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ELA ERA FEIA? O CORPO RESSIGNIFICADO EM DIVANIZE CARBONIERI

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Academic year: 2020

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1 Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (UNEMAT/PPGEL),

Câmpus de Tangará da Serra-MT, na linha de pesquisa Literatura, história e memória cultural. E-mail: edu.mahon@terra.com.br

ELA ERA FEIA?

O CORPO RESSIGNIFICADO

EM DIVANIZE CARBONIERI

WAS SHW UGLY?

THE REFRAMED BODY IN

DIVANIZE CARBONIERI

Eduardo Mahon1

(UNEMAT)

RESUMO: O presente artigo se propõe a analisar a narrativa de Divanize Carbonieri no conto “Fia”. Aspectos físicos da personagem empurram a barreira do gênero literário fantástico para outro tipo de estranhamento. A desnaturalização do corpo não descola da realidade física, mas causa o mesmo efeito das metamorfoses da literatura fantástica porque desnaturaliza a percepção prevalente. Ainda que a estratégia de distorção da realidade seja diversa, os propósitos do grotesco são os mesmos. Se, no passado, o mundo da automação humana, da opressão

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de regimes políticos e fracasso da noção moderna de progresso eram a tônica, agora a subordinação social e sexual são o eixo para a narrativa de Carbonieri.

PALAVRAS-CHAVE: Insólito e Estranho. Gênero e subordinação. O belo e o feio na prosa brasileira.

ABSTRACT: This article aims to analyze the narrative of Divanize Carbonieri in the short story “Fia”. Physical aspects of the character push the barrier of the fantastic literary genre into another type of strangeness. The denaturalization of the body does not detach from physical reality, but it has the same effect as the metamorphoses of fantastic literature because it denatures the prevalent perception. Although the strategy of distorting re-ality is different, the purposes of the grotesque are the same. If, in the past, the world of human automation, the oppression of political regimes and the failure of the modern notion of progress were the keynote, now social and sexual subordination are the axis for Carbonieri’s narrative.

KEYWORDS: Unusual and Strange. Gender and subordina-tion. The beautiful and the ugly in brazilian prose.

O fantástico e estranho

Na literatura moderna, o fantástico é recorrente entre os autores. O flerte com o absurdo configura-se muito mais do um sintoma da fragmentação e do decadentismo, de pessimismo e da liquefação de certezas, hipóteses sociológicas da obra literária que são úteis, porém insatisfatórias para a apreensão das manifestações estéticas da arte. A transposição de uma estrutura lógico-cientificista para o insólito tem causas e consequências, essencialmente em termos estéticos.

Se as causas do fantástico estão fincadas no tempo, no espaço e na forma, as consequências do desafio ao racionalismo cartesiano

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são o próprio efeito hiperbólico do texto, gerando sensações de ira, frustração, medo, desilusão, ceticismo, veículos para abalar o conformismo, o ceticismo e a inércia. A realidade precisa ser caricaturada para ser melhor percebida.

Chiampi (2008) foi feliz ao anotar que “neste resgate de uma imagem orgânica do mundo, o realismo maravilhoso, contesta a disjunção dos elementos contraditórios ou da irredutibilidade da oposição entre o real e o irreal” ( CHIAMPI, 2008, p. 58). Há, por conseguinte, um tríplice aporte do fantástico para a literatura: contribui para distanciar ainda mais o romanesco do discurso univocal, promove a crítica do realismo como método de expressão da verdade, dissolve a visão positivista e neopositivista de causa-efeito para substituí-la por uma concepção mais orgânica da realidade que incorpore o possível e o impossível, o explicável e o inexplicável, o real e a fantasia, a verdade e a mentira, categorias colocadas num mesmo status.

Basicamente, a literatura fantástica subverte os três elementos já citados: tempo, espaço e forma. Os tempos não são lineares como se opera na nossa convenção moderna. Há paradoxos circulares, quase sempre. É o caso de Márquez que exuma as tradições por força da circularidade em Cem anos de solidão. O futuro encontra-se com o passado e o presente submete-se ao deja vu. São algumas operações na obra de Borges, por exemplo. Por fim, o espaço também será manipulado. Os exemplos mais conhecidos estão em Swift com o seu Gulliver gigante ou em Lewis Caroll com sua Alice minúscula.

Finalmente, a forma se transmuda. Kafka transformou o seu Gregor Samsa em uma barata, Orwell criou seus bichos falantes na crítica paródia ao comunismo e, mesmo na dramaturgia, Eugène Ionesco legou absurdos rinocerontes, resultado da histeria coletiva. Recentemente, no provocador Grandes Símios de Will Self, a “chimpunidade” parodia a humanidade, numa inversão da escala darwiniana. A relação com a zoomorfia é comum no fantástico e

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tem propósito de projeção, de empréstimo e de inevitável comparação. Seja pela distorção espaço-temporal, seja pela manipulação da forma, importa desconstruir a hegemonia da visão racionalista, ridicularizando-a no mais das vezes.

A árida sistematização proposta por Propp (2006), será sempre um terreno movediço. Cortázar (2006, p. 148), por exemplo, não tem o pudor cientificista ao confessar que:

Quase todos os contos que escrevi pertencem ao gênero chamado fantástico por falta de nome melhor, e se lhe opõem a esse falso realismo que consiste em crer que todas as coisas podem ser descritas e explicadas como dava por assentado no otimismo filosófico e científico do século XVIII, isto é, dentro de um mundo regido mais ou menos harmoniosamente por um sistema de leis, de princípios, de relações de causa e efeito, de psicologias definidas, de geografias bem cartografadas.

Mais à frente, Cortázar (2006, p. 150) complementa de forma mais enfática: “Ninguém pode pretender que só se devam escrever contos após serem conhecidas suas leis. Em primeiro lugar, não há tais leis; no máximo cabe falar em pontos de vista, de certas constantes que dão uma estrutura a esse gênero tão pouco classificável”.

Curiosamente, porém, o conto “Fia” publicado no recente livro de Divanize Carbonieri, Passagem Estreita (2019), não lança mão do fantástico, mas caminha em fronteiras que se parecem inovadoras. A personagem é uma mulher aparentemente feia e destituída de substanciais dotes intelectuais. Relegada a tarefas desimportantes, a narrativa resume-se entre o ir e vir de Fia que carrega uma marmita para o patrão. Na escala de Todorov, é provável que o primeiro conto de Passagem Estreita não se encaixe em nenhuma das três categorias – estranho, fantástico ou fabuloso. As questões que permeiam o texto incidem na fusão entre condição social e aparência física.

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Todorov (2007) é mais palatável do que Propp (2006) na sistematização que propõe. O estranho é regido pelas leis naturais ainda que inicialmente pareça um fenômeno inexplicável, o fantástico é um descolamento da realidade, muito embora a estrutura lógica da narrativa ainda se mantenha presa ao nosso mundo racional e o fabuloso é a criação de uma realidade paralela cujas leis são as criadas pelo próprio narrador. A questão inovadora é manter uma narrativa num certo “tom estranho”, sem, no entanto, inclinar-se para o fantástico ou fabuloso. O estranhamento, em resumo, está nas personagens.

É digna de nota a estética limítrofe de Carbonieri na medida em que Fia nunca sofreu a metamorfose kafkiana, nem o terror de Poe, nem as alucinações de Maupassant. Não se tornou gigante como em Swift, nem tampouco microscópica como em Caroll, muito menos invisível como em Wells. Fia não distorce o tempo como em Fitzgerald, não encontra uma cópia como em Dostoiévski ou em Borges. A personagem não chega a ser um Quasímodo de Victor Hugo. Em que pese a carregada adjetivação de Fia, ela não deixa de ser uma mulher comum.

Muito sutilmente, porém, Divanize Carbonieri faz um transplante que torna Fia um tipo fronteiriço, bem típico do contemporâneo. De início, o texto sofre a influência kafkiana evidente: “[...] do modo que estava, gesticulando feito uma barata de barriga para cima, parecia ainda mais feia do que já era” (p. 13). Em toda a narrativa, os elementos zoomórficos migram para compor Fia: “Na verdade, nem sequer conseguia visualizar a própria figura como um todo homogêneo visto de fora. Só o que conseguia imaginar eram partes separadas, braços e pernas, mãos e dedos desconjuntados, desconexos. O fragmento era a única ordem que conhecia”. (p. 14).

O jogo das trocas zoomórficas prossegue no texto como, por exemplo, lê-se que “fazia um barulho atroz, com sons quase inumanos, arfando e ganindo ao mesmo tempo” (p. 15/16) ou quando é

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definida como “insignificante criatura” (p. 16), no momento em que a personagem passa “zumbindo por entre os transeuntes” (p. 17), na altura do “espetáculo dessa comida suja entrando por esse orifício horrendo” (p. 19) como é descrita a boca de Fia.

A partir daí, os sentimentos de terceiros que se relacionam superficialmente com Fia são os mesmos que se observam na família Samsa depois da transformação do jovem Gregor: “Qualquer um que a visse, eu, inclusive, certamente desviaria o olhar por pura repulsa” (p. 14). Fia é “abjeta” (p. 15), experimentando o “nojo” (p. 16) e “repugnância” (p. 18) de quem é obrigado a lidar com ela. Eis aí a inteligente estratégia da escritora: usar-se de sensações externas para sugerir ao leitor o quão grotesco pode a personagem ser. Não há, contudo, uma descrição objetiva, o que torna ainda mais rica a estética de Carbonieri. A definição é por afinidade (ou falta dela).

Voltemos à K af ka por um momento. Em A Metamorfose, o

protagonista pergunta-se “o que aconteceu comigo?”, ou seja, desconhece a razão pela qual se transformara num “inseto monstruoso” e, portanto, é surpreendido com a nova condição. Prossegue duvidando do fantástico ao pensar que a inusitada mudança se trate de um sonho e que irá acordar em seguida. Diante da persistência na nova condição biológica, “Gregor se assustou” ao ouvir a própria voz com o sibilar atribuído aos insetos. A surpresa, entretanto, já não era mais com a forma de inseto, mas com as outras características morfofisiológicas que a nova condição oferece.

É essencial distinguir a forma de tratamento do insólito na literatura de Kafka: para o narrador desde o princípio não há mistério, dúvida, hesitação: Gregor Samsa havia se metamorfoseado num inseto monstruoso. Não há margem para contestação, já que o dado objetivo é fornecido pelo narrador em terceira pessoa. Neste quesito, aproxima-se de Gogol e afasta-se de Dostoievski. Este último deixa que o escrevente-protagonista duvide de si mesmo, fale em voz alta, consulte o médico, chame pela razão o chefe e o próprio Duplo. Kafka não oportuniza nenhum espaço para a

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hesitação. Para cumprir a sensação a que se propõe, a narrativa serve-se da zoomorfização do jovem protagonista.

Como era de se esperar, mesmo em Kafka, todos os personagens do entorno do protagonista se assustam com a nova condição de Gregor. A surpresa faz parte do primeiro contato dos personagens com o insólito, não poderia ser diferente. O protagonista duvida da própria condição física, a mãe se horroriza “Socorro! Pelo amor de Deus, socorro!”, o pai o agride e a irmã o alimenta sem, no entanto, tomar contato com ele. Se Kafka afasta-se de Dostoievski por adotar uma postura peremptória frente ao fantástico, aproxima-se na oscilação de estados psicológicos por que passa o protagonista. Gregor Samsa atravessa três fases: (1) adaptação, (2) descoberta e (3) desilusão. Na primeira, aprende a se movimentar, a comer, a dormir e a se relacionar com o resto da família. Na segunda, descobre que pode escalar, correr, se esgueirar, adapta o novo corpo aos espaços até então desconhecidos. Por fim, na terceira fase, sente o desgosto pelo abandono, desprezo e vergonha da família.

O efeito do fantástico é, como dito alhures, obtido pela manipulação da forma, do tempo e do espaço. No caso de Kafka, a inferioridade judaica na Europa em tempos de eugenia; no caso de Gogol, a perda da identidade em tempos na Rússia de burocracias insólitas; no caso de Orwell, a manipulação legislativa no contexto de autocracias comunistas. Ocorre que, para obter tal efeito, até então a narrativa precisava se desnaturalizar. A fuga do real destacava o “impossível” a fim de estabelecer uma heteronomia qualquer, suficiente para a exsurgir o absurdo da própria realidade.

A novidade de Passagem Estreita está no efeito objetivo causado pelo que era, até então fantástico. Carbonieri mesmo que o texto não apele para o fantástico (a desafiar a ciência) ou para o fabuloso (a criar realidades paralelas). O desprezo social à personagem e a figura que ela mesma faz de si, ainda que componham a estratégia limítrofe do estilo kafkiano, não descola da realidade. Trata-se de

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uma mulher que é deliberadamente tomada por abjeta, mesmo mantendo a condição humana. Esse “estranhamento” fronteiriço vê-se, por exemplo, em Pássaros na Boca, de Samanta Schweblin. Ao levar os personagens ao estranhamento quase insólito, a escritora argentina empurra a barreira do fantástico mais adiante. O efeito da literatura fantástica é o mesmo, mas o percurso é diferente.

O corpo grotesco em Carbonieri

Na carreira literária de Divanize Carbonieri, o grotesco talvez seja a maior referência, uma espécie de assinatura autoral. O corpo avulta-se como elemento central da poética e da narrativa romanesca. Como ele é percebido? Trata-se de uma estrutura insuportável, a prisão existencial da consciência que grita em silêncio, um sofrimento

pelo bizarro realista nauseabundo. N o livro Passagem Estreita (2019),

juntas rangem, pelancas caem, ligamentos rompem-se. Não só no conto “Fia”, como em outros, até mais explicitamente. De “Mesa Redonda”, por exemplo:

Olhando a foto, tenho a impressão de que existe certa deformação em meu corpo. Não é apenas o caso de ser feia. É mais do que isso. Um corpo que parece errado de qualquer modo, quase uma monstruosidade. Todas as outras estão bem, se não bonitas, pelo menos sem nada na aparência que as desabone. Uma mulher vale pelo quanto aparenta bem. Uma mulher não vale nada realmente. O que importa se tem boa aparência ou não? O máximo que se pode almejar sendo mulher é merecer ser estuprada.

[...]

O corpo, o grande inimigo. Campo de batalhas perdidas. O incômodo maior. Apenas um suporte para a cabeça, com suas ideias fervilhando, sua sede insaciável de conhecimento. Sigo passando de uma foto à outra no álbum do Facebook. Pareço horrível em todas, como já era esperado. No registro da mesa-redonda, os braços estão medonhos, a boca torta, o cabelo desgrenhado, o corpo grande demais, a pela esburacada. (p. 39)

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A mesma estratégia dá-se em “Cérebros”:

Nesse dia específico, acordei achando meus braços muito feios. Foi até difícil escolher uma camiseta para vestir. Tinha que ser uma que escondesse a maior parte, mas naquele calor de dezembro? Experimentei umas três, sempre me martirizando pela feiura dos meus braços. (p. 57) Eu já sei que algumas pessoas têm doenças, queimaduras e até deformações de nascimento ou causadas por acidentes. E eu não tenho nada disso e deveria ser grata. Mas não adianta. Não sou. Você não vai conseguir me convencer. Porque, se existem pessoas com braços defeituosos, mesmo que não sejam os meus, já é motivo suficiente para sentir desgosto. Para ficar com raiva da vida. O que você quer é que me alegre por ter mais sorte que os outros, e por isso eu não sei fazer. Um braço feio faz com que todos os outros fiquem imediatamente e para sempre estragados. É como a contaminação de uma doença crônica e incurável. Então, não teve jeito, essa lição não aprendi. (p. 59)

Essa obsessão autoral está presente, inclusive, nos dois livros de poemas, Entraves (2017) e Grande Depósito de Bugigangas (2018). A força dessas imagens encontra-se retratada no poema “Paquiderme” que apela para a bizarrice do corpo: “[...] sucumbe na grande estrutura/ arquitetônica de seu corpo/ uma catedral de carne rota”, Carbonieri anuncia no primeiro livro que sua matéria prima será o corpo, mas não um corpo bonito, perfeito, adequado. O “corpo divanísico” é medonho, desajustado, crítico, prestes à eliminação ou mesmo à autoimolação.

O corpo é um inconveniente na obra de Carbonieri. A inútil massa humana atrapalha os hábitos mais comuns. O poema homônimo do livro de estreia é o prenúncio do que viria a seguir. Entraves trata da inadequação do corpo:

no afã de desligar o liquidificador deslocou o tendão de aquiles depois de ter lesionado a coluna

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ao acionar o interruptor da lâmpada tendo dilacerado a hérnia inguinal ao colidir com a máquina de lavar foi só estancar a hemorragia fluida e distensionar o músculo deltoide para desarrolhar o gargalo oblongo espirrando o espesso licor no olho até conter a lágrima no pó compacto mais uma quina a estraçalhar seu pé um talho rasgado em plena epiderme não é qualquer falha de caráter que torna arrastado o existir por entre trastes é o completo sequestro da sanidade que arruína para sempre toda a chance

de se desentulhar os últimos entraves (2017, p. 15)

No livro Grande Depósito de Bugigangas, Carbonieri pontifica novamente, promovendo a mesma radical objetificação do corpo, identidade com engrenagens, construção, instrumento. No texto, a tônica é o decadentismo corporal. Lê-se no poema Corpo:

o corpo é empecilho um castigo

no meio uma chaga encharcada

uma parelha errada para o macho menor na estatura piorada por todo lado pelo corpo se mensura

a capacidade dimensiona-se o préstimo e a utilidade com o corpo faço um pacto de ser amotinada desengonçada desgraçada

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escapando ao corpo

posso ser de verdade (2018, p. 39)

Do texto de Carbonieri, extrai-se a desvalorização do corpo, ora tomado como um mero meio para a consecução de uma finalidade, ora sentido como um estorvo. A materialidade é deformada e penalizada, construindo um tipo insalubre. O “ser mulher” é objeto de trauma profundo, desde a poesia de Divanize à prosa mais atual.

Outro exemplo são os “dedos em pinça” presentes no poema Ofício, do mesmo livro Grande Depósito de Bugigangas. Carbonieri retoma a objetificação do corpo nos versos “Os cortes precisos/ das carnes maleáveis/ o couro se moldando/ às formas desejadas” (p. 50), valendo-se do corpo como meio para a expressão poética e romanesca da própria autora. Essa estratégia vai nos conduzir à formulação inicial – Fia era, de fato, uma mulher feia? Para além do subjetivismo impressionista, a feiura tem uma concepção funcional na arte contemporânea. O artista deliberadamente elege o feio para promover o estranhamento perturbador, causando o mesmo impacto do que, no século XX, já se obteve com o fantástico na literatura e o surrealismo nas artes plásticas.

A deformidade do corpo que impacta o espectador pelo grotesco já era comum na arte contemporânea. Maximizando os membros inferiores, Tarsila do Amaral vai provocar a reflexão sobre a relação trabalho/intelectualidade e, antes dela, Picasso, Dali, Bottero e, antes deles, Goya. Ao ler o conto de Carbonieri, é impossível não o relacionar ao hibridismo bizarro de Ron Mueck, Liu Xue e de Sarah Sitkin. Como de hábito – ut pictura poesis – as artes plásticas abrem caminhos para o que a literatura vai expressar com mais vagar.

No caso de Carbonieri, a personagem Fia era realmente feia? Diante do brevíssimo apanhado autoral, deve-se partir de alguns pressupostos para responder à questão: 1) o corpo deve ser tomado

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como meio de expressão, uma estratégia narrativa; 2) a objetificação do corpo antagoniza com a relevância da intelectualidade; 3) a visão do corpo é sempre prisional, decadentista e margeia o limite do fantástico. Fia não tem descrição objetiva, importante reprisar. A paleta impressionista é tomada de empréstimo de pessoas que aparentemente não compartilham da mesma situação social.

Homens mais altos e fortes, mulheres bem vestidas/sucedidas, um conjunto social que não se encontra na marginalidade e no subemprego. Essa posição superior torna Fia uma pária e, portanto, está fisicamente deformada. Ela não é feia em si, mas se torna por relativização. Tal disjunção ser/parecer, lastreada pela condição social de subordinação, é a manobra que procede a narrativa para dizer o que é o feio.

Ressignificando o feio

Umberto Eco (2014) promove uma arqueologia da beleza. Porém, reserva muito pouco espaço para o feio. Após visitar os vários conceitos históricos de beleza, da clássica para a medieva e, desta, para a moderna e contemporânea, o pensador italiano faz uma contraposição simplória com a feiura:

[...] existe o Feio, que nos repugna em estado natural, mas que se torna aceitável e até agradável na arte, que exprime e denuncia ‘belamente’ a feiura do Feio, entendido em sentido físico e moral. Mas até que ponto uma bela representação do feio (e do monstruoso) não o torna fascinante? (2014, p. 133)

[...] os monstros são inseridos no desígnio providencial de Deus para o qual, como para Alain de Lile, cada criatura desse mundo, como em um livro ou em uma imagem, é para nós como um espelho da vida e da morte, de nosso estado atual e do nosso destino futuro. Mas se Deus os incluiu em seus desígnios, como podem os monstros ser ‘monstruosos’, insinuando-se na harmonia da criação como elemento de perturbação e deformação? (2014, p. 145)

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No entanto, Eco é insuficiente para a compreensão do feio, sobretudo como se forma o próprio conceito de feiura. Na visão do italiano, o espaço franqueado ao feio na arte presta-se para ressaltar o bonito. Portanto, o inimigo, o demônio, o feio é permitido e até querido para contrapor o amigo, o angelical e o perfeito. Trata-se de cumprir o que Victor Hugo construiu em Do Grotesco e do sublime (2007). Contudo, a questão é mais complexa do que uma mera oposição por meio do binômio bem/mal.

O feio de Divanize Carbonieri não é um espelho que contrapõe o esteticamente belo, simétrico, perfeito. Esse antagonismo seria um tanto primário. Fia e as outras personagens femininas dos contos “Mesa Redonda” e “Cérebro”, são estranhas. O estranho é mais complexo do que o binômio feio/bonito exposto por Eco. Por isso mesmo, a trajetória do conceito de anormalidade esteja melhor assentada em Michel Foucault.

Na coletânea de palestras intitulada de Os anormais, Foucault (2018) destrincha o conceito, indicando o hibridismo natural como elemento central das monstruosidades até o século XVIII. A partir de então, o monstro será regulado pelo discurso jurídico concomitantemente à categorização médica. De qualquer sorte, Foucault não resume o anormal à antinomia traçada por Umberto Eco. Vai além.

O monstro é, paradoxalmente – apesar da posição-limite que ocupa, embora seja ao mesmo tempo o impossível e o proibido –, um princípio de inteligibilidade. No entanto esse princípio de inteligibilidade é propriamente tautológico, pois é precisamente uma propriedade do monstro afirmar-se como monstro, explicar em si mesmo todos os desvios que podem derivar dele, mas ser em si mesmo ininteligível. Portanto, é essa inteligibilidade tautológica, esse princípio de explicação que só remete a si mesmo, que vamos encontrar bem no fundo das análises da anomalia. (p. 48)

Muito embora os estudos de Foucault desaguem na questão jurídica e medicalizante, levantando hipóteses acerca da luta entre

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os discursos científicos hegemônicos na sociedade contemporânea, o que importa para a nossa análise é a questão da ininteligibilidade do anormal. Noutras palavras, o monstro não é o inimigo, não é o demônio, mas é aquele que não conseguimos compreender. Não se trata mais de abominação da natureza, um escândalo da forma. O anormal é simplesmente grotesco, definido por Foucault como portador de “esquisitices, espécie de imperfeições, deslizes da natureza [...] É simplesmente uma irregularidade, um ligeiro desvio, mas que torna possível algo que será verdadeiramente a monstruosidade” (2018, p. 62)

A fealdade de Fia e de outros personagens de Divanize Carbonieri pode começar a ser explicada dessa forma – ininteligível e estranha. Contudo, levando em conta a teoria foucaultiana sobre os anormais, talvez seja em Bauman (1999) que o “estranho” seja melhor interpretado para a nossa finalidade de compreender essa fixação contemporânea no bizarro.

Diz Bauman que, na modernidade, essa guerra constante pela razão, ordem e simetria, é fácil eleger o inimigo. Desafio é tratar do estranho porque:

Contra esse confortável antagonismo, contra essa colisão conflituosa de amigos e inimigos, rebela-se o estranho. A ameaça que ele carrega é mais terrível que a ameaça que se pode temer do inimigo. [...] porque o estranho não é nem amigo nem inimigo – e porque pode ser ambos. (1999, p. 64)

Os indefiníveis expõem brutalmente o artifício, a fragilidade, a impostura da separação mais vital. Eles colocam o exterior dentro e envenenam o conforto da ordem com a suspeita do caos. (1999, p. 65)

Nesse sentido, Fia não é inimiga dos demais personagens com os quais protagoniza a narrativa. Nem tampouco amiga. No máximo, Fia é serva. Na lógica de Bauman (1999) A condição rebaixada a

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que ela está sujeita vai tarjá-la como “estranha” porque a indeterminação que ela suscita é o horror da comunidade. Por isso mesmo, tantos sinônimos para nojo e náusea são encontrados no texto. Fia é, numa palavra, socialmente indefinível. Conforme o filósofo polonês:

Alguns estranhos não são, porém, os ainda não definidos; são, em princípio, os indefiníveis. São a premonição daquele ‘terceiro elemento’ que não deveria ser. Esses são os verdadeiros híbridos, os monstros – não apenas não classificados, mas inclassificáveis. Eles não questionam apenas uma oposição aqui e ali: questionam a oposição como tal, o próprio princípio da oposição, a plausibilidade da dicotomia que ela sugere e a factibilidade da separação que exige. Desmascaram a frágil artificialidade da divisão. Eles destroem o mundo. Estendem a temporária inconveniência de ‘não saber como prosseguir’ a uma paralisia terminal. Devem ser transformados em tabu, desarmados, suprimidos, física ou mentalmente exilados – ou o mundo pode perecer. (1999, p. 68)

A complexidade do “estranho” em Bauman é bem mais complexa do que a definição do feio na obra de Eco. O feio-opositor não dá conta de definir os personagens de Carbonieri porque não se trata da oposição ao belo, ao esteticamente perfeito e ao divino. A personagem Fia não é um demônio. Situa-se no seio da sociedade, integrada ao mercado de subemprego, as pessoas a conhecem e confiam a ela pequenas tarefas. Portanto, o grotesco na obra de Carbonieri não tem qualquer relação com o mal a fim de ser combatido abertamente. Estão, isso sim, na penumbrosa região do indefinível, inclassificável. A descrição de Fia gera nojo e causa instabilidade, nunca ódio. Ela não tem lugar no mundo porque está dentro e fora da sociedade ao mesmo tempo.

Devo dizer que uma das inúmeras incapacidades de Fia era interpretar adequadamente as expressões dos rostos das pessoas, recurso que qualquer criança com mais de um ano e meio já domina à perfeição.

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Mas nela essa estratégia elementar de defesa não tinha se formado. No entanto, talvez a deficiência não lhe fosse de todo nociva, pois caso soubesse realmente ler nas feições o que se passava nas mentes alheias já teria, com certeza, desistido da vida. E é fato que ela prosseguia vivendo, talvez apenas por pura inércia, mas vivia, embora eu ache que estaria bem melhor morta. (p. 16-17)

O narrador criado por Carbonieri está contrariado em ter de contar a história de Fia, uma personagem considerada “o traste mais feio e estúpido que poderia existir no mundo da ficção” (p. 20). Preferia tratar de uma “linda protagonista, sentada numa mesa bem arrumada, comendo com talheres reluzentes, com a boca fechada, e conseguisse concatenar sentenças completas em sua cabeça” (p. 20). Noutras palavras, o que incomoda o narrador é não estar próximo do que Eco apontaria como “belo” e Bauman como “amigo”. Ao contar uma cena desimportante da vida de Fia, porém, vê-se desconfortável com a proximidade do “estranho”.

O estilhaçamento do corpo, a hibridação com animais e objetos ou simplesmente as comezinhas anormalidades, deformações e mutilações pretendem chamar atenção para a complexidade humana. Ao conduzir a forma convencional a extremos inimagináveis (do ultrarrealismo ao insólito), os artistas expressam a angústia com a inconformidade. Surgem as perplexidades com as classificações e escalas que o racionalismo dispõe desde a modernidade. Divanize comunga dessa angústia. No entanto, é na experiência estética da linguagem que ela se expressa.

Fazer do normal o anormal, do anormal o feio, do feio o insuportável, do insuportável o inumano, é uma operação que demanda acurado empenho. Fia prova que o antinatural pode surgir da natureza por se constituir a partir da observação alheia. Essa é a sensação da barata, do gigante, da miniatura, do duplo e do invisível. Difícil é criar esse mesmo sentimento antinatural diante da própria natureza (real), sem enveredar para o estranho, fantástico e fabuloso.

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Por isso, a força plástica do conto de Divanize Carbonieri é insuspeita. A normalização do “estranho” é a porta de entrada para os marginalizados. Fia não é feia. Ela somente não é aceita. A conclusão encontrada foi tomada pela leitura de outro conto já citado, o “Mesa Redonda”. Se “Uma mulher vale pelo quanto aparenta bem”, almejando no máximo ser estuprada, a questão não está centrada na beleza e sim na subordinação. É no grau de dependência e de submissão da mulher que o critério estético transparece como definição. Fia, mulher semianalfabeta e subempregada, “está” feia na condição em que se encontra.

Referências

BAUMAN, Zigmund. Ambivalência e Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.

BORGES, Jorge Luis. O livro de areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

CARBONIERI, Divanize. Passagem Estreita. Cuiabá: Ed. Carlini e Caniato, 2019.

_______.Entraves. Cuiabá: Ed. Carlini e Caniato, 2017.

_______. Grande Depósito de Bugigangas: Ed. Carlini e Caniato, 2018. CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2010.

CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso: forma e ideologia no romance hispano-americano. São Paulo: Perspectiva, 2008.

DOSTOIEVSKI, Fiódor. O Duplo. São Paulo: Editora 34, 2013. CORTÁZAR, Júlio. Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva, 2006. ECO, Umberto. História da Beleza. São Paulo: Record, 2014.

FOULCAULT, Michel. Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2018. HUGO, Victor. O Corcunda de Notre-Dame. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2015.

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_______. Do grotesco e do sublime. São Paulo: Perspectiva, 2007. KAFKA, Franz. A Metamorfose. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. Cem Anos de Solidão. São Paulo: Record, 2008.

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Recebido em 12/07/2020 Aceito em 26/07/2020

Referências

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