consentimento de seu senhor, ela também se tor-nava escrava.

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Em Roma e no Oriente grego, havia uma nítida diferenciação entre pessoas honradas e as infames. Por causa da infâmia, as mulheres eram priva-das do casamento legítimo e da transmissão cívica completa, que era hereditária. Isso também acontecia no mundo grego, embora com bem menos freqüência. Ao cobrirem o corpo e a cabeça, trajes de esposa legítima, as concubinas manifestavam a sua pertença a um cidadão.

As mulheres das camadas altas ou das camadas relativamente favorecidas eram educadas para ignorar seu corpo a ponto de anular o seu prazer. A elas cabiam as funções de administrar bem a casa, procriar, educar os filhos, aceitar a infidelidade do marido com paciência até que ele se voltasse outra vez para ela.

Porém, a resistência de algumas mulheres a esse modelo fez com que muitas delas confrontassem com nobres romanos e imperadores no I século, em um momento em que Augusto começava a admitir a liberdade de expressão. No entanto, isso tomou uma proporção tal que Augusto passou a reprimir panfletos e a queimar livros. Mesmo assim, algu-mas pessoas tentaram passar das críticas verbais a atitudes práticas. Essas pessoas, porém, eram condenadas a anteciparem a execução com o suicídio.

Nesse momento, mulheres são condenadas ao suicídio por causa de faltas pessoais ou por extensão da pena infligida ao marido. Entretanto, havia aquelas que decidiam não sobreviver, mesmo sem serem constrangidas a tal, em razão de terem apoiado a resistência do mari-do ao Império.

Muitas mulheres se suicidaram para não ter de dever sua vida a algum im-perador (César, Augusto, Tibério) como, por exemplo, a mulher de Sejano; Paxeia, mulher de Pompónio Labéu; Sexta, mulher de Scauro; e Arria, a Antiga, que, para encorajar o marido condenado pelo im-perador Cláudio, se feriu primeiro, dizendo ao esposo: “Vê, Peto, isto não dói”. Com as iniciativas dessas e de mulheres o sistema soci-al vacilou, visto que elas mostraram sua coragem num mundo de perigo.

De acordo com Zaidman (1990, p. 427),

na vida das mulheres [gregas], o biológico estava estreitamente rela-cionado e condirela-cionado pelo social: a adolescência é entendida como preparação para o casamento e para a vida como esposa de um

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cida-, Goiâniacida-, v. 6cida-, n. 2cida-, p. 269-283cida-, jul./dez. 2008 278278278278278 dão. A sua função reprodutora determina a união matrimonial. Quando chega à idade que já não pode procriar, a mulher adquire um novo estatuto e espaça aos privilégios e às proibições que marcavam a sua vida. A estas três idades da mulher grega correspondem práticas reli-giosas diferentes.

Zaidman (1990) esclarece que, no mundo grego, havia mulheres que pos-suíam a imagem tradicional daquela que administrava a casa, mas também havia mulheres que eram integradas no sacrifício, reuniam-se em asreuniam-sembléias ou exerciam sacerdócio e reuniam-serviços em cultos femi-ninos.

A imagem de esposa perfeita aqui corresponde à da tecelã. Essa era uma atividade tradicional que a mulher exercia em casa. Era uma profis-são admirada porque mantinha a mulher ocupada e na companhia de outras mulheres, servas ou outras mulheres da casa. Todas ficavam em volta do tear, das navetas e dos cestos de lãs. A esposa perfeita era a mulher trabalhadora.

A imagem de esposa casta e prolífica era valorizada, mas a sociedade não deixava de tolerar as celebrações a deuses em âmbito privado. As mu-lheres participavam de vários cultos. Alguns deles, como, por exem-plo, o de Dionísio, representavam a inversão da ordem da cidade e da família, pois, segundo Zaidman (1990, p. 435), “esposas [...] esque-cem os seus deveres e [...], para cúmulo do sacrilégio, despedaçam os próprios filhos no espaço selvagem da montanha”.

Em Atenas acontecia uma média de trinta festas anuais. Cada uma dessas festas durava cerca de dois ou três dias. Parte da população feminina participava ativamente dessas festas, mas somente na festa anual das Pan-Ateneias é que presenciavam mulheres de todas as idades. Essa intervenção era determinada pela idade e pela condição social, o que também representava a pertença ao mundo político.

Na sociedade judaica, por exemplo, o véu representava um símbolo de pro-teção que as mulheres tinham de seus maridos. Historiadores infor-mam que só as prostitutas andavam sem véu. O véu simbolizava submissão no papel de esposas, mas também segurança, pois as auto-rizava apresentarem-se sem seus maridos fora de sua casa. Porém, na sociedade greco-romana, esse costume não era tão incisivo. Algumas das mulheres convertidas à fé cristã acreditavam que sua liberdade em Cristo ultrapassava qualquer submissão à autoridade do marido,

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logo, não mediam suas ações considerando o contexto cultural em que viviam (HOOVER, 1999, p. 82).

Havia uma nítida diferenciação entre pessoas honradas e as infames no mun-do greco-romano. As cidadãs romanas que se prostituíam eram proibi-das de usarem o manto usado pelas matronas. Isso também ocorria com esposas adúlteras, concubinas adúlteras ou esposas libertas do seu patrão que se separavam dele sem o seu consentimento. Os homens podiam se divorciar das suas mulheres se elas saíssem com a cabeça descoberta.

O véu ou o capuz tapando a cabeça constituíam [sic] um aviso: eis uma mulher honrada, de quem ninguém se deve aproximar sob pena de graves sanções. A mulher que saía sem véu, vestida de criada, já não era protegida pela Lei romana contra os agressores: estes se beneficia-vam de circunstâncias atenuantes. [...] quando os cristãos pediram a todas as suas mulheres que cobrissem a cabeça (Paulo, I Cor. 11, 10), fizeram-nas tomar todas o aspecto de mulheres intocáveis, de mulhe-res honradas, o que nem todas eram, à luz dos mulhe-respectivos direitos. Assim como os escravos do sexo masculino podiam usar toga ou pálio, vestuário dos homens livres, as mulheres cristãs de qualquer estatuto adoptaram o véu, ou mesmo o modo de vestir das matronas. Sinal de sujeição, evidentemente, para as matronas como para as cristãs de con-dição inferior, mas também sinal de honra, de reserva sexual, portanto de domínio de si própria (ROUSSELL, 1990, p. 374).

Nos dias de Paulo, mulher sem véu, com cabelos soltos ou curtos era conside-rada culturalmente infame. O uso do véu perpassava várias culturas, en-tre elas, a judaica e a greco-romana, que dominavam o ambiente à época. Por isso as honradas deviam ter o cabelo longo, preso e bem penteado. O cabelo solto era visto como um estímulo erótico, por isso, usá-lo solto em público era um ultraje ao pudor, pois era considerado uma parte privada do corpo que só o esposo podia olhar. O uso do véu, portanto, representava a ‘honra’ do marido. Além disso, o cabelo solto era associa-do também “com a celebração de ritos religiosos de tipo orgiástico, como os do culto a Dionísio, deus do vinho” (FOULKES, 1993, p. 88). Algo semelhante acontecia no culto de adoração à Deusa Ísis – representada com uma abundante cabeleira sobre o pescoço –, em que suas devotas também soltavam seus cabelos (FOULKES, 1993, p. 89).

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TECENDO ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PARA A INTERPRE-TAÇÃO DE 1CO 11,2-16

Podemos supor que na comunidade cristã em Corinto havia mulheres e homens que pertenciam não apenas a diferentes camadas sociais, mas que também provinham de diferentes expressões étnico-culturais. A comunidade era um espaço de expressão pluricultural que buscava construir sua identidade cristã. Situações conflitivas havia várias, p.ex. em relação ao comer e beber na celebração da Ceia do Senhor. Outra situação conflitiva aponta para as normas de uso e costume acerca de cabelo e véu das mulheres, em qualquer grupo étnico-cultural da-quele tempo.

O apóstolo é chamado a ajudar a resolver o problema circunstancial na comunidade em Corinto por causa de sua autoridade apostólica. A circunstância, porém, remete a um contexto maior, onde este cos-tume estava em vigor. Paulo utiliza o registro da paráfrase para co-municar, em linguagem simbólica que configura o imaginário cultural, a necessidade do uso do véu. Na paráfrase da norma, qualquer que seja o argumento utilizado pelo apóstolo (a ‘ordem da criação’, os ‘anjos’ ou a ‘natureza’), a direção e a orientação por ele dadas/prefe-ridas é a da manutenção do costume, no que tange à situação da mulher na prática cúltica. Mesmo que o último versículo (11,16) deixe uma abertura para a não-adesão à orientação preferi-da, a mulher ou o grupo que resolver ir ou permanecer na contra-mão da tradição, aqui defendida pelo apóstolo, estará construindo uma identidade na exclusão e sua postura será transgressora diante das “igrejas de Deus”.

O imaginário aqui defendido, para esta situação específica, legitima a tradi-ção do uso do véu, seja pelo argumento da submissão da mulher, da autoridade feminina ou da glória e honra femininas. O texto funcio-na, portanto, como ‘modelo de ação’ e seus argumentos (aparente-mente?) contraditórios entre si sugerem abranger toda extensão de possibilidades apelativas por parte de quem está ‘do outro lado’. É como se cada argumento estivesse dialogando com um argumento anteriormente já oferecido pelo grupo transgressor. E todas as res-postas resultam negativas, sendo que a mais forte está no final: “as igrejas de Deus não têm tal costume”, no caso, de mulheres atuarem culticamente sem o uso do véu... Discutiu, discutiu, mas ‘a’ resposta já estava preestabelecida, e com legitimação teológico-eclesial.

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Com suas palavras, Paulo quer conseguir a adesão ao uso do véu por todas as mulheres nas igrejas, também em Corinto. Neste caso, o imaginá-rio acerca do véu, construído pela tradição cultural, atua como força de coesão e de manutenção do status instituído para as mulheres como uma clara e inconteste manifestação de pertença ao grupo cristão desta tradição paulina específica. A pertença pressupõe a observância de prescrições, normas e costumes válidos para este grupo neste con-texto. A sua não-adesão e observância, ao contrário, poderão conti-nuar causando conflitos e construir identidades de exclusão e divisão, sendo que estas pessoas, em algum momento, buscarão outros espa-ços (‘não-lugares’) nos quais poderão construir o ‘seu lugar’ para vi-ver o Evangelho do seu modo, construindo outros costumes... Infelizmente não sabemos qual e como foi a resposta das mulheres e dos grupos cristãos em Corinto às propostas de Paulo. O que sabe-mos é que a diversidade permaneceu sendo uma tônica constante nas comunidades cristãs no entorno do Mediterrâneo por mais alguns séculos, também porque havia outros grupos sob influência de outros(as) apóstolos(as), como Tiago, Pedro, João, Maria Madalena... Isto, po-rém, já é outra pesquisa!

Nota

1 Maiores informações e referências, veja em Ivoni Richter Reimer ( 2008, p.

43-67).

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283283 283283

Abstract: Investigating the use of hair and the veil in the imaginary

Jewish and Greco-Roman in the first century of the context of the letter Paulina 1Cor 11, 2-16, which involves problems of customs and traditions in the Christian community of Corinth.

Key words: hair, veil, imagery, social exclusion, domestic seclusion

KEILA MATOS

Doutoranda em Ciências da Religião na PUC-GO. Email: kcmatos@yahoo.com.br IVONI RICHTER REIMER

Teóloga. Doutora. Professora na PUC-GO, pastora luterana. Assessora de cursos bíblicos e membro- fundadora da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB).

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