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O outro que se lê: “O espelho” de G. Rosa

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O outro que se lê:

“O espelho” de G. Rosa

Marcelo Jacques de Moraes Universidade Federal do Rio de Janeiro

uem é o outro que se lê quando se lê? Para tentar, não responder a essa questão, mas reformulá-la na confluên-cia dos domínios da psicanálise e da literatura, farei aqui algumas observações sobre o conto “O espelho”, uma das Primeiras estórias de Guimarães Rosa. A fim de assegurar a compreensão de certos pressupostos de tal proposta de leitura, discutirei brevemente alguns aspectos das relações entre a psicanálise e a linguagem.

Por maior que seja a resistência que certos domínios do conhecimento parecem lhe opor neste início de milênio, parece-me que a busca do novo e da alteridade permanece ainda como o horizonte de valores que orienta as práticas culturais do Ocidente. Sabemos bem o quanto devemos à modernidade essa nossa cultura da imaginação, que, como bem lembra Gerd Bornheim,1 foi

intensamente provocada pela descoberta do outro num mundo em que as geografias de interação física e subjetiva foram se tornando cada vez mais permeáveis. Mas a modernidade também inventou, em contrapartida, a interioridade como refúgio, interioridade hipertrofiada que se oferecia como resposta consistente a um mundo cada vez mais inconsistente, de que Deus, com toda a sua solidez, se retirava aos poucos – Deus, este Outro absoluto do Ocidente medieval, supremo garante ao mesmo tempo das coisas

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da natureza, da pertença de cada indivíduo à sociedade dos homens, e de sua eternidade.

Creio que a consolidação progressiva no pensamento ocidental de um sujeito monádico, voltado sobre si mesmo, não pode ser compreendida fora desse contexto. Ao desejo de apreender um universo que se infinitizava, materializado por uma alteridade que parecia sempre lhe escapar, contrapunha-se, pois, um sujeito reflexivo, que buscava em sua mente respostas que o mundo exterior lhe negava. Nesse sentido, o passo dado por Descartes, sobre o qual se assentou a ciência moderna, foi fundamental. Como diz Alexandre Koyré, Descartes inovou ao decretar que

para conhecer o real, é preciso começar fechando os olhos, tapando os ouvidos, renunciando ao tato; é preciso, ao contrário, que nos voltemos para nós mesmos e busquemos em nosso entendimento idéias que sejam claras para ele.2

Pode-se dizer que, a partir do cogito, passava-se a conceber a mente humana como dotada de total transparência reflexiva: o sujeito tornava-se senhor de sua consciência, isto é, podia ter livre acesso, quando bem lhe conviesse, através de um esforço de reflexão, a tudo o que fosse determinante em seus próprios processos de pensamento. O que quer que houvesse de pensável era passível de ser conhecido e nada havia que se pudesse pensar sem que se tivesse a consciência clara e distinta de que se estava pensando. E essa certeza de si vinha fundamentar o conhecimento do mundo. Tais idéias se disseminaram e se decantaram em todos os domínios do conhecimento, predominando no pensamento ocidental pelo menos até o fim do século XIX.

O surgimento da obra de Freud veio justamente, como se sabe, expressar o abalo da soberania desse sujeito, para o qual todo e qualquer advento significante poderia ser apreendido no campo de sua própria consciência. Freud mostrou precisamente que o

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relato de seus pacientes se inseria numa rede de significações muito mais vasta que a do contexto imediato do qual parecia provir. Assim, ele substituía, através da interpretação psicanalítica, aquilo que se achava que se queria dizer por aquilo que se dizia sem querer. Emergia então um sujeito descentrado, dessemelhante de si – o sujeito do inconsciente. A alteridade invadia o último refúgio do homem moderno, sua última garantia de autonomia: sua linguagem, até então pretensa materialização de sua interioridade.

É importante lembrar que o que põe em movimento a experiência psicanalítica é precisamente o desejo de Freud de dar sentido àquilo que, aparentemente, não tem nenhum: o sintoma, aquilo que o sujeito estranha em si mesmo, mas que, à revelia de sua vontade, insiste em repetir-se. Através da elaboração do conceito de inconsciente, Freud vai tentar demonstrar que, ao propor um sentido para uma situação totalmente cristalizada no não-senso – no sintoma –, ele consegue operar uma mudança nessa situação, ele consegue produzir uma nova situação. Desse modo, e nos desenvolvimentos que se seguem na produção teórica de Freud, a fronteira entre senso e não-senso torna-se cada vez mais tênue e, portanto, cada vez mais insustentável. Uma etapa importante desse percurso é o artigo “Significação antitética das palavras primitivas”, de 1911, no qual Freud demonstra como o sentido de diversas palavras muda a ponto de transformar-se em seu contrário. Assim, por exemplo, o termo sacer, de acordo com o contexto, pode significar tanto sagrado quanto maldito.3 A questão de decidir a

propósito do senso ou do não-senso do que quer que se apresente torna-se assim uma questão de uma outra articulação por se fazer. Nada tem um sentido intrínseco, natural. Toda realidade desperta suspeitas, desde a mais supostamente plena até a mais aparen-temente caótica. Trata-se, em suma, de, diante de tais suspeitas quanto ao sentido de uma experiência, correr o risco de uma interpretação.

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Um exemplo emblemático dessa desnaturalização do humano operada por Freud é a nota que ele acrescentou em 1915 aos seus “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, na qual observa, ao tratar das “aberrações sexuais”, que o que ele chama de “sexualidade normal” não se constitui como um dado da natureza humana:

A psicanálise considera que a escolha de um objeto, independen-temente de seu sexo (...), é a base original da qual, como conseqüência da restrição num ou noutro sentido, se desenvolvem tanto os tipos normais como os invertidos. Assim, do ponto de vista da psicanálise, o interesse sexual exclusivo de homens por mulheres também constitui um problema que precisa ser elucidado, pois não é fato evidente em si mesmo, baseado em uma atração, afinal de natureza química.4

Entretanto, há pelo menos duas grandes linhas de interpre-tação do que seja o inconsciente freudiano, linhas estas que me parecem excludentes na medida em que pressupõem duas teorias radicalmente distintas da linguagem: uma referencial, de cunho idealista, que mantém, a meu ver, uma relação de continuidade com o pensamento pré-freudiano; e outra estrutural, que pretende acentuar a radicalidade do projeto freudiano, e que chamarei de trágica. Explicito rapidamente a primeira, para em seguida deter-me um pouco mais na segunda, antes de passar à questão da literatura. Para uma teoria referencial da linguagem, tributária da tradição idealista da metafísica ocidental, a palavra é um meio de represen-tação do mundo ou de expressão de processos psíquicos interiores. A interioridade do si e o mundo que o rodeia existem independen-temente da palavra que os evoca e que deles não é senão o reflexo. Tal leitura encontra sua imagem mais explícita na metáfora do iceberg, tão cara, aliás, a Freud. O inconsciente aponta para aquilo que jaz oculto nas profundezas da mente, esperando apenas a revelação pela palavra. Assim, por detrás das chamadas formações

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do inconsciente está a verdade do sujeito a ser descoberta, por detrás do conteúdo manifesto um conteúdo latente, do significante um significado; por detrás do sintoma, em suma, uma experiência vivida que não se alçou à expressão pela linguagem e que, por isso mesmo, controla a existência do sujeito à revelia deste. Haveria, pois, um sujeito verdadeiro, nuclear, à espera do desvelamento. Nesse sentido, o trabalho de análise seria o de tornar consciente o inconsciente. Tratar-se-ia de um trabalho obstinado e paciente, interminável talvez, em cada caso particular, mas com um horizonte de aprofundamento progressivo em relação a um núcleo suposta-mente irredutível e consistente do quadro sintomático, o que não deixa de dar ao trabalho da interpretação uma dimensão estabili-zante e, portanto, reconfortante do ponto de vista do sujeito analisado. Uma alteridade relativamente domesticável, em suma.

A perspectiva estrutural, como se sabe, começa a explicitar-se na psicanáliexplicitar-se com a releitura de Freud proposta por Jacques Lacan, e caracteriza-se fundamentalmente por problematizar a existência deste núcleo secreto de significação original, deste reservatório de representações recalcadas que o trabalho de interpretação deveria trazer à luz. O problema é inicialmente formulado mais ou menos nos seguintes termos: como afirmar um mundo que se encontraria aquém ou além da linguagem se ele só se dá a ver pela própria linguagem? Nos termos de Benveniste, que tanto influenciou a psicanálise francesa: “A forma lingüística é não apenas a condição de transmissibilidade, mas antes de tudo a condição de realização do pensamento. Não conhecemos o pensamento senão já apropriado nos quadros da língua.”5 Nesse

caso, a interioridade e o mundo não existiriam por si sós, invariáveis, eternamente idênticos a si mesmos; ao contrário, eles estariam condenados a se atualizar e a diferir em relação a si próprios a cada momento em que fossem ditos, através da linguagem contingente que os dissesse.

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Se assim for, o trabalho de deciframento jamais se esgota e no momento em que nos pusermos a relatar uma experiência a fim de descobrir-lhe o sentido, não estaremos fazendo outra coisa senão construindo tal sentido. Daí a dimensão trágica da existência: para além da linguagem que mascara a coisa, só há linguagem, ou seja, só há máscara. Para além das aparências, só há outras aparências. Não haveria, portanto, significações anteriores à operação de linguagem, a linguagem não seria a expressão ou a tradução de um estado de coisas que a precederia, ela seria constitutiva desse estado de coisas. Como ensina Deleuze no rastro da Recherche proustiana, a procura da verdade coincide com a produção da verdade procurada.6

Assim, uma das contribuições mais férteis de Lacan no que diz respeito aos estudos sobre a linguagem reside na compreensão de que o sentido se encontra em processamento permanente, uma vez que, para significar, um significante precisa fazer série – fazer cadeia, encadear-se – com um outro significante que ele vem substituir, o qual, por sua vez, atrai uma nova série, infinitizando o processo de emergência de sentidos. Entretanto, para que uma significação, ainda que provisória, possa efetivamente vir a ser produzida a partir de um determinado significante, é preciso que haja uma rede de convenções que preceda e que acolha esse significante, numa relação de exterioridade para com o sujeito que o enuncia, isto é, é preciso que haja uma ordem simbólica na qual esse sujeito esteja previamente inserido, para que ele possa então, a partir dela, vir a produzir sentidos. Esse lugar, Lacan o definiu como o Outro, “sede da palavra e fiador da verdade”.7 E tendo em vista sua alteridade

radical em relação ao sujeito, Lacan chega a ponto de afirmar que “o inconsciente é o discurso do Outro”.8 Nesse caso, o inconsciente

não seria uma sede de conteúdos recalcados, como já afirmei anteriormente, mas a abertura para o infinito do sentido, para a

6 Cf. DELEUZE, 1987. p. 147. 7 LACAN, 1972. p. 68. 8 LACAN, 1966. p. 549.

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alteridade; o inconsciente não seria uma interioridade absoluta, mas um lugar-entre, entre o sujeito e o Outro.

Poderíamos, à guisa de exemplo, tentar visualizar essa infinitude do processo significante deflagrado pelo sujeito e caucionado por sua relação com o Outro através da imagem de um tradutor que, no trabalho de verter para sua língua um determinado texto, se depara com um significante desconhecido e corre a procurar auxílio em dicionários dos mais variados tipos, dicionários analógicos, etimológicos, de rimas, de sinônimos e antônimos, etc. Ora, ao ler em cada um desses dicionários o verbete relativo ao significante em questão, nosso tradutor sempre o encontrará inserido em uma nova série significante, sendo que cada um dos elementos dessa série irá, por sua vez, remeter a uma outra série, fazendo, portanto derivar do significante que dá origem à busca um número sem fim de outros significantes, sem que nenhum deles se deixe encarnar por um significado que possa ser definitivamente acolhido, uma vez que cada significado se traveste a cada momento, pela própria materialidade de sua enunciação, em um novo significante – daí nasceram, aliás, em sua heróica busca do significado primeiro dos textos antigos, a filologia e a hermenêutica. Assim, cada versão daquele significante por que nosso tradutor viesse a optar restaria sempre algo inadequada, pelo fato de estar subordinada a um continente formal que implicaria uma possibilidade sempre diferente de traduzir. A partir desse exemplo, poderíamos concluir com Lacan, de uma vez por todas, sobre a provisoriedade – senão sobre a precariedade – de toda significação emergente numa cadeia significante.

Do ponto de vista da teoria propriamente dita, esse significante fundador (S1) seria o significante da cisão do sujeito, aquele que estaria inscrito como marca indelével de sua singular e irreversível sujeição ao Outro. Seria, conforme as palavras de Lacan, “entre todos os significantes, este significante para o qual não há significado, e que, quanto ao sentido, simboliza seu fracasso”.9 Isso implica que,

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se a psicanálise enquanto prática interpretativa tem algo a oferecer, certamente não é da ordem do provimento de uma estabilidade.

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A teoria psicanalítica tem muitos ecos no âmbito da teoria da literatura. Antes de passar ao “Espelho” de Rosa, gostaria de relembrar, para introduzir a questão da leitura, que é aquela que nos interessa aqui, alguns dos ecos que se produziram pela voz de Roland Barthes. Em O prazer do texto, livro de 1973 que já se tornou um clássico das teorias literárias pós-estruturalistas, Barthes trabalha com uma distinção muito interessante entre texto de prazer e texto

de gozo, quando menos por sua operacionalidade. Eis aqui uma definição feita por ele nas primeiras páginas:

Texto de prazer: aquele que contenta, preenche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de gozo: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez à beira de um certo tédio), faz vacilar os alicerces históricos, culturais, psicológicos, do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, coloca em crise sua relação com a linguagem.

Ora, é um sujeito anacrônico aquele que retém os dois textos em seu campo e em sua mão as rédeas do prazer e do gozo, pois ele participa ao mesmo tempo e contraditoriamente do hedonismo profundo de toda cultura (que entra nele pacificamente sob a capa de uma arte de viver de que fazem parte os livros antigos) e da destruição dessa cultura: ele goza da consistência de seu eu (é seu prazer) e busca sua perda (é seu gozo). É um sujeito duas vezes clivado, duas vezes perverso.10

Vemos que Barthes não considera que tais caracterizações sejam excludentes. Não se trata de dizer, como muitos, aliás, o fazem em nome do ensaísta francês, que, necessariamente, por tais e quais peculiaridades de sua escrita, certos textos levariam os leitores a se reconhecerem a si mesmos, reforçando sua identidade e suscitando

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uma espécie de adesão à cultura – os textos de prazer –, ao passo que outros – os texto de gozo – despertariam uma sensação de estranhamento, implicando uma postura crítica em relação ao estado das coisas. Parece-me, ao contrário, que toda experiência propriamente estética – de que a leitura é uma das modalidades – é atravessada pelo anacronismo a que se refere Barthes. Haverá sempre, em todo texto, de um lado, pontos de aderência à cultura em que ele emerge, uma vez que a linguagem de que ele se pode valer é sempre a linguagem de uma situação constituída, de um contexto cultural em que seu autor está ancorado – e é justamente isso, aliás, que constitui, sua legibilidade; e, de outro lado, a presença desestabilizadora de um sujeito que, ao escrever-se e dissolver o significante que o nomeia em uma série de significantes irreconciliáveis, perde, como diz o mesmo Barthes em outro artigo célebre, “sua própria estrutura e a do mundo na estrutura da palavra”,11 problematizando a consistência da identidade entre

palavras e coisas.

A experiência da leitura levaria, pois, o sujeito a atualizar o enigma da identidade das coisas e, no limite, o enigma de sua própria identidade. Diante do texto, ele se encontraria como que dilacerado pelo paradoxo que marca sua existência de humano, qual seja, o de buscar a afirmação da própria identidade norteado pelo fascínio exercido pela alteridade absoluta do Outro. Paradoxo a que retornarei mais adiante, e que é fundamental na constituição da experiência psicanalítica.

Assim, na perspectiva de Barthes, o que faz com que um texto seja um texto é a presença latente do jogo de forças que se estabelece – e que sua escrita de certa forma sempre encena – entre a sobrenatureza pulsional do sujeito propriamente humano e esses saberes reificados, naturalizados, que a oprimem, mas que também lhe fornecem as armas para exprimir-se e, em certa medida, libertar-se.

Nas palavras do autor:

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A linguagem que falo em mim mesmo não é de meu tempo; está exposta, por natureza, à suspeita ideológica; é, portanto, com ela que é preciso que eu lute. Escrevo porque não quero as palavras que encontro: por subtração. E ao mesmo tempo, essa penúltima linguagem é a de meu prazer: (...) mas não meu gozo: este só pode vir com o novo absoluto, pois apenas o novo abala (enfraquece) a consciência (fácil? de modo algum: nove vezes em dez, o novo não é senão o estereótipo da novidade).12

Mas entre nós e o novo absoluto, assim como entre nós e o Outro que nos habita, há um muro intransponível. E é um pouco disso que trata o conto de Rosa..

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Devia ou não devia contar-lhe, por motivos de talvez. Do que digo, descubro, deduzo. Será, se? Apalpo o evidente? Tresbusco. Será este nosso desengonço e mundo o plano-interseção de planos – onde se completam de fazer as almas?

Se sim, a “vida” consiste em experiência extrema e séria; sua técnica – ou pelo menos parte – exigindo o consciente alijamento, o despojamento, de tudo o que obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra? Depois, o “salto mortale”... – digo-o, do jeito, não porque os acrobatas italianos o aviventaram, mas por precisarem de toque e timbre novos as comuns expressões, amortecidas... E o julgamento-problema, podendo sobrevir com a simples pergunta: – “Você chegou a existir?”

Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto-quase delineado, apenas-mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só. Será que o senhor nunca compreenderá? Sim? Mas, então, está irremediavelmente destruída a concepção de vivermos em agradável acaso, sem razão nenhuma, num vale de bobagens? Disse. Se me permite, espero, agora, sua opinião, mesma, do senhor, sobre tanto assunto. Solicito os reparos que se digne dar-me, a mim, servo do senhor, recente amigo, mas companheiro no

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amor da ciência, de seus transviados acertos e de seus esbarros titubeados. Sim?13

É, pois, interpelando a nós, leitores, invocando nossa palavra e fazendo ressoar o silêncio a nossa volta, que o narrador de Rosa encerra “O Espelho”. Dessa vez definitivamente, sem a reconfortante retomada do fio narrativo do conto que sucedia às outras vezes em que nossa presença era lembrada. No início do conto, por exemplo, quando nos perguntava “como é que o senhor, eu, os restantes

próximos, somos, no visível?” (p. 61), o próprio narrador se encarregava de responder, replicar e treplicar. Mas não agora. Nesse fim de conto, depois de uma sucessão de interrogações encerrada no penúltimo parágrafo com a desconfortável questão “Você

chegou a existir?” (p. 68), o narrador solicita explicitamente ao leitor “sua opinião, mesma, do senhor, sobre tanto assunto”. E após a impaciente repetição da pergunta “Sim?”, apontando, talvez, para nosso obstinado – ainda que hesitante – descomprometimento ao longo da leitura, o silêncio final.

Surdo silêncio que, ecoando triunfalmente em nossa consciência, nos desperta para o que talvez seja, para nós que o escutamos, o seu sentido mais pleno: a vertigem do eu que sobrevém à possessão do outro, em nosso caso específico, a possessão deste outro que

se lê (quero sublinhar aqui o duplo genitivo: possuir o outro ao lê-lo, ser por ele possuído); a vaga e ligeira impressão de alteridade em relação ao eu que, até então, supúnhamos ser e que nos parece estranho precisamente no momento em que um outro, com seu silêncio, o convoca.

O outro que se lê, o outro possessor/possuído de que se trata aqui é, naturalmente, o próprio conto de Rosa: o outro é o espelho. Espelho que, longe de refletir a imagem que temos de nós mesmos e, conseqüentemente, do mundo que nos cerca e da linguagem que

13 ROSA, 1978. p. 68. As alusões ao conto trarão apenas o número da página

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o faz falar, nos incita, por nossa vez, a “transverberar o embuço, a

travisagem [de nossa] máscara, a fito de devassar o núcleo dessa

nebulosa” (p. 64). Assim como o narrador vê de si mesmo uma imagem que não reconhece, a experiência de leitura nos faz entrever em nós um outro que estranhamos. Ou seja, o esforço de desvendar que se havia proposto o narrador de Rosa nos é imposto pela provocação do fim do conto: ao estender o silêncio que se apossara de nós ao longo da leitura para além dela, tornando-o presente, a interrogação final duplica o narrado – a luta do narrador pela conquista da alteridade do eu, de seu silêncio – para além da narração.

Assim, ao silêncio da leitura, silêncio da possessão do texto, estabelecido pela plenitude da palavra alheia, silêncio propriamente silencioso, substitui-se o silêncio do despossuído leitor abandonado à própria sorte, o silêncio que se impõe quando claudica a palavra, silêncio murmurante, ruidoso, silêncio convulsivo, em ebulição; silêncio que atrai incessantemente mais palavras, uma atrás da outra, mas que não aceita nenhuma delas. Somos nós agora a tentar construir nosso próprio espelho.

“O senhor sabe o que o silêncio é?”, pergunta Riobaldo a seu interlocutor no momento em que narra sua espera pelo Diabo nas Veredas-Mortas: “É a gente mesmo, demais”.14 Esse excesso de

silêncio, excesso de “a gente mesmo” que faz com que a gente se estranhe, com que a gente deixe de coincidir consigo mesmo, com que a gente comece a se ver como objeto.

14 ROSA, 1986. p. 371. Encontro em que o Diabo (que ele chama de Outro

em vários momentos narrativa do Grande Sertão) aparentemente não comparece, ainda que o narrador diga, ao relatar as transformações que nele ocorreram depois daquele malogrado encontro: “Ah, as coisas influentes da vida chegam assim sorrateiras, ladroalmente.” (p. 380) Aliás é preciso lembrar que, para Rosa, como para a psicanálise, nós o vimos, a lógica da linguagem é diabólica e não simbólica. Basta pensar na etimologia: símbolo: syn + ballein: lançar junto, o que une; diabo: dia + ballein: lançar através, o que separa, o que desune. Poderíamos ir mais longe e pensar o conceito de pulsão de morte. Mas aí já seria um outro trabalho.

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Assim, o retorno ao eu que sucede à experiência da leitura não é da ordem da mesmidade. Até porque, como em todo verdadeiro retorno, quem retorna não é o mesmo, pois não se pode jamais partir – e a leitura sempre exige uma partida – impunemente. Como o narrador, queremos conquistar o silêncio, apagar a imagem que vemos no espelho, calar o outro que nos habita, para nos tornarmos outros em relação a ele, para, quem sabe, “enxergarmos o tênue

começo de uma luz” que seja nossa (p. 67) e “chegarmos a existir”. (p. 68) Já não podemos nos ver simplesmente, como o leitor a quem se dirige o narrador de Rosa no início do conto, “com aspecto próprio

e praticamente imudado” (p. 61). “Mal advertidos, avezados,

adormecidos” (p. 64), não percebíamos que, ao buscarmos nossa própria imagem, o que fazíamos, na realidade, era “verificar, acertar,

trabalhar um modelo subjetivo, preexistente; enfim, ampliar o ilusório, mediante sucessivas novas capas de ilusão” (p. 64). Na verdade Rosa ensina que quando reconhecemos e afirmamos nossa própria identidade, estamos, com freqüência, recusando a presença em nós da alteridade, a possessão deste outro que, ao mesmo tempo que nos faz ser o que somos de fato, nos impele a ser o que, de direito, podemos nos tornar. Exploro aí novamente o duplo genitivo da possessão: temos, por um lado, o outro-modelo que nos possui à revelia, o outro fornecedor das “máscaras que moldam”(cf. p. 61) nosso “rosto externo” (p. 64) e pemitem a prazerosa e reconfor-tante coincidência entre a imagem que temos de nós e a imagem que vemos refletida no espelho (“eu era moço, comigo contente,

vaidoso” p. 63); por outro lado, o outro-nuclear, pleno, a “vera

forma” (p. 64), a ser revelada através de duro trabalho de desconstrução, através de “mental adestramento” (p. 62), da “mais

buscante análise” e do “estrênuo vigor de abstração” (p. 65), e que, quando surge, surge como “nada” (p. 66), sem formas e sem rosto (cf. p. 66), como “total desfigura” (p. 67).15

15 Um outro ponto de aproximação possível com a psicanálise poderia ser

desenvolvido a partir dessa imagem do espelho vazio, também usada por Lacan, por exemplo, quando se refere à exigência de que o analista seja não “um espelho vivo, porém espelho vazio”. LACAN, 1985. p. 310.

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Mas por que resistimos a tal trabalho? Talvez pela mesma razão que o narrador o faz: porque a conclusão possível é de que o eu, naturalmente, não há. Não temos uma natureza que nos pertença. Como se pergunta o narrador: “e a terrível conclusão: não haveria

em mim uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu... um desalmado?” (p. 67)

Isto é, nada resta quando “aprendemos a não ver” em nossa própria imagem os resíduos do outro – encarnado na materialização, diz o narrador, do “elemento animal”, do “elemento hereditário”, do “que se deveria ao contágio das paixões”; das “idéias e sugestões de

outrem” e dos “efêmeros interesses” (p. 65-66); quando aprendemos, em suma, a não ver aquilo que nos faz crer que somos o que somos, que nos faz reconhecer o que nos torna idênticos a nós mesmos, não sobra nada. Mas esse nada é justamente a nossa liberdade de humanos, é o infinito de nossa potência, nossa vocação intransitiva, assim expressa por Riobaldo: “E, o que era que eu queria? Ali, acho que não queria mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era-ficar sendo!”16 (p. 370)

Coisa que não se conquista porque entre ela e nós encontra-se o “muro da linguagem”, para usar uma expressão cara a Lacan. Resta-nos, pois, trabalhar ao longo desse muro, que é o que Rosa jamais cessou de fazer em sua obra. Mudar um estado de coisas, para ele, sempre foi, antes de tudo, um fato de linguagem: “Somente renovando a língua é que se pode renovar o mundo”.17

Pouco acima eu dizia que se, ao longo da leitura de “O Espelho”, nosso descomprometimento – isto é, nosso confortável silêncio de leitores – era obstinado, ele era também hesitante. Porque, justamente, a estratégia enunciativa de Rosa impede o sossego do silêncio silencioso desde o uso da própria língua, através de suas torções nos níveis da sintaxe e do vocabulário, que dão “toque e timbre novos” às “comuns expressões, amortecidas” (p. 68).

16 ROSA, 1986. p. 370. 17 Cf. ROSA, 1994. p. 52.

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Dessa maneira, através das operações linguageiras que constituem a sua literatura, Rosa mostra que não há transformação de si e do mundo que não passe por um enfrentamento das formas existentes: é preciso encará-las de frente, até a deformação, como o faz o narrador de “O Espelho”.

Assim Rosa produz, também do ponto de vista da língua, um estranhamento que requer do leitor uma atitude para além da passividade habitual, não permitindo que o silêncio do eu se instale em proveito do que se lê. Ou seja, o texto exige que o leitor se aproprie dele ativamente, com a mesma “rigorosa infidelidade” (p. 67) com que o narrador se apropria da face vazia do espelho,

infidelidade que talvez signifique que a construção de sentidos que o texto nos obriga a fazer diz respeito à nossa própria singularidade de sujeitos.

Nesse sentido, concluo: a literatura, como a psicanálise, não pode propor outra coisa ao sujeito que com ela se depara senão uma interminável travessia para a alteridade.

Referências Bibliográficas

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ROSA, João Guimarães. Ficção completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v.1.

Resumo

Após breve reflexão sobre a noção de alteridade do ponto de vista da psicanálise e do de Roland Barthes, o artigo propõe uma leitura do conto O Espelho, de Guimarães Rosa, com ênfase nas relações entre leitura e alteridade.

Résumé

Après une brève réflexion sur la notion d’altérité du point de vue de la psychanalyse et de celui de Roland Barthes, l’article propose une lecture du conte O espelho, de Guimarães Rosa, avec l’accent mis sur les rapports entre lecture et altérité.

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