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4400 - Promessas Quebradas - David Mack

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Academic year: 2021

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Promessas Quebradas

David Mack

Tradução: Vinícius Fernandes

Helena Padim

Visite: http://brenooficial.wordpress.com/

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Todos esses morreram na fé, sem terem recebido as promessas, mas tendo visto-as distanciarem-se, e foram induzidos a elas, agarram-nas, e confessaram que eram estranhos e peregrinos na Terra. -Hebreu 11:13 PARTE UM ESTRANHOS E PEREGRINOS UM TRÊS DE ABRIL DE 2008

NU E TREMENDO, Roger Keegan acordou amarrado à uma cadeira. Estava sentado no centro de uma poça de uma desagradável luz incandescente, mas a sala ao seu redor estava mergulhada no breu. Algemas de metal mordiam seus pulsos, que estavam presos atrás de si. A única coisa que conseguia cheirar era amônia.

Parece um porão, pensou. Ainda estou no cassino? Ele viera para Las Vegas para alguns dias de bem-merecidas férias: algumas cartas, algumas strippers, quem sabe um pouco de sexo. Talvez em algum momento entre seus seis copos de bebida no Mirage alguma coisa dera muito, muito errada. Uma porta se abriu na escuridão, mas não houve luz que atraiu os olhos de Roger. Os passos foram respondidos por ecos apressados enquanto se aproximavam. Roger engoliu em uma tentativa inútil de diminuir o gosto de álcool metabolizado em sua língua, que estava coberta por uma pasta repugnante. Piscando os olhos, o gerente de quarenta e dois anos viu três figuras sombrias pisarem no anel de sombra além de seu círculo de luz. Duas pareciam-se com homens, a outra tinha as curvas atraentes de uma mulher.

O homem à esquerda acendeu um cigarro, iluminando seu rosto moreno com uma luz laranja. Então ele fechou o isqueiro, e tudo o que restou foi uma rodilha de luz na ponta do cigarro. Roger tremeu diante do cheiro forte de tabaco. O que quer que aquele homem estivesse fumando, era mais forte e mais amargo.

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— Sim — respondeu a mulher. — Ele foi preparado.

Lançando olhares assustado a cada membro do trio, Roger disse:

— Espere um pouco, deve ter havido algum erro! Sou apenas um representante de vendas! Meu nome é Roger Keegan, eu não… — O estalo de algo girando numa semiautomática o cortou.

— Devíamos começar — disse o homem no meio. Ele e seus dois companheiros pisaram na luz.

Estavam vestidos com roupas de trabalho casuais – ternos sem gravatas para os homens, um conjunto de saia e jaqueta cinza para a mulher. Ela era pálida e loira, e segurava um aparelho estranho com uma seringa e uma agulha. Roger não a reconheceu o negro com o cigarro. Parado no meio deles, no entanto, estava um homem de barba grisalha que parecia familiar.

Demorou um momento até que Roger puxasse o nome do homem de sua memória. Então ocorreu a ele.

— Puta merda! — exclamou, os olhos arregalados em descrença. — Você é o George Sterling! Isso é um filme? O famoso produtor-diretor de Hollywood ignorou Roger e estendeu uma mão ao seu colega masculino. — Vamos logo com isso. O homem negro estendeu a pistola a Sterling. Então o produtor de filmes levantou a arma, encostou o cano em sua própria têmpora e puxou o gatilho. O som ecoou através do chão e das paredes quando o lado esquerdo da cabeça de Sterling explodiu num suculento espirro vermelho.

Seu corpo amoleceu, caiu com o rosto para os pés de Roger e pousou com um barulho abafado. A pistola escapou de sua mão e espatifou-se no chão. O sangue se espalhou numa rápida maré ao redor dos pés descalços de Roger. Tremendo de medo e adrenalina agora, ele gritou para a loira e para o negro: — Mas que inferno está acontecendo?

Eles não responderam. A mulher deu um passo à frente, ajoelhou-se ao lado titã morto de Hollywood e enfiou a agulha de seu dispositivo em seu crânio, na sua medula espinhal. Ela mexeu em um teclado ao lado do aparelho. Um momento depois, um fluido prata brilhante começou a encher a seringa atrás da agulha, saindo do pescoço de Sterling.

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Roger berrou: — Quem são vocês? O que é isso? — Logo você vai descobrir — disse o negro indo para o lado da cadeira de Roger.

A loira removeu a seringa do pescoço de Sterling, levantou-se e caminhou na direção de Roger.

— Segure-o — disse ela.

Seu comparsa enrodilhou um braço musculoso na garganta e mandíbula de Roger. Com precisão e força, ele virou o queixo de Roger e o imobilizou. — Pare! — implorou Roger. — Por favor, não faça isso! A mulher recebeu seu apelo com um sorriso frio e olhos azuis sem piedade. — O que você acha que nós vamos fazer? — Eu… eu não sei — disse Roger, tão assustado que não consegui nem pensar. Golpeando-o no rosto, ela perguntou: — Então por que ter medo? Enquanto ele pensava em uma resposta, ela enfiou a agulha em sua nuca. Uma dor perfurante percorreu sua espinha abaixo como um solavanco elétrico. Então o calor o invadiu, embaçando sua visão e deixando-o com vertigens. Ele sentiu-se gritando, mas só o que ouviu foi o silêncio. Jakes não sentira medo algum ao puxar o gatilho. Essa morte seria apenas um interlúdio. E um muito breve, por sinal. No entanto, meter uma bala no cérebro o machucara assim mesmo.

Ele inalou bruscamente enquanto sentia sua consciência se enraizar em uma nova forma. Os sentidos desse corpo eram aguçados. Ele sentiu as fragrâncias opostas de uma colônia fajuta e um perfume caro. Seus olhos abriram-se e ele viu seus companheiros Marcados. — Estou bem, Wells — disse ao seu colega homem.

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Eles haviam sido removidos dos corpos de quem tinham sido no futuro, antes de terem suas identidades convertidas em nanodispositivos para sua arriscada missão no passado. Na primeira vez que assumiram outros corpos, haviam concordado em se chamarem pelos novos nomes, para manterem a farsa e evitar confusão. Com tão pouco deles restando, entretanto, não havia razão para não usarem seus nomes reais. Satisfeito com sua nova voz, ele perguntou: — Quanto tempo demorou?

— Menos que dois minutos — disse Wells. Ele olhou para Kuroda, que afastou o aparelho transferidor de nanodispositos. — As atualizações no processo de vinculação funcionaram melhor do que esperávamos. Jakes acenou com a cabeça. — Ótimo. Então você não se importaria em me desamarrar.

— Já que somos obrigados — brincou Wells. Ele postou-se do lado da cadeira e retirou as algemas dos pulsos de Jakes.

Enquanto seu amigo desamarrava o resto de suas amarras, Jakes massageou seus novos pulsos, apertou os olhos contra o brilho intenso da luz acima de sua cabeça e torceu o nariz para o cheiro de enxofre no ar. Olhou para o corpo ensanguentado de George Sterling. Tinha pena em ter que se livrar de uma identidade que lhe provera uma vasta riqueza e influência, mas fora para o melhor.

Os Marcados recentemente haviam sofrido contratempos em sua guerra contra os 4400 – pessoas abduzidas de diferentes partes do mundo durante quase seis décadas no final do século XX e começo do XXI, levadas por agentes do futuro determinados a mudar o que estava para acontecer. Injetados com a promicina neurotransmissora, o que os presenteou com extraordinárias habilidades sobrenaturais, os 4400 haviam voltado todos ao mesmo tempo no dia 14 de agosto de 2004, para impedir uma catástrofe que destruiria o mundo que conheciam.

Em outras palavras, os retornados haviam sido modificados e mandados de volta para apagar o passado e mudar o último bastião de uma civilização estável, que os Marcados estavam determinados a defender. Infelizmente, a guerra se virara contra os Marcados. Um esquadrão de assassinos – mandado por Jordan Collier, o líder carismático do movimento de promicina que se espalhava rapidamente, e comandado pelo ex-militar e retornado telecinético Richard Tyler – matara seis dos colegas agentes de Jakes.

Era uma questão de sorte Jakes ter escapado do ataque de Tyler ao Castelo Wyngate, o baluarte opulente que George Sterling construíra com sua fortuna da indústria cinematográfica. Se não fosse por uma passagem secreta que Sterling tivesse adicionado à

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propriedade, ele, Wells e Kuroda provavelmente estariam mortos. Agora eram os últimos agentes dos Marcados. Somente eles restavam para salvar o futuro de Collier e seu movimento promicina quase-religioso. Quando todas as amarras caíram, Jakes levantou-se.

— Assim está melhor — disse ele. Kuroda o entregou suas roupas. Ele se vestiu rapidamente, então caminhou na direção da saída. Wells e Kuroda o seguiram.

— Eu juntei o que sobrou da fortuna de Sterling com a dos Cayman e nossas posses. — disse Jakes. — Podemos usar isso como um capital inicial.

Kuroda pegou sua maleta, na qual ela carregava seu novo aparelho transmissor de nanodispositivos.

— Ainda não vejo como vamos fazer algumas coisas possuindo esses zé manés — disse ela.

— Personificar pessoas importantes funcionou o quanto podia — disse Jakes. — Agora devemos agir às escondidas. Wells consternou-se. — Como isso nos ajuda? Já perdemos nossa oportunidade contra o Collier. — Talvez sim — disse Jakes. — Talvez não. Ele abriu a porta para a escadaria mal-iluminada, onde o ar estava quente e abafado comparado aos confins do subsolo. — É por isso que devemos fazer um novo amigo – um que quer detê-lo tanto quanto nós. Sob seus passos arrastados, Kuroda disse: — Você já falou com esse “novo amigo”, não falou? — Sim, já falei — disse Jakes. Embora seu novo corpo fosse relativamente jovem e saudável, o calor na escadaria fazia o suor descer por suas costas enquanto ele subia um lance atrás do outro voltando ao andar principal. Subindo os degraus atrás dele, Wells protestou: — Ainda assim é muito tarde. A data da calamidade veio e já se foi. — Eu sei — disse Jakes. Abrindo a porta para o andar térreo do hotel em construção,

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ele encolheu-se sob o brilho do sol do meio dia. Uma rajada quente de vento açoitou seus cabelos castanhos de seu rosto.

— Mas isso tudo significa que Collier se preveniu do desastre que sabia. — Ele se permitiu um sorrisinho malévolo. — É hora de mostrá-lo um que ele não irá prever.

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DOIS VINTE E UM JUNHO DE 2008 HARBOR ISLAND ESTAVA pegando fogo. Chamas avermelhadas preenchiam o céu do fim de tarde com fumaça negra e cheiro forte de óleo.

O enorme triângulo de terra construído na foz do rio Duwamish era um labirinto industrial de refinarias de combustível, fundições e estaleiros. Também abrigava as maiores reservas de gasolina e combustível de aviação de Seattle, e era uma das partes da cidade que não havia caído no controle de Jordan Collier nos meses que se seguiram à renomeação de Terra Prometida, o porto seguro dos positivos de promicina no mundo.

Naquela noite era um campo de batalha.

Descendo uma rua flanqueada por abrasadoras paredes de fogo, o agente Tom Baldwin da NTAC segurava sua Glock 26 firmemente, com os dedos tão apertados que seus nós estavam embranquecidos, enquanto avançava através da contenda. Ao seu lado estava sua parceira, Diana Skouris. À frente deles e indicando o caminho estava uma equipe tática da NTAC, guarnecida por um completo equipamento de combate e rifles M4A1. Luz de holofotes vinda de um helicóptero que pairava sobre eles varria o caminho à frente.

O sargento da equipe tática ergueu um braço, sinalizando para que os dois agentes à paisana aguardassem. Tom e Diana se ajoelharam, mas mantiveram suas pistolas semiautomáticas de prontidão, enquanto a equipe tática se espalhava por um cruzamento bloqueado por escombros ardentes e carros destroçados. Com uma mão suada, Tom ajeitou seu colete à prova de balas, que estava um pouco apertado nas axilas.

Relâmpagos brilharam no céu. Linhas brancas ofuscantes atingiram três membros da equipe da NTAC, que caíram ao solo, fumegantes. Seus companheiros abriram fogo, enchendo o ar com a gagueira nervosa do bombardeio automático. Tom duvidava de que eles tivessem alguma ideia daquilo em que estavam atirando.

Todos atingiam o deque quando um brilho de detonação encheu a rua, à distância: outro tanque de combustível explodia. A onda de choque quase arrancou as obturações dos dentes de Tom. Uma bola de fogo vermelho-alaranjada rasgou a noite.

Tom esticou o braço e colocou a mão no ombro de Diana. Ele gritou, em meio à algazarra das metralhadoras: — Você está bem? A morena esguia concordou com a cabeça, e então gritou de volta: — Somos alvos fáceis aqui!

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Ele concordou, e então apontou para um caminho claro através de um estacionamento. — Por ali! Eles se arrastaram pela Rua Lander, cruzaram a Décima Terceira Avenida, e correram para o leste pelo terreno à margem da Décima Primeira Avenida. Um grupo de homens e mulheres corria bem à frente, no mesmo caminho que Tom e Diana. No tremeluzir da luz do fogo, Tom conseguiu ver que eles vestiam uniformes de Oficiais da Paz da Terra Prometida, uma entidade oficial recém-criada, composta por ex-policiais de Seattle que eram p-positivos, bem como voluntários civis. Eles respondiam apenas a Jordan Collier, o que deixava Tom contrariado, mas eram a melhor defesa de Seattle contra os p-positivos perigosos.

Uma figura de fumaça apareceu dentre os Oficiais da Paz. Ela se solidificou, formando um jovem vestido de preto, que enterrou uma faca no dorso de um dos oficiais. Enquanto os companheiros do oficial assassinado se voltavam para encarar o atacante, este se transformou novamente em fumaça e evaporou.

Mais relâmpagos foram lançados do céu nublado, martelando os Oficiais da Paz. Tom ergueu o braço para proteger os olhos do brilho doloroso. Um trovão rugiu em seu rastro. Quando ele abaixou o braço, viu que Diana havia feito o mesmo. Eles retomaram a corrida em direção aos policiais sitiados da Terra Prometida.

Motores de motocicleta rosnaram. Uma onda de força cinética que tremulou como radiação térmica derrubou os poucos oficiais restantes. Momentos depois, três motos Suzuki roncaram rua abaixo, em direção ao sul, afastando-se da região dos tanques de combustível em erupção.

Tom parou e ergueu sua Glock. Diana fez o mesmo. Eles miraram e dispararam vários tiros contra os motociclistas fugitivos.

O piloto do meio e o último vacilaram e caíram das motos, que tombaram e derraparam, enquanto os terroristas feridos deslizavam, arrastando-se pelo asfalto.

Os últimos tiros não acertaram o primeiro piloto, que acelerou em direção ao desfiladeiro de contêineres multicoloridos e empilhados, que dominavam as partes sul e leste da ilha.

— Vamos lá! — gritou Tom, recolocando sua Glock no coldre e correndo em disparada até as motos caídas. Diana o acompanhou, indo em seu encalço a toda. Eles alcançaram a moto mais próxima, cujo motor havia apagado. — Ajude-me — disse Tom, enfiando suas mãos por baixo da moto. Juntos colocaram-na de pé. Tom subiu nela e rapidamente religou o motor, enquanto Diana pulava para o assento atrás dele.

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de pneu no solo quando Tom disparou com ela. O vento batia contra seu rosto e o forçava a semicerrar os olhos conforme acelerava. Diana envolveu a cintura de Tom com seu braço esquerdo e usou a mão direita para ativar o walkie-talkie. — NTAC-cinco para NTAC-um — ela gritou por sobre o barulho do vento. — Um hostil em uma motoca rumando para o sul pela Décima Primeira! Agentes em perseguição! Câmbio! O comando da equipe de campo chiou em resposta. — Entendido, NTAC-cinco. Estamos de olho no prêmio. Câmbio. Tom mantinha seus olhos na figura distante à frente deles. O piloto fugitivo se movia em direção à Ponte Oeste de Seattle, que passava sobre Harbor Island sem conceder acesso ao local. Viaturas de polícia haviam fechado os dois lados da ponte, e suas luzes azuis e vermelhas piscavam, brilhantes, contra o céu obscuro.

Atiradores de elite da NTAC estavam posicionados na ponte com suas armas apontadas sobre a mureta, enquanto observavam Harbor Island e esperavam que seus alvos aparecessem.

Outra ondulação perturbou o ar acima do suspeito fugitivo e fez a ponte parecer ondular, como uma miragem. Então o efeito abalou meia dúzia de suportes de concreto do elevado, que se espatifaram como se fossem feitos de casca de ovo. Metal partido e pedras desabaram em escombros poeirentos, e o elevado entortou-se e desmoronou com um lamento profundo de aço distorcido, num estrondo de impacto ensurdecedor. O suspeito desviou para a Rua Spokane e desapareceu por entre a crescente nuvem cinza de fumaça e névoa. Gritando por cima do ombro de Tom, Diana perguntou: — Aonde diabos ele vai? — Quem sabe? — respondeu Tom, enquanto contornava a beirada da nuvem que se expandia, procurando por algum sinal do suspeito. Acionando novamente o walkie-talkie, Diana disparou: — NTAC-cinco para NTAC-sete! Desça já aqui e sopre esta droga de poeira! Câmbio!

— Entendido, NTAC-cinco. Câmbio — respondeu o piloto do helicóptero. Segundos depois, o helicóptero negro desceu bem baixo, à frente de Tom e Diana. Seus rotores geraram vento o bastante para dissipar a névoa suja e fizeram barulho suficiente para abafar o motor de sua motocicleta, enquanto Tom torcia o acelerador ao máximo. Do outro lado da agora bifurcada Ponte Oeste de Seattle, o suspeito estava correndo em direção à marina de Harbor

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Island.

— NTAC-sete – gritou Diana pelo rádio —, o suspeito está na marina! Repito, o suspeito está na marina! Jogue luz nele, mas mantenha distância! Câmbio!

— Já o vimos, NTAC-cinco — respondeu o piloto. A luz branca implacável do holofote iluminou de vez o suspeito fugitivo, enquanto ele embarcava em uma lancha atracada na marina. O jovem voltou-se e lançou um olhar furioso para o feixe de luz. Então uma onda concentrada de distorção seguiu o feixe até o helicóptero, e o estraçalhou em pleno voo. Este caiu do céu, numa chuva de fogo, metal partido e corpos carbonizados.

Tom desviou para a esquerda e por pouco evitou ser esmagado pela aeronave destroçada, quando esta se chocou com o chão e rolou por sobre uma dúzia de carros no estacionamento da marina, atrás dele. Um veículo após o outro explodiu em chamas, transformando o local em um flamejante cemitério automotivo. Projéteis tamborilaram o chão em ambos os lados de Tom e Diana, enquanto corriam para fora do estacionamento e desciam a rampa de embarque da marina.

O motor da lancha acordou rosnando, e o suspeito soltou as amarras do ancoradouro com um pequeno estouro causado por seu poder de rompimento. Tom apertou os freios, e a motocicleta patinou e derrapou pela doca. Diana já estava fora da moto antes que esta parasse de se mover, sua Glock já em punho enquanto ela se posicionava para atirar.

Assim que a moto parou, ela abriu fogo contra o barco, mas os tiros perfuraram apenas as águas escuras do Duwamish. Tom pegou sua Glock e juntou-se ao tiroteio inútil de sua parceira. A arma de Diana clicou, sem munição. A pistola de Tom se esvaziou um segundo depois.

Então uma branca e fina camada de gelo paralisou a superfície turbulenta do rio, e o rastro de espuma do barco parou em meia onda. A transformação gelada ultrapassou a lancha, que se esforçou por um momento contra o lodo espesso, depois parou com um estalo agudo de fibra de vidro se estilhaçando, conforme a superfície do Duwamish congelou-se por mais meia milha em cada direção.

O jovem no barco voltou-se e olhou, alarmado, e então cambaleou para trás e desabou.

Olhando por sobre seu ombro, Tom viu um par de Oficiais da Paz da Terra Prometida uniformizados na margem. Um tinha colocado a mão na agora congelada superfície da água. O outro ainda olhava através da mira de seu rifle de precisão. A boca larga da arma havia sido modificada para atirar dardos. Tom deduziu que os dardos deveriam estar carregados com a mistura de sedativo concentrado e inibidor de promicina que podia tornar p-positivos inconscientes e temporariamente suprimir suas habilidades extra-humanas.

Diana notou os Oficiais da Paz e guardou sua arma.

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entusiasmada com a ideia.

— Acho que sim — respondeu Tom. Ele guardou sua Glock enquanto eles voltavam pela doca para a margem.

Nos dois minutos que Tom e Diana levaram para andar até os Oficiais da Paz, os reforços chegaram. Um pelotão de forças de ataque da NTAC, dúzias de policiais de Seattle e Oficiais da Paz da Terra Prometida, e seis agentes da NTAC, liderados por ambas as encarnações de Jed Garrity, cujos dois egos eram distinguidos pelas cores de suas gravatas, uma vermelha, a outra azul, corriam através da lâmina de gelo, todos competindo para ver quem iria efetuar as prisões. As únicas pessoas que não tinham pressa de alcançar o barco, ao que parecia, eram Tom, Diana e os dois Oficiais da Paz que tinham sido os verdadeiros responsáveis por impedir a fuga do suspeito. — Belo trabalho — disse Tom, com um aceno de cabeça amigável para a dupla. — Eu sou Tom Baldwin, e esta é… — Sabemos quem são vocês — disse a mulher de cabelos negros e lustrosos, com um sotaque britânico seco. Ela encarou Tom com seus impressionantes olhos verdes. Tom e Diana trocaram olhares apreensivos. Nos anos seguintes ao retorno dos 4400, a NTAC havia sido a principal responsável por vigiá-los, e Tom e Diana tinham estado no centro de muitos dos mais tumultuados eventos envolvendo os retornados. Consequentemente, ambos os agentes tinham conquistado certa notoriedade; ou, em alguns círculos, infâmia. Como de costume, Diana permaneceu calma face à hostilidade. — Nós só queríamos agradecer, é isso. O homem musculoso e de cabelo cortado ao estilo militar ofereceu a mão a ela. — Estamos às ordens — ele disse. — Sou Jim Myers. E esta é minha parceira, Eva Lynd. — É um prazer — respondeu Diana, apertando brevemente a mão dele. Tom disse: — Se me permitem perguntar, como vocês conseguiram chegar aqui antes de nós? Eu pensei que Jordan havia concordado em deixar a NTAC defender as reservas de combustível da cidade. — E vocês fizeram um trabalho brilhante — disse Eva, lançando um olhar irritado na direção do inferno que ardia na extremidade norte da ilha.

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Tentando atenuar o golpe verbal de Eva, seu parceiro, Jim, respondeu: — Recebemos uma dica sobre o ataque. — De quem? — perguntou Diana. Jim ergueu os ombros e sacudiu a cabeça, incitando Eva a franzir a testa e rolar os olhos de indignação. — Conte logo — disse Eva. — Ela vai descobrir mesmo, quando verificar as nossas ligações telefônicas — Jim lançou-lhe um olhar incisivo, mas ela o ignorou e continuou. — Foi a sua filha vidente, Maia — disse ela a Diana. — Ela nos preveniu sobre o ataque há uma hora. — Fazendo uma careta para o rastro de destruição, ela acrescentou: — Não que isto tenha feito muita diferença. Eva e Jim viraram-se e caminharam em direção ao norte, afastando-se da margem e de Tom e Diana, que ficaram e observaram-nos irem embora. Tom sentiu a tensão no silêncio de sua parceira e soube que Diana estava fervilhando com a revelação de Eva. Ele esperou que ela explodisse. Não demorou muito. — Quantas vezes eu disse a Maia que não falasse com o pessoal de Jordan? — ela perguntou retoricamente, sua voz pontuada de raiva. — Eu sei — Tom respondeu, tentando soar compreensivo. — Quantas vezes, Tom? Como poderia ser mais clara? Eu disse a ela para não falar com Jordan, ou com qualquer um do povo dele na Terra Prometida, nem mesmo aquela garota, Lindsey, com quem ela andava.

Ele sabia que bancar o advogado do diabo seria arriscado, mas tentou mesmo assim.

— Olhe, não é como se ela fosse uma traidora, Diana. Ela só estava tentando ajudar — ele ergueu seu queixo na direção do barco preso ao gelo. — E talvez ela estivesse certa. Se o pessoal de Jordan não tivesse estado aqui, aquele cara teria escapado. Diana respirou fundo. Fechou os olhos. Expirou devagar. Abriu os olhos.

Quando ela falou, sua voz era calma; o que fez com que a fúria por trás de suas palavras fosse o mais assustador.

— Tom, eu sei que o que você está dizendo faz sentido. Você está certo: sem o pessoal de Jordan, nós teríamos perdido o suspeito. Mas neste momento, eu não estou nem aí para isto. O que me interessa é que minha filha fez exatamente o que eu disse para ela nunca fazer. — Ela respirou fundo novamente, e depois acrescentou: — Eu vou para casa

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agora, Tom. E quando eu chegar lá, terei uma conversa bem longa com Maia.

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TRÊS

JORDAN COLLIER ESTAVA de pé diante da janela em seu escritório no sétimo sexto andar. Ele olhava para sudoeste, além da Baía Elliot, para o inferno furioso que engolfara Harbor Island. As chamas duravam por quase uma hora, brilhando cada vez mais alto no céu que escurecia. O incêndio era refletido nas águas ondulantes. Houve uma batida na porta de seu escritório. — Entre — disse ele. A porta abriu-se e fechou-se. Em seguinte, houve passos.

Refletido na janela estava Kyle Baldwin, um dos mais importantes assessores de Jordan, caminhando em sua direção.

— Queria me ver?

— Queria — respondeu Jordan. Seus lábios apertados mal escondiam sua fúria quando ele virou-se para encarar o rapaz de cabelos amarelados. — O que aconteceu lá embaixo? Kyle parou diante da mesa Jordan e curvou a cabeça. — Você está chateado por causa de Harbor Island.

— Sim, eu estou — disse Jordan. — Pessoas morreram lá fora hoje, e não houve razão para isso. — Ele pegou um relatório de uma página e o sacudiu nervosamente. — Você nem ao menos me consultou antes de mandar nosso pessoal à territórios da NTAC. Você sabia que a ilha estava sob a jurisdição deles, Kyle. O que estava tentando fazer?

— Salvar a vida deles — disse Kyle. — Tivemos uma informação de que um bando de cinquenta/cinquenta furioso estava indo para os tanques de combustível. Achei que se nos movêssemos rápido o suficiente, poderíamos impedir o ataque. — Ele fez uma pausa quando Jordan girou e olhou o espetáculo flamejante de cima a baixo através da janela. Virando os olhos, Kyle acrescentou: — Eu sei que falhamos.

Jordan jogou o papel em sua mesa e então se sentou em sua cadeira. Ele passou a mão pela sua barba escura enquanto recuperava a compostura.

— A maioria doa agentes da NTAC são p-positivos, Kyle, assim como nós, e são treinados para situações como essa. — Consternado, ele apertou o pulso. — A verdadeira tragédia é que todas essas pessoas morreram por nada. E se eles explodissem os tanques? Temos pessoas que podem transformar líquido no que quiserem: água potável, gasolina…

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Jordan franziu as sobrancelhas. Levantando um dedo, ele continuou: — Não vamos falar sobre isso, Kyle. Não é o momento apropriado. Estamos cercados pelas forças armadas americana, e temos p-positivos experientes pela cidade inteira. A última coisa que quero agora é começar uma guerra contra o governo.

— Você já está em guerra com o governo — retrucou Kyle. — Uma que eles começaram. Exasperado, Jordan levantou-se e caminhou até um armário de madeira que abrigava bebidas e alguns copos pequenos. — Acho que você e eu temos definições diferentes sobre guerra. Eu chamaria nossa situação atual de impasse. — Jordan abriu a porta do armário, que abaixou-se para dar lugar a uma prateleira. — Claro, Jordan, mas por quanto tempo? Você acha que o Exército vai esperar muito tempo enquanto preparamos nosso próximo passo? — Provocá-los não nos dará mais tempo. — O peculiar líder do Movimento Promicina Positiva abriu uma garrafa de whisky Glenmorangie Quinta Ruban e serviu-se uma dose generosa.

Um dos privilégios de transformar a exilada antiga sede da Haspelcorp (que antigamente era conhecido como Centro Columbia, o prédio mais alto de Seattle) na Fundação Collier era que a nova base de operações de Jordan fora completamente mobiliada e generosamente estocada com luxúrias.

Colocando a rolha novamente na garrafa, Jordan continuou:

— De qualquer modo, já passamos das táticas de guerra. A diplomacia é nossa verdadeira mostra de força. Somente de uma posição de poder alguém tem a opção de negociar. — Ele sorveu o líquido âmbar e saboreou cada gota.

Kyle aproximou-se de Jordan enquanto respondia:

— Ótimo. Enquanto você está ocupado negociando, as Forças Armadas estão se preparando para nos mandar pro espaço. Precisamos começar a pensar em termos de “dividir e conquistar”. Se colocarmos promicina na água de seis ou sete cidades grandes, os forçaríamos a dividir o alvo deles.

— E provavelmente mataríamos quarenta ou cinquenta milhões de pessoas — disse Jordan, imaginando quando seu jovem xamã se tornara tão agressivo em sua visão de mundo. Ele colocou sua bebida na mesa novamente. — Não é exatamente a receita para se ganhar corações e mentes.

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— E daí? Você sabia antes mesmo de começar a distribuir que a promicina mataria metade das pessoas que a tomassem. Quando nove mil pessoas morreram no ano passado, você chamou isso de “O Grande Passo Adiante”. Então qual é o problema? Cinco milhões é um número muito grande?

— O problema — replicou Jordan, seu tom afiado e indignado. — é que ninguém nunca foi forçado a tomar promicina. A habilidade viral de seu primo Danny foi um acidente, não parte do plano. — Ele pegou seu copo. — Já ocorreu a você que poderíamos construir um futuro onde aqueles que foram presenteados com promicina possam viver em paz com aqueles que não foram?

Kyle virou-se e começou a caminhar em frente à mesa de Jordan, balançando a cabeça em uma negação amarga. — Sonhe à vontade, Jordan. Pessoas normais nos odeiam. Eles têm pavor de nós. Querem-nos mortos. — Alguns sim — admitiu Jordan. — Mas só porque as pessoas tendem a odiar o que têm medo, e ter medo do que não entendem. — Sentando-se novamente em sua cadeira, ele acrescentou: — Eu me recuso a aceitar que assassinato em massa seja a solução para o problema. Nossa guerra não é contra as pessoas do mundo, Kyle, ou contra seu governo. A guerra que temos que lutar é contra o preconceito. O jovem fungou pelo nariz. — Se você diz. — Sim, eu digo mesmo. E espero que você entenda. Um olhar carrancudo mostrou a rendição forçada de Kyle. — Você pode ir — disse Jordan, gesticulando na direção da saída. Kyle caminhou rapidamente, claramente ansioso para ficar longe de Jordan. Ele abriu abruptamente a porta do escritório. Ela bateu na com um baque surdo enquanto Kyle saía mal-humorado.

Enquanto a porta fechava-se lentamente, Jordan acomodou-se em sua cadeira e sorveu sua bebida. Ele imaginou, não pela primeira nos últimos meses, que Kyle poderia passar a ser um problema ao invés de ajuda. Quando o jovem viera procurá-lo no ano anterior, ele provara seu valor como um visionário. Kyle e sua invisível e inaudível guia espiritual feminino, Cassie, haviam ajudado Collier e seus seguidores a andar pelo difícil caminho em direção ao seu objetivo de transformar o mundo e cumprir a profecia de um melhor futuro para a humanidade.

Porém, nos meses desde que haviam transformado Seattle no reduto de promicina conhecido como a Terra Prometida, Kyle ignorara os planos diplomáticos de Jordan e aprovara

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táticas pesadas e às vezes até mesmo violentas.

Jordan imaginava o quanto dessa mudança era vontade Kyle, e o quanto era de Cassie – se é que havia alguma distinção a ser feita entre eles. Até agora, Jordan fora capaz de manter seu irritado assessor mais velho sob controle, mas ele temia que esse tênue período de graça terminasse em breve. A porta começava a fechar-se quando foi aberta com um estalo. Depois uma batida rápida e baixa, seu assistente Jaime Costas colocou a cabeça para dentro da sala. — O senhor tem uma visita, Sr. Collier. Uma das pessoas da sua lista para o conselho de liderança. Acenando, ele disse: — Tudo bem. Jaime abriu a porta. Seu visitante adentrou a sala. Jordan ficou boquiaberto. Ele piscou os olhos de tanta surpresa. Abaixou sua bebida. Levantou-se e cumprimentou o hóspede com um aceno gentil. — Por favor, entre — disse ele, seu coração enchendo-se de esperança. — É uma honra.

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QUATRO Diana Skouris abriu a porta de seu apartamento e retirou a chave da fechadura. Demonstrando seu estado de espírito, bateu a porta atrás de si e explodiu enquanto atravessava a sala. — Maia! — ela gritou, sua voz reverberando pelas paredes. — Venha já aqui!

Ela estava mais do que aborrecida, mais do que zangada, e mergulhada em fúria irracional quando despiu a jaqueta e arremessou-a ao sofá. Havia tantas coisas que queria gritar para sua filha adotiva que não sabia por onde começar. Depois de todos os anos em que estiveram juntas, e todos os riscos que Diana correra, todos os sacrifícios que fizera para proteger Maia, ela sentia como se tivesse o direito de esperar da menina mais respeito do que esta demonstrava.

Droga, eu já disse a ela mais de cem vezes para ficar longe de Jordan e do povo dele, bufava Diana, enquanto retirava seu coldre de ombro e depositava a arma no balcão da cozinha. Tudo o que os 4400 haviam feito por ela fora colocá-la em perigo – então porque ela é mais leal a eles do que a mim?

Aquela questão retórica a perturbava quando abriu a geladeira e tomou nota das sobras disponíveis para o jantar daquela noite – do qual Maia poderia ou não ser autorizada a participar. O apartamento estava silencioso, exceto pelo murmúrio da geladeira. Diana não ouviu qualquer som de movimentação vindo do quarto de Maia. Não era surpresa para ela que Maia não estivesse com pressa de sair de lá e encarar os fatos, mas depois de todo o grito, todo o escândalo e mau humor que se seguiu ao decreto de Diana determinando que Maia cessasse todo e qualquer contato com Lindsey Hammond, sua amiga e companheira no Centro 4400, ela ao menos esperava ouvir Maia desafiar suas ordens com a música de Frank Sinatra. Ela provavelmente está assustada ou aborrecida, pensou Diana. Fechou a porta da geladeira e caminhou em direção ao quarto de Maia. — Maia? Estou falando sério: você tem que vir até aqui falar comigo. Não houve resposta.

Diana passou pela porta e entrou no quarto da filha. Maia não estava lá. A cama estava feita, e pela porta aberta do closet deduzia-se que várias das roupas preferidas da menina não estavam mais lá. Também não se via o diário de Maia, que continha suas precisas e alarmantes visões do futuro.

Oh, meu Deus. O medo tomou conta de Diana como se água gelada percorresse suas veias. Embora sua menininha tivesse agora treze anos de idade e não precisasse mais de uma

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babá com ela em casa, Diana ainda tinha medo de que alguém tentasse levá-la. Qualquer um, desde os 4400 até alguém do governo, ou mesmo um maníaco qualquer, pareciam ter em pauta “a garota que conseguia ver o futuro”.

Seu coração se acelerou, sua respiração se tornou curta e ofegante, enquanto procurava pistas pelo quarto de Maia. Não havia sinais de luta, nenhum bilhete. Aquilo era bom sinal, mas Diana ainda estava em pânico. Ela sentia a pulsação forte em suas têmporas. Travava uma batalha para manter a mente quieta, enquanto mil pensamentos terríveis surgiam ao mesmo tempo dos cantos mais obscuros de sua imaginação. Imagens de Maia amarrada, amordaçada, ou drogada e inconsciente na parte de trás de uma van. Ela se sentiu zonza, quase com vertigem, enquanto saía do quarto de Maia e zanzava pela casa como uma bola prateada de uma máquina de pinball, ricocheteando nos batentes e nas paredes, indo de seu quarto para o banheiro e voltando para o corredor, para a cozinha e depois a sala de estar. Então ela viu, no chão, em frente à televisão. Uma câmera de vídeo portátil. Havia um bilhete adesivo cor-de-rosa grudado nesta. Um fio ligava o aparelho à entrada lateral da TV plana digital de alta definição. Diana correu para a câmera e a pegou.

O post-it tinha uma mensagem de duas palavras apenas, rabiscadas nas letras de forma características de Maia: ME ASSISTA.

Deixando de lado a sensação torturante que vinha de seu estômago, Diana pegou o controle remoto da mesinha de centro e ligou a TV. Assim que a tela se acendeu, percebeu que o aparelho já estava ajustado para a entrada auxiliar. Ela ligou a câmera digital; a tela ficou azul e mostrou um contador zerado. Diana respirou fundo e apertou o botão do play. Uma imagem borrada tremulou na tela, depois ajustou o foco. Era Maia, sentada no sofá da sala de estar, exatamente onde Diana estava sentada assistindo à gravação. — Oi, mamãe — disse Maia na gravação. Ela afastou um cacho de seus cabelos cor de mel do rosto e continuou. — Se você estiver assistindo isto, provavelmente já descobriu que eu não estou em casa. Eu resolvi ir embora e ir ficar com Lindsey na Fundação Collier — Diana praguejou, murmurando entre dentes, enquanto o vídeo rodava. — Eu sei que você sabe que eu avisei o pessoal de Jordan sobre Harbor Island, e eu sei que você vai voltar para casa e gritar mais um pouco comigo, eu sinto muito, mas… – a menina rolou seus olhos azuis. — Eu estou cheia disso, tá bom? Então eu estou indo embora, o que sei que também vai te deixar furiosa. Mas não se preocupe em ficar zangada com Lindsey, porque isto não foi ideia dela, foi minha. — Ela desviou o olhar da câmera por vários segundos, quando um ar de culpa tomou conta de seu rosto inocente. Então tornou a encarar a câmera com uma expressão de remorso. — Eu te amo, mamãe, mas é lá que eu devo estar. Me desculpe. Tchau.

Maia se inclinou para frente e estendeu o braço para a câmera. Um momento depois, a gravação terminou. Houve um momento de estática e chuvisco na TV, seguido pela tela azul

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com o aviso de “sem sinal”. Diana apertou o botão “parar” e desligou a TV, e então sentou-se com o rosto entre as mãos por alguns minutos que pareceram horas. Emoções conflitantes cresciam dentro dela, competindo por espaço: sua raiva diante do desafio declarado de Maia contra seu medo pela segurança da filha; sua falha em controlar o comportamento voluntarioso de Maia enchia Diana de vergonha; e a sensação de que ela havia perdido o respeito da filha a deixava frustrada e amarga.

O mais irritante de tudo é que não havia muito a ser feito no sentido de ajudá-la a trazer Maia de volta contra a vontade dela. Apesar de a menina ser menor de idade, não havia como Jordan permitir que Diana ou qualquer outra pessoa retirasse contra a vontade qualquer um dos 4400 de seu refúgio na Fundação Collier. A não ser que conseguisse convencer Maia a vir para casa por vontade própria, Diana teria de aceitar que a havia perdido para Jordan e sua quixotesca missão de disseminar a promicina ao redor do globo.

Seu rosto parecia em brasa, corado pela raiva de sua própria impotência. Ela se levantou, andou até a cozinha e abriu a água fria na pia. Colocando as mãos em concha sob o jato fresco, ela as encheu e jogou no próprio rosto, depois bateu algumas vezes as palmas molhadas em sua nuca. Ela estava apenas começando a recobrar um resquício de calma, quando o telefone tocou. Depois de enxugar as mãos e o rosto com um pano de prato limpo, ela o atendeu. — Alô? — Diana? É o Tom. A Meghan quer nos mandar ao Centro 4400 imediatamente. Passo aí para te pegar em mais ou menos dez minutos. — Por quê? O que está acontecendo? — É o Jordan. — Tom disse, parecendo preocupado. — Ele acabou de marcar uma reunião.

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CINCO METADE DA ATENÇÃO de Tom estava no volante, e a outra metade na falação de Diana. — É sério, Tom, estou farta das atitudes da Maia — disse ela parecendo ainda mais furiosa do que estava apenas uma hora atrás em Harbor Island. — Fugir é uma coisa, mas ir direto para o alvo? Ela ficou louca? Ele levantou a cabeça e deu um sorriso fraco. — Às vezes acho que somos todos loucos por ficarmos aqui. Diana não disse nada; apenas ficou olhando pela janela para a agitada vida noturna de Capitol Hill. Era uma noite quente de verão, e as calçadas fervilhavam de gente. Uma leve brisa trazia o cheiro fraco de fumaça de cigarro e café fresco até o carro.

O bairro — uma mistura de condomínios baratos no estilo de apartamentos e algumas das mais elegantes mansões — há muito tempo vinha sendo o centro de contracultura de Seattle. Nos anos 90, alguns diziam que sua abundância de lanchonetes e bares fora a razão do nascimento da música e da moda grunge¹. Até mesmo agora, depois que Jordan tomara a cidade, quase nada mudara. Tom nunca se sentira confortável andando por aqueles lados de Seattle, mas ele admirava sua resiliência.

Tom virou o Sedan da NTAC à esquerda na rua Easter Galer, passou pela esquina sudoeste do Parque Interlaken, pela estrada Crescent de três pistas, e pelo caminho para o Centro 4400. Quatro anos antes, o prédio pré-modernista branco fora o Museu Collier, um modesto, porém de grande importância, repositório de arte moderna. Depois da volta dos 4400, Jordan o convertera em um abrigo seguro e ponto de encontro para os retornados. Com jardins meticulosamente enfeitados no fundo e flanqueados nos três outros lados pelo estacionamento, o lugar era um oásis necessário na cidade. Durante a usurpação de Jordan do governo local, o Centro também servia como um “território neutro” onde ele e representantes da NTAC podiam se encontrar.

Outro Sedan de quatro portas comum estava estacionado na fachada do prédio. Uma das duas encarnações de Jed Garrity estava em pé ao lado de Meghan Doyle, a diretora da sede em Seattle da NTAC, que desde que chegara tornara-se a namorada “não-tão-secreta “de Tom.

A loira aproximou-se da lateral do carro de Tom enquanto ele estacionava em uma vaga e desligava o motor. Enquanto ele e Diana saíam do carro, o comportamento de Meghan era estritamente profissional.

— Collier ainda não disse sobre o que isso se trata.

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NTAC caminhavam uma calçada de cimento até a entrada co Centro, Tom acenou para Jed, seu colega de longa data. — E aí, JV?

As iniciais eram a abreviação do apelido de Jed, “Jed Vermelho”. Depois que a epidemia de promicina no ano anterior o infectara, ele manifestara uma habilidade 4400 incomum: uma cópia de si mesmo.

A princípio, ninguém o que fazer com a réplica de Jed; alguns o aceitavam como um simples clone. Mas depois que um dos Jeds morrera em uma batalha, uma duplicada exatamente igual do Garrity assassinado aparecera a quilômetros de distância, levando o poço de pensamentos da NTAC, Marco Pacella, à hipótese de que a habilidade Jed era uma cópia segura de ele mesmo. Se algo acontecesse a ele, uma nova cópia aparecia em algum lugar seguro. Jed a chamava de “uma habilidade estranhamente inútil”. Marco a chamava de “apólice de seguro final”.

Atualmente o único jeito de distinguir as duas cópias idênticas, mas separadas, de Jed era a cor de suas gravatas: um usava somente gravatas vermelhas, e o outro somente azuis. Mas ninguém na NTAC gosta de dizer Jed Vermelho por causa da sonoridade, e Jed Azul trouxera muitas piadinhas com Jedzul. Então agora eles eram JV e JA.

Quando a porta de entrada do Centro se abriu diante deles, liberando uma lufada de cheiro de limpeza e ar fresco do interior do prédio, Tom notou pela primeira vez o quão mal ele cheirava. Entre o massacre em Harbor Island e a papelada que se seguira, ele não tivera tempo para tomar banho ou trocar suas roupas, que estavam imundas e fedendo a suor. O chefe executivo do Centro, Shawn Farrel, saiu para recebê-los. — Obrigado por virem mesmo com o aviso de última hora — disse o jovem de cabelo loiro curto a Meghan. Apertando a mão de Tom, ele acrescentou: — É bom vê-lo, também, tio Tommy. — Você também, Shawn — disse Tom. — Vamos entrar — disse Shawn, acenando para que eles o seguissem para o interior do Centro. — O Jordan e o pessoal dele estão aguardando.

Do lado de dentro, seus passos ecoavam no chão encerado do pátio principal. Enquanto seguiam Shawn para a sala de reuniões do primeiro andar, Tom ficou surpreso pelo fato de que seu sobrinho, que fisicamente tinha vinte e um anos (vinte e quatro, se se contasse os anos que ele ficara desaparecido durante sua abdução), o guiava com a confiança e a magnificência de um homem mais velho. Apenas alguns anos antes, seria impossível encontrar Shawn usando outra coisa senão jeans, camisetas e tênis; agora ele sentia-se confortável em um terno Armani e sapatos italianos feitos à mão. A responsabilidade forçada o forjara um verdadeiro líder da comunidade 4400.

Susan se orgulharia dele, refletiu Tom, antes que a lembrança da morte prematura de sua irmã durante o 50/50 estragasse o momento de orgulho do seu filho.

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Shawn abriu a porta dupla da sala de reuniões. Uma longa mesa de madeira escura estendia-se diante dele e dos agentes da NTAC. À direita de Tom, de pé ao centro da mesa, estava Jordan Collier vestido casualmente. Ao lado dele estavam dois conselheiros: o filho de Tom, Kyle, e para a surpresa de Tom, o telepático Gary Navarro. Com a ajuda de Tom, o ex-jogador negro de baseball se exilara alguns anos antes, para fugir de uma vida de servidão forçada à Agência de Segurança Nacional. Essa era a primeira vez que Tom via Gary desde a noite que ele fugira.

De pé atrás de Jordan estava a sua nova assistente executiva, uma mulher pequenina na casa dos vinte anos chamada Jaime Costas. À esquerda de Jordan estava um rosto que Tom não esperava ver essa semana: Maia Skouris.

A garota de treze anos sussurrou algo a Jordan enquanto a equipe da NTAC entrava e se posicionava do lado oposto a eles, no outro lado da mesa. Um minuto depois, enquanto todos ainda se olhavam, Jordan acenou para que Shawn se aproximasse, passou outro sussurro confidencial, e então Shawn contornou a mesa com uma expressão envergonhada no rosto. Tom ouviu quando ele se inclinou na direção de Diana e disse suavemente: — Sinto muito por isso, mas receio que tenha de pedi-la para esperar do lado de fora.

Diana lançou um olhar furioso a Shawn, que levantou as mãos e se afastou dela, arrependido. Então ela virou-se para Maia, que evitou seu olhar, carrancuda. Era arduamente óbvio que tal momento constrangedor era coisa da garota. — Tudo bem — disse Diana, não mais contendo sua raiva. Quando ela se virava, Tom a parou com um toque gentil no braço. Ele baixou a voz: — Falarei com ela por você. — Não se preocupe com isso — respondeu Diana. Ela saiu da sala a passos rápidos e furiosos e deixou a porta bater às suas costas. O impacto ecoou pela sala de reuniões, um resquício da memória de fúria. Meghan se concentrou em Jordan. — O que você quer? — Primeiramente, me desculpar por Harbor Island — disse ele.

Tom cruzou os braços e acenou com a cabeça na direção da porta por onde saíra Diana.

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Jordan continuou, embaraçado.

— Os policiais da paz da Terra Prometida foram lembrados de que a NTAC tem jurisdição sobre Harbor Island… — Sobre o que sobrou dela — interrompeu J.V. Jordan fez uma pausa, depois continuou: — O fogo cruzado de hoje a noite foi resultado de uma falta de comunicação pela qual eu assumo a responsabilidade. — Que engraçado — disse Tom, fixando o olhar em Maia, que o olhava sem piscar. — Pensei que fosse o resultado de alguém te dando um aviso sem autorização. Kyle entrou na conversa: — Não importa de onde veio o aviso, pai. O que importa é que estávamos tentando salvar vidas. — Tudo bem — disse JV. — É por isso que você e o seu pessoal estavam usando força mortal lá fora? Para salvar pessoas matando elas? — Nunca mandei alguém usar força mortal — disse Kyle. — Só falei que eles deviam se proteger. Tom jogou sua ira no filho: — Isso foi decisão sua? — Não estamos aqui para jogar as culpas — disse Jordan, levantando uma mão para amenizar a discussão ascendente. — O que importa agora é que trabalhemos juntos para manter o povo da Terra Prometida a salvo e prevenir que eventos como esse aconteçam novamente. Meghan balançou a cabeça, mas franziu o cenho suspeita: — E como propõe que façamos isso? — Os russos chamam de glasnost — disse Jordan. — Abertura. Dividiremos as visões da Maia em troca de uma discussão aberta sobre das intenções do governo americano acerca da Terra Prometida, e sobre as identidades promicina-positiva pelo mundo. Virando os olhos e soltando um pesado suspiro, Meghan disse: — Isso não vai virar em Washington, você sabe disso.

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Olhando para Meghan, mas falando com Jordan, Gary interrompeu: — O que ela quer dizer é que a NTAC de Seattle está sendo cortada. Washington está deixando-os no escuro, eles não têm nada a oferecer.

Tom segurou-se para não xingar o telepata. Ao invés de fazê-lo, ele fechou a mão esquerda atrás de suas costas. Meghan virou-se e caminhou na direção da porta. — Terminamos por aqui — disse a Jordan. — Da próxima vez que quiser uma reunião, deixe o leitor de mentes em casa. JV seguiu-a na direção da saída. Jordan e o sua equipe foram na direção oposta, na direção de uma porta diferente que levava a outra parte do Centro. — Me espere lá fora — disse Tom a Meghan, então passou por ela e por Jed para contornar a mesa e alcançar Maia. Ele parou a adolescente antes que ela chegasse à porta. — Maia, espere um pouco — disse ele, tentando parecer diplomático. Maia parou na soleira da porta e virou-se para encará-lo. Seu olhar era severo, e seu rosto começara a substituir as feições rechonchudas de uma criança pela fisionomia fina de uma mulher atraente.

Atrás dela, Jordan, Kyle e Gary estavam olhando e ouvindo. Tom esforçou-se para ignorá-los. — Eu sei que você e sua mãe estão com problemas no momento, mas acho que fugir não vai ajudar em nada. Você acha? — Sim, acho — disse ela e começou a virar-se. Ele apertou o ombro dela gentilmente. — Espere — disse. Então ele viu os três homens olhando fixamente e soltou-a. Maia olhou para trás e esperou-o falar. — Qual é? — disse ele. — Sua mãe está preocupada com você. E, sim, ela está furiosa, e eu entendo se você talvez não quiser ir para casa hoje… mas será que não poderiam ao menos conversar antes que ela vá embora? Maia pareceu considerar a ideia por um momento. Então seus olhos se tornaram frios e sem misericórdia. Com um desprezo maior do que sua idade, ela disse: — Não há o que conversar. — Então saiu pela porta sem se desculpar ao batê-la na cara de Tom.

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Poderia ter sido melhor, repreendeu-se ele. Baixou a cabeça, soltou um suspiro desanimado e imaginou o que ia contar à sua parceira. Olha, não se sinta mal, Diana — agora nós dois temos filhos que trabalham para Jordan Collier. Notas:

¹Grunge (às vezes chamado de Seattle Sound, ou Som de Seattle) é um estilo musical independente que se tornou bem-sucedido comercialmente no início da década de 1990. O grunge é uma ramificação do hardcore, heavy metal e rock alternativo do final dos anos 1980 e começo da década de 1990.

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SEIS 22 DE JULHO DE 2008

Dennis Ryland, Vice-Presidente Executivo da Corporação Haspelcorp, desceu de seu jato particular para a claridade ofuscante do sol da manhã nas salinas brancas. As turbinas gêmeas do Gulfstream G650 profanavam o silêncio do deserto de Nevada com seu lamento intermitente.

Apenas alguns meses antes de seu sexagésimo sexto aniversário, Dennis sentia como se o sol estivesse consumindo preciosos anos de sua vida nos segundos que levou para descer os degraus da escada para a pista de decolagem. A temperatura havia atingido 45 graus Celsius, e o calor árido evaporava o suor de seu rosto antes que pudesse escapar dos poros.

Inalando o causticante ar do deserto profundo, ele se recordou de um dos seus diálogos favoritos do cinema clássico, do épico “Lawrence da Arábia, de David Lean.” Inquirido sobre o porquê de ele gostar tanto do deserto, Peter O’Toole havia respondido com sua secura característica: “Porque é limpo”.

O asfalto irradiava calor através das solas dos sapatos de Dennis. Ele apressou o passo e amaldiçoou o protocolo que determinava que usasse paletó e gravata, mesmo naquele círculo do inferno.

Uma brisa sufocante desgrenhou seu cabelo ainda escuro, mas quase grisalho, quando ele alcançou a porta de uma cabana de madeira castigada pela areia, de telhado de folha de estanho corrugado enferrujada. Para um observador casual, a pequena construção caindo aos pedaços parecia estar prestes a ser carregada pela próxima tempestade de areia. Aquela impressão era inteiramente proposital. Ele abriu a frágil porta de madeira e adentrou a sombra abafada de um vestíbulo onde mal caberiam duas pessoas em pé. A porta externa fechou-se atrás dele.

Por um momento houve apenas a débil iluminação da luz do dia, que espreitava através das frestas ao redor da porta. Então um painel deslizou de dentro da parede em frente a Dennis, revelando a face brilhante e verde do leitor de mão — o primeiro de três dispositivos de segurança biométricos que ele deveria satisfazer para conseguir entrar no laboratório secreto e não-oficial de pesquisa de armamentos da Haspelcorp. Ele colocou a mão no painel e esperou.

O aparelho zumbia enquanto um feixe luminoso passava de um lado a outro, lendo a palma de sua mão. Uma voz sintética vagamente feminina, mas essencialmente neutra, declarou através de um alto-falante oculto:

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— Prepare-se para a leitura de retina. Esta era a parte menos agradável do procedimento; a luz verde esmeralda sempre o deixava vendo pontinhos pretos por alguns minutos após a leitura. Ele respirou fundo, encarou o leitor de retina para sua necessária semi-cegueira, e se esforçou para não piscar. Quando acabou, a voz sintética disse: — Declare seu nome e código de autorização para autenticação por leitura de voz. — Ryland, Dennis. Código de autorização Whisky-Tango-Foxtrote, três, um, seis, sete, seis. Ele mesmo havia escolhido seu código. As palavras eram uma jovial demonstração de desprezo velado por seus superiores; os números eram a data de nascimento de sua filha Nancy.

— Leitura de voz e código de autorização autenticados.

O painel de segurança escureceu. Uma sequência de travas magnéticas por detrás deste foi desabilitada com ruídos e cliques tediosos. Então a parede moveu-se, afastando-se dele, permitindo acesso a um curto corredor que levava a um pequeno elevador.

Assim que ele adentrou o corredor climatizado, seu rosto ficou ensopado de suor. Agora que o ar ao seu redor estava agradavelmente fresco, ele percebeu o quão acalorado se sentia. Dennis pegou um lenço do bolso e limpou o suor brilhante de seu rosto e de sua nuca. Ele entrou no elevador e apertão o botão para o subterrâneo protegido. As portas se fecharam, e a cabine desceu com um murmúrio suave e quase nenhuma vibração. Levou meio minuto para completar a descida. O laboratório ficava a quase cem metros abaixo do solo e protegido pelos mais modernos dispositivos de segurança e tecnologia anti-espionagem. Finalmente, o elevador reduziu e parou com um baque suave. As portas se abriram.

Dennis adentrou um espaço amplo. Brilhantemente iluminado e imaculadamente limpo, suas áreas de trabalho eram divididas em densos paineis de 10 centímetros de espessura, feitos de AION – oxinitreto de alumínio, um polímero claro de cerâmica, oticamente equivalente ao vidro, mas forte o suficiente para ser usado pelos militares como uma espécie de armadura transparente para janelas de tanques e aeronaves. Ocupavam a maior parte do espaço do laboratório os mais avançados equipamentos automáticos de pesquisa e fabricação já inventados. A Haspelcorp havia comprado uma série de patentes promissoras de inventores desconhecidos e depois segregado os frutos daqueles trabalhos em lugares como aquele.

Onde quer que se olhasse havia máquinas em operação. Flashes de luz branca-azulada e chuvas de faíscas dançavam até onde a vista alcançava. Motores zumbiam,

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dispositivos hidráulicos arfavam e geradores rugiam, vagarosa e continuamente. Braços robóticos moviam peças de um lado para outro, lapidando minúsculos componentes até a especificação exata, e modelando os detalhes microscópicos de novos microchips. Telas cheias de dados rolavam ininterruptamente em enormes monitores de computador. Odores de ozônio e metal aquecido preenchiam o ar. E pensar, meditou Dennis, com um leve sorriso, que três meses atrás este laboratório estava vazio.

A Haspelcorp tinha estado a ponto de desmanchar o laboratório antes de Dennis intervir. Na esteira do escândalo que eclodiu depois que a Haspelcorp foi revelada como a verdadeira fonte da promicina que Jordan Collier roubara e distribuíra ilegalmente pelo mundo, o Departamento de Defesa revogara muitos dos contratos de pesquisa de defesa mais lucrativos da companhia. Sem eles, este laboratório parecia não ter mais razão de ser; sua manutenção tinha se tornado apenas mais uma dívida no balancete da empresa.

Oficialmente, o laboratório ainda se encontrava inativo. As únicas pessoas que sabiam que estava de volta à ativa eram Dennis e o trio de cientistas que agora tinha acesso exclusivo ao mesmo. Eles haviam procurado Dennis dois meses antes, com uma proposta tão surpreendente e tentadora que, se ele tivesse recusado, jamais teria perdoado a si mesmo.

Eles haviam dito que poderiam livrar o mundo da promicina.

Quarenta e oito horas depois, após um turbilhão de reuniões clandestinas e memorandos confidenciais, Dennis os havia instalado ali, naquele laboratório, com todos os recursos da Haspelcorp secretamente à disposição deles. Hoje ele pretendia descobrir o que, precisamente, sua generosidade havia comprado.

No centro do amplo espaço subterrâneo, os três pesquisadores, em seus jalecos brancos, estavam reunidos em torno de uma grande mesa de trabalho de cerâmica, na qual repousava um dispositivo cilíndrico. A metade superior de seu invólucro havia sido removida, revelando um complexo amálgama de fios, circuitos impressos e componentes blindados. Uma miríade de peças minúsculas e ferramentas de precisão bagunçava a mesa. O cientista-chefe levantou o olhar quando Dennis se aproximou. Ele interceptou Dennis e estendeu-lhe a mão. — Senhor Ryland! Obrigado por vir. Trouxe as amostras do LHC1? Ele apertou a mão do homem. — Sim, Doutor Jakes, eu trouxe. Notando que Dennis havia chegado de mãos vazias, Jakes arqueou uma sobrancelha e esboçou um sorriso irônico e travesso. — O senhor as está escondendo em algum lugar sobre o qual eu não quero saber?

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— Elas ainda estão no avião – disse Dennis, largando a mão do homem mais novo. — Antes de entregá-las, acho que precisamos conversar um pouco mais sobre este seu projeto. Começando por como você conseguiu ensinar à equipe do Grande Colisor de Hadrons a fazer um elemento que até ontem era apenas teoria.

— Esta teoria tem sido a base de toda a minha carreira, senhor Ryland — disse Jakes. Ele retornou à mesa de trabalho e acenou com a cabeça para Dennis segui-lo. — E uma geração de cientistas antes de mim dedicou suas vidas a desvendar seus segredos. A maior parte do trabalho foi feita antes do meu envolvimento. Metaforicamente falando, eu apenas tive sorte de subir nos ombros dos gigantes.

Em pé diante da mesa com os três cientistas, Dennis olhou desconfiado para a geringonça high-tech murmurante que eles estavam construindo.

— Muito bem — disse ele. — Mas eu não acho que vocês gostam da posição em que me colocaram. Uma descoberta como esta não pode ser mantida debaixo do tapete. Os camaradas do CERN vão enlouquecer com isto, e isto já está no radar da Segurança Nacional. Trazer aquela amostra de antimatéria da Suíça custou quase um bilhão de dólares à Haspelcorp. Mantê-la em segredo vai custar outro bilhão. Então, antes de entregá-la a vocês, preciso saber por que a querem. Sacudindo a mão por sobre a semi-finalizada invenção na mesa, Jakes respondeu: — Para fazer isto funcionar. — Explique-me. Em palavras simples. Jakes acenou com a cabeça para sua colega loira, Doutora Kuroda. Dennis supôs que “Kuroda” seria seu sobrenome de casada, mesmo nunca tendo visto uma aliança em sua mão, o que não era incomum para pessoas que trabalhavam em laboratórios de artefatos de precisão como aquele.

Kuroda pousou suas mãos no aparelho.

— Nós precisamos daquele elemento porque, quando bombardeado com radiação bariogência, emite partículas alfa de alta energia. Por ser um elemento superdenso e estável, tanto com capas de prótons fechados como com capas de nêutrons fechados, pode servir a estas funções por vários meses. A radiação que emite vai destruir os laços monoaminicos da promicina, sem afetar outros tecidos orgânicos. Dennis massageou a testa para evitar a iminente dor decabeça. — Eu pedi termos simples — reclamou ele. O terceiro cientista, um homem afro-americano chamado Wells, respondeu:

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— Isto é uma bomba de nêutron para promicina. Ela tira os poderes, mas deixa as pessoas ilesas. — Isto eu entendi — disse Dennis. — Qual é o alcance e a área de efeito? Wells trocou olhares com Jakes e Kuroda, e então disse: — De uma plataforma aérea a um limite de vinte milhas, você pode atacar uma cidade grande com duas rajadas em cerca de cinco minutos. — Bom — aprovou Dennis. — Isto é muito bom. As pessoas no solo sentirão alguma coisa? — Nada mesmo — declarou Jakes, voltando à conversa. — Eles não saberão o que aconteceu até tentarem usar seus poderes de promicina; então descobrirão que eles não existem mais.

Dennis imaginou o sorrisinho orgulhoso de Jordan Collier transformando-se em uma expressão de horror. Tal pensamento fez surgir um sorriso em seu rosto. — Quanto tempo falta para termos um protótipo funcionando? Jakes deu de ombros.

— Do momento em que você nos entregar as amostras? Talvez dois ou três dias, salvo contratempos ou interferências.

— Excelente — vibrou Dennis. Ele pegou o telefone. — Vou mandar a minha equipe trazê-las. — Digitou um número da Haspelcorp que o ligaria diretamente à equipe no avião. Enquanto esperava atenderem, ele disse para os cientistas: — Trabalhem rápido. Talvez precisemos disto mais cedo do que esperávamos. — Não se preocupe, senhor Ryland — disse Jakes, com um sorriso beatífico. — Logo o mundo estará completamente de volta ao normal. Nota: 1 LHC – Sigla de Large Hadron Collider, o Grande Colisor de Hadrons, o maior acelerador de partículas e o de maior energia da atualidade, hospedado no CERN (Organização Européia para Investigação Nuclear), na fronteira franco-suíça.

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SETE

— NÃO LIGO QUE tenham sido feitos com uma habilidade 4400 — disse Tom Baldwin enquanto adentrava o escritório que dividia com Diana na NTAC. — Estes são os melhores donuts de baixa caloria que já comi.

Ele colocou dois donuts enrolados em guardanapos e um copo do café feito no escritório em sua mesa, então abriu uma gaveta e tirou um pequeno frasco de pílulas ubiquinonas. As “U-pills”, como eram comumente conhecidas, eram um suplemento dietético que conseguia repelir o vírus da versão aérea de promicina. Embora não tivesse ocorrido nenhuma denúncia de casos 50/50 desde o incidente com Danny Farrel no ano anterior, Tom não arriscava, especialmente depois que a cientista da NTAC Abigail Hannicut tentara replicar os vírus alguns meses antes, como um prelúdio para uma nova pandemia. Ele jogou uma pílula na boca e a engoliu com um gole do café.

Na mesa da frente, Diana sentava-se desleixada em sua cadeira — coisa que ela raramente fazia desde quando ela e Tom começaram a trabalhar juntos. Ela olhava para a parede do fundo da sala, carrancuda. Tom sabia o que a estava incomodando, mas ele esperava que conseguisse mudar de assunto. — Quer um donut? Sua voz não era mais do que um resmungo: — To sem fome. — Que tal um copo de café? Já tomou cafeína hoje? Ela chutou seu balde de lixo de plástico pelo espaço vazio entre as mesas deles. O objeto parou diante da perna de Tom. Ele olhou para baixo e viu quatro copos de papel vazios manchados de café. Um aroma suave de café queimado emanava do balde. — Acho que sim — disse Tom. Vendo que ficar em silêncio talvez fosse a coisa mais sensata a fazer, ele recostou-se à sua cadeira, ligou seu computador e deu uma mordida em seu donut. Mastigou três vezes antes que Diana falasse. — Mas que droga, Tom, como a Maia pôde fazer isso comigo? Ele fez força para engolir a comida parcialmente mastigada, tomou um gole do café quente e suspirou. — Eu não…

— Quero dizer, ela sempre foi uma boa filha, entende? Meiga, educada, sensata, obediente. — Diana balançou a cabeça confusa, então Tom fez o mesmo com a sua por simpatia. — E madura! Houve vezes em que ela parecia mais crescida do que a minha irmã

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April. Ele teve que rolar os olhos. — Grande parte das pessoas é mais crescida do que April. Ela concordou com uma leve inclinação de cabeça. — É verdade. Mas eu esperava coisas melhores da Maia. E do nada ela ficou toda irritada e reservada o tempo inteiro. Ela não falava comigo. Ficou teimosa, também. Cheia de vontade. Rebelde. E agora isso? Juntando-se com Jordan contra mim? Fugindo para a Terra Prometida? Eu simplesmente não entendo, Tom. Que diabo aconteceu? Todo parecia tão familiar que ele teve que sorrir. — Isso se chama adolescência, Diana. Você agora é a mãe orgulhosa de uma garota de treze anos. Minhas condolências. — Ele estendeu um de seus doces entre seus monitores, pelo espaço vazio entre suas mesas adjacentes. — Pega um donut. O gesto simples, mas sincero, teve um efeito sentimental em Diana, e um sorriso torto de alegria iluminou seu rosto enquanto ela aceitava o donut. — Obrigada — disse ela. — Faz parte do serviço — respondeu Tom. Ele deu mais uma mordida em seu donut, determinado a aproveitá-lo dessa vez. Um alerta piscou na tela de seu computador. Um alarme gutural chiou das caixinhas de som. Era um aviso de que sinais importantes e de alta prioridade para a segurança doméstica tinham acabado de ser interceptados pelos novos filtros de dados online da NTAC. Á sua frente, barulhos e luzes semelhantes indicavam que Diana estava vendo a mesma coisa. Do lado de fora do escritório, ecos do alarme enchiam os cubículos dos agentes juniores. Mas que droga, pensou Tom, engolindo sem saborear outro pedaço de seu café da manhã. Ele e Diana entraram em ação, tentando captar os sinais para análise. Não havia nada lá. — Diana, tem alguma intercepção na sua tela? — Não, nada. — A cada tecla que batia no teclado e a cada clicada no mouse, ela enrugava a testa preocupada. — Pensei que tinha algo nos canais internos, mas quando tentei seguir apareceu “Não Encontrado”.

— Aconteceu a mesma coisa comigo — disse Tom. Sua frustração só aumentava enquanto ele seguia fantasmas digitais pelo sistema de vigilância da NTAC.

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