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Imaginário e invenção da linguagem: uma leitura de "A quinta história" de Clarice Lispector

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Academic year: 2020

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I M A G I N Á R I O Е INvENÇfiO DA LINGUAGEM: UMA LEITURA DE "A QUINTA HISTORIA" DE CLARICE

LISPECTOR

J e f e r s o n L u i z CAMARGO* Pouco antes de dar i n i c i o à a n á l i s e de "Nenhum, Nenhuma", L e y l a P e r r o n e - M o i s é s faz algumas c o n s i d e r a ç õ e s sobre a a p l i c a ç ã o da p s i c a n á l i s e à c r i t i c a l i t e r á r i a , chamando a a t e n ç ã o para os p e r i g o s de se p e r m i t i r que os c o n c e i t o s t e ó r i c o - c i e n t i f i c o s predominem sobre o aspecto l i t e r á r i o (ou que até mesmo o engulam), em uma u t i l i z a ç ã o da p s i c a n á l i s e enquanto a l e g o r i a f r e u d i a n a (ou l a c a n i a n a , e t c . ) . Contudo, ao mencionar o absurdo que s e r i a o p s i c a n a l i z a r um personagem, i s t o è , "um ausente", "uma f a l a sem r e s p o s t a s " , a autora remete à i m p o s s i b i l i d a d e de e n f r e n t a r h o j e , em um tento l i t e r á r i o , a inevitável carga de " l e m b r a n ç a s , sonhos, a f e t o s , d e s e j o s " sem r e c o r r e r ao legado t e ó r i c o f r e u d i a n o . 0 que e l a d i z , em s i n t e s e , é que na a n á l i s e l i t e r á r i a n ã o é mais p o s s í v e l i g n o r a r , para usarmos a f e l i z e x p r e s s ã o de Renato Mezan, o "baii de Freud" (14, P . 3 2 2 ) .

Em nível mais modesto, é o que pretendemos f a z e r a q u i . A r e s s a l v a d e c o r r e , e n t r e o u t r a s c o i s a s , da a u s ê n c i a , de nossa p a r t e , de um s ó l i d o conhecimento da obra de Freud, conhecimento que nos p e r m i t i s s e v ô o s mais a l t o s е abrangentes. Tentaremos, ao menos, proteger o conto e s c o l h i d o de uma a n á l i s e imprudente que, em sua r e l a ç ã o com um i n d e f e s o objeto de a r t e , leve a algo como a p s i c o b i o g r a f i a е o freudismo de e x t r a ç ã o mais v u l g a r . Mais ou menos como se p e r d ê s s e m o s de v i s t a uma o b s e r v a ç ã o que Freud f a z quase no f i n a l de sua a n á l i s e da "Gradivav de Jensen. Е p o s s í v e l , imagina e l e , que nossa (*) Aluno do Prograia de Pòs-Graduação.

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i n t e r p r e t a ç ã o tenha s i d o e r r a d a , e que tenhamos a t r i b u í d o

" ( . . . ) a uma inocente obra de a r t e t e n d ê n c i a s das quais o seu autor n ã o t i n h a a menor i d é i a , mostrando uma vez mais quão fácil é encontrar em todas as p a r t e s o que levamos em n ó s p r ó p r i o s " . ( 3 , p. 96)

Nosso o b j e t i v o , portanto, é o de a n a l i s a r o conto e s c o l h i d o fazendo com que a ê n f a s e i n c i d a sobre a f o r c a i n t e r p r e t a t i v a da t e o r i a , sem p e r m i t i r o d e s l i z e para um dualismo s i m p l i s t a do t i p o ( f a l s o / v e r d a d e i r o ) a p l i c a d o a f e n ô m e n o s que s ã o extremamente s u b j e t i v o s . Os mesmos mecanismos que Freud aponta como determinantes do comportamento normal e anormal entram s i g n i f i c a t i v a m e n t e em a ç ã o ao nos engajarmos em qualquer a t i v i d a d e e s t é t i c a . A p s i c a n á l i s e é uma c i ê n c i a , uma a t i v i d a d e extremamente i n t e r p r e t a t i v a em " s i , e é enquanto c i ê n c i a da i n t e r p r e t a ç ã o - ou s e j a , em p a r t e como uma c i ê n c i a da c i ê n c i a -que deve s e r v i s t a . Em s í n t e s e , procuraremos e v i t a r a v i s ã o do narrador/personagem do conto e s c o l h i d o como se o mesmo f o s s e c r i a d o e percebido em moldes n a t u r a l i s t a s , ignorando as a l e g o r i a s do autor em detrimento da p r o j e ç ã o de r í g i d a s a l e g o r i a s f r e u d i a n a s que t i r e m do personagem a q u i l o que em ú l t i m a

i n s t â n c i a o c o n s t i t u i , ou s e j a , sua matriz f i c e i o n a l .

Mesmo assim, em uma a n á l i s e c u j a m a t é r i a - p r i m a é , f o r ç o s a m e n t e , o aparato p s i c a n a l í t i c o p a s s í v e l de a p l i c a ç ã o na a n á l i s e de uma obra l i t e r á r i a , parece-nos impossível ( e , no caso, i n d e s e j á v e l ) e v i t a r que dessa mesma a n á l i s e se depreenda uma c e r t a a m b i g ü i d a d e , v e r i f i c a d a de ambos os lados da c o m u n i c a ç ã o e s c r i t o r / l e i t o r e a n á l o g a ao que se passa e n t r e a n a l i s t a e

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p a c i e n t e . Nos d o i s c a s o s , existem d o i s s u j e i t o s comprometidos com a p r o d u ç ã o m ú t u a de um o b j e t o t r a n s i c i o n a l , o " t e x t o " a n a l i t i c o e o t e x t o l i t e r á r i o . Ê e v i d e n t e que o t e x t o l i t e r á r i o , ao c o n t r á r i o do p a c i e n t e , não pode s e r submetido a um i n t e r r o g a t ó r i o minucioso, mas nos personagens do t e x t o e x i s t e m a t e r i a l que pode s e r trabalhado como as a s s o c i a ç õ e s de um a n a l i s a n d o . 0 que se a l t e r a , " t r a n s b o r d a " , é a r e l e i t u r a f e i t a por qualquer i n t é r p r e t e que venha a i n t r o d u z i r no t e x t o sua e x p e r i ê n c i a v i v i d a , algo que, de c e r t o modo, está sempre além dos enunciados. E, t a m b é m , e x p e r i ê n c i a sobretudo a f e t i v a , uma vez que o a n a l i s t a ( e , na l i t e r a t u r a , o i n t é r p r e t e ) procura dar conta das e m o ç õ e s que o t e x t o n e l e d e s p e r t a .

"A Quinta H i s t ó r i a " , conto de C l a r i c e L i s p e c t o r é uma h i s t ó r i a a u t ô n o m a , e, t a m b é m , a ú l t i m a das h i s t ó r i a s de uma s é r i e que v a i t e r , como se anuncia no i n i c i o do conto, "pelo menos três h i s t ó r i a s " . Narrado em p r i m e i r a pessoa, o conto tem um narrador que, por s e r o ú n i c o personagem, c o n s t i t u i uma e s p é c i e de s e r transcendente e o n i s c i e n t e . A e l e nos vamos r e f e r i r , daqui em d i a n t e , como o "narrador", com a r e s s a l v a de

que se t r a t a , na verdade, de um narrador/personagem.

Apesar de t é c n i c a mais comumente usada no romance, sobretudo no chamado romance de f l u x o de c o n s c i ê n c i a , parece-nos p a s s i v e l f a l a r , a q u i , em s o l i l ó q u i o , p o i s o narrador " f a l a s o z i n h o " e se d i r i g e a um p ú b l i c o , ^o que f a z e x p l i c i t a m e n t e a t r a v é s de uma a l u s ã o ao personagem e m b l e m á t i c o Sherazade. R e f e r i n d o - s e ao n ú m e r o de h i s t ó r i a s que v a i f a z e r , d i z :

"Embora uma ú n i c a , seriam mil e uma, se mil e uma n o i t e s me dessem".(13,P.ióE)

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P o r t a n t o » apesar de narrado em s o l o , está p r e s e n t e o pressuposto de pelo menos um i n t e r l o c u t o r o c u l t o . E s s a t é c n i c a permite que se expressem as á r e a s mais p r ó x i m a s do i n c o n s c i e n t e sem l e v a r em conta uma o r g a n i z a ç ã o de cunho eminentemente l ó g i c o . A e x p r e s s ã o dos pensamentos mais Í n t i m o s d á - s e , e n t ã o , em forma de f a l a ; na verdade, p o r é m , t r a t a - s e de algo d i s t a n t e do

que em g e r a l entendemos por " f a l a " - em v á r i o s momentos, o que encontraremos neste conto é uma t r a d u ç ã o de r e a l i d a d e s não v e r b a l i z a d a s , que normalmente não associamos à idéia de " f a l a " . N ã o temos, a q u i , uma t é c n i c a que se possa d e f i n i r como " m o n ó l o g o i n t e r i o r " , p o i s o que está em jogo não é apenas a c o m u n i c a ç ã o de uma r e a l i d a d e p s í q u i c a , mas também o r e l a t a r , a uma p l a t é i a t a c i t a m e n t e s u p o s t a , uma s e q ü ê n c i a que é, toda e l a , trama, e ação. E s s a trama e e s s a a ç ã o , p o r é m , não e s t ã o a s s o c i a d a s a nenhum outro personagem. A ação física s e r á , a q u i , o ponto de p a r t i d a para a i n t r o s p e c ç ã o de uma área onde o processo r a c i o n a l de v e r b a l i z a ç ã o não v a i se v o l t a r para o u t r a s vozes humanas que permeiam as h i s t ó r i a s , mas v a i t e r que dar conta do i n s ó l i t o - a v i d a e a morte de barat a s .

0 narrador já se apresenta na c o n d i ç ã o de quem não está preso à v i s ã o e x t e r i o r de uma testemunha, ou a uma v i s ã o p a r c i a l de personagem -, r e v e l a , a n t e s , um conhecimento global de tudo que acontece, e

i n s t i t u i como i n s t â n c i a única a sua p r ó p r i a v i s ã o dos acontecimentos. Nada temos em termos de um narrador que conte as a ç õ e s de personagens d i f e r e n t e s d e l e , ou de uma d e s c r i ç ã o (em t e r c e i r a pessoa) do que poderia s e r constatado por uma testemunha e x t e r i o r . 0 narrador também não parece propenso a " c o n t a r " os acontecimentos em c u j a e s f e r a

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-e l -e s s-ejam v i s t o s * compr-e-endidos -e i n t e r p r e t a d o s pelo personagem* ou s e j a * por e l e mesmo.

Nossa e s c o l h a de "A Quinta H i s t ó r i a " n ã o se deveu ao f a t o de encontrarmos, no conto, elementos que (mais que alguma o u t r a obra de f i c ç ã o ) nos f a c i l i t a s s e m a a p l i c a ç ã o de c o n c e i t o s da p s i c a n á l i s e , a t é porque e s s e s elementos e s t ã o p r e s e n t e s em toda grande obra de a r t e . A e s c o l h a deveu-se, e n t ã o , muito mais a

q u e s t õ e s de p r e f e r ê n c i a p e s s o a l , a exemplo das " r a z õ e s i n c o n s c i e n t e s " mencionadas por L e y l a P e r r o n e - M o i s é s em "Nenhures", ou s e j a , r a z õ e s que n ã o pertencem à e s f e r a de c o m p e t ê n c i a do a n a l i s t a e fogem ao " i n t e r e s s e dos l e i t o r e s " . Contudo, se n ã o e x i s t i u uma m o t i v a ç ã o de t i p o " c a m i s a - d e - f o r ç a p s i c a n a l i t i c a " , è bem possível que, por v i a

i n d i r e t a , alguns aspectos o b j e t i v o s nos tenham levado a e n t r e v e r a p o s s i b i l i d a d e de uma a p l i c a ç ã o de c o n c e i t o s f r e u d i a n o s ao conto: t a l v e z mais que qualquer autor b r a s i l e i r o c o n t e m p o r â n e o , C l a r i c e L i s p e c t o r tenha se a f a s t a d o da r e p r e s e n t a ç ã o do mundo c o n c r e t o e empreendido uma d e s c i d a ao i n t e r i o r do s e r , o que, i n c l u s i v e , e x p l i c a a r e i n c i d ê n c i a de sua i n c l u s ã o e n t r e os e s c r i t o r e s da i n t r o s p e c ç ã o e do intimismo, i s t o é , v o l t a d o s para a a n á l i s e eminentemente p s i c o l ó g i c a . Em alguns momentos, remeteremos a o u t r a obra de C l a r i c e , "A P a i x ã o segundo G.H.". 0 que v a i , aqui, u n i r o romance ao conto n ã o é uma t e n t a t i v a de c o m p a r a ç ã o , o que i n c l u s i v e f u g i r i a aos o b j e t i v o s d e s t a s r e f l e x õ e s , mas algo como uma " m o t i v a ç ã o menor": uma c e r t a atmosfera e um mesmo i n s e t o , e tudo que nos ajude a lançar mais l u z sobre "A Quinta H i s t ó r i a " .

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p s i c a n a l í t i c a , a l e i t u r a do conto nos s u g e r i u a a p l i c a ç ã o dos c o n c e i t o s de sonho diurno/devaneio, p u l s ã o de a g r e s s ã o , de v i d a e de morte. Antes de e n t r a r na a n á l i s e propriamente d i t a , algumas p a l a v r a s sobre a q u e l e s que, dentre e s s e s c o n c e i t o s , nos parecem os mais p a s s í v e i s de a p l i c a ç ã o no t ext o.

Em um p r i m e i r o momento, nossa i n t e n ç ã o f o i pensar o conto em termos de sonho noturno, p o i s , além da atmosfera o n í r i c a que dele s e depreende, l e v á v a m o s em conta que s ã o muito t ê n u e s a s f r o n t e i r a s e n t r e o o n í r i c o e o f i c c i o n a l . E s s a r u p t u r a com o r a c i o n a l nos levou, e n t ã o , ao e s b o ç o de uma a n á l i s e c e n t r a d a nos c o n c e i t o s de " c o n t e ú d o manifesto" e " c o n t e ú d o l a t e n t e " . A p r i m e i r a h i s t ó r i a , com sua carga de pragmatismo que v a i , i n c l u s i v e , culminar em uma r e c e i t a , s e r i a a n a l i s a d a como o c o n t e ú d o manifesto, ou s e j a ,

" ( . . . ) o r e l a t o d e s c r i t i v o que o i n d i v i d u o f a z de seu sonho num momento em que n ã o tem a sua d i s p o s i ç ã o todas as s i g n i f i c a ç õ e s que o seu sonho exprime".

( l i , p. 144)

Nas o u t r a s h i s t ó r i a s e s t a r i a o desenvolvimento das idéias l a t e n t e s , i s t o é , o r e l a t o dos r e s t o s d i u r n o s , das r e c o r d a ç õ e s de i n f â n c i a , e t c . , que jazem por t r á s do sonho como t r a d u ç ã o n ã o mentirosa do sonhador e a v a l i s t a i r r e f u t á v e l do seu d e s e j o . E s t á v a m o s , portanto, d i a n t e de um a r c a b o u ç o que nos p e r m i t i r i a f a z e r t a l t i p o de a n á l i s e , mas as e v i d ê n c i a s (que a s e g u i r mencionaremos) de que a ação do conto n ã o se passava em sonhos noturnos nos levou a optar pelo c o n c e i t o de sonho diurno/devaneio. Desse

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modo, i m p l í c i t a ou e x p l i c i t a m e n t e , estaremos nos r e f e r i n d o a e s s e aspecto de "A Quinta H i s t ó r i a " como os sonhos nos q u a i s , ainda que n e l e s se encontrem os r e s t o s diurnos e sejam p a s s í v e i s de d e f o r m a ç ã o , quando muito fornecem à e l a b o r a ç ã o s e c u n d á r i a uma "fachada de sonho".

Ainda que os sonhos noturnos tenham muitas c a r a c t e r í s t i c a s em comum com os d i u r n o s ( o s d e v a n e i o s ) , na a n á l i s e deste conto toda r e f e r ê n c i a ao o n í r i c o v a i , e n t ã o , a t e r - s e apenas a e s s e s enredos concebidos em estado de v i g í l i a e n ã o s u f i c i e n t e m e n t e condensados, na alma de quem sonha, para que d e l e s se possa f a l a r em termos de sonhos propriamente d i t o s . Aqui, portanto, optamos p e l a abordagem do que nos parece s e r o seu c o n t e ú d o o n í r i c o em termos de sonhos d i u r n o s , não com a c o n o t a ç ã o de que se d ê e m , n e c e s s a r i a m e n t e , durante o dia»- mas em termos de sua e s p e c i f i c i d a d e enquanto devaneios. Para uma melhor d e f i n i ç ã o deste termo, c o n v é m d i z e r ainda que o mesmo não tem, a q u i , nada a ver com a c o n c e p ç ã o que dele f a z , por exemplo Gaston B a c h e l a r d , que o c o l o c a sob o signo da anima e a s e r v i ç o das imagens f e l i z e s e da tomada de c o n s c i ê n c i a do que chama de "calma s u b s t a n c i a l de nossa p r ó p r i a n a t u r e z a " . Como se v ê , nada mais d i s t a n t e da c o n c e p ç ã o f r e u d i a n a desse mesmo f e n ô m e n o . Em "A Quinta H i s t ó r i a " existem elementos que uma a n á l i s e f o r ç a d a p e r m i t i r i a l e v a r para o d o m í n i o do sonho noturno, mas, na verdade, os f a t o s se passam antes e depois do sono. Na segunda h i s t ó r i a já nos é apresentado um c l a r o i n d i c i o de que s ã o e s s e s os momentos l i m í t r o f e s da a ç ã o :

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"De minha p a r t e , no s i l ê n c i o do apartamento, eu as imaginava subindo uma a uma a t é a área de s e r v i ç o onde o e s c u r o dormia, só uma t o a l h a a l e r t a no v a r a l . Acordei horas depois em s o b r e s s a l t o de a t r a s o " . ( 1 3 , p. 163)

A l i , apenas o escuro dormia, i n d i f e r e n t e à a l t e r n â n c i a de sono e v i g í l i a do n a r r a d o r . Mas, a cada novo l a n c e a c r e s c e n t a d o à h i s t ó r i a a n t e r i o r , f i c a sempre e v i d e n c i a d o que antecederam algumas horas de sono, ou s e j a , que a trama v a i dar-se já ao r a i a r do d i a e com o narrador desperto. A t e r c e i r a h i s t ó r i a t r a z novamente a a f i r m a ç ã o de que o personagem acordou, e de que os f a t o s s i g n i f i c a t i v o s v ã o dar-se na s e q ü ê n c i a desse d e s p e r t a r ; seguindo a e s t r u t u r a do conto, e s s a t e r c e i r a h i s t ó r i a antecede sua retomada p e l a h i s t ó r i a s u b s e q ü e n t e e " r e c o n t a " a segunda, o que, i n c l u s i v e , é claramente e x p l i c i t a d o p e l a m u d a n ç a de tempo v e r b a l . Na segunda h i s t ó r i a , o narrador d i z i a

que " a c o r d e i horas depois", e, na t e r c e i r a , 1 emas:

"A t e r c e i r a h i s t ó r i a que ora se i n i c i a è a das " E s t á t u a s " . C o m e ç a dizendo que eu me queixara de b a r a t a s . Depois vem a mesma senhora. V a i indo a t é o ponto em que, de madrugada, acordo e ainda

sonolenta a t r a v e s s o a c o z i n h a " . ( 1 3 , p . 1 6 3 ) .

Em s í n t e s e , n ã o nos parece p o s s í v e l a n a l i s a r o conto a p a r t i r de um enfoque do sonho noturno, como se o narrador na verdade e s t i v e s s e nos r e l a t a n d o o c o n t e ú d o de sua a t i v i d a d e o n í r i c a , com seu t r a b a l h o de d e f o r m a ç ã o a t r a v é s do qual os m a t e r i a i s

( p r i n c i p a l m e n t e os r e s t o s d i u r n o s ) são t r a t a d o s . E s t e é , fundamentalmente, o papel

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dos procedimentos de deslocamento e c o n d e n s a ç ã o » c u j a t é c n i c a só pode s e r abordada na medida em que os relacionemos com o p r o c e s s o p r i m á r i o que c a r a c t e r i z a o i n c o n s c i e n t e » mas que» r e p e t i n d o » n ã o nos parece p a s s í v e l de a p l i c a ç ã o aqui» onde

imaginamos e s t a r d i a n t e de um processo de devaneio. 0 f e n ô m e n o que examinamos n ã o s e situa» na verdade» no extremo oposto do sonho noturno. Melhor que quaisquer t e n t a t i v a s de d e f i n i ç ã o » as duas c i t a ç õ e s a s e g u i r nos d a r ã o conta da enorme d i f e r e n ç a que separa o devaneio para Bachelard e para Freud. Ao a n a l i s a r os d e s e j o s impulsores que induzem ao d e v a n e i o » e s t e ú l t i m o afirma que os mesmos diferem conforme o sexo» o c a r á t e r e as c i r c u n s t â n c i a s de quem fantasia» mas que

" ( . . . ) n ã o é difícil a g r u p á - l o s em duas d i r e ç õ e s p r i n c i p a i s . S ã o : ou d e s e j o s ambiciosos» tendentes à e l e v a ç ã o da p e r s o n a l i d a d e » ou d e s e j o s e r ó t i c o s . Na mulher jovem dominam» quase e x c l u s i v a m e n t e » os d e s e j o s e r ó t i c o s (...)» no homem jovem agem intensamente, ao lado dos d e s e j o s e r ó t i c o s , os d e s e j o s e g o í s t a s e a m b i c i o s o s " . ( 4 , p. 120)

Bachelard vê a p s i c a n á l i s e como a s s o c i a d a a d e s i g n a ç õ e s f i s i o l ó g i c a s s i m p l i s t a s que pretendem e x p l i c a r o fundo do nosso s e r por r e s í d u o s que a v i d a d i u r n a d e p o s i t a na s u p e r f í c i e da c o n s c i ê n c i a , e que, ao f a z ê - l o , o b l i t e r a m em n ó s o " s e n t i d o do abismo". A p s i c a n á l i s e nos r e m e t e r i a , em ú l t i m a i n s t â n c i a , à zona s u p e r f i c i a l e s o c i a l i z a d a do s e r , e, na e s f e r a de sua r e i v i n d i c a ç ã o de uma o n t o l o g i a mais r e q u i n t a d a ("uma o n t o l o g i a f i n a " ) , d i z Bachelard sobre o devaneio:

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"Viveremos mais seguramente em anima aprofundando o devaneio, amando o devaneio, o devaneio das á g u a s sobretudo, no grande repouso das á g u a s dorment e s " . ( 1 , p. 66)

Portanto, ao nos r e f e r i r m o s ao devaneio na a n á l i s e de nosso conto, teremos por i n s t r u m e n t a l a c o n c e p ç ã o f r e u d i a n a de que muitos t r a ç o s comuns e e s s e n c i a i s ligam os sonhos d i u r n o s aos noturnos, ou s e j a : o devaneio é também uma r e a l i z a ç ã o de d e s e j o s , tem em sua base um f o r t e componente das i m p r e s s õ e s que nos legaram os acontecimentos da i n f â n c i a , e é p a r c i a l m e n t e b e n e f i c i a d o por uma c e r t a i n d u l g ê n c i a de p a r t e da c e n s u r a . Em poucas p a l a v r a s : n ã o se t r a t a , ao menos na a c e p ç ã o aqui levada em conta, do "psiquismo sem a c i d e n t e s " de B a c h e l a r d , mas de um processo que, sobretudo no conto a n a l i s a d o , se i n s c r e v e na e s f e r a da a n g ú s t i a enquanto e x p r e s s ã o s i m b ó l i c a de um c o n f l i t o p s í q u i c o .

Também nos o c o r r e u , de i n i c i o , que "A Quinta H i s t ó r i a " podia s e r a n a l i s a d a com base no c o n c e i t o de p u l s ã o de morte. Nesse " d e s v i o para a morte" e s t ã o p r e s e n t e s i n ú m e r o s componentes que uma p r i m e i r a l e i t u r a do conto nos l e v a r i a , como de f a t o levou, ao pressuposto de que a l i estavam todos os c o n c e i t o s p a s s i v e i s de " e x p l i c a r " o t e x t o : t e n d ê n c i a fundamental de r e t o r n o ao estado

i n o r g â n i c o , d e s i n t e g r a ç ã o compulsiva dos organismos c e l u l a r e s , o c a r á t e r " d e m o n í a c o " dos f e n ô m e n o s de r e p e t i ç ã o , e t c . Algumas passagens do conto pareciam a j u s t a r - s e à p e r f e i ç ã o a uma a n á l i s e centrada na p u l s ã o de mort e:

"Agora eu só queria gelidamente uma c o i s a : matar cada b a r a t a que e x i s t e " . (13, p. 163)

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A o b s e s s ã o de r e p e t i ç ã o , em sua m i s t e r i o s a r e l a ç ã o com o p r i n c i p i o do p r a z e r , i s t o é , enquanto desprazer que n ã o c o n t r a d i z o p r i n c i p i o do p r a z e r , poderia s e r p e r f e i t a m e n t e r a s t r e a d a no conto, i n c l u s i v e em sua p r ó p r i a e s t r u t u r a de r e p e t i ç ã o dos " a s s a s s i n a t o s " ; e s t e s , por sua vez, v ã o sendo r e i t e r a d o s por um encadeamento de h i s t ó r i a s que, na verdade, n ã o passam de uma ú n i c a . Em nosso conto, o c a r á t e r " d e m o n í a c o " , h á pouco mencionado, n ã o só está presente desde que s a í m o s do "pragmatismo" da p r i m e i r a h i s t ó r i a como também recebe, às v e z e s , uma f o r m u l a ç ã o que nos l e v a a v e r o narrador a uma d i s t â n c i a i n f i n i t a da mera necessidade d o m é s t i c o -h i g i ê n i c a de l i v r a r - s e dos i n s e t o s r e p u l s i v o s

que l h e invadem a c a s a . Se, como f o i postulado por Freud, uma p a r t e da p u l s ã o de morte s e c o l o c a a s e r v i ç o de f u n ç ã o sexual e v a i c o n s t i t u i r o sadismo, p o d e r í a m o s ver nesse d e s v i o a e x p l i c a ç ã o do comportamento de nosso n a r r a d o r , sobretudo nos momentos em que se dedica ao preparo do veneno:

" M e t i c u l o s a , ardente, eu a v i a v a o e l i x i r da longa morte". (13, p. 163) "Eu i r i a e n t ã o renovar todas as n o i t e s o a ç ú c a r l e t a l ? como quem já n ã o dorme sem a a v i d e z de um r i t o " . (13, p. 164)

No entanto, no d e c o r r e r da l e i t u r a dos t e x t o s f r e u d i a n o s e das r e l e i t u r a s de "A Quinta H i s t ó r i a " , algumas q u e s t õ e s foram se colocando e nos levando a pensar ainda em p u l s ã o de morte, mas já n ã o mais como um c o n c e i t o detentor de e x c l u s i v i d a d e enquanto m o t i v a ç ã o dos a t o s do n a r r a d o r . Da l e i t u r a de "Mais Além do P r i n c i p i o do P r a z e r " f i c o u - n o s a i m p r e s s ã o de que, enquanto c o n c e i t o puro, a p u l s ã o de morte n ã o se a p l i c a exatamente ao outro, mas ao p r ó p r i o s e r no qual s e

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m a n i f e s t a » ou s e j a , à t o t a l i d a d e dos s e r e s . No conto de C l a r i c e L i s p e c t o r , o que temos é um personagem que, em momento algum, toma qualquer i n i c i a t i v a no s e n t i d o da d i s s o l u ç ã o de seu p r ó p r i o s e r , e d e l a n ã o c o g i t a nem mesmo simbolicamente. Na verdade, a v i s ã o das b a r a t a s como c o n f i g u r a ç õ e s de um estado i n t e r i o r marcado pelo c o n f l i t o e n t r e o ego e os elementos r e c a l c a d o s (e que p r e c i s a s e r e l i m i n a d o ) v a i nos l e v a r à i n t r o d u ç ã o , em nossa a n á l i s e , do c o n c e i t o de p u l s ã o de v i d a .

0 que nos parece mais apropriado, a q u i , é i n t r o d u z i r uma p u l s ã o que "complementa" a p u l s ã o de morte, e que, nas p a l a v r a s de Laplanche, se e n c a i x a no quadro "da t e o r i a d u a l i s t a das p u l s õ e s de v i d a e das p u l s õ e s de morte" ( i i , p. 5 i i ) . A morte que, neste conto, se d e s e j a e anuncia, e que acaba sendo delegada a o u t r a i n s t â n c i a , é a morte do outro, a d e s t r u i ç ã o do o b j e t o . Sabemos que, ao deparar-se com a c o m p u l s ã o de r e t o r n o ao i n o r g â n i c o , a l i b i d o tem a função de e l i m i n a r e s s a t e n d ê n c i a , o que r e a l i z a " < · . . ) fazendo-a d e r i v a r em grande p a r t e para o e x t e r i o r , d i r i g i n d o - a c o n t r a os o b j e t o s do mundo e x t e r i o r , ( . . . ) . E s t a p u l s ã o chama-se e n t ã o p u l s ã o d e s t r u t i v a , p u l s ã o de d o m i n a ç ã o , vontade de poder". <11, p. 5 2 ? )

0 que temos, no conto, é exatamente

a l i b i d o tentando a n u l a r o d e s e j o de morte do outro, d e s e j o que aqui se c o n s t i t u i , antes de uma modificação significat iva de sua trajetória, em v e r d a d e i r o ê x t a s e . Portanto, ao mesmo tempo em que temos uma s i t u a ç ã o de f a t o (a d e s t r u i ç ã o do o b j e t o , i n s t i t u í d a p e l a l i b i d o enquanto "sadismo propriamente d i t o " ) , temos também um personagem que, a p a r t i r da

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t e r c e i r a h i s t ò r i a , v a i aos poucos refreando seu d e s e j o de s e r , diretamente, o agente causador da morte, e também o f a z em nome da l i b i d o , ou, pelo menos, por i n s t â n c i a s que a e l a remetem inequivocamente.

Pensamos, e n t ã o , que uma l e i t u r a p s i c a n a l í t i c a de "A Quinta H i s t ó r i a " deva l e v a r em conta os c o n c e i t o s de sonho e p u l s ã o de morte, respectivamente v o l t a d o s para os a s p e c t o s de sonho diurno/devaneio e p u l s ã o de a g r e s s ã o , além da p u l s ã o de v i d a , ou E r o s . I m p l í c i t a ou e x p l i c i t a m e n t e , e s t a r ã o o tempo todo p r e s e n t e s em nossa abordagem do conto.

"A Quinta H i s t ó r i a " tem um p a r á g r a f o i n i c i a l que e q u i v a l e ao delineamento de um programa n a r r a t i v o . F i c a c l a r o , de i n i c i o , que na verdade as c i n c o h i s t ó r i a s são apenas uma, o que s e . nos e v i d e n c i a diretamente, mediante enunciados e x p l í c i t o s ,

"Embora uma, seriam mil e uma, se mil e uma n o i t e s me dessem".(13, p. 162) ou a l u s õ e s que nos permitem, por v i a

i n d i r e t a , c o n c l u i r p e l a unidade do conjunto: " F a r e i e n t ã o pelo menos três h i s t ó r i a s , v e r d a d e i r a s , porque nenhuma d e l a s mente a o u t r a " . ( 1 3 , p. 162) 0 " n ã o m e n t i r - s e " i m p l i c a em que, uma vez c o n s t i t u i n d o a e s t r u t u r a de um só conto, as c i n c o h i s t ó r i a s não p o d e r ã o optar p e l a d i v e r s i d a d e . A autora " t r a i " o tempo do verbo - " F a r e i e n t ã o pelo menos três

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h i s t ó r i a s " -, p o i s , sob o d i s f a r c e do " f a r e i " , temos na verdade o já f e i t o e elaborado, e, f o s s e e l a nos n a r r a r no imediato em que v a i nos i n v e n t a r as h i s t ó r i a s , a s e q ü ê n c i a s e r i a a proposta no i n i c i o , uma s e q ü ê n c i a que, do modo como vem apresentada, n ã o è obedecida. 0 " f a r e i " é também a e n u n c i a ç ã o de um d e s e j o que, antes de c o n f i g u r a r - s e como "de matar b a r a t a s " , é o de i n v e n t a r h i s t ó r i a s . Também f i c a c l a r o , de

i n i c i o , que e s s a s h i s t ó r i a s n ã o v ã o e s t a r em p o s i ç ã o de confronto, mas de complementaridade, uma vez que nenhuma v a i

mentir a o u t r a .

A p r i m e i r a h i s t ó r i a c o m e ç a com o que v a i s e r o f i o condutor da n a r r a t i v a : "Queixei-me de b a r a t a s " , que só v a i s e r

l i g e i r a m e n t e modificado na t e r c e i r a h i s t ó r i a . Aqui temos também o n a r r a d o r , e e s t e , como f i c a c l a r o na c i t a ç ã o abaixo, ao a n u n c i a r o que v a i s e r narrado c o l o c a - s e , na s e q ü ê n c i a i m e d i a t a , como o personagem de sua p r ó p r i a n a r r a t i v a :

"A p r i m e i r a , "Como M a t a r B a r a t a s " , c o m e ç a assim: queixei-me de b a r a t a s " . ( 1 3 , p. 162)

Estamos d i a n t e de i n s e t o s de

p r e s e n ç a imemorial e a r c a n a , que existem na

t e r r a há m i l h õ e s de anos e simbolizam o r e p u l s i v o que h a b i t a o s mundos s u b t e r r â n e o s ; em "A P a i x ã o Segundo G.H.", a b a r a t a è d e s c r i t a como t ã o a n t i g a como uma lenda, " t ã o v e l h a como salamandras e quimeras e g r i f o s e

l e v i a t ã s " (12, p. 5 1 ) . Podemos v ê - l a como um

a r q u é t i p o imemorial do homem, forças que, s o b r e t u d o na e s s ê n c i a de s u a s a s s o c i a ç õ e s com

os e s t a d o s p a t o l ó g i c o s do psiquismo humano, foram a p a r t a d a s dos d o m í n i o s do " s a u d á v e l " e

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c u l t u r a (e a c i v i l i z a ç ã o ) s o t e r r a r a m .

Como j á dissemos antes* a p r i m e i r a h i s t ó r i a tem um f o r t e componente de pragmatismo* de t a l modo que* t i v é s s e m o s optado por outro t i p o de enfoque* s e r i a p o s s í v e l v ê - l a como o c o n t e ú d o manifesto de um sonho. 0 narrador queixa-se de b a r a t a s e é ouvido por "uma senhora" que imediatamente fornece a r e c e i t a de como m a t á - l a s * uma r e c e i t a que tem o r e q u i n t e de crueldade de matar pelo e n r i j e c i m e n t o do "de-dentro". Assim* a p a r t i r de um fato que nada tem de e x c e p c i o n a l (o q u e i x a r - s e n ã o parece d e c o r r e r de algo que incomode a fundo o n a r r a d o r ) * v a i s e g u i r - s e um desmembramento que» p e l a v i a de uma v e r d a d e i r a i n d a g a ç ã o m e t a f í s i c a » v a i

f a z e r a f l o r a r o extremo oposto de uma b a n a l i d a d e » ou seja» o d e m o n í a c o . N ã o nos parece procedente v e r o r e q u i n t e de crueldade da r e c e i t a como elemento d e s a u t o r i z a d o r da r e f e r i d a atmosfera de banalidade cotidiana» mesmo porque fazê-lo s e r i a a d m i t i r a e x i s t ê n c i a de r e c e i t a s piedosas de matar. Ainda que apenas uma i n f e r ê n c i a de nossa parte» tudo se passa como se» de um encontro c a s u a l com "uma senhora" e de uma queixa quase semelhante ao q u e i x a r - s e do mau tempo, r e s u l t a s s e a r e c e i t a d e f l a g r a d o r a de uma c o m p u l s ã o de e l i m i n a r o impuro.

A segunda h i s t ó r i a , que ê "a p r i m e i r a mesmo", apenas recebe um novo t i t u l o . A p r i m e i r a , "Como Matar B a r a t a s " , já t r a z i a no t i t u l o sua c o n d i ç ã o de r e c e i t a e, na segunda, "0 A s s a s s i n a t o " , temos o ponto de p a r t i d a de uma t r í p l i c e aventura: experimenta 1t no n i v e l da linguagem ( d e i x a - s e de lado o modelo " r e c e i t a " ) , de avanços e recuos do desejo de matar, o que, no n i v e l do enunciado, n ã o desenha nada que se possa c o n f i g u r a r como uma t r a j e t ó r i a c o n t i n u a , e,

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a t r a v é s das b a r a t a s , de mergulha na centra da

psiquismo da narrador, e s p a ç o por e x c e l ê n c i a

de seus d e m ô n i o s i n t e r i o r e s . D e f l a g r o u - s e , a q u i , o que chamaremos de p u l s ã o de a g r e s s ã o do n a r r a d o r , um estado de e x c i t a ç ã o que não pode j u s t i f i c a r - s e p e l a simples necessidade de l i v r a r a c a s a de i n s e t o s i n d e s e j á v e i s . D que temos é uma e s p é c i e de deslocamento que v a i t r a n s f o r m a r o s i m p l e s ato de uma " a g r e s s ã o c i v i l i z a d a " (matar i n s e t o s é uma a t i v i d a d e d o m é s t i c a c o r r i q u e i r a ) em algo que e x t r a p o l a por completo e s s a "normalidade" e se c o l o c a diretamente a s e r v i ç o da p u l s ã o de morte v o l t a d a para o e x t e r i o r . 0 p r ó p r i o narrador parece s u r p r e s o com a i n t e n s i d a d e com que passa a d e s e j a r a morte das b a r a t a s , p o i s faz uma e s p é c i e de pausa em que t e n t a equacionar a v i o l ê n c i a que c o m e ç a a se t o r n a r a força motriz de seus a t o s , e que, na verdade, s u r g i u praticamente de uma i n d i f e r e n ç a pelo a s s u n t o :

"A verdade è que só em a b s t r a t o me h a v i a queixado de b a r a t a s , que nem minhas eram: pertenciam ao andar t é r r e o e escalavam os canos do e d i f í c i o até o nosso l a r " . ( 1 3 , p. 162)

Surge, p e l a p r i m e i r a vez, a r e f e r ê n c i a ao " s u b i r p e l o s canos", que v a i s e r r e p e t i d a ainda n e s t a segunda h i s t ó r i a e retomada, na q u a r t a , sob uma p e r s p e c t i v a d i f e r e n t e , ou s e j a , a p a r t i r do e s p a ç o físico do n a r r a d o r :

"Mas olho para os canos, por onde e s t a mesma n o i t e r e n o v a r - s e - á uma p o p u l a ç ã o

l e n t a e v i v a em f i l a i n d i a n a " . ( 1 3 , p. 164)

T e r í a m o s , a q u i , que a d m i t i r (de p a r t e do n a r r a d o r ) a capacidade de ver intra-muros, ou

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a i n t e n s i f i c a ç ã o a b s o l u t a d o c ó d i g o de f o c a l i z a ç ã o que rege o conjunto: n ã o apenas um caso extremo de " f o c a l i z a ç ã o z e r o " , em que um narrador/personagem passa i n f o r m a ç õ e s às q u a i s , e s p a c i a l ou p s i c o l o g i c a m e n t e , j a m a i s t e r i a t i d o a c e s s o , mas, a t é mesmo, um caso do que é chamado de " p a r a l e p s e " por G é r a r d Genette ( 7 ) . A p r o p ó s i t o , e s t e é um p a d r ã o que, excetuando-se a p r i m e i r a e a quinta h i s t ó r i a s , pode s e r a p l i c a d o a todas as demais.

E s s a d e a m b u l a ç ã o no e s p a ç o (o " s u b i r p e l o s canos") remete, l i t e r a l m e n t e , a uma viagem i n t e r i o r que se c o n t r a p õ e à p e r e g r i n a ç ã o do narrador em sua d e s c i d a rumo aos a t r i b u t o s de um ego que precisam s e r purgados, i s t o é , v o l t a d o s para a d e s t r u i ç ã o do o b j e t o . Os canos representam a q u i l o que, mesmo estando dentro, ocupam simbolicamente um e s p a ç o e x t e r i o r (podem a t é mesmo s e r v i s t o s ) ; o v e r d a d e i r o de-dentro, além da m a t é r i a o r g â n i c a das b a r a t a s , é o componente de a g r e s s ã o que se está indo buscar no ego p a r a , em seguida, v o l t á - l o c o n t r a a q u i l o que c o n s t i t u i i n c ô m o d o no mundo e x t e r i o r . E s i g n i f i c a t i v a , a esse r e s p e i t o , uma a f i r m a ç ã o f e i t a na quarta h i s t ó r i a : " E s t r e m e c i de mau p r a z e r à v i s ã o daquela v i d a dupla de f e i t i c e i r a . E e s t r e m e c i também ao a v i s o do gesso que s e c a : o v i c i o de v i v e r que r e b e n t a r i a meu molde i n t e r n o " . ( 1 3 , p. 164)

Ao preparar a m i s t u r a , o narrador se dá conta de que seu d e s e j o de matar se tornou i r r e v e r s í v e l , o que vamos percebendo a t r a v é s das d e s c r i ç õ e s de sua c r e s c e n t e animosidade c o n t r a os i n s e t o s . Tivemos, p r i m e i r o , o quase d i s p l i c e n t e rancor c o n t r a e l e s , b a r a t a s que "nem minhas eram"; depois

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de preparado o veneno* o narrador de f a t o e n t r a em um crescendo no qual v i s i v e l m e n t e se e x t a s i a ao antever a d e v a s t a ç ã o que v a i p r a t i c a r , já agora no plano e m p í r i c o . 0 c o n f l i t o , que e r a l a t e n t e ("uma c a s a tão t r a n q ü i l a onde se podia i g n o r a r as b a r a t a s " ) , passa a manifesto ("impossível c o n t i n u a r ignorando e s s e mal s e c r e t o " ) , o que pode s e r assim formulado: o d e s e j o se s o b r e p ô s a uma e x i g ê n c i a moral, duas f o r ç a s de s e n t i d o c o n t r á r i o e s t ã o , ao menos p r o v i s o r i a m e n t e , f l u i n d o no mesmo s e n t i d o . 0 narrador está d e c i d i d o a matar, e d i s s o nos v ã o dar conta as d e s c r i ç õ e s de sua c r e s c e n t e animosidade:

"Em nosso nome, e n t ã o , comecei a medir e pesar os i n g r e d i e n t e s numa c o n c e n t r a ç ã o um pouco mais i n t e n s a " . ( 1 3 , P. 168)

"Um vago rancor me tomara, um senso de u l t r a j e " . ( 1 3 , P. 162)

" M e t i c u l o s a , ardente, eu a v i a v a o e l i x i r da longa morte".(13, p. 163)

"Agora eu só q u e r i a gelidamente uma c o i s a : matar cada b a r a t a que e x i s t e " . ( 1 3 , p. 163) Surgem a q u i , p e l a p r i m e i r a v e z , d o i s componentes que v ã o r e p e t i r - s e na t e r c e i r a h i s t ó r i a : as o p o s i ç õ e s c l a r o / e s c u r o e sono/sonho ( d e v a n e i o ) / d e s p e r t a r . E grande a i n s i s t ê n c i a n e s s a s o p o s i ç õ e s , sobretudo no que d i z r e s p e i t o ao c l a r o / e s c u r o . Nesta segunda h i s t ó r i a , temos a r e c e i t a já pronta

("tão b r a n c a " ) , o escuro (que "dormia" na área de s e r v i ç o ) , a n o i t e (durante a qual "eu matara") e a a l v o r a d a ("Em nosso nome amanhecia"). Na t e r c e i r a h i s t ó r i a , teremos a " e s c u r i d ã o da a u r o r a " , "sombras e b r a n c u r a s " ,

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nova m e n ç ã o à "comida branca", o " a l v o r e c e r em Pompeia", " e s s a n o i t e " e " o r g i a no e s c u r o " . N ã o parece, portanto, que a p r e s e n ç a do branco se deva apenas à cor do veneno, e tampouco que o negro decorra exclusivamente do f a t o de o e x t e r m í n i o r e a l i z a r - s e à n o i t e . No oximoro " e s c u r i d ã o da a u r o r a " o branco, que na linguagem s i m b ó l i c a pode i m p l i c a r e a u s ê n c i a ou soma de c o r e s , tanto pode c o l o c a r - s e no i n i c i o quanto no fim da v i d a d i u r n a , uma d u p l i c i d a d e de funções que também pode s e r t r a n s p o s t a para o t é r m i n o da v i d a , quando também se está em uma r e g i ã o l i m í t r o f e e n t r e o visível e o i n v i s í v e l . Em muitas c i v i l i z a ç õ e s p r i m i t i v a s , o branco e r a a cor do l u t o , ainda que e s s e l u t o n e l a s t i v e s s e f o r t e s matizes m e s s i â n i c o s . Neste conto a cor branca nos parece e s t a r , também, em uma e s p é c i e de r e l a ç ã o de cumplicidade com o d i a , i s t o é , com uma i n s t â n c i a do ego em que os c o n f l i t o s e n t r e as p u l s õ e s não e s t ã o ainda man i f e s t os:

"De d i a as b a r a t a s eram v i s í v e i s e n i n g u é m a c r e d i t a r i a no mal s e c r e t o que r o l a c a s a tão t ran qüi 1 a" . (13, P . 163)

Estamos, p o r é m , d i a n t e de uma s i t u a ç ã o em que os c o n f l i t o s deixaram de s e r l a t e n t e s , e e s t ã o aflorando à s u p e r f í c i e da c o n s c i ê n c i a . Assim, ao branco deve sobrepor-se o negro, cor que, em sua r e l a ç ã o s i m b ó l i c a com o i n c o n s c i e n t e , abrange tudo o que neste se pode t e r em termos do o c u l t o e do

i m p r e v i s t o , de E r o s f r u s t r a d o . Tendo em v i s t a o c a r á t e r i n c o n c i l i á v e l das p u l s õ e s , p o d e r í a m o s d i z e r que o que temos aqui são o p o s i ç õ e s das r e p r e s e n t a ç õ e s . De um lado, um c o n f l i t o que a f l o r o u em forma de p u l s ã o de a g r e s s ã o e v e i o dos abismos do i n c o n s c i e n t e , r e p r e s e n t a d o pelo negro, e s s a cor c t ô n i c a e e v o c a t i v a de nosso u n i v e r s o i n s t i n t i v o

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p r i m i t i v o ; de outro» o branco que» com seu duplo s e n t i d o (em "A Quinta H i s t ó r i a " ) de veneno/renascimento, aponta para um vencedor desse embate travado em nome da fusão de duas pui s o e s :

"E a ú l t i m a t e o r i a das p u l s õ e s , com a sua o p o s i ç ã o r a d i c a l e n t r e p u l s õ e s de v i d a e p u l s õ e s de morte» que impõe a q u e s t ã o : quais são» em determinado c o m p o r t a m e n t o » em determinado sintoma» a p a r t e r e s p e c t i v a e o modo de a s s o c i a ç ã o de d o i s grandes t i p o s de p u l s ã o ? Qual o seu funcionamento combinado» a sua d i a l é t i c a ao longo das etapas da e v o l u ç ã o do i n d i v i d u o ? " ( 1 1 , pp. 266-67)

0 escuro n ã o p o d e r á s e r usado, aqui» como i n d i c i o ou prova de que as a ç õ e s ocorrem nos sonhos do n a r r a d o r . Nas t r ê s h i s t ó r i a s i n t e r m e d i á r i a s » f a z - s e m e n ç ã o ao dormir ("De minha cama, no s i l ê n c i o do apartamento,...") e ao d e s p e r t a r ("Acordei (...) em s o b r e s s a l t o de a t r a s o " ) , mas a ação propriamente d i t a é p r a t i c a d a em uma fase a n t e r i o r ao adormecimento, quando do preparo e da a d m i n i s t r a ç ã o do veneno, e em outra p o s t e r i o r ao sono, uma f a s e que p o d e r í a m o s designar por " a p r e c i a ç ã o dos r e s u l t a d o s a l c a n ç a d o s " . N ã o nos parece p o s s í v e l , p o r t a n t o , negar as e v i d ê n c i a s de que o sono não passa de etapa i n t e r m e d i á r i a e n t r e o preparo do veneno e o e s p e t á c u l o dos i n s e t o s mortos e e n r i j e c i d o s por dentro. Contudo, é b a s t a n t e p e r c e p t í v e l , como já dissemos, uma atmosfera de sonho diurno/devaneio, o que, i n c l u s i v e , vem a s e r corroborado por termos i n d i c a t i v o s de uma c o n s c i ê n c i a em grau m í n i m o de t e n s ã o :

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apartamento, eu as imaginava subindo uma a uma a t é a área de s e r v i ç o onde o escuro dormia, (...)".(13»p.163)

(13, p. 163)

"Vai indo a t é o ponto em que, de madrugada, acordo e ainda sonolenta a t r a v e s s o a c o z i n h a " . ( 1 3 , p. 163)

A p a r t i r da t e r c e i r a h i s t ò r i a o narrador c o m e ç a a r e v e r seu desejo de matar, gelidamente, "cada b a r a t a que e x i s t e " , e e s s e dado nos parece i n d i c a t i v o de que nele está se manifestando o p r i n c i p i o de c o n s e r v a ç ã o da v i d a , ou, em outros termos, a p u l s ã o de v i d a ( E r o s ) em o p o s i ç ã o à p u l s ã o de morte e a g r e s s ã o . É s i g n i f i c a t i v o que, ao i n i c i a r - s e e s s a r e v e r s ã o na t e r c e i r a h i s t ò r i a , os termos mais usados comecem a apontar para o amor, quando n ã o para o mais puro erotismo; há i n c l u s i v e , uma m e n ç ã o a Pompeia, que antecede de bem pouco a e x p r e s s ã o " o r g i a no e s c u r o " . A d e s c r i ç ã o das " e s t á t u a s " , que a t é e n t ã o fora

f e i t a em termos duros, quase como em um eco ao endurecimento do "de-dentro" dos i n s e t o s , passa agora a ecoar duas a f i r m a ç õ e s f e i t a s pouco antes de i n i c i a r - s e a quarta h i s t ó r i a :

"Sou a p r i m e i r a testemunha do a l v o r e c e r em Pompeia. S e i como f o i e s t a ú l t i m a n o i t e , s e i da o r g i a no e s c u r o " . ( 1 3 , P . 163)

Todas as p r ó x i m a s r e f e r ê n c i a s ao gesso endurecido s e r ã o , a p a r t i r de agora, c o n t r a b a l a n ç a d a s por uma linguagem que v a i em busca do amoroso e do e r ó t i c o . Em algumas b a r a t a s o gesso terá endurecido lentamente, mas e l a s , em c o n t r a p a r t i d a , " t e r ã o sofregamente i n t e n s i f i c a d o a s a l e g r i a s da n o i t e " ; o u t r a s se c r i s t a l i z a m de s ú b i t o , mas, ao c o n t r á r i o da s e c u r a dos c o m e n t á r i o s

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a n t e r i o r e s * o que se d i z aqui é quase um pedido de p e r d ã o : " E l a s que» usando o nome de amor em vão» na n o i t e de v e r ã o cantavam". Pouco antes de i n i c i a r - s e a p e n ú l t i m a h i s t ó r i a » o narrador v a i descobrir» a t r a v é s de uma " b a r a t a marrom s u j a de branco", a q u i l o que, para o i n s e t o , f o i uma descoberta fatalmente t a r d i a : a de que se mumificou exatamente "por n ã o t e r sabido usar as c o i s a s com a graça g r a t u i t a do em v ã o " , i s t o é , por t e r olhado "demais para dentro de...".

Em "A P a i x ã o Segundo G.H.", quando o narrador s e depara com uma b a r a t a e, no d i z e r de Massaud M o i s é s ( 1 5 ) , " t r a v a com e l a o " d i á l o g o " d e c i s i v o de sua v i d a " , e s s e momento de e p i f a n i a tem um desfecho muito d i v e r s o do que encontramos em "A Quinta H i s t ó r i a " :

" A t r a i d a para uma armadilha e x i s t e n c i a l i s t a , a narradora v i v ê n c i a o momento de sua e p i f a n i a : "a hora de v i v e r " . Paradoxalmente, " p e l a p r i m e i r a vez e l a se s e n t i u incumbida por um i n s t i n t o " , embriagada "com o d e s e j o , j u s t i f i c a d o ou n ã o , de matar (...) como se p e l a p r i m e i r a vez enfim (...) e s t i v e s s e ao n i v e l da n a t u r e z a " " . (15,

P. 6)

Em "A P a i x ã o Segundo 6.H.", onde a r e d e n ç ã o do personagem se dá no l e v a r à boca a massa o r g â n i c a e branca da b a r a t a espremida, a "hora de v i v e r " do narrador d á -se qua-se no exato i n s t a n t e em que -se decide p e l a "hora de morrer" da b a r a t a ; em nosso conto, a hora de morrer antecedeu a e p i f a n i a e a r e d e n ç ã o , de t a l modo que ao narrador r e s t a apenas a d e c i s ã o de n ã o matar "com suas p r ó p r i a s m ã o s " , mas de delegar e s s a morte a uma " i n s t â n c i a normal"; quase p o d e r í a m o s

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d i z e r que encontrou sua " s o l u ç ã o f i n a l " . A quarta h i s t ó r i a é , toda e l a , uma i n t e n s i f i c a ç ã o das d ú v i d a s s u r g i d a s na t e r c e i r a :

"Eu i r i a e n t ã o renovar todas a s n o i t e s o a ç ú c a r l e t a l ? " ( 1 3 , p. 164)

"E todas as madrugadas me c o n d u z i r i a s o n â m b u l a a t é o p a v i l h ã o ? " < 1 3 , P . 164)

A a n t e v i s ã o dessa s e q ü ê n c i a de a s s a s s i n a t o s , claramente demarcada por sua r e p u l s a em l e v a r "aquela v i d a dupla de f e i t i c e i r a " e pelo a v i s o contido no gesso, ou s e j a , "o v i c i o de v i v e r que r e b e n t a r i a meu molde i n t e r n o " , impõe ao narrador a n e c e s s i d a d e de o p ç ã o por um de d o i s caminhos. E l e e s c o l h e convencido de que, ao f a z ê - l o , pagou o p r e ç o da d e s p e r s o n a l i z a ç ã o , uma vez que a e s c o l h a " s e r i a a do s a c r i f i c i o : eu ou minha alma". Ao delegar a morte das b a r a t a s a um s e r v i ç o de d e d e t i z a ç ã o , abre m ã o da grandeza do confronto com seus i n s t i n t o s e suas p u l s õ e s : e n t r e o eu ou a alma, f i c o u com o p r i m e i r o . A ú l t i m a f r a s e da quarta h i s t ó r i a ,

"E hoje ostento secretamente no c o r a ç ã o uma p l a c a de v i r t u d e : " E s t a c a s a f o i d e d e t i z a d a " " . ( 1 3 , P . 165) c o n s t i t u i , na verdade, um contraponto à ú l t i m a f r a s e do conto, onde o narrador r e n u n c i a à r e m i s s ã o às c o i s a s e aos f a t o s do mundo c o n c r e t o . 0 medo do aprofundamento nos r e c e s s o s do s e r jà se e v i d e n c i a r a na f r a s e "é que o l h e i demais para dentro de...", que r e p r e s e n t a o estopim do " r e t o r n o à normalidade". E s s a r e n ú n c i a , p o r é m , encobre

(sob o d i s f a r c e de um aparente ê x t a s e m i s t i c o ) uma s i t u a ç ã o de fato que i m p l i c a no

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seu p r ó p r i o c o n t r á r i o : a f r a s e é formulada quando o que se v a i d i z e r na s e q ü ê n c i a i m e d i a t a ,

"A quinta h i s t ó r i a chama-se " L e i b n i z e a T r a n s c e n d ê n c i a do Amor na P o l i n è s i a " . Comesa assim: queixei-me de b a r a t a s " . ( 1 3 , P- 1Ó5)

nega, ao s e r afirmada, qualquer idéia de t r a n s c e n d ê n c i a , uma vez que se retornou à banalidade da p r i m e i r a h i s t ó r i a - a f i n a l , quem tem b a r a t a s em c a s a tem d o i s caminhos a s e g u i r : ou consegue uma r e c e i t a para acabar com e l a s , ou chama a d e d e t i z a ç ã o . Não temos, p o r t a n t o , a r e d e n ç ã o grandiosa que p a r e c i a e s t a r sendo preparada pelo c o n f l i t o com as camadas profundas do psiquismo, ou que p o d e r i a s e r falsamente i n f e r i d a da r e f e r ê n c i a a L e i b n i z , ao Amor, à T r a n s c e n d ê n c i a e à P o l i n é s i a . Não se consumou com grandeza um r i t u a l d e m o n í a c o de p u r i f i c a ç ã o , a e x p i a ç ã o se dá pelo mediocre, as b a r a t a s perdem sua c o n d i ç ã o de i n s e t o s dotados de carga p o é t i c a e s i m b ó l i c a . Sua e l e v a ç ã o a n t e r i o r a n ú c l e o da e n e r g i a p o é t i c a apenas confirma, em nossa o p i n i ã o , a q u i l o que, de i n i c i o , afirmamos t e r s i d o a v e r d a d e i r a i n t e n ç ã o desse narrador -antes de mais nada, cantar histórias.

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