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Uma interpretação dos ritos fúnebres da Assembleia de Deus

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Academic year: 2021

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Carlos Jose Jesus Freire de Sá

Uma interpretação dos ritos fúnebres

da Assembleia de Deus

Aluno do 8º semestre do curso de Sociologia e Política da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo-FESPSP e-mail: freire-as@bol.com.br.

Este artigo, meu Trabalho de Conclusão de Curso do Curso de Sociologia e Política da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo-FESPSP, foi orientado pela Profa. Dra. Sonia

Nussenzweig Hotimsky.

Resumo

A morte é um fenômeno, que como qualquer outro da vida social, desperta a imaginação do homem, em busca de sua compreensão. Assim, os grupos humanos buscam explicações que os ajudem se não a superá-la, ao menos a diminuir os efeitos dolorosos de sua existência. O que nos propomos a fazer nesse artigo é analisar, por meio da descrição das práticas e crenças

Palavras -Chave

Assembleia de Deus, morte, funeral, ritos e hierarquia.

ligadas ao funeral, à maneira pela qual os fiéis da Assembleia de Deus Ministério de Madureira em Osasco, constroem sua relação com a morte, e reproduzem por meio dos ritos, a estrutura hierárquica de sua instituição religiosa, mesmo em momentos em que a instabilidade da separação, resultante do falecimento de um membro da comunidade religiosa se torna uma realidade.

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“Para o homem religioso, a Natureza nunca é exclusivamente “natural”: está sempre carregada de um valor religioso” (ELIAS, 2001, p. 99).

1. Noção de morte: ritos e suas várias interpretações

Ao longo do tempo, a morte tem sido objeto de vários estudos, em várias áreas do conhecimento esse fenômeno tem sido analisado e interpretado de acordo com as ferramentas disponíveis no arcabouço metodológico de cada disciplina.

Ariès (1981) fez uma análise importante das mudanças comportamentais dos povos do Ocidente em relação à realidade da morte. Como historiador, apresentou essas mudanças em uma linha do tempo. Linha do tempo que privilegiou o passado em relação ao presente, isso no que se refere à morte e o como morrer. Em sua obra, Ariès (1981) faz varias menções sobre o modo “calmo” com que as pessoas morriam na Idade Média.

Embora não se possa negar a contribuição de sua obra para o entendimento, e aprofundamento dos estudos sobre a morte, ela acabou sendo alvo de muitas críticas. Norbert Elias o criticou, por exemplo, pela sua visão romantizada da morte em tempos passados. O que Elias salienta é que “morrer pode significar tormento e dor [e] antigamente as pessoas tinham menos possibilidades de aliviar o tormento” (ELIAS, 2001, p. 20). Na observação de Elias, o problema da obra de Ariés, estaria no modo parcial como esse último interpretava as literaturas usadas para construí-la.

No que tange a antropologia, em trabalho recente, Lihahe (2010) destaca a influencia da tradição durkheimiana, e particularmente de Hertz (1970), nos estudos contemporâneos sobre a morte. Ele também faz menção aos estudos do

antropólogo Cabral (1984) sobre os caminhos percorridos pela disciplina na investigação desse fenômeno. Segundo Cabral (1984), no século XIX, os estudos de James Frazer propunham que, tanto a noção de alma, como o surgimento da religião, teriam seus nexos causais nos estados contemplativos provocados pela morte em nossos antepassados (LIHAHE, 2010).

Ainda, de acordo com o mesmo autor, no século seguinte, as teorias evolucionistas de Frazer foram substituídas pelo nascimento do estrutural funcionalismo, funcionalismo no qual “a preocupação com a natureza simbólica dos rituais dá lugar a uma procura da função social dos ritos funerários como processos de restabelecimento da ordem social, posta em perigo pela ocorrência da morte” (CABRAL, 1984, p. 349-350 in LIHAHE, 2010, p.21).

Enquanto os grupos sociais, religiosos ou não, desenvolviam dentro de seu campo simbólico, mecanismos capazes de equilibrar seu corpo social, de maneira que o contato com a morte fosse enquadrado dentro do campo específico de suas possibilidades interpretativas, a antropologia, dentre outros aspectos do seu campo de estudos, também esteve preocupada em entender o modo no qual esses mecanismos acionados nos ritos funerários “neutralizavam”, ao menos em parte, os efeitos desoladores provocados pela experiência da morte.

A capacidade criadora da imaginação do ser humano permitiu que esse elaborasse ideias e conceitos, que amenizaram a realidade de sua finitude. De acordo com Norbert Elias (2001), a partir do momento em que o homem adquiriu consciência de sua limitação existencial, formulou fantasias na “tentativa de suprimir esse conhecimento indesejado e encobri-lo com noções mais satisfatórias” (ELIAS, 2001, p. 43).

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Supomos que como fruto da dinâmica interacional entre o homem e a morte, a criação de mitologias, crenças e ritos, além de ajudar a enfrentar o próprio fim, acabaram se transformando em elos entre os membros de cada sociedade, cultura e/ ou instituição religiosa.

O que a literatura referente à noção de morte nos mostra é que as ocorrências de morte nos seio dos agrupamentos humanos, orientaram-nos a construção de mecanismos ritualísticos, voltados a diminuir os efeitos de tristeza e horror provocados por ela. Em certa medida os ritos foram acompanhando o processo de desenvolvimento psíquico e tecnológico da humanidade. De acordo com Mauss (1999), a razão de ser de um rito só é achada quando “se lhe descobre o sentido, isto é, as noções que estão e estiveram na sua base, as crenças às quais corresponde”. Os sofrimentos experimentados na perda de seus entes queridos, juntamente com formulações de crenças sobrenaturais, que indicavam uma vida além-túmulo, estiveram presentes na criação desses ritos.

Estudos recentes, envolvendo a noção de morte dentro do campo específico da religião, trataram diretamente o rito funerário e sua operacionalidade no luto. Demonstrando a forma como no velório as relações ritualísticas da comunidade são postas em funcionamento em função do falecido.

As análises de Mapril (2009), referentes à morte em uma comunidade islâmica em Portugal, estiveram voltadas para a compreensão do modo “como a gestão da morte e do morrer revelam as dimensões rituais da produção de lugares em contextos transnacional” (MAPRIL, 2009, p. 219). A questão da morte foi tomada por Mapril (2009) como elemento acionador de contextos ritualísticos presentes no islamismo, que exigem o

traslado do corpo ao seu lugar de origem.

Discorrendo sobre a noção de morte no judaísmo, Zuchiwschi (2010) fez uma análise dos ritos funerários, discutindo “o valor das preces [...] e, sobretudo, como as palavras sagradas podem ser transformadas, para além do sentido primário que possuem, em importantes instrumentos no processo ritual post mortem” (ZUCHIWSCHI, 2010, p. 187). Embora tenha colocada a prece como ponto central do seu estudo, é só em função do falecido que a prece toma sentido e forma.

Outra pesquisa inserida nas análises antropológicas sobre a morte foi feita por Silva (2011). A autora analisou o ritual de enterro evangélico, com a finalidade de mostrar “que mais que um protocolo rígido de comportamentos pré-estabelecidos [...] o rito evangélico [...] levaria em conta principalmente interações e compartilhamentos de emoções que se expressam e se concretizam numa relação intima e complexa com a estrutura social maior” (SILVA, 2011, p. 3). A proposta desse artigo é o de contribuir para a compreensão do rito funerário evangélico, mostrando como as práticas e crenças são acionadas nas igrejas Assembleias de Deus ministério de Madureira em Osasco (ADMMO) como instrumento de conforto, bem como de reforço da fé e da estrutura hierárquica dessa instituição.

Cabe salientar que os hinos de conotação fúnebre – ritos orais - são entoados não só no velório, mas também em outros cultos realizados no interior da igreja. Assim, os vários sentidos, presentes nos cânticos direcionados a situações de separação, não se restringem aos períodos do velório, e transitam em diversos momentos onde a religiosidade dessa comunidade se expressa, funcionado como agentes tanto de conforto e unidade, como também de fortalecimento

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da estrutura hierárquica da igreja em outros contextos. Nesse sentido adotamos a noção de religiosidade formulada por Zuchiwschi. “O conceito de religiosidade e não simplesmente de religião [que] deve ser entendido como um complexo pragmático-relacional entre as múltiplas partes constitutivas dos preceitos religiosos” (ZUCHIWSCHI, 2010, p. 165).

Juntamente com as ferramentas teóricas que a antropologia me fornece, nesse trabalho também me valho de minha experiência acumulada como membro da ADMMO, e em algumas ocasiões como pastor, em exercício, dessa instituição religiosa que me forneceu o conhecimento referente aos seus mecanismos simbólicos e ritualísticos.

2. ADMMO: contextualizando um processo Com a finalidade de contextualizar o leitor com o nosso objeto de pesquisa, será feita nos parágrafos que se seguem uma descrição dos agentes e atores presentes nesse campo de atuação. No entanto, antes de nos voltarmos propriamente para os indivíduos que vivenciam essas experiências, entendemos que é necessário fazer, uma breve descrição do surgimento da igreja Assembleia de Deus Ministério de Madureira (ADMM), no Brasil.

A igreja evangélica Assembleia de Deus Ministério de Madureira, é fruto da difusão do pentecostalismo norte-americano, ocorrido no início do século XX. De acordo com Campos (2012),

[...] nesse período o campo religioso norte-americano estava carregado de forças centrífugas, e num curto período de três anos centenas de fiéis se transformaram em missionários pentecostais, que influenciados por Los Angeles se espalharam primeiro pelos Estados Unidos, depois para a

Europa, Ásia, América Latina e África. (CAMPOS, 2012, p.148)

O movimento pentecostal que chegou ao Brasil, como fruto dessa difusão, é descrito por Pinezi (2009), como sendo fruto da “quarta” corrente evangélica ocorrida na América Latina. A primeira ocorreu, na primeira metade do século XIX, a segunda, nos anos de 1850 “com o objetivo de implementar um campo missionário que levasse [a população] nativa à conversão” (PINEZI, 2009, p. 201) e a terceira veio como fruto do descontentamento cristão com o proselitismo missionário das igrejas protestantes históricas.

Segundo Pinezi (2009), o início do pentecostalismo ocorreu em uma Escola Bíblica de Topeka, nos Estados unidos. O pastor Charles Parhan, com base nos trechos bíblicos sobre o “Dia de Pentecoste”, concluiu que o batismo com o Espírito Santo, pessoa da Trindade capaz de realizar o processo de santificação e ratificar a conversão, era evidenciado através da glossolalia ou do falar em línguas estranhas (MENDONÇA, 1995 in PINEZE, 2009, p. 2001).

Absorvido nas experiências de Parham e seus discípulos, aos 36 anos de idade William Seymour iniciou um trabalho religioso, no ano de 1906, em Los Angeles, especificamente na “Azuza Street”, que, em uma analogia feita por Campos (2012), era uma caixa preta da qual começaram a sair gritos, convulsões, profecias, glossolalias, curas, milagres, prodígios e toda sorte de coisas.

Se nesse período o movimento pentecostal tomou expressão, por meio do evangelho apaixonado de Seymour, de forma concomitante outro movimento foi tomando expressão. As dissidências por questões teológicas começaram a fazer parte do ciclo do pentecostalismo norte-americano. Dentre esses dissidentes, William

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Durham (1873-1912), que por conflitos causados por divergências teológicas, entre ele e Seymour, organizou a North Avenue Mission na cidade de Chicago em 1907.

Entre os seguidores de Durham se encontravam Louis Francescon, fundador da igreja Congregação Cristã no Brasil em 1910, assim como os suecos Daniel Berger e Gunar Vingren que fundaram no Belém do Pará a igreja Missão da Fé Apostólica em 1911. Esta última teve seu nome alterado para Igreja Assembleia de Deus em 1918.

Campos (2012) traz alguns dados importantes sobre o divisionismo1 iniciado na

Assembleia de Deus em 1930, esse divisionismo fez nascer no Nordeste a Igreja de Cristo e, dois anos depois, também no Nordeste, a Igreja Adventista da Promessa. Os vários ministérios das Assembleias de Deus, no Brasil: Belém, Madureira, Santos, Ipiranga etc., - podem ser vistos como continuidades do mesmo processo divisionista apontado nesse estudo feito por ele.

Sendo uma filial das ADMM, a ADMMO foi fundada, no ano de 1948, no bairro de Presidente Altino (Osasco), como uma congregação da Assembleia de Deus Madureira do Brás (ADMMB). Em 1958, após uma década funcionando em imóveis alugados, construiu seu primeiro templo. Porém, só depois de oito anos (1964), conquistou a prerrogativa de um campo, deixando de ser mais uma congregação da ADMMB2.

3. Construção hierárquica de uma Igreja assembleiana

A hierarquia da ADMMO é construída em torno de princípios, que no arcabouço de crenças de seus fieis são derivados da vontade divina. A ideia de subordinação à figura de um

líder é entendida como um mecanismo divino que garante a segurança do grupo. Alguns trechos extraídos da bíblia são utilizados como elementos que fortalecem e cristalizam essas crenças. O princípio de hierarquização é entendido como reproduções modelares da dinâmica existente entre os crentes e os “seres divinos”, como nos revela o verso bíblico: “Quero porém, que saibais que Cristo é a cabeça de todo homem, o homem a cabeça da mulher, e Deus a cabeça de Cristo” (I Coríntios, cap, 11, v. 3).

Para os assembleianos3, o princípio

de hierarquia é um componente fundamental, tanto para a harmonia e equilíbrio da vida, como também do “cosmos”. A quebra dessa hierarquia pode causar danos irreparáveis para a vida da comunidade. Outros textos como: “Obedecei a vossos guias, sendo lhe submissos; porque velam por vossas almas como quem há de prestar contas dela” (Hebreus, cap, 13, v17) e “Não toqueis nos meus ungidos e não maltrateis os meus profetas” (Salmos, 105, v. 15), são utilizados nos cultos, como sinalizadores do status “sobrenatural”, em que se encontram as lideranças constituídas na ADMMO.

Em ordem decrescente encontram-se: pastores, evangelistas, presbíteros, diáconos, diaconisas e cooperadores. Todos esses são títulos de diferenciações hierárquicas do conjunto oficial de obreiros da ADMMO. Como em toda instituição hierarquizada, a regra é o membro de

status inferior obedecer aquele de status superior.

Porém, nesse caso, essas regras se tornam mais rígidas, pois na concepção assembleiana a “igreja” é uma instituição “divina” ela é o “corpo de cristo” na terra, e sendo assim não pode estar desordenada. As regras são validadas e acionadas, não apenas nos perímetro sagrados do templo, como em outros ambientes no qual a comunidade, por ventura possa se reunir esse padrão de

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hierarquia também é reiterado e reforçado. A distribuição sexual das funções sagradas coloca as irmãs em um estado de submissão constante a figura dos fieis do sexo masculino, reproduzindo relações tradicionais de gênero cuja análise caberia ser aprofundada. Na ADMMO, alguns departamentos funcionam com base nessa distribuição. Porém o que prevalece é a posição em que o fiel se encontra dentro do quadro de títulos hierárquicos da igreja. O dirigente local de uma igreja da ADMMO, que tanto pode ser um pastor, evangelista, missionário, diácono ou cooperador, é sempre um crente do sexo masculino, e embora algumas irmãs possam receber o título de pastor, esse título é sempre de caráter “simbólico” e nunca funcional. O centro das decisões e orientações, espirituais e materiais, gravitam em torno da figura do pastor. Para os assembleianos, ele é o “ungido de Deus”.

4. Culto: Liturgia e ritualização da fé

Os cultos da ADMMO se caracterizam por meio de um ritual litúrgico, composto por diversas etapas, que servem tanto para organizar, como padronizar as ações dos fieis nos perímetros do templo.

Orações, cânticos (hinos evangélicos clássicos e avulsos), testemunhos, entregas de contribuições e pregações, onde muitas vezes ocorrem manifestações dos dons espirituais e através de cristãos diferentes em cada manifestação (JUNIOR e MACÊDO, 2011, p. 157).

A sacralidade do templo coloca os fieis em um constante estado de temor e reverência, é impensável para esses crentes iniciar o período de adoração sem que as atitudes divinas se lhes torne favoráveis. Nesse sentido, a oração se torna o canal por meio do qual o adorador invoca os favores

divinos. Na ordem do culto, ela é a primeira. Por meio dela acredita-se “mover a mão” de Deus em sentido positivo aos membros da comunidade. Para o crente da ADMMO, o momento da oração tem um duplo caráter, pois ela é mecanismo de súplica e de devoção. Por meio dela confessam-se os pecados à espera do “perdão”, como também se agradece pelas “benções” passadas, presentes e futuras. Como sugere Mauss (1999), a prece é antes de tudo um meio de agir sobre os seres sagrados; estes são influenciados por ela, é nestes que ela suscita modificações.

A oração marca três momentos do culto da ADMMO, ela é feita no início do culto, antes da pregação da palavra e no término do mesmo. A forma que assume esses períodos de oração deriva de movimentos crescentes na aproximação do fiel à “pessoa” de Deus. Nas ADMMO elas são fruto da improvisação, e podem ser realizadas por qualquer membro da comunidade, seja ele do sexo masculino e/ou feminino, desde que seja chamado pelo dirigente da igreja. Ao comando do oficiante, toda igreja é convocada a ficar de pé, e após o convite do mesmo, que em geral usa a expressão: “igreja vamos orar e/ou oremos”, a igreja levanta suas mãos aos céus em sinal de “súplica” e acompanha o oficiante, que em geral faz uso de um microfone, na realização da mesma. Do modo que é iniciada, ela também se encerra, ou seja, ao dizer o “amém”, o oficiante sinaliza o termino da mesma.

A oração inicial é feita com a intenção de agradar a Deus, pois Ele precisa aceitar o “sacrifício” feito pelos fieis à sua pessoa. De acordo com Mauss “o sacrifício é um ato religioso que só pode ser realizado num ambiente religioso e por intermédio de agentes religiosos” (MAUSS, 1999, p. 156). Para os fieis da ADMMO, que são conhecidos e fazem referências a si mesmos como crentes assembleianos, o templo é um

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lugar sagrado, pois foi consagrado para Deus no momento de sua construção.

Para o cristão assembleiano, essa forma de sacrifício não é feito por intermédio de objetos ou animais, e sim uma entrega total de sua pessoa aos serviços divinos, pelo qual ele se torna sacrificante e sacrifício, as duas funções se unem em um único ser. Seus “pensamentos e atos” se movimentam em um único sentido, a passagem da esfera profana a sagrada foi realizada, agora ele também é sagrado.

A referência a textos bíblicos que indicam esse tipo diferenciado de sacrifício é feita de forma constante e exaustiva nos cultos da ADMMO. Um dos textos mais lidos é um do Apostolo Paulo que diz: “Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional” (ROMANOS, Cap, 12, v. 1). A diferença no entendimento entre a noção de sacrifico formulada por Mauss e a noção paulina4,

encontra-se no caráter da vítima a ser oferecida aos deuses. Se para Mauss “o sacrifício é um ato religioso que, pela consagração de uma vítima, modifica o estado moral da pessoa que o realiza ou de certos objetos, pelos quais se interessa” (MAUSS, 1999, p.151), para os assembleianos é esse estado moral modificado que é oferecido em sacrifício no momento do culto.

Após esse prelúdio intermediado pela oração, o culto segue em sua liturgia. São cantados hinos, que evocam, agradecem e suplicam a presença e aprovação divina dentro do ambiente onde o culto é realizado. Após o período devocional, é facultado aos fieis assembleianos o direito de testemunhar e agradecer as “bênçãos” recebidas.

Dentro de uma sequência pré-estabelecida, o culto segue em sua dinâmica. Embora obedeça

a um padrão litúrgico linear – oração, cânticos, testemunhos, pregação –, esse formalismo não impede que ocorra manifestações espontâneas de fenômenos, que, dentro do campo simbólico das crenças pentecostais, são entendidas como um sinal da presença de Deus. A ocorrência de manifestações, como as ocorridas em Azuza Street no inicio do século XX e citadas por Campos (2012) – profecias, glossolalias, curas, milagres, prodígios –, são recorrentes na dinâmica do culto da ADMMO. Na ótica dos assembleianos são interpretadas como manifestações genuínas do “poder” de Deus. Em certa medida, essas manifestações funcionam como um movimento centrípeto, que também une e fortalece a crença do grupo.

Como indicado anteriormente, a oração é marcada por três momentos distintos. Assim como o primeiro, que já foi descrito, os outros períodos, no qual a oração é realizada, também contem suas especificidades. Talvez elas possam servir como objeto de estudos em outro momento. O que nos propomos a partir de agora é analisar os hinos de conotação fúnebre, contidos na ADMMO, por meio do rito funerário. Para isso faremos uma descrição do velório evangélico dentro da dinâmica ritualística da própria instituição.

Tentaremos, como foi proposto, apreender como os mecanismos de conforto e reforço das crenças, da organização e da estrutura hierárquica da ADMMO, são acionados, dentro do círculo religioso assembeliano, por meio dos hinos fúnebres postos em ação no velório. Como parte constitutiva dos serviços religiosos, os hinos desempenham a função de ritos. Tomando de empréstimo, a análise da prece como rito, formulada por Mauss (1999), os louvores e cânticos podem ser entendidos como ritos orais. Pois assim como a prece, eles também

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são atitudes e atos, assumidos e realizados em vista das coisas sagradas. São preces que, “se dirigem a uma divindade e a influencia; consiste em movimentos materiais dos quais se esperam resultados” (MAUSS, 1999, p. 230).

4.1 Assembleia de Deus: Hinos funerários e sua contextualização no velório

Com relação ao velório evangélico na ADMMO, alguns pontos de diferenciação no que tange a causa-morte de seus fiéis devem ser levados em consideração. A sinalização das diferentes circunstâncias em que a morte ocorre serve para orientar a imaginação dos vivos em relação ao destino do falecido. Em circunstâncias específicas a morte pode ser interpretada como um ato punitivo de Deus contra a pessoa do crente “rebelde”. Para os assembleianos a noção de rebeldia é um indicativo da situação de marginalidade em que se encontra o fiel, dentro do contexto maior da ADMMO.

A posição em que o crente se coloca em relação às prescrições dogmatizadas pela religião possibilita a identificação do seu destino post-mortem, assim, “estar” rebelde, significa viver na

contramão do arcabouço de crenças práticas e ritos aceitos pela coletividade religiosa. Segundo Durkheim, “uma religião é um sistema solidário de crenças e de práticas relativas a coisas sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e práticas que reúnem numa mesma comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a elas aderem.” (DURKHEIM, 2000, p. 32). Durkheim mostra, que a ideia de religião está amalgamada com a ideia de igreja, o que revela o caráter coletivo dessa última. No caso do cristão que falece em estado de rebeldia, será a coletividade e não ele, a descrever a sua situação no “outro” lado.

O espaço de crença desses fiéis é marcado

pela ambiguidade, na qual a ideia de salvação é construída. Nesse sentido a “salvação”, nunca é uma certeza, está sempre envolta por uma áurea de dúvidas. As relações que são construídas e orientadas pela rigidez dessas prescrições, requerem uma atitude de “vigilância” permanente por parte dos assembleianos. Essa atitude é provocada pelo temor constante de quebrar essas regras. Para eles, a obediência acaba se tornando a melhor solução.

4.2 Circunstâncias da Morte

Caso o fator causador da morte seja uma enfermidade, na maioria dos casos é de conhecimento do grupo. A expectativa da passagem, morte, é algo explícito para os membros da igreja local. Em situações como esta, em que a morte ocorre, existe uma preparação psicológica prévia das reponsabilidades e papéis que serão desempenhados no rito fúnebre. Os membros que compõe a comunidade religiosa sabem das implicâncias e responsabilidades da morte de um “irmão (a)”. Tanto é que, no processo de enfermidade a igreja procura, por meio de visitas e de orações confortar o enfermo. Embora toda a congregação seja livre para fazer essas visitas, para o pastor ela se constitui em uma obrigação, pois o mesmo é visto como uma espécie de sacerdote, investido de legitimidade e poderes “místicos” que podem ser usados como instrumento de “cura” e de “restauração” do enfermo.

De acordo com Mauss (1999), o sacerdote:

[...] está marcado com um selo divino. Traz o nome, o título ou o trajo do seu deus; é seu ministro, sua encarnação mesma, ou ao menos o depositário de seu poder [...] está no limiar do mundo sagrado e do profano e os representa simultaneamente. Eles se unem nele (MAUSS, 1999, p. 160).

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O valor simbólico atribuído, por Mauss (1999), a figura do sacerdote também pode ser entendido como uma atribuição do fiel ao pastor de sua igreja. Nesse sentido ser visitado por ele é ser colocado em contato direto com o Ser “divino” que nele está representado.

Nessas visitas, são cantados hinos e feitas orações na tentativa de restabelecer a saúde do doente. Dentro desse contexto, a aplicação de ritos orais funciona como agentes de conforto, não só do enfermo, mas de todos os membros da comunidade presentes. Os hinos que são cantados nessas ocasiões evocam ao doente os benefícios da fidelidade aos preceitos religiosos em vida, como nos mostra a estrofe desse hino:

Embora às vezes o crente As dores sofra da cruz, Gozo terá permanente, Quando no céu vir Jesus De glória coroado No trono divinal,

Por anjos sempre louvado, Num coro celestial.

(CPAD, Hino 204, 3ª estrofe).

Como citado no começo desse trabalho, os hinos de conotação fúnebre transitam para além da esfera do velório. Na estrofe acima citada, o dualismo entre o sofrimento e a noção de “gozo”, constrói e reforça as crenças do fiel em seus últimos momentos, junto a sua comunidade de pertencimento. Por outro lado é reforçado naqueles que visitam a ciência de que um dia se encontrará em situação semelhante a do doente. As referências ao céu, anjos e outras coisas relacionadas a um mundo sagrado, são sempre reiteradas nessas ocasiões.

Como bem salientou Silva (2010), “o sistema cosmológico evangélico apresenta a morte como uma dupla quebra de comunicação com o defunto” (SILVA, 2010, p. 7), em outras

palavras, além da morte biológica encerrar as interações interpessoais do falecido, as crenças religiosas dos assembleianos proíbe qualquer tipo de comunicação com o morto. Sendo assim, o sentido das visitas vai além do conforto concedido ao doente, elas também são uma forma de antecipar a despedida entre eles e sua comunidade. Quando o fator causador da morte é um acidente, a única coisa que muda é a ausência de um conhecimento prévio sobre fatores, como doenças, responsáveis pela “partida do fiel”. Quando a morte é inesperada, priva a comunidade desses momentos de despedida. 4.3 Como a morte é interpretada

Existem dois modos de se interpretar a morte na igreja ADMMO, uma é através da vontade de Deus. Aqui a partida é interpretada como uma passagem harmoniosa, mesmo que o sofrimento da enfermidade tenha estado presente. A morte é entendida como um estado no qual se cruzam o momento de “passagem” do crente e a vontade de Deus. Em outras palavras o fiel já estava preparado para entrar no Céu, daí a expressão entre eles: “Deus preparou e levou”.

Porém, cabe a nós entendermos como essa preparação ocorre. A noção de morte, como dito anteriormente, não é lançada para longe dos bastidores da vida do fiel, a todo o momento ele é lembrado de que um dia também irá “morrer”. Paulatinamente, a noção de morte é introduzida dentro do campo interpretativo do fiel. Por meio da transmissão dos conteúdos orais – pregações, estudos, hinos – e escritos ele é introduzido na mística mortuária contida nas crenças da ADMMO. Este outro fragmento de um hino, nos ajuda a exemplificar nossas proposições. Ele nos permite olhar mais de perto, o modo como os cânticos influenciam a forma pela qual o assembleiano concebe a vida e a morte,

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como também a maneira que suas emoções são condicionadas por esta experiência.

Nada aqui é permanente, Tudo tem que terminar, Mas olhamos para frente, Para o nosso eterno lar. Os remidos cá enterram Seus amados ao morrer, Mas um dia, sim, esperam Que no céu os hão de ver. (CPAD, Hino 251, 2ª e 3ª estrofe).

Aqui a dualidade entre transitoriedade e permanência é colocada frente a frente, o caráter mórbido da morte é absorvido no momento de “passagem”. Dois espaços sobrepostos ficam nítidos nesse cântico, o “aqui” e o “lá”, que podem ser entendidos como término ou descontinuidade biológica e continuidade espiritual. Como sugere Silva (2010), “existe a defesa constante de uma cosmologia que prevê espaços separados de atuação para vivos e para os mortos” (SILVA, 2010, p. 7), que é explicitada neste e em outros hinos.

A outra maneira, na qual os assembleianos interpretam a morte de um de seus “irmãos de fé”, é vê-la como um castigo pela desobediência às prescrições impostas por Deus ao “crente”. Essas prescrições podem estar contidas na própria bíblia, como também podem ser transmitidas de forma sobrenatural – profecias, revelações, sonhos. Aqui é o pecado não confessado, ou a teimosia em não se submeter a um “chamado” divino para um papel específico – ser um missionário, pregador, pastor etc. – que leva à morte. Nota-se que um forte sentimento de “temor” permeia as relações desses fiéis em seu contato, com Deus, o mundo e as coisas. Como afirma Mauss (1999), esse temor é intrínseco à religiosidade, pois “a consciência religiosa, mesmo a de nossos contemporâneos, nunca separou exatamente a infração das regras

divinas e suas consequências materiais no corpo, na situação do culpável, em seu futuro no outro mundo” (MAUSS, 1999, p. 190).

4.4 O momento em que a morte ocorre:

Em ambos os casos, quando ocorre à morte – prevista ou acidental – uma rede de transmissão de noticia é mobilizada. Depois dos familiares; o pastor passa a ser a pessoa mais procurada. Em geral ele recebe varias ligações informando a morte do “fiel”. Nessa rede está incluída: família do falecido, obreiros que auxiliam o pastor, juntamente com os fieis que mantêm uma relação de maior proximidade com este ultimo. Em suma, o ato de avisar o pastor, ao mesmo tempo em que é necessário para a organização do culto fúnebre, também serve para demonstrar o apoio e/ou apreço que essas pessoas tinham pelo falecido, como também é uma forma de se colocar a disposição do pastor e da igreja para eventuais serviços que envolvam o funeral.

4.5 O velório e suas implicações

Após a família, o pastor e seus obreiros (auxiliares) devem ser os primeiros a chegar ao local no qual o corpo será velado. Nota-se que, nesse caso, o termo velado, refere-se apenas ao local e a alguns ritos que são específicos no funeral do evangélico que pertencia a Igreja Assembleia de Deus. O uso de Velas, libações ou outros objetos, como cruz ou rosários não estão presentes nesse ritual. Basicamente os ritos orais acionados no velório incluem cânticos – hinos – orações e a pregação e/ou discurso bíblico. Geralmente, a dinâmica do culto que ali será realizado é organizada em função do horário em que o corpo será enterrado, um espaço de tempo de mais ou menos meia hora é suficiente para que o culto – cânticos, pequenos discursos e a

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pregação da bíblia – seja executado.

Na maior parte dos casos, a “igreja” já sabe com certa antecedência o horário em que o corpo chegará ao cemitério. Em decorrência disso a postura dos “crentes”, que para ali se dirigirão, deve ser coerente com essa ocasião. Existem regras que não são declaradas às pessoas que não fazem parte do grupo, mas que, no entanto estão claras para os “fieis” de uma mesma igreja. Essa postura envolve os hinos que serão cantados, a palavra que será pregada, enfim uma sequência de elementos ritualísticos que estão presentes nesse momento importante, não só para a família, mas também para a comunidade como um todo. Em geral o pastor comparece a esses eventos usando terno e gravata, no entanto essa não é uma regra rígida. Isso também se aplica para o restante da comunidade.

A mensagem contida nos hinos é carregada de um profundo simbolismo, que pontua para a comunidade, a proximidade do fiel a “pessoa” Divina, como também reforça, nela, a crença em um mundo “ideal”, onde haverá a possibilidade de fruição de uma existência melhor. O hino abaixo contém em seus versos elementos que mistificam positivamente a morte.

1 Junto ao trono de Deus preparado

Há, cristão, um lugar para ti; Há perfumes, há gozo exaltado, Há delícias profusas ali;

Sim, ali; sim, ali,

De Seus anjos fiéis rodeado, Numa esfera de glória e de luz, Junto a Deus nos espera Jesus.

2 Os encantos da terra não podem

Dar idéia do gozo dali;

Se na terra os prazeres acodem, São prazeres que acabam-se aqui; Mas ali, mas ali

As venturas eterna concorrem Co'a existência perpétua da luz, A tornar-nos felizes com Jesus.

3 Conservemos em nossa lembrança,

As riquezas do lindo país,

E guardemos conosco a esperança, De uma vida melhor, mais feliz; Pois dali, pois dali

Uma voz verdadeira não cansa De oferecer-nos do reino da luz, O amor protetor de Jesus.

4 Se quisermos gozar da ventura

Que no belo país haverá, É somente pedir de alma pura, Que de graça Jesus nos dará. Pois dali, pois dali

Todo cheio de amor, de ternura, Desse amor que mostrou-nos na cruz, Nos escuta, nos ouve Jesus.

(CPAD, Hino 202).

À medida que membros da comunidade vão chegando ao local em que o corpo está sendo velado, o primeiro ato é o de compartilhar da dor dos parentes enlutados. São dirigidas palavras de condolências à família do falecido, e na sequencia aproximam-se do corpo. Nesse sentido o valor das “condolências” não pode ser buscado apenas nas palavras que são dirigidas aos familiares, e sim pelo simbolismo dos gestos nela contido. Como parte dos ritos presentes no velório esse ato de compartilhar da dor dos parentes enlutados libera o acesso ao corpo do falecido. É por meio dele que o fiel se sente autorizado a compartilhar do processo de ruptura e integração provocado pela morte. Ruptura em relação ao falecido, integração no sentido das forças que evocam e reúnem toda a comunidade em um mesmo evento.

Essa sequencia de atos se dá quase de forma automática, isso pelo fato da família ficar a maior parte do tempo ao lado do “ente que partiu”. Nesse sentido o processo ritual de compartilhar da tristeza do enlutado por meio das “condolências” cumpre o seu papel. Existe uma espécie de uniformidade nesse ato, pois todos que para ali se dirigem se vêem numa espécie de dever

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em realizá-lo. Para Elias (2001), os “rituais de morte podem provocar nos crentes sentimentos de que as pessoas estão pessoalmente preocupadas com eles, o que é sem dúvida a função real desses rituais” (ELIAS, 2001, p. 36).

Antes do culto as pessoas ali presentes, apos olhar a face do falecido se reúnem em grupos de afinidade a fim de fazer pequenas reflexões e comentários a respeito do morto e outros assunto, que nem sempre se relacionam com a finitude da vida. De acordo com Silva (2011):

O hábito de avaliar a face do morto imprime ao momento de chegada do corpo uma dose maior de ansiedade. Reforça ainda mais sua emocionalidade. Afinal, a face do morto pode revelar dados morais da trajetória cristã daquela pessoa e confirmar seu destino póstumo. Ao encontrar a “face feliz”, imediatamente, certa tranquilidade toma conta dos enlutados. É a confirmação da abrangência dos estatutos cosmológicos que preveem a vida eterna no paraíso. (SILVA, 2011, p. 6)

Um dado importante se encontra no número de pessoas que se dirigem ao funeral. Ele é um indício do prestígio social do falecido no interior da comunidade religiosa a qual pertence. É quase certo que o velório de um fiel “carismático” reúna mais assembleianos, que uma pessoa que não seja portadora dessa espécie de prestígio. A posição e/ou papel social do fiel em vida, dentro do seu circulo religioso, também influenciará nessa contabilidade. No caso do falecimento de um pastor, um pregador “renomado”, um cantor, um “profeta” etc. a circulação de pessoas no local sempre é expressiva. Nesses casos, podem ocorrer divergências em relação ao local no qual o corpo será velado. Se o falecido for o pastor presidente da igreja, seu corpo é velado na igreja matriz, fator que promove a exacerbação da circulação de

pessoas no local. A morte nesse caso se torna um evento social de maior envergadura.

O pastor só começa o culto quando o número de pessoas é suficiente. Não que exista um numero prescrito de “fiéis” para que o culto seja iniciado. A questão aqui se refere ao vinculo de irmandade existente no grupo. As informações referentes aos motivos – trabalho, viagens, enfermidades etc. – que impedem a ida de alguns irmãos ao velório são quase sempre repassadas aos presentes – não ir ao velório sem motivo “justo”, pode ser interpretado como descaso pelo falecido e sua família.

A cabeceira do caixão fica reservada para o pastor e seus auxiliares (obreiros), enquanto que a família fica ao redor, literalmente do lado do caixão, as outras pessoas presentes se esforçam para ficar mais próximo do mesmo. Caso o número de obreiros auxiliares do pastor seja muito grande, ao seu lado permanecem somente aqueles mais próximos de sua posição hierárquica. Esse fato reforça e reitera a estrutura hierárquica da ADMMO. Na realidade a estrutura acaba sendo deslocada para as dependências do cemitério.

A dinâmica ritualística que norteia o culto fúnebre pode ser encarada como uma reprodução e ao mesmo tempo extensão do culto na igreja propriamente dita – porém a conotação do culto no velório é diferente em essência daquele realizado na “casa de Deus”. Na igreja, a alegria, o agradecimento e a esperança das preces ouvidas por Deus e pela sua presença é a motivação central. Já no velório o inverso é que é o verdadeiro, pois a tristeza, a reflexão e a certeza da finitude é o que marca a dinâmica ritual do culto. Embora a intenção na escolha dos hinos a serem cantados seja a de promover o conforto; o conteúdo de carga emocional negativa que

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permeia esse momento não é totalmente anulado.

[...] o enterro nunca é vivido como ocasião festiva. Logicamente há incongruência entre o que está sendo falado e o que está sendo praticado. Afinal a morte é desoladora e todas as explicações utilizadas pelos sistemas representativos são tentativas de lidar com seus efeitos. (RODRIGUES, 1983, p.41 in SILVA, 2011, p. 10)

À semelhança do culto na igreja, no velório ele sempre é iniciado por uma oração que o precede. A oração sempre é realizada por um fiel escolhido diretamente pelo pastor. Em geral o oficiante da oração é um dos obreiros que o ladeiam, e são sempre do sexo masculino. Em certo sentido ele não é escolhido pelo mecanismo da improvisação, pois o pastor tem no exercício de suas funções realizadas nos cultos feitos na igreja, o conhecimento dos obreiros que tem maior conhecimento da bíblia, eloquência e comedimento nos momentos de se expressarem diante da congregação religiosa. Se o obreiro que está ao seu lado não tem esse requisito, certamente será ele quem fará a oração.

Nesse sentido existe uma gradação do prestígio entre obreiros do mesmo cargo, pois embora seja pontuado para a igreja no momento das escolhas para a oficialização de certos ritos – como orar, cantar e pregar – o lugar que se ocupa dentro da estrutura geral, a escolha “daquele” e não “desse” obreiro pelo pastor, é um sinal indicativo de sua relevância, perante não só o pastor, mas também do grupo.

Após a oração, o pastor, que é o ministrante oficial, abre espaço para o cântico de alguns hinos, geralmente três. A escolha do cantor é sempre orientada por um conhecimento prévio do pastor, no que diz respeito, a posição dentro da estrutura da igreja, como as aptidões musicais de

quem vai louvar. Os hinos, quase sempre, falam da passagem, ou seja, fazem menção da finitude humana, como também das exigências impostas por Deus àqueles que pretendem morar no Céu.

1 No céu não entra pecado Fadiga, tristeza, nem dor; Não há coração quebrantado, Pois todos são cheios de amor, As nuvens da vida terrestre Não podem a glória ofuscar Do reino de gozo celeste, Que Deus quis pra mim preparar! Coro

Irei eu p'ra linda cidade, Jesus me dará um lugar, Co'os crentes de todas Idades, A Deus hei de sempre louvar. Do céu tenho muitas saudades, Das glórias que lá hei de ver; Oh! Que gozo vou ter, Quando eu vir meu Senhor, Rodeado de grande esplendor.

(CPAD, Hino 422, 1ª estrofe e coro).

As regras da fé se encontram implícitas logo na primeira linha do hino. O “pecado”, que na cosmologia assembleiana, é qualquer ato de desobediência à vontade divina, é materializado nas palavras, atitudes e ações, que vão na contramão dessa vontade. Nesse sentido o hino reforça ainda mais o conjunto de crenças dessa comunidade, pois a não observação dessas normas significa incompletude da promessa, ou seja, se torna impossível ver as “glorias do céu”.

Algumas vezes o pastor envia um auxiliar para representá-lo, caso algum imprevisto o impeça de realizar o culto fúnebre. Nesse caso não é qualquer auxiliar. Em geral é o segundo dirigente, o obreiro designado a realizar essa tarefa. Caso esse também não possa comparecer, segue-se uma escala, de escolha, decrescente na ordem dos obreiros oficializados para substituir a função pastoral dentro da igreja local.

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Após os cânticos, é aberta a oportunidade para que pequenas mensagens (saudações) sejam dirigidas aos presentes – O culto é sempre realizado para os presentes, para os vivos, e nunca para o morto, pois “ele” não está mais lá. Está em outro lugar, geralmente “no Céu”. Nesse sentido as chaves interpretativas no que se refere à idealização da posição do morto em relação à comunidade difere, se comparado entre as noções islâmicas e judaicas do mesmo. De acordo com José Zuchiwschi (2010):

O costume judaico de reverenciar os mortos por meio de preces, orações além do cumprimento de outros comandos divinos [...] têm como objetivo proporcionar à alma do falecido méritos que a façam ascender nos degraus da santidade espiritual. (ZUCHIWSCHI, 2010, p. 170)

Algo parecido ocorre no funeral islâmico. Segundo José Mapril, (2009), dentro da cosmologia islâmica, as orações e invocações que tragam benefícios pós mortem ao falecido é

algo recorrente nessa religião. A ideia de alterar o destino do falecido é uma possibilidade no campo simbólico da comunidade islâmica e judaica. Para os judeus e muçulmanos essa realidade é um devir, uma construção em movimento, que pode ser “alterada” em decorrência das súplicas e preces da comunidade. Assim, parte do sentido de comunhão entre os fiéis destas religiões, que se dá por ocasião dos seus respectivos ritos funerários, advém da cooperação da coletividade em torno deste objetivo de auxiliar na ascensão da alma do falecido. Para os evangélicos, por outro lado, essa possibilidade se exaure com a “chegada” da morte.

Momentos antes de encerrar o culto, o pastor faz a pregação oficial e/ou convida um de seus obreiros (auxiliares) a fazê-la. Em geral

esses obreiros são escolhidos pelo mesmo critério citado no momento da oração inicial, ou seja, são do sexo masculino e em ordem decrescente na hierarquia, estão mais próximos ao pastor. No velório, a pregação tem várias conotações. Em geral os versículos bíblicos utilizados na pregação são selecionados a priori. E quando a pessoa escolhida para pregar inicia sua mensagem, aparecem, na maior parte das vezes, conotações e ou intensões que podem ser divididas em três: mensagens de conforto, exortativa e/ou evangelística. A mensagem de conforto ressalta as qualidades espirituais positivas, observadas no histórico da vida do falecido. Esta tem por função diminuir o sofrimento da família e dos fiéis, já que o morto foi para um “bom lugar”. A mensagem exortativa consiste em um alerta direto referente aos perigos do não cumprimento dos mandamentos divinos, pois a finitude e brevidade da vida estão evidenciadas por meio do corpo que repousa inerte no caixão. A mensagem evangelística busca convencer o “pecador” (não evangélico), a aceitar a fé cristã, e como consequência dessa conversão ter garantida a salvação da “alma” e um lugar no céu.

Ao final da pregação, outra oração é feita. As orações tem, quase sempre, um caráter confortante. Ao final desse cerimonial o morto é liberado por alguns minutos, pelo pastor, afim de que parentes e amigos o contemplem mais uma vez. Digo mais uma vez, pois em alguns casos a tampa do caixão é retirada a pedido da família antes que seja depositado na sepultura e recoberto com terra pelos coveiros.

4.6 Último adeus: o sepultamento e encerramento de um ciclo ritual

Após o culto, o caixão é levado em direção à última morada terrestre do “fiel” que partiu. O pastor, familiares e obreiros são os primeiros

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a pegarem nas alças do caixão, assim auxiliando o transporte do falecido à cova. Nem sempre o caixão é carregado pela comunidade religiosa local, em alguns casos o coveiro transporta o mesmo em uma espécie de “carrinho” feito para esse fim.

A caminhada se dá, de forma silenciosa, pois tratar de assunto do cotidiano pode ser interpretado com um desrespeito. Também, silenciosa, é a forma na qual a figura do pastor é solicitada nesse momento. Ele precisa chegar, mesmo que não seja antes, ao menos ao mesmo tempo em que o corpo ao local da sepultura. A comunidade o enxerga, como um guia, seu líder espiritual terreno. Esse fato revela o sentido da organização hierárquica que se expressa nas práticas e nos ritos da ADMMO, a referência à representatividade divina, na pessoa do dirigente da congregação é algo que se amalgama às noções de crença desses fiéis.

Ao chegarem ao “endereço” no qual o corpo será depositado a cova já se encontra aberta, e quando a maioria dos familiares está presente, o pastor novamente convoca os fiéis a cantarem mais alguns hinos, e, caso seja o desejo dos familiares, o caixão é reaberto mais uma vez, para que o rito da despedida seja enfim terminado. Após os cânticos, o caixão é baixado, e enquanto ele vai sendo coberto por pás de terra; o pastor e/ou obreiro escalado para oficializar o culto fúnebre recita alguns versículos bíblicos e assim o velório é encerrado.

5. Considerações finais

Ao descrever os ritos funerários acionados no velório da Igreja evangélica Assembleia de Deus Ministério de Madureira em Osasco (ADMMO), procuramos analisar o simbolismo contido no culto fúnebre.

Vimos que o fenômeno da morte, ao invés de ser superado pelo seu esquecimento é reiterado a todo o momento no campo de crenças e valores desses fiéis. À medida que a morte é interpretada como passagem para a vida eterna, a antecipação da passagem é sinalizada em diversos espaços litúrgicos, contribuindo para a consolidação da religiosidade dos fiéis. O que não significa que os seus efeitos temerosos e entristecedores não sejam sentidos, mas sim diminuídos em sua intensidade.

Demonstramos como ritos orais - orações, pregação e cânticos - são elementos que transitam dentro e fora do contexto do ritual funerário, ajudando não só a fortalecer e confortar a comunidade no momento do velório, mas também transportam todo um conjunto de normas e regras que compõe a estrutura hierárquica das ADMMO para além da sacralidade do templo. Assim, mesmo em um contexto que provoca a exacerbação das emoções, essa estrutura se conserva e se reproduz.

Esperamos que essa singela reflexão, sirva de ponto de partida para outros questionamentos referentes à morte e suas implicações no contexto religioso de outros grupos.

Notas:

1 Divisionismo é um termo cunhado por Campos (2012),

para explicar as situações de ruptura e criações de igrejas independentes a partir de uma matriz anterior.

2 Vide http://www.adosasco.org.br

3 Assembleiano é uma expressão cunhada pelos cristãos

protestantes evangélicos brasileiros, como forma de identificar os fies pertencentes ao circulo das igrejas Assembleias de Deus.

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o apostolo Paulo diferenciava as formas de sacríficos no judaísmo e no cristianismo de seu período. Na época de Paulo, era comum aos sacerdotes judeus oferecerem sacrifícios de animais como forma de culto a Deus, a proposta de Paulo para os cristãos era: ao invés deles sacrificarem animais, seria mais recomendável viver de forma condizente aos preceitos impostos pelo cristianismo.

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ELIAS, Norbert. A Solidão dos moribundos, seguido de envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Jorge

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Referências

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