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APROPRIAÇÕES FORMAIS EM O AUTO DOS 99%: UMA QUESTÃO DIDÁTICA

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APROPRIAÇÕES FORMAIS EM O AUTO DOS 99%: UMA QUESTÃO DIDÁTICA

Thaís TOLENTINO (UEM)1 Alexandre Villibor FLORY2

Introdução

O debate nacionalista que ganhava corpo nas discussões políticas no final dos anos 1950 foi determinante no processo de modernização nos campos artístico e cultural no Brasil. A efervescência dos movimentos sociais não só chamaram a atenção para a solidificação de uma arte genuinamente nacional, mas também buscava a criação de uma forma própria, brasileira, de se fazer arte. A questão da arte nacional alinhava-se ao debate anti-imperialista que se difundia via Partido Comunista, Ação Popular, União Nacional dos Estudantes, dentre outras organizações político/partidárias que se solidificavam, baseados em discursos marxistas difundidos no Brasil nas primeiras décadas do século XX e potencializado com as imigrações europeias e a intensificação do processo de urbanização e industrialização brasileiro3. Se em 1958, com a montagem de Eles não usam black-tie dirigida por Gianfrancesco Guarnieri no Teatro de Arena em São Paulo o teatro nacional consolidou seu herói popular, foi a partir do agitprop produzido pelo Centro Popular de Cultura da UNE (1961 – 1964) que arte e política uniram-se para encontrar uma nova forma de aproximação com um público popular, um teatro didático de efeito imediato que endossasse a politização popular das massas.

Embora a relação do CPC com a União Nacional dos Estudantes (UNE) possa ser relativizada, dada independência financeira e administrativa do grupo em relação à organização estudantil, ambos estiveram unidos numa produção bastante vasta de material cultural voltado para a conscientização de um Povo e de uma arte popular revolucionária,

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Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).

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Professor Doutor do Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá – Orientador.

3 Sobre arte e engajamento nas organizações sindicais do Brasil no começo do século XX: GARCIA,

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envolvendo produção de material audiovisual, shows, exposições que atingissem um público além das camadas intelectualizadas da sociedade. No entanto, ao discutir tais concepções em seu material teórico4, o grupo desencadeou uma crítica negativa em relação à sua própria produção cultural, o que acabou por proliferar pontos de vista engessados que o tacharam de panfletário e sectário. Se por um lado, passados anos de chumbo do AI-5 e esfriado os ânimos revolucionários dos anos que antecederam o Golpe Miliar de 1964, alguns integrantes do Centro Popular de Cultura da UNE, voltaram atrás em seus posicionamentos militantes, assumindo uma ingenuidade politizada já superada5, por outro, a crítica que ainda tenta recuperar essa faceta do teatro nacional parece ainda ser escassa no sentido de análise das obras do CPC, ficando muitas vezes restritas às análises generalizadoras de sua importância como movimento político e colocando-o no seu devido lugar de destaque da história da arte no Brasil.

Com o objetivo claro e primordial de estabelecer o contato direto com as massas populares, o teatro produzido pelo Centro Popular de Cultura da UNE recorreu, inúmeras vezes, à utilização de recursos literários e cênicos que garantissem seu claro e pretendido efeito didático. Na peça O Auto dos 99% (1962), escrita coletivamente por Carlos Fontoura, Amando Costa, Carlos Estevam Martins, Cecil Thiré, Marcos Aurélio Garcia e Oduvaldo Vianna Filho, a retomada do gênero auto, originalmente referindo-se às composições dramáticas de caráter religioso da Península Ibérica do século XIII, abandona sua função catequética e ganha um novo sentido: o de instrução política. Através da paródia e da subversão de uma forma sacra, a História do Brasil é rediscutida e trazida à tona, explicitando o excludente sistema educacional brasileiro, que ao longo de seu desenvolvimento, foi, e continua sendo, restrito a uma minoria detentora do capital.

No sentido de expandir o debate sobre a arte engajada no Brasil pré-ditadura e dar continuidade no processo de recuperação da crítica entorno da dramaturgia cepecista,

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Conceitos como “povo”, “arte popular”, “arte popular engajada” foram amplamente discutidos pelos dirigentes da UNE especialmente no “Anteprojeto ao Manifesto do CPC” e “A questão da cultura popular” de Carlos Estêvam Martins e “Cultura Posta em Questão”, do Ferreira Gullar. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de viagem: vanguarda e desbunde: 1960/70. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004.

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O posicionamento de alguns membros do Centro Popular de Cultura da UNE em relação ao teatro de agitação e propaganda produzido entre 1961 e 1964 podem ser encontrados editados em documentário em

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reavaliando-o não só como expoente de um movimento político e social, mas também no que diz respeito às elaborações de uma estética teatral imbricada numa função ideológica, esta análise procura investigar os mecanismos de intertextualidade presentes na peça cepecista tanto no plano da forma, ou seja, na apropriação do gênero auto em um momento de intenso debate político no Brasil, bem como no plano do conteúdo, em que a própria História é tomada como material bruto para a instrução política pretendida, levando o público a refletir sua própria condição. Tais recursos só podem ser esclarecidos na medida em que colocados dialeticamente em debate dentro das específicas condições históricas pelas quais passava o Brasil dentre os anos de 1961 e 1964.

1. Arte e engajamento: dos pressupostos à formação do Centro Popular de Cultura da UNE

Oficialmente criado em 1961, no Rio de Janeiro, o Centro Popular de Cultura – CPC – da UNE (União Nacional dos Estudantes) acompanhou o intenso efervescer político e cultural pelo qual passava o Brasil no final dos anos 1950. As agitações que ocorriam no campo político e econômico nacional reverberavam significativas mudanças no campo das artes, dando impulso à formação de grupos que intencionavam a concretização de uma arte genuinamente nacional e popular – uma arte identificada diretamente com a realidade brasileira. O contexto nacional exigia novos conteúdos e novas formas artísticas, prenunciando uma aproximação entre política e arte. O drama burguês intersubjetivo não bastava quando o assunto saía do campo da individualidade do sujeito e passava para questões coletivas. As formas importadas já não davam conta dos assuntos nacionais que pululavam na sociedade brasileira no final da década de 50.

No plano político, o período representou uma intensa euforia nacionalista em prol das reformas de base (contrário ao imperialismo norte-americano que se acentuava no cenário nacional e em prol à reforma agrária); expansão das Ligas Camponesas, que lutavam pela legalização e oficialização do sindicalismo nas zonas rurais; intensificação dos conflitos armados entre latifundiários e posseiros; reforma do ensino e aprovação da Lei de Diretrizes e Bases; extensão do voto ao analfabeto; cisão interna no Partido Comunista Brasileiro (PCB) que resultaria na formação do Partido Comunista do Brasil

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(PC do B, com claros intentos pró-China); aliança entre alguns setores da Igreja Católica com membros do Partido Comunista, entre outros. Enfim, na medida em que significativas mudanças ocorriam no plano político e econômico nacional, o mesmo se verificava no plano artístico e cultural: no Nordeste surgiam os Movimentos de Cultura Popular (MCPs), com destaque para a atuação militante do MCP de Pernambuco inspirado no método do educador Paulo Freire, que diretamente iria influenciar as ações do CPC no Rio de Janeiro; o Cinema Novo; a música Bossa Nova; os movimentos concretistas e neo-concretistas, etc.

No teatro, a montagem da peça de Gianfrancesco Guarnieri, Eles não usam black-tie (1958), no Teatro de Arena, em São Paulo, marca uma nova fase do teatro nacional – o palco passa a ser espaço para a realidade social e, no Brasil, o contexto é de grande agitação. A montagem de Guarnieri será decisiva para a modernização do teatro nacional, profissionalização das artes cênicas no Brasil e inaugurará uma fase de aproximação entre o palco e o público popular, entre política e arte. O sentimento nacionalista que pairava nas organizações políticas e sociais da época era

O mesmo sentimento nacionalista que inflava a luta pela valorização do artista nacional e exigia, nas telas e nos palcos, a presença do homem brasileiro. Assim, enquanto o cinema era povoado de favelados, marginais, lumpens, e cangaceiros, o operário subia no palco em Eles Não Usam Black-Tie, confirmando o Teatro de Arena paulista como posto avançado de defesa da dramaturgia nacional engajada. (GARCIA, 2004, p. 102)

Deve-se considerar também que, em 1955, Maria Della Costa monta A Moratória, de Jorge de Andrade, inaugurando de maneira ainda discreta as temporadas nacionais. Porém, se por um lado esse fato revela o potencial da dramaturgia brasileira a um público ainda burguês, foi com Black-tie que o palco nacional foi aberto para a agitada realidade brasileira, aproximando arte e política. Após o sucesso de bilheteria alcançado pelo Arena, houve uma crescente neutralização de seus conteúdos, que parecia não transpor as barreiras que continuavam a isolar o público dos movimentos culturais. É também determinante na mudança do panorama teatral dos anos 1960 a montagem da peça A alma boa de Setsuan, de Bertolt Brecht (1898-1956), no TMDC, em 1955, fato que prenuncia a chegada e recepção de um teatro político no Brasil.

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Em 1960, após uma turnê no Rio de Janeiro com o Teatro de Arena, Oduvaldo Vianna Filho rompe com o grupo, apostando numa verdadeira aproximação entre o público popular e o teatro, tomando este como elemento lúdico, mas socialmente atuante. Embora o conteúdo das peças do Arena fossem proletariados, moradores do morro carioca, malandros e políticos, o público que frequentava o pequeno Teatro para 150 pessoas era massivamente integrante de uma classe média e estudantil. Essa incoerência foi o catalisador para a concretização do projeto de Vianinha, que nesse mesmo ano escreveu a peça A Mais-valia

Vai Acabar, Seu Edgar, encenada no pátio da Faculdade de Arquitetura da Universidade do

Brasil com a colaboração de Carlos Estêvam Martins e Leon Hirszman, nessa época integrante do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Em 1961, com o claro objetivo de contribuir para a conscientização popular baseado em preceitos marxistas e com uma deliberada tarefa de agitação e propaganda, surge o Centro Popular de Cultura da UNE, que, embora compartilhasse diretamente das orientações da organização estudantil, tinha autonomia financeira e administrativa.

Com o objetivo claro e primordial de estabelecer o contato direto com as massas populares, o CPC produzia coletivamente peças para os mais variados grupos sociais que se consolidavam no agitado contexto político nacional: havia peças para camponeses, sindicatos, associações, grupos estudantis, entre outros. Embora grande parte da produção fosse destinada ao palco, encenadas especialmente na sede da UNE no Rio de Janeiro, muitas delas foram escritas para compor o repertório da UNEs-volantes, extensão itinerária que viajava pelo Brasil disseminando o conteúdo produzido pelo Centro. Não se deve esquecer que, embora o teatro fosse o principal meio de divulgação dos ideários cepecistas, o repertório do grupo abarcava também o campo cinematográfico, musical, das artes plásticas entre outros.

Em busca de outro público (popular), os artistas do CPC criaram uma nova concepção de texto, de cena, de produção, de interpretação, de acordo com o espírito do teatro político de agitação e propaganda, conhecido como agitprop, expressão criada pelos primeiros artistas políticos deste século no período heroico da revolução soviética. (COSTA, 1998, p.185)

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Talvez tenha sido a produção teórica do Centro Popular de Cultura a desencadeadora de visões engessadas acerca do grupo, principalmente desenvolvida pela crítica teatral dos anos 1980, que acabou por estancar o estudo acadêmico e crítico acerca de sua produção devido ao caráter panfletário e sectário que assumiu em determinados momentos. Dentre o material teórico produzido pelo grupo, destaca-se o livro de Carlos Estêvam Martins, A Questão da Cultura Popular (1963), no qual se encontra o polêmico texto Anteprojeto ao Manifesto do Centro Popular de Cultura. Ao defender a arte popular engajada com ferocidade, Carlos Estêvam acabou por fomentar opiniões contrárias ao grupo, que o tachavam de populista, panfletário e despreocupado com as questões estéticas e formais. Além disso, contribuiu também para tal visão o livro Cultura Posta em Questão (1965), de Ferreira Gullar, em que o autor propõe uma revisão acerca da arte popular brasileira.

No entanto, ao analisar a produção teatral cepecista, nota-se que suas peças devem ser compreendidas como precipitação de um conteúdo histórico e social específico, ou seja, nas suas íntimas relações com o conturbado, e muitas vezes contraditório contexto político e social pelo qual passava o Brasil no final dos anos 1950. Ao “usar as formas populares e enchê-las com conteúdo ideológico” (PEIXOTO, 1989, p. 17), o Centro Popular de Cultura da UNE trouxe os ideários de uma revolução para o palco, vinculando talvez de forma mais expressiva no panorama do teatro nacional a arte e a política onde quer que ela fosse necessária estar. A tensão verificada entre esse novo conteúdo e as formas utilizadas pelo grupo não devem, assim, ser escamoteadas por uma crítica alienada ao seu contexto, mas sim, explorada à luz de uma análise dialeticamente orientada.

2. O Auto dos 99% no Brasil dos anos 1960: uma questão didática

O Auto dos 99% foi apresentada pela primeira vez em março de 1962 como uma

leitura dramática no II Seminário Nacional de Reforma Universitária (SNRU) em Curitiba, cujas deliberações reafirmavam a urgente necessidade de uma reforma universitária no Brasil. Daí a proximidade entre a realidade social e o conteúdo das peças cepecista, sendo que “Notar as convergências entre a peça e documentos não é algo de pouca importância, uma vez que a leitura da realidade brasileira exposta pela UNE nos documentos (com

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reverberação no Auto) difere, em alguns aspectos, do pecebismo apontando outras ideias que marcariam a produção do CPC.” (LIMA, 2011, p.4).

A apropriação do gênero auto, originalmente referindo-se às composições dramáticas de caráter religioso da Península Ibérica do século XVIII já evidencia em primeiro plano um mecanismo de intertextualidade que se apropria de uma forma religiosa para legitimar a instrução política pretendida pelo grupo. Segundo Cafezeiro et. al. (1996), as peças catequéticas, difundidas no Brasil pelos jesuítas, especialmente pelo Padre José de Anchieta a partir de 1553, serviram à instalação de um processo civilizatório ludibriado pela conversão à fé cristã, sempre aliada aos interesses da Coroa Portuguesa. À estrutura narrativa dos autos eram incorporados os cerimoniais indígenas e, através da materialização alegórica do bem (amigos dos portugueses e adeptos do cristianismo) e do mal (inimigos da Coroa e da fé cristã).

Com o declínio da Companhia de Jesus, os autos de caráter catequético ficaram restritos aos Colégios e, segundo Ávila (2006), no século XX eles ressurgiram como referente a um teatro que mistura festa popular, obra de catequese e miscigenação cultural6. Compondo o agitado panorama teatral do final dos anos 1950, a função catequética dos

autos passa a ser substituída, numa espécie de subversão politizada, pela instrução social

das massas. O teatro didático que daí se desenvolve passa a ter como principal função a de instruir a população sobre os mecanismos de exploração do imperialismo que se difundia através do sistema capitalista. Ao apropriar-se de temas da cultura popular para trazer à tona as circunstâncias sociais, o teatro político que daí surgia visava à incitação e ao combate, o efeito imediato da conscientização.

O título da peça do CPC já aponta para uma subversão paródica do gênero sacro, afinal, o grupo não pretendem contar a passagem de um mártir do cristianismo, mas retratar o drama da exclusão de 99% da população brasileira marginalizada do sistema educacional e até mesmo do processo de construção de sua própria cidadania nacional. Segundo Rosenfeld (2008) ao comentar os elementos do teatro épico brechtiano em oposição a um

6 Talvez a mais difundida apropriação do gênero no século XX seja O Auto da Compadecida (1956), de

Ariano Suassuna, em que a virtude teologal da caridade é a o mote da composição, revelando uma aproximação com os autos sacramentais de Calderón de la Barca.

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teatro dramático, a paródia, em si é um artifício de desnaturalização/estranhamento daquilo que é dado como natural – e no Auto dos 99% o desnudamento é da história do Brasil. A instrução não mais se destina ao apaziguamento cultural e domínio da metrópole sobre a colônia, mas colocar em xeque as relações dominadoras e opressoras impostas à maioria dos grupos marginalizados desde o processo da colonização no Brasil. A apropriação do gênero cristão revela também um tom irônico que caminha para a comicidade, elemento fundamental para o estabelecimento do contato com o público pretendido pelo CPC – aproximação que não deve ser interpretada como um mergulho não reflexivo como prevê o teatro burguês, mas que se faça comunicar com as camadas populares (PEIXOTO, 1978).

O Auto dos 99% é fragmentado em três partes, que, embora não obedeçam a uma linearidade dramática das ações, relacionam-se mutuamente no sentido de ambas explicitarem facetas do processo de instauração da exploração da mão de obra no país: a primeira parte da peça ilustra a chegada dos Portugueses nas terras paradisíacas do país pré-cabralino e o processo de dominação e exploração da mão de obra indígena e africana no Brasil Colônia. Os atos seguintes constroem-se próximos ao teatro de revista7 passando, na segunda parte, pela instauração da Universidade no Brasil bem como suas diretrizes elitistas numa espécie de vestibular ao longo dos períodos da História do Brasil, e terminando, no terceiro e último ato da peça, com a ilustração da debilidade que se instaura dentro das universidades onde “se ensina a infelicidade, se aprende a maldade e termina a humanidade”. (PEIXOTO, 1989, p.106).

A chegada dos portugueses, jesuítas e outros expedicionários exploradores, temática central da primeira parte da peça, é narrada por uma voz em off que anuncia a história do “pega-pra-capar” ou do “salve-se-quem-puder” nacional, sinônimos escolhidos para o processo de colonização nacional. O idílico paraíso pré-cabralino, onde nativos indígenas vivam numa harmoniosa relação de troca e comutação, é transformado na grande máquina de exploração do capital estrangeiro. Os dominadores portugueses, sempre subjetificados (Caminha, Cabral, D. João...) ocupam uma posição contrastante com a grande massa já

7 Segundo Paiva et. al (1991), “O terreno revisteiro é o domínio dos costumes, da moda, dos prazeres e,

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existente no Brasil, os explorados, tratados sempre como instâncias coletivas ao contrário dos opressores (índios, negros, alunos...). Já no primeiro ato, ficam claros os inimigos do povo, as alegorias do sistema opressor: o quadro que se compõe desde o princípio da colonização no Brasil é a dominação do capital estrangeiro, que a qualquer custo impõe as regras da mais-valia trocadas com os nativos por algumas “bugigangorum”. A condensação dessa relação exploratória que se instaura no Brasil sustenta personagens alegóricos, típicos do gênero auto, que sustentam o tom satírico da peça. Num momento de debate sobre a Reforma Universitária dentre muitas outras questões sociais, a expansão do sentido explorador/explorados incitados pelo Auto dos 99% certamente recairia no debate acerca das relações opressoras nas quais se sustentariam o sistema educacional brasileiro.

A segunda parte do Auto introduz a temática central da peça: a questão da instauração da universidade no Brasil através de um mosaico de quadros que representam a evolução da acessibilidade ao ensino superior ao longo da História do Brasil. A realização de vestibulares que regulamentam a entrada dos alunos na universidade, representação da possibilidade de libertação ao elitismo exploratório da metrópole, se mostrará sempre excludente do acesso da grande maioria: inicialmente entram na faculdade apenas os descendentes de Portugueses; declarada a Independência do Brasil (e de acordo com a Voz narrativa da peça ela foi declarada enquanto D. Pedro estava sendo num penico, o que sustenta os momentos de ironia e comicidade da peça), quem terá acesso ao ensino superior será o filho do Barão de Caçapava; na República será a vez dos filhos de latifundiários. Chegada a modernização, última esperança de acessibilidade popular à educação, o ensino superior ficará restrito aos que tem o Secundário, confirmando a lógica da dominação elitista no acesso ao ensino superior no Brasil, onde as relações de base ainda se dão através da exploração da grande massa popular.

A terceira parte da peça, iniciada de maneira bastante caricata com um velho professor saindo de dentro de um sarcófago, é composta por quadros isolados que ilustram a debilidade da Universidade no Brasil. Cada quadro representa uma síntese da verborragia e da ignorância pregada dentro das universidades, abastecidas com um discurso vazio que pouco diz às expectativas dos jovens que dela fazem parte. Abordagens classicistas e elitistas compõe o conteúdo das aulas de Sociologia, em que há uma reafirmação do

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discurso católico e repúdio aos discursos marxistas, ou mesmo na aula de Arquitetura, em que, através de um discurso verborrágico e improdutivo, preocupa-se em discutir as colunas jônicas ao invés de deliberar acerca dos problemas estruturais do Brasil, como as favelas, as condições sanitárias. Daí a articulação ideológica ao vincular O Auto 99% num contexto de debate das Reformas Universitárias em 19628. No quadro final, um estudante invade a congregação dos professores velhinhos, expondo sua pauta de reinvindicações. Novamente o elemento cômico atua como sátira do passado: um dos professores, surdo, dorme durante as reuniões e nem se dá conta do que está sendo discutido, enquanto outro acaba por se assustar ao escutar a palavra “aluno”, já que parece ter esquecido que eles fazem parte do contexto universitário brasileiro. O final da peça não é feliz, aliás, ele parece já ser pressuposto desde a primeira parte: as reinvindicações dos alunos são todas rebatidas e este promete dar continuidade à sua luta aliado à classe trabalhadora, reafirmando a exploração que se solidificou no país desde os primórdios de seu processo de colonização.

Considerações finais

O aparecimento de elementos épicos no teatro nacional a partir do final dos anos 1950, segundo Costa (1998) mais precisamente após a apresentação de Eles Não Usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri no Teatro de Arena em São Paulo em 1958, marca a consolidação de um teatro moderno no Brasil. Esse rompimento com a arte dramática produzida até então – o teatro clássico burguês – coincide (e não de forma inconsciente) com um agitado contexto político, econômico, social e cultural no Brasil: a ascensão dos movimentos de esquerda contrários à perspectiva do Golpe Militar, que viria a acontecer no ano de 1964. Parecem claro, assim, haver uma direta homologia entre os rompimentos das formas artísticas e as macroestruturas sociais. O comportamento humano encontra-se num processo instável de renovação de antigas estruturas rumo ao equilíbrio, e, sendo a arte um fenômeno social, as estruturas internas de uma obra devem ser consideradas dialeticamente parte de processos historicamente delimitados.

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A primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação foi aprovada em 1961 e despertou a reavaliação do tema pelos movimentos estudantis que debatiam a necessidade da reforma educacional no país. In: COSTA, Iná Camargo. A hora do teatro épico no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

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O surgimento de um teatro de agitação e propaganda (agitprop) não deve ficar estanque a conceitos fechados que o retrata como produções amadoras e panfletárias. A análise da peça O Auto dos 99% deixa claro que a tensão entre o conteúdo das peças do Centro Popular de Cultura e a apropriação de elementos do teatro burguês arraigado nos movimentos culturais até então, deram origem a uma forma própria de se fazer teatro, que não pode ser compreendida desprendida do contexto em que existiu. A transmutação do

auto no palco dá consistência ao intuito didático e político do grupo. Ao se dirigir às

massas no sentido de conscientizar sobre suas condições históricas, os dramas não são mais intersubjetivos, rigorosamente encadeados, dinâmicos, quase que à mercê de um destino que escapa das mãos do homem, nem pretende compactuar com os preceitos da moral cristã forçosamente estabelecida no Brasil. No teatro cepecista, o passado é trazido à tona para que dele se mude o presente. E o efeito que se busca é imediato.

Ao tomar a História do Brasil como material bruto para a instrução política pretendida pelo grupo, o CPC consolida sua crítica explicitamente: denuncia a opressão intrínseca ao sistema educacional. Ao retornar e recontar a história de tupiniquins, negros e europeus, O

Auto dos 99% traz à tona o debate dialético das relações exploradoras através da caricatura

levada às últimas consequências de dominadores e dominados, convida o público a estranhar as coisas que, pelo hábito, parecem naturais (ROSENFELD, 2008). Através da re-experimentação histórica o palco transforma-se em tribuna onde se denunciam os verdadeiros demônios que aportaram junto com a Companhia de Jesus – o público, não mais incitado à aceitação da fé como nas peças catequéticas, deve agora se posicionar, sair da passividade, pois agora sabe de que lado está opressores e oprimidos. Essa parece ser um dos pilares do teatro produzido pelo Centro Popular de Cultura da UNE.

A heterogeneidade do fenômeno literário e artístico torna-se verdadeiro termômetro de mudanças sociais. Na medida em que se compreende a arte como um fenômeno artístico coletivo – mas composto por uma dinâmica rede de relações intersubjetivas – ela passa a ser registro de um complexo mosaico histórico social. Assim, a fuga aos padrões estéticos de uma determinada época não deve ser compreendida baseada em julgamentos puramente internos – estruturais – mas analisados dentro de uma totalidade maior, ou seja, dentro de suas homologias com a macroestrutura social.

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Referências

ÁVILA, Affonso et. al. Auto. In: GUINSBURG, J. et. al. Dicionário do Teatro Brasileiro – temas, formas e conceitos. São Paulo: Perspectiva, 2006, 354p.

CAFEZEIRO, Edwaldo; GADELLA, Carmem. História do teatro brasileiro: de Anchieta à

Nelson Rodrigues. Rio de Janeiro: Editora UFRJ: FUNARTE, 1996.

COSTA, Iná Camargo. Teatro e Revolução nos anos 60. In: Sinta o Drama, São Paulo: Editora Vozes, 1998, p.183-191.

__________________ Hora do Teatro Épico no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de viagem: vanguarda e desbunde:

1960/70. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004, 242p.

GARCIA, Milliandre. Do teatro militante à música engajada. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007, 159p.

LIMA, Eduardo Luís Campos Lima. O Auto dos 99% - O Centro Popular de Cultura da

União Nacional dos Estudantes (CPC da UNE) e a mobilização estudantil. In: Revista

Crioula, nº10. Novembro de 2011, 18p.

PEIXOTO, Fernando (org.). Vianinha: Teatro, Televisão, Política. São Paulo: Brasiliense. 1978, 223p.

_________________. Auto dos noventa e nove por cento. In: O Melhor Teatro do CPC da

UNE. São Paulo: Global, 1989, p.101-136.

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