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Grupo Dziga Vertov

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Academic year: 2021

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Patrocínio e Realização Apoio Cultural

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O Centro Cultural Banco do Brasil

exibe obras que, por sua heterogeneidade, não só abrem espaços para a análise da evolução da linguagem cinematográfica, como induzem à reflexão histórica.

Os filmes que integram a Mostra Grupo Dziga Vertov resgatam uma produção radical dos anos 1960 e 1970 da qual participaram Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin. No rescaldo das agitações políticas de maio de 1968, os cineastas se uniram a intelectuais franceses em torno das idéias de Mao Tse-Tung para formar o grupo cujo nome homenageia o cineasta soviético que revolucionou a linguagem do cinema nos anos 1920. O Grupo Dziga Vertov rompeu definitivamente com o cinema comercial e, segundo o próprio Godard, procurou estabelecer uma nova unidade que produziria não filmes políticos, mas "filmes políticos politicamente".

Destas experiências coletivas participaram pensadores, atores e outros cineastas, entre os quais Daniel Cohn-Bendit, Gian Maria Volonté, Yves Montand, Jane Fonda e até mesmo Glauber Rocha. O principal parceiro de Godard, o ativista político e cineasta Jean-Pierre Gorin, na época editor do jornal

Le Monde, vem pela primeira vez ao Brasil apresentar os filmes realizados

pelo Grupo. São obras raras, de difícil exibição e ainda pouco conhecidas do público brasileiro.

Vistas em retrospecto, essas experiências são ainda hoje consideradas revolucionárias em todos os sentidos. Acrescentaram inovações à linguagem cinematográ-fica que, anos depois, viria a sofrer profundas mudanças a partir dos meios eletrônicos. Ao apresentar a obra completa do Grupo Dziga Vertov, o Banco do Brasil promove e enriquece o debate sobre a memória e a história do cinema.

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Abrindo latas de sopa Campbell’s

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Jane de Almeida

O Grupo Dziga Vertov

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Colin MacCabe

Jean-Pierre Gorin

36

Erik Ulman

O amigo de Glauber [e Godard]

50

Jane de Almeida

Vento do Leste ou Godard e Rocha na encruzilhada

58

James Roy MacBean

Vento, barravento [Glauber e Godard na porta da usina Lumière]

79

José Carlos Avellar

Carta a Jean-Pierre e a Jean-Luc

89

Kent Jones

Sinopses | Fichas técnicas 95

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Os filmes do Grupo Dziga Vertov

estão sendo exibidos pela primeira vez no Brasil. Devido a seu quase ineditismo, sua complexidade e seu deslo-camento temporal, várias perguntas fazem parte dessa produção desde que a Mostra foi concebida, há mais de dois anos.

Algumas delas: como mostrar um conjunto de filmes de extrema complexidade e que, de forma simplista, foram vistos como meros planfetos políticos pela crítica cinematográfica, ou como extravagantes exer-cícios cinematográficos para o engajamento político? Como introduzir ao público brasileiro uma experiên-cia única no cinema quanto ao descolamento entre a imagem e o som e os efeitos do processo dialéti-co produzido pela proposta (tendo ela sido bem sucedida ou não), num momento em que se dis-cutem nacionalmente as políticas de financiamento do cinema como patrimônio do povo e o retorno financeiro como resposta ao que se deve produzir como imagem? Como falar de uma proposta de pro-dução coletiva contrária à assinatura autoral e que gera, como conseqüência, uma série de mal-enten-didos sobre a própria autoria dos filmes? Sem men-cionar que um dos participantes é um dos maiores diretores da história do cinema e foi ele mesmo um dos responsáveis pelo fenômeno do cinema de autor. Por fim, como apresentar filmes feitos há mais de 30 anos sob uma intensa polêmica política da qual os brasileiros foram forçados a se retirar? São perguntas que pautam essa publicação e às quais ela

certamente não conseguirá responder. Os artigos foram selecionados a partir de três vertentes: o Gru-po Dziga Vertov e sua história, a relação de Glauber Rocha com o Grupo e a presença de Jean-Pierre Gorin na Mostra. Espera-se que ela sirva de referên-cia inireferên-cial e de inspiração para novas questões que certamente surgirão, a partir de esclarecimentos e mal-entendidos abordados pelos autores.

6

Jane de Almeida | curadora

Abrindo lat

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Quando surge o Grupo Dziga Vertov, surgem também outros grupos, como o Grupo ARC (Atelier de recherche cinématographique) e o grupo SLON, de Chris Marker, ajudados pelas novas tecnologias de captação e montagem dos ciné-tracts — já que os pequenos filmes podiam ser editados na própria câmera, promovendo a idéia da ausência de autoria (ou de autoria única) em nome de um trabalho coletivo. Assim, Um filme como os outros é o precursor da série, sem ainda ser creditado como pertencente ao grupo Dziga Vertov1. Só mais tarde, provavelmente depois

de British Sounds, é que o grupo acaba se intitulando “Dziga Vertov”, por influên-cia de Jean-Pierre Gorin. Com Vento do Leste, o grupo se estabelece, e Godard anuncia que para o cineasta soviético Vertov a definição de Kinoki não é “cineas-ta”, mas sim “operário do filme”, diferenciando moviemaker de film worker2.

Ao lado de Jean-Luc Godard e de Jean-Pierre Gorin, alguns outros membros tiveram par-ticipações mais freqüentes, como as de Jean-Henri Roger, responsável por British

Sounds e Pravda, que escreveu roteiros e dirigiu com Godard; o fotógrafo Paul

Burron; Gérard Martin, algumas vezes citado como co-diretor de Vento do Leste; e Anne Wiazemsky, na época casada com Godard e atriz de vários dos filmes pro-duzidos pelo Dziga Vertov. Outros participantes estiveram ao redor desse movi-mento e não se sabe qual foi exatamente sua contribuição, o que, de certa forma, reflete a proposta coletiva de fazer cinema. Ironicamente, a despeito do desejo colaborativo, os filmes são geralmente comentados e analisados apenas como parte da filmografia de Godard. Outra conseqüência é que até há pouco tempo eles parecem ter ficado à deriva nas distribuidoras, que não sabiam a quem pedir os direitos de exibição. Estivemos por algum tempo sem nenhuma pista sobre como consegui-los, até que, depois de um festival de filmes políticos em Nantes, em 2003, a Gaumont nos respondeu3. Um problema parecido surge no

momen-to de citar os crédimomen-tos, pois às vezes momen-toda a ficha técnica fica resumida ao Grupo Dziga Vertov, com um ou outro nome agregado. Em casos extremos, como no texto de James MacBean sobre Vento do Leste aqui publicado, os filmes são cred-itados apenas a Jean-Luc Godard.

Em vez de creditar os filmes apenas ao “Grupo Dziga Vertov”, optamos por publicar um guia de créditos apresentando referências de fontes diferentes. Se por um

7

[1 ]O próprio Godard admite em entrevista para Kent E. Carrol, publicada em “Film and revolution: Interview with

the Dziga Vertov Group”, em Focus on Godard, New Jersey, Prentice-Hall, Inc, 1972. p.53, que Um filme como os

outros é o primeiro da série de filmes revolucionários que havia feito.

[2 ] Na mesma entrevista a Carrol concedida em inglês em 1970, p. 50.

[3 ]Os Cahiers du Cinéma comentam esse problema quando escrevem sobre o Festival de Nantes. Patrice BLOUIN,

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lado isso parece contraditório com os propósitos do Grupo, por outro traz um pouco da historicidade do processo e de sua recepção, além de, de alguma forma, elencar subjetividades e abordar questões sobre o fazer coletivo. Ao se pensar no caminho traçado pelos filmes do Grupo, tal iniciativa parece até coerente. Cada filme tenta responder questões pendentes dos anteriores e, quase no fim, em Tudo

vai bem (que não é mais um filme do grupo, mas de Godard e de Gorin e assim

assinado), a conclusão sobre o coletivo, proveniente de uma decepção inicial com as organizações de trabalhadores, é de que a grande história é construída pela história individual. De certa forma, esse é também o procedimento de Carta para

Jane. Hoje, é mais comum pensar que o Grupo aconteceu por esforço e desejo de

Godard e de Gorin. Ao perguntarem a ele e a Godard quantas pessoas faziam parte do Grupo Dziga Vertov, Gorin respondeu, numa entrevista em 1970: “Neste momento, duas, mas nem nós temos certeza. Existe uma ala da esquerda e uma ala da direita. Às vezes, ele é a esquerda e eu sou a direita, é uma questão de prati-cidade”.4 Complementando, Godard nessa época declarou em vários momentos

que trabalhar em grupo era uma forma de destruir a ditatura do diretor. Depois de mais de 35 anos desde o seu início, tendo sido imediatamente recebidos

com certo furor pelos primeiros espectadores e logo sendo relegados ao limbo, qualificados como “extremistas”, “radicais”, “inassistíveis”, demasiadamente politizados para os amantes do cinema e também demasiadamente estetizantes para o cinema político feito na época, esses filmes retornam em conjunto — seja em apresentações, seja como parte da cinematografia de Jean-Luc Godard, seja em homenagens que apresentam a filmografia de Jean-Pierre Gorin ou seja ainda dentro de uma temática política sobre os anos 1960 e 1970. São poucas as vezes em que acontece uma mostra de filmes “Grupo Dziga Vertov”, apenas, e, por isso, outra questão se faz necessária: o que significa hoje assisti-los? Antes de tentar enquadrá-los em uma perspectiva mais temporal, que obriga o recep-tor a tentar entender o objeto de fruição por meio do que ele carrega do seu tempo, estes filmes são experiências singulares sobre as conseqüências ideológ-icas daquilo que se escolhe como forma. Levam Brecht para além do distanci-amento e do estranhdistanci-amento, dando continuidade à propria lição brechtiana de

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[4 ]“For the moment two, but we are not even sure. There is a left wing and a right wing. Sometimes he is the left

and I am the right, it is a question of practice.” Em Michael GOODWIN, Tom LUDDY e Naomi WISE. The Dziga Vertov film group in America, Take One. The film magazine, vol. II, n.10. Canadá, março/abril de 1970. pp. 8-27. Ou em The Dziga Vertov film group, em “America: an interview with Jean-Luc Godard and Jean-Pierre Gorin”, Cinefiles. Versão na Internet: http://www.mip.berkeley.edu/cgi-bin/cine_doc_detail.pl/cine_img?11165?11165?1

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que o problema da forma é em si o problema da política. E nisso trazem o fres-cor da liberdade com que foram feitos, no contraste ousado das fres-cores de quem fazia filmes para serem vistos e não para serem lidos, como insiste Gorin ao argumentar contrariamente sobre o proclamado fim da escrita5. Em todos os

nove filmes, em maior ou menor intensidade, o som e a imagem são elemen-tos autônomos que às vezes dançam e às vezes brigam. Nesse sentido, a acusação de verborragia panfletária é uma acusação pouco refletida, de um ponto de vista apressado, sobre aquilo que se apresenta. Há uma primeira cama-da com a presença maciça de falas, mas até pela complexicama-dade do que elas propõem o espectador fica na posição de admitir que há outras camadas a serem percebidas por conexões inesperadas que lhe foram despertadas. É muito raro ver algum filme de caráter político que tenha levado tão longe sua

pro-posta, tal como fizeram os filmes do Grupo Dziga Vertov. É claro que depois da fase política mais estudantil, de prolongadas e arriscadas tentativas políticas ter-roristas, do crescimento das ideologias consumistas, do cultivo de uma posição independente como ideal subjetivo, é difícil para o homem comum contemporâ-neo se ver no grupo do “burguês” ou do “trabalhador”, já que ele desde sem-pre esteve em ambos. Mas desde então, os filmes mais políticos, contrários ao poder, têm sido tão conteudistas, tão despreocupados no pensar a forma (se quisermos, submetidos àquilo que Hollywood define como forma), com leituras tão simplificadas do poder, que parece termos perdido o elo entre o que acon-teceu na época do Grupo e o que acontece hoje. Há nesse sentimento de perda o desejo de uma evolução que nem sempre acontece. Contudo, rever e repen-sar esses filmes para além de um sentimento nostálgico pode fazer movimentar cadeias de ligações não percebidas, mas já consideradas estabelecidas, principal-mente sobre o mundo que construímos depois de maio de 1968.

O primeiro dos filmes, Um filme como os outros, mostra uma explosão de imagens dos ciné-tracts de maio de 1968 em preto-e-branco entrecortando a discussão estudantil sobre as lutas de classes. Ele é o precursor do filmar coletivo na obra de Godard e parte de discussões políticas entre Godard e Gorin6. A concepção

desse filmar que não mostra as identidades, na medida em que privilegia as falas em detrimento dos rostos dos personagens, já é em si um procedimento da forma de pensar que tomará corpo nos próximos filmes. No entanto, o

con-9

[ 5]Gorin em entrevista para Jump Cut: Christian Braad THOMSEN, Jean-Pierre Gorin interviewed. Filmmaking and

History, n. 3, 1974. pp. 17-19. http://www.ejumpcut.org/archive/onlinessays/JC03folder/GorinIntThomson.html

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traste entre a paisagem pastoril colorida e calma dos debatedores e as imagens de bombas e greves dos trabalhadores gera a princípio duas interpretações: uma, a respeito das diferenças entre as próprias classes (ou seja, uma que posa para o filme), e outra, que “posa” para a luta. A segunda abre o problema que será adiante questionado pelo Grupo — como em Lutas na Itália — a respeito da realidade da teoria e da realidade da prática.

O próximo filme, British Sounds, foi feito na Inglaterra logo após One Plus One e desde o princípio declarou-se o desejo de filmar em conjunto. Roger trabalha com Godard e o maoísmo dá o tom mais forte do esquema político da fita. A cor do filme é vermelha e o som é o da repetição. As seis seqüências, mesmo que declaradamente políticas, não deixam de ser apre-sentadas com certa ironia e certo humor no jogo com clichês revolucionários, como a bandeira sendo rasgada na abertura e a mão ensanguentada em busca da bandeira vermelha no fim. A ironia revela em si o incômodo de participar de duas posições, um recurso usado com freqüência por Godard. Aliás, o núcleo do filme é carregado de cenas irônicas, como a cena do locutor de televisão que parte de uma posição liberal para anunciar precon-ceitos entrecortada por cenas da realidade britânica que não acompanham a fala desse mesmo locutor. Porém, se pensamos na seriedade do som revolucionário com que o filme termina, em sincronia com a imagem, seu contraste com essa ironia parece revelar uma certa hesitação entre o Godard de Alphaville e o Godard revolucionário.

Vento do Leste, depois de Pravda, é o próximo da série. Todo ele é tomado pela voz

do gênio maligno que, com exceção de Tudo vai bem, permanecerá até Aqui

e acolá. Na realidade são vozes (no caso de Vento do Leste, feminina), mas

uma em especial cumpre a função de alteridade dialética que, como um fio principal, garante a estrutura dos filmes. E garante também a sua descons-trução no sentido mais formal. Aos poucos, o descolamento identificatório entre som e imagem toma os filmes, e também aos poucos os sons ganham vida própria. Vento do Leste é um filme mais vigoroso, com questões em aberto. A voz do gênio maligno responde a British Sounds sem hesitações e abre todo um caminho de experiências — uma delas com a participação de Glauber Rocha. Gorin explica que, ao elaborar a cena com Isabel Pons, a garota grávida com a câmera, transformou-a na metáfora das dificuldades e esperanças da época que encontra na encruzilhada a impossibilidade da conciliação entre os tropicalistas do Terceiro Mundo e os conceitualistas do Primeiro quanto à revolução do meio. Impossibilidade marcada pelos três passos hesitantes da grávida na direção indicada por Glauber e logo depois o

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seu retorno desse caminho7. A voz de Glauber canta e indica o caminho do

“cinema perigoso, divino e maravilhoso”. Daquela época.

O Brasil entrava na fase mais aterrorizante da ditadura política. Nosso cinema é cen-surado, nossos pensadores são presos, torturados, vão para o exílio — e o Brasil fica sem o diálogo entre o dentro e o fora que tinha acabado de retomar da tradição modernista. Glauber não deixa de filmar e seu filme Der leone

have sept cabeças é claramente uma influência do Grupo Dziga Vertov, como

nota Jean-Pierre Gorin e José Carlos Avellar, que, em artigo aqui publicado, também sugere uma troca mais afinada de influências com soluções desen-contradas entre as cinematografias de Glauber e Godard, do Primeiro e do Terceiro Mundos.

Assistir a esses filmes hoje é como poder ver uma parte perdida de uma importante discussão que talvez pudesse ter alimentado uma linha de cinema um pouco abandonada pelos espectadores e pelos produtores de filmes, cujo projeto estético inclui a refletividade do aparato e a experimentação formal do cinema. Uma linha que une Mário Peixoto a Júlio Bressane e que, ironicamente, nada tem a ver com o chamado cinema “político”. Tal linha inclui Glauber, mas parece que é o “político” de Glauber, naquilo que diz respeito à interpretação mais comercializada de sua estética da fome, que tem sido cultivado no nosso cinema. Uma pena, pois isso diminui a diversidade de leituras da complexi-dade do mundo.

Os filmes do Grupo Dziga Vertov, hoje menos importantes politicamente — no que diz respeito ao aspecto político mais evidente, pois de certa forma a escolha estética é em si um ato político — e mais interessantes experimentalmente, são aquilo que o cinema pode considerar como situação limite, na medida em que ainda são considerados filmes e se utilizam do aparato cinematográfico básico: película, projetor, tela, cadeira, sala escura, bilhetes para entrada, tempo cine-matográfico tradicional. No entanto, o que se vê na tela é muito mais próximo daquilo que hoje se vê com freqüência em museus em tempo reduzido: as chamadas instalações, que foram mais freqüentes em vídeo e hoje são feitas

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[7 ]Correspondência por e-mail. “Foi a minha namorada da época, Isabel Pons, que eu coloquei para encontrar

Glauber na encruzilhada e cuja gravidez transformei numa metáfora de nossas dificuldades e esperanças, munindo-a de uma câmera; Glauber está nesta cena porque Raphäel Sorin e eu fomos procurá-lo em Roma, e o procedimento, o “roteiro” que capacitou Glauber a improvisar suas falas, a idéia de tê-lo na encruzilhada improvisando musicalmente em cima do “cinema do Terceiro Mundo” é minha; e esta impossibilidade de encontro entre os tropicalistas do Terceiro Mundo e os conceitualistas do Primeiro em busca de uma revolução do meio, marcada pelos três passos hesitantes de Isabel na direção indicada por Glauber e o seu retorno ao caminho pelo qual ela veio, eu que articulei…”

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com material digital. São vários filmes dentro de cada filme, feitos com uma disponibilidade de material barato, criando imagens de imagens recicladas den-tro dos próprios filmes. Nada mais “pop” do que as impressões da luz do sol na tela escura, os cartazes com esquemas escritos, os quadros vermelhos e as tiras recortadas de películas em Vento do Leste. Os movimentos econômicos materiais do cinema e das artes plásticas são contrários. Enquanto o cinema custa muito e é vendido a preço baixo, as artes plásticas custam geralmente muito pouco e são vendidas a alto preço. Nesse sentido, os filmes do Grupo acompanham a arte contemporânea, ao utilizar ao máximo o material cotidiano daquilo que estava ali presente, em lugar de propor o acabamento cuidado que é exigido cada vez mais intensamente pelo cinema. Kent Jones, em artigo aqui publicado, usa a metáfora de Gorin do “abridor de latas” (“Nós fizemos este filme da mesma maneira que você faria um abridor de latas”) para descrever o processo artesanal com que os filmes foram feitos. Fazer um filme como um abridor de latas é dotá-lo do poder de servir de ferramenta para abrir aquilo que se apresenta hermeticamente fechado, como a imagem de Jane Fonda no Vietnã. Se pensados como um artefato “pop”, os filmes não se contentam em apresentar a nova cultura ou revelar a realidade do consumo. Mesmo latas de sopa Campbell’s devem ser abertas.

Em entrevistas da época com o Grupo, geralmente representado por Godard e Gorin, eram feitas várias perguntas a respeito da audiência para a qual aqueles filmes eram dirigidos. A dupla realmente se preocupou com essa questão ao produzir

Tudo vai bem. Apesar da presença dos atores famosos, do cuidado com o

acabamento, na época o filme não foi bem-sucedido nem pública, nem critica-mente. Vendo-o hoje, essa preocupação se torna sem sentido e apreciamos o fato de ele ter sido feito. Sem querer dizer que ele afinal tenha alcançado sua audiência, ou que as obras do Grupo Dziga Vertov tenham agora atingido um público, ao se pensar as políticas de apoio e financiamento ao cinema seria bom que fosse possível argumentar também no sentido do eixo paradigmático,

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Tanto o filme

One Plus One como o One A.M. foram

financiados para serem exibidos no cinema e, apesar da experimentação formal e do cansativo conteúdo político dos mesmos, pode-se imaginá-los como sendo filmes teatrais. É impossível, porém, imaginar os cinco filmes seguintes de Godard fora do âmbito da sala de aula ou da reunião política, mas todos, com apenas uma exceção, foram feitos para exibição em televisão. A história da produção foi semelhante em todos os

casos. Uma emissora européia de televisão comis-siona o grande cineasta para fazer um documentá-rio sobre alguma atualidade da política e depois se nega a veicular o filme por algum motivo técnico. Todos os filmes, de maneira bem simples, são “inassistíveis” – a premissa de cada um é a de que a imagem não consegue fornecer o conhecimento que o filme promete; que a câmera não é um meio de captação neutro de realidade, mas sim um elemento essencial na realidade que está sendo representada. Eles demonstram a realidade da câmera de forma constante, principalmente por meio da ênfase dada ao som, que não funciona meramente como um complemento invisível à imagem, mas como elemento independente. Esses filmes foram classificados por Jean-Pierre Gorin como

OVNIs, Objetos Visuais Não Identificados, e tal descri-ção não é de todo ruim. É difícil lembrar algum para-lelo na história do cinema. Nunca nenhum outro diretor de filmes comuns decidiu usar cinco orça-mentos comerciais para fazer experiências com som e imagem, e nunca nenhum diretor experimental fez cinco filmes que ainda são reconhecíveis dentro do gênero de documentários sobre “assuntos atuais”. O próprio Godard declara que eles não são ”filmes”, *

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© 2003 por MacCabe, Colin, in: Godard: A Portrait of the

Artist at Seventy. Reimpresso

com a permissão de Wylie Agency Inc.

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mas admite que eles contêm alguns ”movimentos” interessantes. Considerados como documentários convencionais, são “inassistíveis”; considerados como experiências de som e de imagem, eles contêm lições que são ainda mais rele-vantes hoje do que quando foram feitos.

O primeiro desses filmes foi feito na Grã-Bretanha e sua programação estética foi declarada na cartela onde, após a palavra British (britânicos), a palavra Images (imagens) é riscada e substituída pela palavra Sounds (sons). O filme é com-posto por seis longas seqüências: uma linha de produção de automóveis; uma mulher nua andando por uma casa; uma manifestação direitista denunciando a imigração, um grupo de trabalhadores falando sobre o capitalismo; um grupo de estudantes de Essex, na Inglaterra, tentando escrever uma letra radical para uma das músicas dos Beatles; e uma mão ensangüentada se esticando para al-cançar uma bandeira vermelha. O som e a imagem nunca se encontram numa relação convencional.

Enquanto seguimos pela interminável linha de produção de automóveis, ouvimos seqüências de O Manifesto Comunista, mas estas são quase impossíveis de se ouvir devido ao barulho ensurdecedor produzido pela linha de montagem que não pára de trabalhar. A mulher nua anda em total silêncio pela casa, enquanto um dos primeiros textos britânicos feministas, escrito por Sheila Rowbotham, é lido na trilha sonora. Diferentemente da primeira seqüência, há um momento em que o texto pode ser entendido como descrição da imagem, mas então a mu-lher pega o telefone e começa a repetir algumas das palavras de Rowbotham, num estranho contraponto com a voz over. O orador neofascista se dirige à câmera na forma clássica de abordagem direta comum à televisão, mas é impos-sível fazer uma leitura de som e imagem em conjunção, em parte pelo choque sentido ao ouvir o racismo sendo articulado de uma posição de autoridade libe-ral, e em parte porque as imagens da Grã-Bretanha que pontuam seu discurso, no formato clássico da reportagem de notícias, não fornecem uma ”ilustração” daquilo que ele está dizendo. A conversa sobre a política entre os funcionários de uma fábrica de automóveis em Cowley, perto de Oxford, nunca combina o som com a imagem; a câmera não focaliza a pessoa que está falando, somente aque-las que estão ouvindo. Enquanto a seqüência com os estudantes de Essex não tem nenhuma tomada de pessoas falando individualmente, a câmera filma o grupo na sua procura pelos sons certos que irão transformar uma música dos Beatles numa canção revolucionária. Mas, mesmo assim, o filme não fornece o começo ou o fim que colocaria os esforços desses jovens dentro de um contexto ”compreensível”. É somente a última seqüência que sugere o casamento entre som e imagem, quando um braço ensangüentado avança lentamente

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pela neve para segurar uma bandeira vermelha, enquanto uma mistura de canções revolucionárias forma a trilha sonora.

Sons britânicos foi produzido pela Kestrel Productions, uma empresa fundada por

Tony Garnett e outros cineastas esquerdistas para aproveitar o processo de reavaliação de concessões enfrentado pela televisão britânica. Mo Teitelbaum, esposa de um dos sócios, Irving Teitelbaum, teve a idéia de que a Kestrel deveria juntar seis diretores europeus para fazer documentários sobre a Grã-Bretanha. Mo conhecia Godard desde maio de 1968, quando Gérard Froman-ger os apresentou, e eles se encontraram em Londres quando Godard estava filmando One Plus One. Quando Mo apresentou a idéia, Godard concordou sob a condição de que ela fosse sua assistente, e também que o filme fosse produzido de modo não convencional.

Assim, os Teitelbaum viram sua pequena casa, no bairro de St. John’s Wood, se transformar em sede de produção e cenário para duas das seqüências; e também, sem querer, se viram administrando um hotel para a revolução1. Godard havia

le-vado junto com ele um estudante maoísta chamado Jean-Henri Roger, para que, conforme explicou aos seus anfitriões, o filme pudesse ser feito de forma ”demo-crática”. Mo Teitelbaum ficou impressionada ao ver o quanto Godard se esforçava para imprimir suas credenciais revolucionárias nesse jovem. Roger havia praticamente adotado Godard e Wiazemsky desde os eventos de maio, e isto não agradava Anne Wiazemsky – ela não ficou nada satisfeita em ser tratada como mãe adotiva por uma pessoa da sua idade, tampouco em ter Roger como hóspede freqüente no apartamento deles2. Mas para ela, tudo isso fazia parte da grande

necessidade que Godard tinha de adular a juventude.

A convivência durante a produção foi difícil. O operador de câmera, Charles Stewart, usava um bigode do tipo ”guidão de bicicleta” e envergava paletós de tweed. Os Teitelbaum acreditam que Godard sentia-se quase que obrigado a provocar discussões com uma pessoa de aparência tão burguesa. Além disso, havia o problema de sempre: Godard era muito pouco inclinado a explicar o que queria.

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[1 ]Além de Godard e Roger, havia vários outros visitantes de Paris, incluindo Daniel Cohn-Bendit e sua namorada. [2 ]O próprio Roger diz que a situação era bem complicada, e que ele e Wiazemsky freqüentemente faziam piadas

às custas do “Pépé” (Vovô) Godard. Não pode haver dúvidas sobre a força da ligação entre o maoísta turbulento e o cineasta de meia-idade. Roger casou-se com Juliet Berto, que viria a morrer tragicamente jovem, em 1990. Em luto, Roger decidiu abandonar tanto a França como o cinema e ir para as Índias Ocidentais. Godard ligou pra ele e o convidou para ir a Rolle, num esforço para dissuadi-lo. Roger passou dois dias na Suíça, durante os quais Godard não disse uma palavra. Quando Godard foi deixá-lo na estação de trem, disse a ele: “Sabe – você não pode ir para as Índias Ocidentais, porque isso vai me deixar sem ninguém para conversar”.

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Nas palavras de Irving Teitelbaum, ”tudo estava na cabeça dele, mas se você não estava dentro da cabeça dele, então a culpa era sua”. Algumas discussões eram mais engraçadas. Os Teitelbaums eram membros de um grupo trotskista, e quando Godard conheceu o líder, Gerry Healey, este o informou que ele estava ”no negócio de esmagar os negócios”. ”Ah,“ disse Godard, ”então você está no mesmo ramo”. Isso levou a aproximação maoísta/trotskista a uma conclusão muito rápida.

Para Mo Teitelbaum, a filmagem foi dominada pela ”frustração e pelo desespero de que o significado de 1968 houvesse enfraquecido na França, e por um desejo desenfreado de recriá-lo e redescobri-lo”. Quando eles foram até Essex, que naquela época era tida como uma universidade revolucionária, Godard ficou ”horrorizado ao ver quão comportados eram os estudantes”. Alguns estudantes mais politicamente ativos foram rapidamente reunidos, mas a decepção de Godard era tão grande e tão visível que Teitelbaum até cogita a possibilidade de que algumas das pessoas filmadas acabaram por fundar a assim chamada Angry Brigade (Brigada Raivosa), o único grupo terrorista da Grã-Bretanha, cuja origem pode ser rastreada pelas emoções daquele dia.

O filme conseguiu seus quinze minutos de fama devido à longa seqüência em que uma mulher nua anda pelas dependências de uma casa. Apesar de não haver nenhum conteúdo erótico ou pornográfico na cena, a London Weekend Televi-sion, através da qual a Kestrel estava fazendo o programa, se recusou a exibi-lo. A idéia de Godard para esta seqüência veio quando Mo Teitelbaum mostrou a ele uma matéria de Rowbotham na revista esquerdista Black Dwarf. Este foi um dos primeiros textos sobre a liberação da mulher na Inglaterra, e Godard ime-diatamente decidiu incluí-lo em seu filme. Sheila Rowbotham relembra seu encontro com Godard em suas memórias sobre os anos 1960:

A idéia dele era me filmar sem roupa, recitando palavras sobre a emancipação, enquanto eu subia e descia um lance de escadas – a supo-sição era que, depois de um tempo, a voz iria se sobrepor às imagens do corpo. Isto me deixou desconfortável por dois motivos. Meu número era 36 e eu achava meus seios flácidos demais para a moda dos anos 1960. Ser fotografada, deitada e sem roupa, não era problema, mas a idéia de ficar andando escada abaixo me deixava constrangida. Além do mais, embora eu não considerasse a nudez um problema em si, os primeiros grupos de mulheres eram contra o que chamávamos de ”objetifica-ção”… Por que diabos a danada da mente masculina pulava tão rapida-mente da conversa sobre libertação para a nudez, eu me perguntava….

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Godard veio até Hackney (um bairro na zona leste de Londres) para me convencer. Ele se sentou no chão de madeira lixada do meu quarto, um homem franzino e de compleição escura, seu corpo retorcido em nós persuasivos. Nem o homem Godard, e nem o Godard criador mitológico de Acossado, foram fáceis de contentar. Eu sentei desconfortavelmente ao pé da minha cama e declarei: ”Eu acho que se tem uma mulher sem roupa na tela, ninguém vai prestar atenção nas palavras”, assim sugerindo que talvez ele pudesse filmar os nossos adesivos com os dizeres “This Exploits Women” (Isto Explora as Mulheres) no metrô. Godard me lançou um olhar terrível, seus lábios retorcidos. ”Você acha que eu não consigo deixar uma boceta desinteressante?”, ele exclamou3.

Nós estávamos presos num momento etnográfico efêmero.

No final, chegamos a um acordo. O Electric Cinema tinha acabado de ser inaugurado no bairro de Notting Hill e precisava de dinheiro. Uma jovem (com seios pequenos) de lá concordou em subir e descer a escada, e eu fiz a locução. Quando Sons britânicos foi exibido na França… a platéia aplaudiu quando eu declarei: “Eles nos dizem o que nós somos… Simplesmente não existe a consciência de ‘homens’ que são autores, de ‘homens’ que são cineastas. Eles são apenas ‘auto-res’, apenas’cineastas‘. A imagem refletida para as mulheres, criada por eles, será absorvida diretamente pelas próprias mulheres. Estas persona-gens ‘são’ mulheres.” Quanto à intenção de Godard de tornar uma boceta desinteressante, não posso dizer nada, exceto que um amigo envolvido no socialismo internacional me contou que seu primeiro pensamento tinha sido ”mulher gostosa” – até perceber que a tomada se repetia... e se repetia… e se repetia; então ele começou a escutar4.

A última seqüência do filme, em que o desejo de revolução triunfa quando um braço ensangüentado se arrasta pelo chão coberto de neve para alcançar uma bandeira vermelha, foi filmada no quintal dos Teitelbaum. Quando foi sugerido que o braço estivesse sangrando, Teitelbaum se ofereceu para dar um pulo na sede da Kestrel, onde havia um frasco de sangue artificial. Godard disse para não se pre-ocupar com isso e cortou o próprio braço para fornecer a “cor” para a cena final.

18

[ 3 ]Godard disse que não usou esta frase.

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Godard fez seu filme seguinte na antiga Tchecoslováquia, quase que imediatamente após deixar a Grã-Bretanha. O pedido veio de uma emissora de televisão da Ale-manha Ocidental, que solicitou um documentário sobre a Tchecoslováquia seis meses depois da invasão soviética, em agosto de 1968. Mais uma vez, Godard foi acompanhado por Jean-Henri Roger, mas agora eles estavam também com Paul Burron, o operador de câmera que Godard queria usar para filmar Sons

britânicos. O filme se chama Pravda, que em russo significa verdade, e era

tam-bém o nome do jornal oficial da União Soviética. Este filme é até mais explícito que Sons britânicos em sua negação dos padrões convencionais para documentários e seu ceticismo sobre a possibilidade de encontrar alguma verdade na imagem. Seu ataque a todas as ideologias de visão é muito mais explícito do que no filme anterior de Godard, em que as seqüências longas de fato levam a um considerável conteúdo de verdade. (Até não seria difícil imagi-nar Sons britânicos como sendo uma refilmagem mais bem sucedida de One

Plus One.) Pravda é uma negação de tais luxos.

A tomada inicial da Tchecoslováquia é acompanhada por um comentário semi-irônico que enfatiza o ”revisionismo” da sociedade tcheca. O ”cinema direto” de Sons

britânicos foi substituído por um formato de documentário convencional para a

televisão, com relação direta entre som e imagem, mesmo que esse som – ”Muitos trabalhadores preferem lavar seus carros a comer suas esposas” – se encontre fora das normas de televisão. Mas essa seção de abertura é logo descartada como sendo uma mera ”projeção cinematográfica sobre a viagem”. O filme então começa a desenvolver sua análise racional da situação política, enquanto, ao mesmo tempo, destrincha as relações normais entre som e ima-gem que transmitem a informação nos documentários de televisão.

Conforme a câmera focaliza numa conversa entre trabalhadores tchecos, no lugar da usual locução dublada somos informados que, ”se você não fala tcheco, é bom que aprenda rápido”. De forma semelhante, uma conversa sobre o campesi-nato é acoplada a uma imagem de camponeses carregando feno, enquanto a câmera faz um zoom in e um zoom out. Em termos convencionais, esse zoom significa nossa aproximação da realidade, mas há uma total desconexão entre o comentário e o zoom, de modo que nós nos tornamos cientes deste como sendo uma mera alteração da distância do objeto filmado, e a alteração não nos fornece nenhum conhecimento real.

Em certo nível, os problemas do filme são os problemas da distorcida corrente maoísta na Tchecoslováquia, que foi contra a invasão russa, e mais contra ainda à liberalização tcheca que a precedeu, sendo ambos exemplos do peca-do mortal peca-do ”revisionismo”. Mas são estes problemas que permitem uma

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desconstrução hilariante das convenções do documentário televisivo, um ataque feroz ao dogma do “ver para crer”.

Enquanto editava esses filmes, Godard passava bastante tempo discutindo a respeito dos mesmos com outro jovem maoísta, Jean-Pierre Gorin. Gorin não acompa-nhava as filmagens e nem freqüentava as salas de montagem, pois estava hospitalizado por ter sofrido um grave acidente de moto. Mas vinha conversando com Godard sobre cinema há mais de dois anos. Eles se conhe-ceram num jantar oferecido por Yvonne Baby, crítica de cinema do Le Monde, quando Godard estava filmando A chinesa. Gorin tinha acabado de começar a trabalhar como crítico literário no Le Monde. Ele estava com 23 anos de idade e, conforme os comentários, era tão brilhante quanto charmoso. Apesar de não ter conseguido uma vaga na Ecole Normale Supérieure, as aulas preparatórias na Louis le Grand fizeram com que se engajasse profundamente com novas correntes de pensamento, fosse o marxismo althusseriano ou o estruturalismo literário.

Para Godard, ele aparentava ser “alguém melhor do que eu em pensamento e filosofia”. Ao final da noite na casa de Baby, Godard disse a Gorin que eles deveriam se encontrar para conversar outra vez. Eles se encontraram diversas vezes, e em uma dessas ocasiões, Godard deixou Gorin atônito ao mostrar-lhe não somente

Duas ou três coisas que eu sei dela como também um trailer que ele havia

editado para o filme Mouchette, a virgem possuída, de Bresson, um trailer que segundo Gorin era ao mesmo tempo ”puro Godard e puro Bresson”. Gorin, como tantos jovens esquerdistas daquela época, tinha uma verdadeira paixão

pelo cinema. A cinefilia dos anos pós-guerra ainda era uma realidade; o Quar-tier Latin tinha vários cinemas de repertório e, além desses, também existia a nova revista Cahiers, editada por Rivette. Para Gorin, a Cahiers representava um elo entre a alta e a baixa cultura, juntando as duas de forma inovadora – era o ”novo paradigma”. A associação entre Gorin e Godard estreitou-se quando ele foi despedido do Le Monde, no início de 1968, porque não conseguiu escrever uma matéria sobre Cuba, e pediu que Godard lhe desse emprego. Naquela época, Godard trabalhava num projeto para produzir 24 horas de filmes, das quais duas ele mesmo planejava filmar, enquanto as restantes seriam feitas por terceiros. Godard sugeriu que Gorin poderia fazer um dos filmes: “Eu te pago por semana”. Gorin ficou aterrorizado com o mon-tante de dinheiro envolvido e deu para trás. Ao invés de receber semanalmen-te, ele se retirou para escrever um roteiro inteiro, mas quando voltou para apresentá-lo, descobriu que o projeto havia desmoronado em meio a um bombardeio de recriminações.

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Apesar disso, as conversas entre os dois continuavam, e quando Godard estava prestes a ir à Itália para fazer seu próximo filme, Vento do Leste, estrelando Anne Wiazemsky e Gian Maria Volonté, ele insistiu que Gorin o acompanhasse. Os médicos disseram enfaticamente que Gorin tinha de ficar. A solução encontra-da por ele foi manencontra-dar Raphäel Sorin em seu lugar. Sorin era um dos amigos mais íntimos de Gorin; eles haviam freqüentado juntos a escola Louis le Grand, onde o fato de os dois terem mães judias representava um laço forte, e falavam em fundar uma produtora coletiva de filmes. As recordações de Sorin sobre a filmagem de Vento do Leste fazem com que esta pareça ter sido um pesadelo cômico em que todas as desilusões coletivas de 1968 foram des-tiladas na sua forma mais pura.

O dinheiro foi fornecido por um milionário radical italiano e parece ter sido de origem duvidosa – Sorin lembra-se de ter transportado enormes volumes de dinheiro da França para a Itália. Existiam muitos rumores sobre o paradeiro final do dinheiro que financiou Vento do Leste – talvez o mais encantador seja o que diz que o dinheiro foi usado para montar um bar para travestis em Milão. Um aspecto ainda mais desastroso é que o filme deveria ser feito de forma ”demo-crática”, ou seja, através de reuniões coletivas (assemblée générale). Se havia um tema unificador do movimento estudantil no final dos anos 1960, esse era a desconfiança de qualquer tipo de órgão representativo. O slogan de Lenin, ”Todo poder aos sovietes”, foi usado como mera estratégia para destruir as instituições de democracia representativa, mas dentro dos movimentos estu-dantis após 1968, uma crença na democracia direta determinava que todas as decisões precisavam ser tomadas em enormes e desengonçadas assembléias coletivas. Nos primeiros momentos de ”liberdade de expressão” em Berkeley, ou nos dias das barricadas em Paris, as assembléias coletivas talvez fossem uma inovação empolgante e libertadora, mas isso rapidamente se tornou um fórum repetitivo e impossível de controlar, aberto para todo tipo de oportunismo e uma eterna forma de chantagem moral baseada na premissa ”eu sou mais de esquerda do que você”.

Anne Wiazemsky, que sempre se mantinha cética perante toda retórica revolucionária mais desenfreada, não acreditava muito que o filme pudesse ser feito dessa maneira. A sucessão de reuniões colocou os anarquistas, liderados por Cohn-Bendit, o ”garoto propaganda” de 1968, contra os maoístas. Independentemen-te de suas descrenças nas instituições da democracia representativa, os anarquistas não eram contra a representação em si; eles queriam um faroeste de esquerda que pudesse representar a luta de classes no gênero mais popular possível. Os maoístas, versados em Althusser e Brecht, não queriam nada disso. Nas

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palavras do filme Sons britânicos, ”se você produzir um milhão de cópias de um filme marxista-leninista você chega a E o vento levou”. Não podia haver questio-namento quanto ao uso da forma padrão de narrativa, quanto a permitir que som e imagem se tornassem compreensíveis para uma platéia sem embasa-mento. Eles somente podiam fazer um filme militante que agisse como uma “lousa” para uma platéia militante – um ponto de partida para o pensamento. O impasse foi resolvido quando Godard intimou Gorin. Ele telefonou para o

hospi-tal em Paris e disse: “Ou você vem fazer o filme comigo, ou eu encerro os trabalhos. Tem uma passagem já paga esperando você na Alitalia“. Os médicos de Gorin tentaram impedi-lo de partir, mas ele chegou à Itália. Em Roma, ele se hospedou no mesmo hotel que Godard e, portanto, encontrava-se numa posição privilegiada durante as caóticas semanas finais de filmagem. Foi nesta época que o relacionamento entre Godard e Gorin entrou na sua fase mais produtiva e intensa, que durou até 1973, e na qual eles produziram cinco filmes juntos: Vento do Leste, Lutas na Itália, Vladimir e Rosa, Tudo vai

bem e Carta para Jane.

Em Vento do Leste eles prevaleceriam juntos, no que Wiazemsky chamou de putsch5 ,

após o qual o ceticismo inicial de Wiazemsky se tornou ainda mais forte. Tudo que restou do filme de faroeste de Cohn-Bendit, que almejava a greve dos mine-radores como seu foco narrativo, são alguns fragmentos de narração na trilha sonora no começo do trecho de abertura. Em vez de representar uma greve específica em imagens específicas, o filme pergunta o que seria a representação de qualquer greve. Talvez a seqüência chave seja uma assembléia, não de mine-radores grevistas, mas da equipe de produção discutindo a idéia de usar ou não uma imagem de Stalin no filme. A segunda voz na trilha sonora (em Vento do

Leste o som é ainda mais dominante do que em Sons britânicos ou Pravda)

afirma que, assim como as assembléias devem ser analisadas em termos de suas circunstâncias específicas – de quem são a favor e de que são contra – as ima-gens devem ser analisadas da mesma maneira. A imagem de Stalin é utilizada pelos capitalistas para representar a repressão, mas do ponto de vista revolucionário, esta é uma imagem repressiva que inibe uma análise adequada de Stalin como um fenômeno político. Vento do Leste é o mais experimental da série de filmes maoístas; é o mais coerente na sua aplicação da política althusseriana.

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[ 5 ]Godard e Gorin dão uma descrição similar numa entrevista americana. Gorin: “ O que aconteceu foi que os dois

marxistas que realmente estavam querendo fazer o filme tomaram o poder”, e Godard: “Todos os anarquistas foram à praia”. Michael GOODWIN; Tom LUDDY e Naomi WISE. op. cit.

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Os seis ou sete meses seguintes, primeiro em Roma e depois em Paris, represen-taram um intenso período de discussão e experimentação. Para Gorin, Godard funcionava como um sismógrafo; ele havia previsto o terremoto de 1968, mas agora o terremoto já havia passado e ele tinha de se reinventar. Como conseqüência, estava aberto a idéias e receptivo a um jovem cheio de ideais. Ao falar de sua colaboração com Gorin e o amplo domínio de Gorin sobre a teoria contemporânea, Godard fala em termos de som (“Eu não tinha conhecimento daquilo que foi gravado”), pois é o som que está no centro destes filmes experimentais. Para Gorin, o foco no som tinha muitos fatores determinantes – econômicos, políticos e tecnológicos.

O final dos anos 1960 foi um período em que a tecnologia dos equipamentos de som se desenvolveu rapidamente, especialmente a capacidade de mixar mais de um canal numa faixa. Politicamente, não existia nenhum desejo de reverter o desdém generalizado pelo som, um desdém refletido no fato de que o operador de som direto sempre ganhava muito menos que o diretor de fotogra-fia. Também existia um verdadeiro prazer pelo didatismo. Economicamente, era muito mais fácil experimentar com o som do que com a imagem. Tudo isso veio para colocar ênfase sobre a edição e o som, em vez da filmagem e da imagem, ênfase que Godard manteve quando voltou a fazer filmes mais convencionais. Para Godard, a desconfiança da imagem tinha um componente mais pessoal. Ele associa Vento do Leste com o final de seu relacionamento com Wiazemsky. A diferença de idade e o mesmo ciúme6que infernizou seu

casamen-to com Karina foram facasamen-tores importantes, mas o problema também era que am-bas as mulheres haviam chegado a ele como imagens – eram criações da tela, e não mulheres de verdade. De fato, Godard não se retirou do aparta-mento na Rue Saint-Jacques (para o qual eles tinham mudado três dias antes do primeiro distúrbio público de maio de 1968) até fazer a montagem de Jusqu’à

la victoire (Até a vitória), mas a produção de Vento do Leste parece ser,

consen-sualmente, uma linha divisória.

Godard estava tão entusiasmado com a colaboração de Gorin que eles resolveram assinar Vento do Leste com o nome coletivo de Grupo Dziga Vertov. A pri-meira vez que Gorin mencionou a idéia de um grupo coletivo Dziga Vertov foi para Raphaël Sorin, no começo de 1968, quando Godard pediu que ele escrevesse um roteiro para o malfadado projeto de 24 horas de filmes. Dziga Vertov foi um cineasta soviético do período revolucionário, cujo

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trabalho enfatizava tanto a montagem como a importância da luta de classes em andamento7. Num certo nível, a escolha de Vertov foi uma provocação

deliberada. Não sabiam todos que Eisenstein era o grande cineasta revolucio-nário? Em 1969, a provocação era forte; Vertov não era a figura canônica que é hoje. Mas tinham motivos tanto políticos quanto estéticos para escolher Vertov. Politicamente, isto possibilitava a condenação de Eisenstein pela sua decisão em 1924, de fazer um filme histórico sobre o Potemkin, ao invés de se concen-trar na luta de classes. Isso se encaixava com a linha althusseriana de dizer que a revolução soviética só começou a desandar no meio da década de 1920. Mais importante era a distinção estética entre a noção de Eisenstein de que a mon-tagem era, primeiramente, um processo de edição, e a prática de Godard e Gorin, para quem a justaposição dos elementos diferentes era necessária em cada fase da filmagem, desde a escolha do material a ser filmado à própria filmagem, bem como na assim chamada edição.

A idéia de organização coletiva não era incomum. O período entre o final dos anos 1960 e início dos anos 1970 testemunhou várias tentativas, em todo o Ocidente, e em todos os níveis, do doméstico ao profissional, de estabelecer formas de organização não baseadas no indivíduo. O desejo por tais organizações era geral-mente político, e resultado do desgosto pelo individualismo ocidental; o seu fracasso geralmente catastrófico é um elemento crucial na atual inabilidade de imaginar relações sociais a não ser na sua forma hiperindividualizada. Qualquer tentativa de analisar este desejo ou este fracasso vai muito alem do escopo deste livro. Mas para Gorin a idéia de uma organização coletiva estava no ar desde que adquirira consciência política; e o Slon, grupo de Chris Marker, bem como a colaboração entre Deleuze e Guattari, ofereceram modelos contemporâneos. Existia também uma ressonância específica dentro do filme – um ataque à própria idéia

do autor. Ao mesmo tempo em que a Cahiers se ocupava com a promoção da idéia de autor, o estruturalismo atacava a mesma, e em 1967 tanto Barthes como Foucault publicaram ensaios famosos na intenção de deslocar a noção de autor como uma consciência individual autônoma. Barthes argumentava que esse conceito obscurecia os códigos e as linguagens que um escritor usava e que não criara. Foucault enfatizava que falar de um autor imutável obscurecia as prá-ticas (legais, comerciais etc.) que definiam a noção de mudança de um autor.

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[7 ]Vide Georges SADOUL. Prefácio de Jean Rouch. Dziga Vertov. Paris, Editions Champs Libres, 1971. Annete

MICHELSON (ed.) Kino-eye: The Writings of Dziga Vertov. Berkeley e Los Angeles, University of California Press, 1984. Vlada PETRIC. Constructivism in Film: The Man with a Movie Camera. Cambridge, Cambridge University Press, 1987.

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Independentemente da acuidade destes ataques ao conceito literário de autor, herdado dos românticos, uma boa parte da sua força se perdeu com a Cahiers. A Cahiers foi a primeira revista a produzir uma teoria sobre o autor do ponto de vista da platéia e, como resultado, enfatizou os códigos específicos do cine-ma (de fato, era através dos códigos que se encontrava o autor) e as práticas legais e comerciais que posicionavam os autores em relação às condições de produção e distribuição. Partindo de outra perspectiva, a ênfase dada pela

Cahiers ao autor chegava a glorificar o indivíduo em termos românticos

tradi-cionais, e se os românticos glorificaram o autor às custas do leitor, a

Cahiers acrescentava insulto ao injúrio, ao negligenciar todas as outras pessoas

que trabalhavam num filme.

A questão de como as decisões são tomadas no set era, segundo Claude Nedjar, uma obsessão de Godard desde o meio da década de 1960. Para Nedjar, a par-te excitanpar-te do grupo Dziga Vertov era que, desta vez, as decisões não ficariam com uma pessoa somente8. Numa entrevista que deu a Mike Dibb

em 1968, enquanto filmava a seqüência da “Eve Democracy” para One Plus

One, Godard deixou claro o quanto não gostava que o diretor tomasse todas

as decisões de maneira ”fascista”. O ideal utópico era que todos os 50 membros da equipe deviam participar. Este ideal utópico não foi abandonado por Godard até o começo da década de 1980 e as experiências de Passion e Prénom Carmen. O que nunca foi abandonado é o ideal de colaboração. Em retrospecto, para Godard, a colaboração foi a chave para a Nouvelle Vague, e em Gorin ele encontrou alguém cuja vontade de colaborar se comparava à sua.

O grande problema que confrontava a colaboração, problema que Gorin caracteriza em termos de ”angústia”, era o da platéia. O enorme ponto fraco da posição do Dziga Vertov era presumir que a política revolucionária proveria uma outra platéia. Podia-se criticar a platéia de E o vento levou por aceitar uma falsa união entre som e imagem, mas essa crítica dependia da possibilidade de haver uma outra platéia, uma platéia militante, para a qual a tela seria o quadro-negro e a trilha sonora, nada mais que o início de um diálogo. Na verdade, quando Godard e Gorin fizeram um filme que realmente tentava atingir os estudantes militantes, além de a emissora que solicitou o trabalho se recusar a exibi-lo (sob o agora previsível pretexto de que não era

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[8 ]Christine Aya, que trabalhou como montadora em todo o material do Grupo Dziga Vertov, enfatiza a natureza

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suficientemente político) o filme também não conseguiu conquistar qualquer tipo de platéia politizada. O nome Lutas na Itália pode evocar imagens de estudantes e trabalhadores em confronto com a polícia, mas, para o Grupo Dziga Vertov, a luta foi sempre entre o som e a imagem. Mais de 30 anos depois, ainda é motivo de risos para Gorin o fato de o filme ter sido feito quase que inteiramente em Paris, porque todo o ímpeto de sua análise se encontra no fato de que é impossível “ver” uma situação social. Se a jovem estudante italiana, protagonista do filme, se torna uma revolucionária, é através do exame repetitivo de uma série muito pequena de imagens; através da reflexão a respeito das mesmas, ela entende como sua própria subjetivi-dade é constituída pela luta das classes9.

O filme é tranqüilamente o trabalho mais político e teoricamente coerente do Grupo Dziga Vertov. Pelo menos em parte, porque é baseado quase que inteiramente, na reação do próprio Althusser aos eventos de maio de 1968, descrita no seu ensaio Ideology and Ideological State Apparatuses (Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado)10. Althusser foi junto com a esposa assistir ao filme na

sala de montagem, na Rue de Rennes e, segundo Gorin, chorou.

Althusser pode ter se emocionado muito, mas não constituía uma platéia grande. O único lugar onde tamanha platéia podia ser encontrada era nos campi americanos. Quando Godard fez uma turnê com o filme A chinesa, em 1968, a viagem incluiu uma mostra no Pacific Film Archive, onde o curador Tom Luddy organizara uma retrospectiva total. Luddy foi estudante de Berkeley, o epicentro do movimento antiguerra, e era filiado ao Maoist Progressive Labour Party (Par-tido Trabalhista Progressista Maoísta). Ele acompanhou Godard a Los Angeles, onde King Vidor, Jean Renoir e Fritz Lang estiveram presentes numa exibição de

A chinesa e participaram de uma manifestação pela liberdade de Huey Newton,

na cadeia de Oakland11.

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[9 ]Para uma análise mais extensa de Lutas na Itália e de outros filmes do (grupo) Dziga Vertov, vide Colin MACCABE,

Godard: Images, Sounds, Politics., capítulos 3-5.

[10 ]Ideology and Ideological State Apparatuses (Notes Towards an Investigation). In: Lenin and Philosophy and

Other Essays. Traduzido por Ben Brewster. London, New Left Books, 1971. pp. 121-173. O ensaio foi escrito no

começo de 1969 e publicado primeiramente na França, em abril de 1970. Gorin o leu logo após ter sido escrito e antes de filmar Lutas na Itália, em dezembro de 1969. A maior parte do filme foi filmada no apartamento de Godard e Wiazemsky, na Rue Saint-Jacques, embora tenha havido algumas tomadas em Roma e Milão.

[11 ]Godard ficou imediatamente fascinado pelos Black Panthers (Panteras Negras). Quase todas as suas cartas e

telegramas a Luddy durante os dois anos seguintes incluíam pedidos de material dos Panthers e este material é ime-diatamente refletido em One Plus One.

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Luddy se tornou a conexão americana de Godard e foi ele quem organizou a primeira de uma série de turnês do Grupo Dziga Vertov na primavera de 1970. Havia um motivo financeiro para isso. As solicitações das emissoras de televisão eram pouco lucrativas e o cachê de mil dólares para falar em cada evento que Luddy arrumou foi uma adição significante aos fundos do Grupo Dziga Vertov. Para Gorin, pelo menos, isto satisfez a necessidade desesperada de uma platéia. De acordo com a leitura das histórias a respeito das visitas de Godard e Gorin na imprensa underground da época, não se pode dizer que a platéia foi muito receptiva, mas era enfim uma platéia – e uma que certamente se gabava de um radicalismo compartilhado.

Os Estados Unidos forneceram uma resposta parcial ao problema platéia, mas uma so-lução mais satisfatória, de acordo com o esvaziamento da maré revolucionária nos Estados Unidos e na França, foi filmar uma revolução verdadeira. A guerra de 1967 entre árabes e israelenses havia radicalizado os palestinos de forma violenta. Após duas décadas de espera pela solução dos seus problemas por parte dos Estados árabes, os palestinos se encontravam sem a margem esquerda do rio Jordão, que havia sido ocupado pelos israelenses. Uma grande quantidade de facções revolu-cionárias surgiu na Jordânia e começou a criar um Estado dentro do Estado. Godard e Gorin concordaram com um pedido da Liga Árabe para fazer um filme

sobre a situação palestina e, no início de 1970, passaram bastante tempo na Jordânia, com Godard freqüentemente voltando de avião para a França para ver Wiazemsky. Para o Grupo Dziga Vertov não havia a questão de simplesmente “encontrar imagens”, o erro de Sons britânicos e Pravda; o esforço crucial era “construir” as imagens, praticar a montagem antes da filmagem. Mas estes esforços foram atrapalhados pelo fato de que nem Godard nem Gorin falavam árabe. Eles se viram freqüentemente escutando um discurso longo e complicado só para depois ouvir o intérprete traduzi-lo em poucas palavras: “Nós lutaremos até a vitória”.

No final, Jusqu’à la victoire se tornou o nome do filme, mas antes que eles pudessem terminar a montagem, o dinheiro fornecido pela Liga Árabe se esgotou. A saída foi aceitar a oferta de uma emissora alemã para fazer um filme sobre o julga-mento conspiratório em Chicago, quando, depois dos distúrbios públicos na Convenção Democrata de 1968, diversos radicais foram a julgamento sob acu-sações falsas. Em entrevistas nos campi americanos naquela época, Godard e Gorin deixaram claro que não tinham muito interesse por Vladimir e Rosa, como eles o chamavam; que este era apenas um instrumento para financiar o filme palestino, e tal atitude transparece no que é claramente a menos interes-sante das experiências do Grupo Dziga Vertov.

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Mas se Vladimir e Rosa foi uma bagunça que passou por uma arrumação rápida, um destino muito pior esperava Jusqu’à la victoire. Enquanto Godard e Gorin filma-vam e montafilma-vam, a situação política se tornou cada vez mais volátil, com muitas vozes palestinas clamando por uma derrubada revolucionária do Rei Hussein e a tomada do Estado jordaniano como prelúdio de uma guerra generalizada contra Israel. De fato, a situação estava tão volátil que Godard pediu que Clau-de Nedjar, que agora trabalhava como produtor Clau-de todos os filmes do Grupo Dziga Vertov, providenciasse uma porta blindada para a sala de montagem. Nesta época, Godard já havia saído do apartamento na Rue Saint-Jacques e dor-mia na sala de montagem. Essa conjunção tão imediata de vida e trabalho, como muitos outros elementos do período Dziga Vertov, trouxe seus frutos mais tarde. Em retrospecto, Godard viu isto como sendo uma espécie de imitação da clínica de seu pai12. Os eventos na Jordânia evoluíram com muita rapidez.

No outono daquele ano, Hussein lançou um ataque contra a revolução palestina e muitos palestinos morreram num mês que ainda leva o nome de Setembro Negro. A vitória da revolução se tornou a mais amarga das derrotas. A esta altura, boa parte do entusiasmo inicial com Vento do Leste tinha se

dissipado. Existia um desejo por parte da dupla Godard e Gorin de aumentar o grupo, e esforços foram feitos com Gérard Martin e Nathalie Biard, ex-amante de Gorin, para aumentar a participação ativa, mas estes não foram bem-sucedidos13. Finalmente, desiludidos, eles decidiram fazer um

filme mais comercial.

Uma das maiores ênfases do Grupo Dziga Vertov era a primazia da produção, mas seus filmes não eram vistos; agora eles fariam um filme que seria distribuído. Nos primeiros meses de 1971, com a ajuda do carismático produtor Jean-Pierre Rassam, eles montaram um filme, Tudo vai bem, financiado pela Gaumont, que examinava a luta de classes na França quatro anos depois de 1968. Yves Mon-tand, um dos grandes astros do cinema francês, foi convocado junto com Jane Fonda, que naquela época estava no auge de sua carreira14. Ambos eram

co-nhecidos ativistas de esquerda. Tal era o poder do nome de Godard e tão

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[12 ]Entrevista, Jean-Luc Godard, dezembro de 1988.

[13 ]O Grupo Dziga Vertov não emitia carteirinhas de membros, mas os nomes a seguir foram associados a ele, por

algum tempo: Paul Bourron, Jean-Pierre Gorin, Armand Marco, Gérard Martin, Isabelle Pons, Jean-Henri Roger, Raphäel Sorin, Anne Wiazemsky. Bourron e Marco eram operadores de câmera. Se as mulheres participaram do grupo, isso é discutível. Claude Nedjar sempre atuou como o produtor.

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atraente a possibilidade de fazer um filme político comercial com ele que os dois concordaram em trabalhar sem adiantamento de cachê e só com a partici-pação nos lucros.

Também havia uma parte americana no negócio, e no dia 9 de junho de 1971, Godard e Gorin estavam prestes a pegar um avião para Nova York com o propósito de assinar contratos com Frank Yablans, da Paramount. Eles se encon-traram na Rue de Rennes, onde Gorin descobriu que havia deixado seu passa-porte em casa. Concordaram em se encontrar no aeroporto, mas antes Godard queria passar numa livraria para comprar Meti – um texto de Brecht. Christine Aya, a montadora que trabalhava com os dois na época, se ofereceu para levar Godard na sua moto. “Não faça isso,” brincou Gorin, “você vai sofrer um acidente.” No final da Rue de Rennes, um ônibus que estava entrando na rua prendeu a moto e Godard debaixo da roda dianteira. Godard quebrou a bacia, fraturou o crânio e sofreu várias dilacerações no corpo. Na primeira noite no hospital, Gorin foi informado que seu parceiro certamente iria morrer. Ele só recuperou a consciência depois de seis dias e entrou e saiu do hospital diversas vezes durante mais de dois anos. A montadora também sofreu lesões graves. Para Godard, isso foi “o final lógico de 1968”.

Mas ainda havia negócios a serem concluídos. O mais importante para Gorin era a questão do seguro médico de Godard. Rassam telefonara para ele dizendo que Jane Fonda estava saindo: “Ela evoluiu e não quer trabalhar com homens.” Se ela saísse, o filme ruiria, e Godard não teria cobertura. Gorin foi visitá-la e convenceu-a a permanecer no filme. Em dezembro, apesar de ainda estar em tratamento, e com a perspectiva de mais internações hospitalares à sua frente, Godard estava pronto para iniciar a filmagem. A trama de Tudo vai bem é simples: um casal – um diretor de filmes e uma repórter de rádio – faz uma visita a uma fábrica para que ela faça uma matéria sobre a situação atual da França. Enquanto estão lá, eles se envolvem na ocupação da fábrica e são apri-sionados junto com o patrão em seu gabinete. Tais “seqüestros” eram uma das táticas esquerdistas preferidas após 1968. O efeito da visita induz o casal a refletir historicamente sobre suas próprias vidas, e o filme termina com a generalização de sua descoberta para toda a França.

A estrutura do filme é, de alguma maneira, parecida com a de Vento do Leste e de

Lutas na Itália, mas o conteúdo é fictício, apesar de distanciado. Tudo vai bem

foi inspirado não em Althusser, mas sim em Brecht. Ficamos cientes da câme-ra, sempre fixa ou deliberadamente em movimento, sem panorâmicas ou

zooms; ficamos cientes do palco – a fábrica parece um cenário –, e ficamos

cientes dos atores, de Montand e Fonda como personagens, mas personagens

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não muito diferentes de suas personalidades públicas. O filme constantemente demonstra as condições da sua própria produção, especialmente na cena de abertura dos créditos, em que o custo de cada item é escrito num talão de cheques que vai ficando cada vez mais com menos folhas. A determinação do Grupo Dziga Vertov de montar antes de filmar fez com que os trabalhado-res da fábrica fossem jovens atotrabalhado-res desempregados. Godard e Gorin acharam que se usassem trabalhadores de verdade, estes ficariam tão intimidados pelos astros que o filme não conseguiria retratar nada do atrito proletário/burguês, necessário para animar a cena central. Mas atores desconhecidos contracenan-do com astros era algo digno de ser filmacontracenan-do.

Trinta anos mais tarde, o filme ainda tem valor. Os mecanismos brechtianos realmen-te funcionam – fornecendo tanto distância como engajamento – e o filme fornece um retrato bastante fiel das insatisfações de trabalho, tanto na produ-ção massificada como na mídia audiovisual. O problema, no entanto, continua sendo a política. Onde a luta de classes dos maoístas e a ideologia althusse-riana fracassaram, o filme oferece uma seqüência final em que os esquerdistas saqueiam um supermercado (outra favorita, dentre as táticas contemporâneas). De muitas maneiras, o filme funciona como uma elegia a um momento histó-rico, mas falta a coragem dos seus próprios insights, que envolveria uma crítica muito mais radical à política de esquerda.

Entre a montagem do filme e a veiculação do mesmo, um jovem militante maoísta, Pierre Overney, foi morto a tiros no portão de uma fábrica da Renault. Seu enterro se tornou a última grande manifestação de maio. Godard disse a Gorin que esta era a platéia para seu filme, eles só precisavam achar uma maneira de alcançá-la. Mas Althusser comentou, talvez com um pouco mais de presciência, que os enlutados estavam ali “para enterrar o esquerdismo”.15 Tudo vai bem

nunca conseguiu definir se existia para enterrar ou exaltar, e seu final glorifica a violência, que era um dos aspectos menos atraentes do esquerdismo. De fato, mesmo em 1980, Godard disse: “Para mim, até hoje os terroristas continuam sendo os herdeiros.”16

A filmagem de Tudo vai bem foi infeliz e seu lançamento, um desastre crítico e comercial. Como se para completar um círculo de tristeza, o filme

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[15 ] Louis ALTHUSSER, L’Avenir dure longtemps. Paris. Stock/IMEC, 1992. p. 225. Em Le fond de l’air est rouge, Chris

Marker descreve o funeral de Overney como o “último cortejo”.

[16 ]Colin MACCABE. op. cit., p. 75. Embora não existam registros de Godard ou Gorin ativamente apoiando o

ter-rorismo, Sorin conta uma estória hilariante e assustadora de Bourron querendo fazer uma bomba durante as filma-gens de Vento do Leste. Sorin sugeriu que ele fizesse uma “muito pequena”; foi o suficiente para destruir o banheiro do hotel onde eles estavam hospedados. Godard se refere à estória como uma lenda.

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seguinte de Godard e Gorin, Carta para Jane, foi um ataque feroz à sua estrela recente. O filme é composto de uma única imagem – uma fotografia de Jane Fonda no Vietnã do Norte. O comentário, a “Carta para Jane”, analisa a foto em termos da representação do mundo por parte da mídia contemporânea. Também analisa a foto em termos da história do cinema – a maneira como a expressão no rosto de Fonda, que é muito parecida com a de seu pai Henry, é o equivalente em atuação do New Deal: preocupação liberal benigna.

Para Gorin, o filme continua sendo um dos raros exemplos de um estudo sobre a história da atuação cinematográfica, e ele defende a inteligência da análise. Mas na época o filme foi percebido como um ataque feroz de dois homens a uma mulher que não teve a chance de se defender. Trinta anos depois, ele pa-rece confirmar o que Anne Wiazemsky lembra como a “misoginia” do Grupo Dziga Vertov. Godard falou diretamente sobre a relação do grupo com as mulheres numa entrevista americana:

A base para Lutas na Itália foi a tentativa de conciliar nossas vidas pessoais com as nossas esposas. Tínhamos problemas como indivíduos, mas estes eram relacionados ao problema geral. Então escolhemos, deli-beradamente, um assunto que era fortemente relacionado à nossa ideo-logia, porque, até quando falamos com a mulher pela qual estamos apai-xonados, ou quando essa mulher fala conosco, isto é ideologia.

Nós tentamos, e foi um fracasso total, porque terminamos o filme sozinhos. Nossas esposas pensaram naquela época que aquele era ape-nas nosso trabalho – aquela coisa, “esse é o seu trabalho. Eu também tenho meu trabalho, e este é o seu”. Tentamos fazer o filme para expor o problema – não para resolvê-lo, mas apenas para expô-lo –, para dizer, “Este é o nosso trabalho do ponto de vista técnico, sim, mas de um ponto de vista mais generalizado é a nossa vida”. A tentativa de trabalhar juntamente com as nossas esposas nos filmes, quando elas nem se interessavam muito por filmes, era correta naquele momento17.

A fotógrafa do retrato de Tudo vai bem era uma jovem suíça, Anne-Marie Miéville (creditada com seu nome de casada, Anne-Marie Michel), que Godard conheceu em 1970. O relacionamento havia se intensificado durante a época em que ele

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[ 17 ] Michael GOODWIN; Tom LUDDY e Naomi WISE., The Dziga Vertov Group. In: “America: an Interview with

Referências

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