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Fome e soberania alimentar na perspectiva do direito, da economia e da cidadania

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Fome e soberania alimentar na perspectiva

do direito, da economia e da cidadania

MARTA MOECKEL AMARAL LUSTOSA

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GLEYSE MARIA COUTO PEITER

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Resumo: O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) surgiu

na década de 1980, na esteira do processo de redemocratização do Brasil, que culminou com a elaboração da Constituição de 1988. Denominada Constituição Cidadã, teve grande participação da sociedade civil e garantiu a ampliação e o avanço dos direitos sociais, políticos e civis. A sociedade, no exercício da cidada-nia, no seu direito de participação na vida pública, contribuiu para a exigibilidade de um direito fundamental, o direito à alimentação, cujo significado está inter-ligado a diversas áreas sociais. Os processos de fortalecimento da participação social para a cidadania ativa e da visão da alimentação como um direito, livre da fome, foram liderados por dois brasileiros visionários: o sociólogo e ativista dos direitos humanos Herbert de Souza – o Betinho – (1935-1997) e o médico, cien-tista social e geógrafo Josué de Castro (1908-1973). Esses dois brasileiros foram ícones na defesa por uma reforma agrária, base de luta do MST, e que hoje luta não só pela democratização da propriedade da terra, mas também pela produ-ção de alimentos saudáveis para o mercado interno, combinada com um modelo econômico que distribua renda e respeite o meio ambiente. Assim, esse artigo se propõe a refletir sobre o processo de fortalecimento da cidadania e participação social, a partir das práticas do MST e sua importância no caminho da Soberania Alimentar influenciadas por esses dois pensadores ilustres.

Palavras Chave: Fome, Direitos, Soberania Alimentar

1 *Doutoranda pelo Programa de Pós Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro

2 **Doutoranda pelo Programa de Pós Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro

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Abstract: The Movement of Landless Rural Workers (MST) emerged in the

1980s, on the heels of the process of closure of the military dictatorship in Brazil, which culminated in the drafting of the 1988 Constitution. With the name of Citizen Constitution, it had great participation by civil society and guaranteed the expan-sion and advancement of social, political and civil rights. Society, in the exercise of citizenship, in its right to participate in public life, contributed to the enforceability of a fundamental right, the right to food, whose meaning is interconnected to di-fferent social areas. The processes of strengthening social participation for active citizenship and the vision of food as a right, free from hunger, were led by two vi-sionary Brazilians: the sociologist and human rights activist Herbert de Souza – o Betinho – (1935-1997) and the physician, social scientist and geographer Josué de Castro (1908-1973). These two Brazilians were icons in the defense of agrarian reform, the basis of the MST’s struggle, and which today fights not only for the democratization of land ownership, but also for the production of healthy food for the domestic market, combined with an economic model that distributes income and respect the environment. Thus, this article aims to reflect on the process of strengthening citizenship and social participation, based on the practices of the MST and its importance in the path of Food Sovereignty influenced by these two distinguished thinkers.

Key words: Hunger, Rights, Food Sovereignty

Introdução

O MST nasceu das lutas concretas que os trabalhadores rurais sem-terra fo-ram desenvolvendo de forma isolada nos estados da Região Sul do país. Por ser um movimento social, que reúne milhares de trabalhadores rurais, seu surgi-mento teve várias origens, em vários locais, e sua história é composta pela soma de vários acontecimentos que se desenvolveram especialmente a partir de 1978 (MOURA, 2000:131).

O Movimento é considerado continuidade de um processo histórico das lu-tas populares que foram travadas no país. Da invasão das terras brasileiras pelos europeus no século XVI à ocupação da Fazenda Macali no Rio Grande do Sul, em 1979, o grande marco da formação do MST, o que se tem é um processo de luta contra a fome, a miséria, a desigualdade, a concentração de riqueza.

A história das lutas sociais e das revoltas populares registra muitas mobiliza-ções entre o período de 1850 a 1930. Muitas eram regionais e isoladas: de pos-seiros, arrendatários ou camponeses pobres contra coronéis locais, mas outras ganharam dimensões maiores e coletivas como é o caso de Canudos na Bahia. Ganham, portanto, nova dimensão, extrapolando a luta de resistência ou pela liberdade dos índios e escravos, se destacando na história social do Brasil.

O inicio do século XX também foi marcado por tais lutas e a República ga-rantiu o poder dos latifundiários que exerciam o poder político, econômico e policial. Porém, a questão agrária já chamava atenção do conjunto da

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popula-ção brasileira. Além disso, o desenvolvimento do capitalismo industrial no Brasil resultou também no surgimento de outras formas de organizações dos traba-lhadores para enfrentarem a exploração, como sindicatos e associações de ajuda mútua (ITERRA, 2015:23).

As lutas camponesas no Brasil se distinguem por suas tradições, instituições e cultura. Diversas delas tiveram como um de seus fatores de explosão as políticas de colonização agrícola do governo federal, nas chamadas “frentes de expansão” caracterizadas pela busca de terra por parte de milhares de camponeses, con-flitos, articulação e organização de trabalhadores rurais. De acordo com Morais (2012:37), o principal fator que influenciou a expansão das Ligas Camponesas, por exemplo, foi a ampliação das liberdades democráticas no país, cujo processo começou com a eleição de Juscelino Kubitscheck e João Goulart à presidência e vice-presidência respectivamente, quando a fome e a reforma agrária passaram a ser assuntos tratados livremente e sem preconceitos.

Como herdeiros e continuadores de movimentos anteriores, o MST surge na década de 1980, quando trabalhadores rurais protagonizavam as lutas pela de-mocracia da terra e da sociedade apoiados em três objetivos principais: lutar pela terra, lutar pela reforma agrária e lutar por mudanças sociais no país. Ao longo do último período, os Sem Terra aprofundaram o debate em torno da questão agrária, e a luta pela Reforma Agrária ganhou um novo adjetivo: Popular. Popular, pois o Movimento percebeu que a Reforma Agrária não é apenas um problema e uma necessidade dos Sem Terra, ou do MST. É uma necessidade de toda socieda-de brasileira, em especial os 80% da população que vive socieda-de seu próprio trabalho e que precisa de um novo modelo de organização da economia, com renda e emprego para todos (MST, 2014).

Neste momento em que o país vivencia o acirramento das crises - econômi-ca, sanitária e política -, aliado a reais ameaças ao estado democrático de direito, é importante resgatar conceitos fundamentais para o fortalecimento da demo-cracia, pela promoção do desenvolvimento com justiça social e pela luta pelos direitos básicos de cidadania presentes na Constituição Federal – resultado de conquistas importantes da sociedade civil e seus coletivos. No contexto do cres-cimento da miséria e da fome – o Brasil voltou ao Mapa da Fome em 2018 – e da não realização de políticas públicas garantidoras de diretos, este artigo se propõe a refletir sobre o processo de construção do ideal democrático no país, com ên-fase na participação social, como um pilar fundamental da democracia direta, a partir das práticas do MST e sua importância no caminho da Soberania Alimentar influenciadas por dois pensadores ilustres: Herbert de Souza e Josué de Castro.

A contribuição de Josué de Casto

Josué Apolônio de Castro, além de médico, cientista, professor, escritor – au-tor do livro Geografia da Fome: o dilema brasileiro, pão ou aço – 1946 –, entre outros, foi embaixador do Brasil na Organização das Nações Unidas (ONU) em

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Genebra e, também, Presidente do Conselho Diretor da Food and Agricultural

Organization – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura

(FAO). Foi encarregado de preparar pessoal técnico para fazer funcionar o Servi-ço de Alimentação da Previdência Social (SAPS), marco histórico da profissão do nutricionista. (MAGALHÃES e PORTO, 2015:14). Além de sua extraordinária pro-dução científica e editorial, Josué de Castro ficou internacionalmente conhecido por sua obra e pela sua luta implacável contra as desigualdades econômicas e a miséria dos povos que sofreram a exploração colonial do mundo capitalista, denunciando a fome e a subnutrição como os males sociais do subdesenvolvi-mento e do colonialismo. Dedicou sua vida, inteligência e capacidade de trabalho a denunciar a pobreza e a alertar à opinião pública brasileira e dos países em situação de risco contra as falácias das políticas de desenvolvimento econômico que enfatizavam o crescimento industrial e ignoravam a agricultura voltada para a produção de alimentos, bem como os problemas dramáticos do homem do campo – o agricultor expropriado da terra e de seus instrumentos de trabalho (FERNANDES E PORTO GONÇALVES, 2007:25).

O interesse de Josué de Castro pelos desfavorecidos e/ou deserdados so-ciais, levou-o a promover, ainda recém-formado, o primeiro inquérito sobre as condições de vida da classe operária em Recife, sua cidade natal, onde crescera e havia despertado no menino pobre a atenção para a realidade social de uma região marcada por profundos contrastes econômicos. Os dados do estudo, pio-neiro no país, tiveram ampla divulgação e serviriam de modelo para investiga-ções semelhantes nos anos 1930 e 1940 em outros Estados do Brasil, no auge do movimento que se desenvolvia pela regulamentação do salário mínimo e pelo reconhecimento dos direitos dos trabalhadores (FERNANDES e PORTO GONÇAL-VES, 2007:21). As discussões sobre saúde do trabalhador, portanto, nascem exa-tamente no contexto de estudos de Josué de Castro, nos quais retrata o proble-ma da fome no Brasil.

O conceito de fome para Josué de Castro tem diferentes dimensões: fome como resultado da exploração econômica, fome como produto de dominação po-lítica, como consequência da injustiça, fome como dependência, fome física, espi-ritual, fome como alienação, fome como sede de luta. Em sua produção científica registrou as suas causas: concentração de renda, desigualdades sociais, concen-tração da estrutura fundiária, expropriação dos trabalhadores rurais e a utilização da terra para uma agricultura de exportação em detrimento da agricultura familiar.

Com o restabelecimento de liberdades políticas após a queda de Getúlio Vargas, Josué de Castro se lançou contra as capitanias e as sociedades multi-nacionais estrangeiras que já controlavam a maior parte da produção agrícola brasileira. Segundo Ziegler (2013:118), essa produção era destinada em grande escala – neste país da fome – à exportação, que experimentou então, em face de uma Europa destruída, um crescimento formidável. Depois de 1945, o Brasil, onde tantos seres passavam fome, foi um dos maiores exportadores de alimen-tos do mundo.

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Em 1947, Josué de Castro publicou sua obra capital, Geografia da Fome. Inaugurava um método geográfico, uma geografia diferente no estudo da fome. Demonstrou com esse trabalho que era possível construir uma ciência que teria por objeto de estudo problemas específicos de países pobres e que fosse capaz de explicar a situação destes países sem recorrer ao mito da inferioridade racial, do fatalismo, do determinismo geográfico ou até do acaso (FERNANDES e PORTO GONÇALVES, 2007:32). Desconstrói assim a forma de enxergar a fome, atribuída ao mito da ignorância – pobre não sabe comer – e ao meio e a mestiçagem – mal de raça. Para abordar seu tema, Josué de Castro atacou as velhas teorias, falsas interpretações, preconceitos raciais e climáticos, bem como as doutrinas que jus-tificavam a fome como crescimento populacional.

Cabe ressaltar a interdisciplinaridade que exigia as análises de Josué de Cas-tro. Em seu livro anterior A Alimentação Brasileira à Luz da Geografia Humana aponta: “Já Dartre dissera que o problema alimentar é sem dúvida culinário e gas-tronômico, mas é também econômico e social, agrícola, fiscal, higiênico, médico e mesmo moral. E principalmente e antes de tudo fisiológico” (CASTRO, 1937:22). O objeto do estudo estava em vários domínios: da biologia, da antropologia físi-ca e cultural, da etnografia, da patologia, da economia polítifísi-ca, da sociologia, da higiene e da história (LIMA, 2000:59).

No exercício da presidência do conselho da FAO, entre 1952 e 1955, Josué de Castro empreende uma série de trabalhos no combate à fome no mundo, sempre buscando articular os conhecimentos técnico-científicos para elabora-ção de planos de aelabora-ção. Buscou intensificar a ajuda aos países subdesenvolvidos, não só através de programas e projetos de desenvolvimento, mas cobrando das nações desenvolvidas suas responsabilidades frente aos desequilíbrios regionais, traduzidos na formação de imensos bolsões de miséria em determinadas áreas do planeta, contra as pequenas ilhas de abundância. Na medida em que assumia a condição de porta-voz do Terceiro Mundo, Josué enfrentou forte oposição dos países desenvolvidos para a concretização de suas propostas, especialmente os Estados Unidos e Inglaterra. Dentre as propostas se destacavam: a criação de uma reserva alimentar de emergência, o desenvolvimento de vários programas de cooperação técnica para melhoria e aumento da produção agrícola no Ter-ceiro Mundo, programas de capacitação de mão de obra, além da batalha em proceder a uma verdadeira reforma agrária nas áreas mais pobres do planeta e, desta forma, poder incrementar a produção de alimentos, combater a fome, gerar empregos e renda (FERNANDES e PORTO GONÇALVES, 2007:47). Josué de Castro foi defensor ardoroso da reforma agrária, enxergando-a como uma estra-tégia necessária para o Brasil, em virtude de sua imensa extensão territorial, para a democratização da terra e o acesso a um número grande de famílias aos meios naturais para garantir sua soberania alimentar e, ao mesmo tempo, integrá-las aos circuitos econômicos locais. Dessa forma, dar-se-ia um primeiro e fundamen-tal passo para “libertar o povo das marcas infamantes da fome”. Porém, o próprio autor era realista em termos da dificuldade política de efetuar um projeto dessa

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natureza no país, dado que a temática da reforma agrária sempre foi um assunto extremamente delicado politicamente e imbuído de alto grau de conflituosidade.

Precisamos enfrentar o tabu da reforma agrária – assunto proibido, escabroso, pe-rigoso – com a mesma coragem com que enfrentamos o tabu da fome. Falaremos abertamente do assunto, esvaziando desta forma o seu conteúdo tabu, mostrando através de uma larga campanha esclarecedora que a reforma agrária não é nenhum bicho-papão ou dragão maléfico que vá engolir toda a riqueza dos proprietários de terra, como pensam os mal avisados, mas que, ao contrário, será extremamente be-néfico para todos os que participam socialmente da exploração agrícola” (CASTRO, 1992, apud SILVA, 2014:17).

Ziegler (2013:120) nos recorda que Josué de Castro conhecia perfeitamente a influência determinante frequente exercida pelos trustes agroalimentares sobre os governos dos Estados e estava persuadido de que os governos, por mais que o cobrissem de condecorações, prêmios e medalhas, nada fariam de decisivo contra a fome. Por este motivo, depositou suas esperanças na sociedade civil – no Brasil as Ligas Camponesas, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), criado em 1945 sob a inspiração de Getúlio Vargas, e os sindicatos dos trabalhadores rurais deveriam ser as forças motrizes das mudanças. O autor também revela que Jo-sué de Castro, juntamente com os advogados Francisco Julião, e Miguel Arraes, responsáveis pela organização das Ligas Camponesas, combatiam os barões do açúcar, exigindo reforma agrária, reivindicando para os cortadores de cana e suas famílias o direito à alimentação regular, adequada e suficiente. Os três viviam perigosamente. Os pistoleiros dos latifundiários, muitas vezes, a própria Policia Militar preparavam-lhes emboscadas nas estradas precárias do vale do São Fran-cisco ou nas barrancas do Capibaribe, em Pernambuco. Como descreve Ziegler (2013:119), Castro era o intelectual e o teórico do trio; Julião, o organizador, e Arraes o líder popular.

Dos pensadores brasileiros que contribuíram e influenciaram na trajetória do MST, Josué de Castro é a primeira referência, pois é considerado o precursor da Reforma Agrária. Sua contribuição, a partir da publicação de Geografia da Fome, foi demonstrar que a fome não tinha origens climáticas ou étnicas. A fome era produto do subdesenvolvimento ao que o Brasil fora submetido, era resultado de uma economia e agricultura baseada no latifúndio, na monocultura e na ex-portação. Sua pesquisa rigorosa, combinada com a argumentação contundente, tornou seu trabalho uma referência internacional no combate à fome até os dias de hoje. O MST se considera devedor de Josué de Castro para elaborar seu pro-grama agrário, a Reforma Agrária Popular. Os ensinamentos de Josué permitiram compreender que não basta a distribuição de terras para que a Reforma Agrária seja efetiva, ela deve estar destinada à produção de alimentos. E não quaisquer alimentos, mas alimentos saudáveis e para o povo brasileiro (STÉDILE, 2018).

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A contribuição de Betinho

Como uma força mobilizadora e aglutinadora, capaz de contagiar muitas pessoas, as ideias do sociólogo Herbert de Souza – o Betinho – estão em poucos livros, mas com grande alcance e continuam muito atuais (COEP, 2017).

Ao longo de sua vida, dedicou-se à luta pela promoção dos direitos e da cidadania, emprestando sua voz à defesa de vários temas relevantes para a jus-tiça social. Participou de forma ativa na criação de diversas organizações que permanecem atuantes e contribuindo para ampliar e consolidar suas propostas. Em 1981, ele foi um dos criadores do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase); em 1987 esteve à frente da fundação da Associação Brasi-leira Interdisciplinar de AIDS (ABIA); em 1993, participou do lançamento do Mo-vimento pela Ética na Política, que teve como resultados o surgimento da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, e do Comitê de Entidades no Combate à Fome e pela Vida (COEP). Nesse mesmo ano, foi um dos articuladores da criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) e da Organização Não Governamental (ONG) Viva Rio (COEP, 2017).

Defensor incansável da democracia e da participação cidadã, Betinho, inspi-rou e lideinspi-rou muitas campanhas e iniciativas que conseguiram mobilizar milhares de pessoas e provocar mudanças concretas na sociedade. Em sua visão, o con-ceito de democracia caminha entre a ideia de ser apenas uma forma de governo derivada de eleições diretas até a convicção de ser uma utopia, uma inspiração radical de transformação da sociedade, uma ideia-força que ilumina a história humana, sempre presente, mas nunca realizada, e por isso mesmo, um motor permanente da própria humanidade (COEP,2017).

O sociólogo tinha a crença na democracia como o único instrumento capaz de atender as questões de integração social, do combate à pobreza e da geração de emprego. E como um valor ético, tendo como fundamento cinco princípios – igualdade, diversidade, participação, solidariedade e liberdade – e que se realiza pela força dos cidadãos conscientes e mobilizados. “Quando o cidadão descobre que ele é o princípio do que existe e pode existir com sua participação, começa a surgir a democracia” (SOUZA, 1996:67).

Por ocasião do falecimento do Betinho, em agosto de 1997, João Pedro Stédile, dirigente nacional do MST afirmou que “o importante no legado de Betinho é a de-fesa de valores sociais que constituem uma nova moral” (PERSONALIDADE, 1997)

O debate trazido pelo irmão do Henfil em torno dos princípios base da de-mocracia contribuiu, de forma relevante, para as ações de mobilização e transfor-mação social. Um dos principais exemplos foi o Movimento da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Em 1993 o Brasil apresentava 32 milhões de brasileiros no Mapa da Fome (IPEA, 1993). Na mesma época havia uma grande movimentação na sociedade em torno do Movimento pela Ética na Política, com a participação de intelectuais, formadores de opinião, pessoas comprometidas

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com a democracia brasileira, e que tomou as ruas, principalmente com os jovens “caras pintadas”, culminando no impedimento do presidente da República Fer-nando Collor de Melo, em 1994.

Na esteira desse debate, surgiu a questão ética da impossibilidade de se lutar pela democracia e seus princípios quando havia tantos brasileiros desprovidos de seu direito mais básico de cidadania – alimentar-se. Assim, foi criado o Movimen-to da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida que trouxe a cons-ciência da iniquidade da fome e, portanto, arrastou milhares de pessoas – como uma onda de cidadania – na luta contra a fome e a miséria.

É importante frisar que toda essa movimentação da sociedade aconteceu num momento político único quando a participação social estava fortalecida pelas ruas, assim como estava nítida a importância dos valores democráticos de cidadania, que emergiram com vigor do debate da ética na política e no combate à fome.

A Ação da Cidadania teve resultados importantes. No âmbito da socieda-de civil foram criados milhares socieda-de comitês socieda-de cidadania nas comunidasocieda-des, com parcerias diversas, que organizavam campanhas de arrecadação de alimentos e tiveram resultados espetaculares, tanto no que diz respeito à mobilização social quanto ao atendimento a populações vulneráveis.

No campo de atuação institucional, foram criadas nas organizações e nas em-presas, da mesma forma, coletivos de cidadania que também lançaram campanhas de doação de alimentos e outros, cujo alcance também foi bastante relevante. As empresas, principalmente as estatais, estavam mobilizadas pelo tema, e apoiaram seus empregados nessa ação cidadã – de participação social – assim como deram suporte com logística, cessão de terras para produção de alimentos, e outras.

No âmbito governamental foi criado, em 1994, a partir de proposta do Beti-nho ao presidente Itamar Franco, o 1° Conselho Nacional de Segurança Alimentar – Consea. Formado por representantes dos ministérios e da sociedade civil e dos movimentos sociais, deu início ao debate sobre segurança alimentar e nutricional (SAN), o papel do Estado nesta área e a importância da participação da sociedade no desenvolvimento e controle social de politicas públicas de SAN.

Em 1995 o Consea foi extinto, portanto, a prioridade da questão da fome foi perdida. No lugar do Consea foi criado o Conselho da Comunidade Solidária, que não tinha entre seus objetivos a questão da SAN. Recriado em 2003, o Consea re-tomou as ações de desenvolvimento das políticas públicas relacionadas ao tema da segurança alimentar. Este conceito foi definido pelo Art. 3° da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional - LOSAN (BRASIL,2006): “a Segurança Alimen-tar e Nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem compro-meter o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas ali-mentares promotoras da saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis”.

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A partir da LOSAN, a segurança alimentar e nutricional foi transformada em política de Estado, num amplo processo intersetorial e com participação da so-ciedade civil, e foram definidos os marcos legais e institucionais dessa agenda: o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) – com o objetivo de assegurar o Direito Humano a Alimentação Adequada – ; a institucionalização do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA); a instala-ção da Câmara Intersetorial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN); e a elaboração da Política e do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PLANSAN 2012/2015) (MDS, 2013).

É fundamental registrar que todas as diretrizes da Política emanavam das conferências nacionais, com a participação de milhares de pessoas de todo o país, incluindo movimentos sociais, e as mais diversas representações da socie-dade e seus coletivos. Ou seja, a construção das politicas de SAN cumpriu seu papel de fortalecer o processo democrático – democracia direta – nos moldes em que Betinho falava, com intensa participação social e respeito às diferenças. Mais um resultado dessa luta e um marco essencial foi a emenda constitucional EC64/ 2010 que incluiu na Constituição de 1988 o direito a alimentação como um direito fundamental (BRASIL, 2010).

Neste sentido, cumpre enfatizar o papel do sociólogo na construção do ideal democrático, sempre lutando para a criação de mecanismos de garantia da par-ticipação social. Nessa mesma toada, está a parpar-ticipação do MST na luta pela reforma agrária – sem terra não há alimentos –, na defesa dos mais vulneráveis – agricultores e agricultoras familiares -, e na busca por justiça social.

Em abril de 2019 o governo federal, interditando a democracia direta, emitiu Decreto que extinguiu colegiados da administração pública federal direta, autár-quica e fundacional e cerca de 700 conselhos foram extintos (BRASIL, 2019). E sem perder a esperança equilibrista, vale resgatar ainda algumas palavras do Betinho:

Democracia é o igual e o diverso. O encontro de liberdades. A convergência da pessoa e da comunidade. Da sociedade civil e do Estado (administração do bem público). A democracia é o atendimento do básico e do transcendental. Do pão e da liberdade. Do finito e do infinito. Do eu e do nós. É a afirmação da consciência no mundo de sua falsificação em relações coisificadas. Democracia é liberdade e política, é enfim aquilo que queremos fazer de todos nós e que, por isso, algum dia será, sem nunca ser totalmente, porque, como proposta de algo sem fim e limites, é sempre obra inacabável ( SOUZA, 1987: 45)

Conclusão

Betinho e Josué de Castro traçaram trajetórias políticas diferentes. Josué foi deputado federal duas vezes e assumiu cargos públicos. Betinho foi um militan-te da cidadania, nunca participou da política institucionalmenmilitan-te, nem assumiu cargos governamentais. Mesmo assim, ambos tinham uma visão muito seme-lhante sobre o flagelo da fome. Eles tinham a certeza de que não é a escassez de

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alimento – a produção é mais que suficiente para todos – mas a falta de condi-ções econômicas para acessá-lo que faz a grande diferença. Diziam que na nossa sociedade, a questão da alimentação é gerenciada da mesma forma que nosso sistema econômico, que privilegia o lucro em detrimento do respeito à vida. Os dois sabiam que a fome dói na mente, no corpo e na alma. Portanto, fizeram da luta contra a fome um dos objetivos de suas vidas, explicitando as dimensões técnica – produção, abastecimento e consumo –, e política – democracia, direitos, e cidadania – dessa tragédia.

O arcabouço necessário na busca por um Brasil melhor, democrático, mais justo e mais igual coloca a questão do direito a alimentação como condição sine

qua nom . E nessa busca, está a discussão de um modelo de desenvolvimento

que valorize a vida, garanta todos os diretos, o fortalecimento da cidadania e da participação social. O crescimento com equidade presume a execução das poli-ticas sociais de forma a reduzir as desigualdades e não permitir que os direitos constitucionais sejam violados. Isto é aspecto essencial da democracia.

A Constituição Cidadã foi resultado da luta de diversos setores da sociedade e contou com a participação de muitas representações sociais. Embora tenha, ao longo dos anos, recebido dezenas de emendas, seu texto ainda reflete os direitos conquistados. Dentre eles, está o direito a alimentação, que carrega também em seu bojo a concepção de soberania, segurança alimentar e nutricional. A seguran-ça alimentar fala da garantia desse direito, que presume a produção de alimen-tos de forma soberana e independente dos processos colonialistas de produção. A soberania alimentar também trata de direitos:

“[…] o direito dos povos definirem suas próprias políticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos que garantam o direito à alimen-tação para toda a população, com base na pequena e média produção, respeitando suas próprias culturas e a diversidade dos modos camponeses, pesqueiros e indíge-nas de produção agropecuária, de comercialização e gestão dos espaços rurais, nos quais a mulher desempenha um papel fundamental […]. A soberania alimentar é a via para se erradicar a fome e a desnutrição e garantir a segurança alimentar duradou-ra e sustentável paduradou-ra todos os povos.” (Fórum Mundial sobre Sobeduradou-rania Alimentar, Havana, 2001).

O MST tem muito a contribuir neste sentido. Suas práticas de organização do movimento e de seus militantes demostram a crença na força da sociedade para a transformação social – como dizia Betinho. Na essência dos objetivos do Mo-vimento – luta pela democratização da propriedade da terra, pela produção de alimentos saudáveis para o mercado interno, pela justiça social, e por um modelo econômico que distribua renda e respeite o meio ambiente –, está a construção dos caminhos de luta criados por Josué de Castro e Betinho. O legado desses pensadores tão importantes para o Brasil em várias frentes de luta não pode ser esquecido, ao contrário, deve ser valorizado e servir como exemplo para os bra-sileiros e brasileiras que acreditam que existem caminhos para mudar o Brasil.

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Referências

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Referências

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