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A biografia como estudo da história da comunicação

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Academic year: 2021

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A biografia como estudo da história da comunicação

Igor Sacramento Coordenador do GT Jornalismo do Encontro Nacional de História da Mídia da Rede Alcar, doutor em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ e bolsista de pós-doutorado da CAPES pela mesma instituição no projeto “História da Mídia e a Itinerância das Imagens”

Na historiografia moderna, especialmente a partir da Escola dos Annales, há um intenso questionamento do estudo biográfico a partir dos “grandes homens” e seus “grandes feitos”. Essa concepção tradicional de história – da “história dos vencedores”, nas precisas palavras de Walter Benjamin em “Teses sobre a Filosofia da História”. Isso rompia com a história acontecimental da historiografia tradicional, que, além do entendimento do fazer histórico como uma sucessão de “grandes eventos”, numa relação de causa e efeito, baseava-se na crença de que os documentos recuperavam o verdadeiro passado e não um discurso sobre algo que passou, e de que a narrativa cronológica, voltada para grandes personagens, instituições e acontecimentos políticos, poderiam conferir cientificidade e veracidade ao processo de reconstituição do passado.

A Escola dos Annales, fundada em 1929, por Licien Febvre e Marc Bloch, ressaltou a história estrutural, menos fundamentada nos eventos do que nos quadros mentais que formam os indivíduos, as instituições e as práticas pretéritos. Entre as novidades promovidas pela Escola dos Annales, estavam o reconhecimento da necessidade da síntese (a história total), a convicção de que a história é feita por todos os homens, a reflexão pela especificidade de cada período e duração, a importância atribuída ao econômico, aproximando-se da noção marxista de determinação econômica em última instância, o diálogo fronteiriço com as demais ciências sociais, o abandono de uma história de fatos isolados, a adoção de uma heterogeneidade do tempo histórico (curta, média e longa durações), a associação da pesquisa histórica às preocupações do presente e a vinculação da história à dimensão política, que emerge nos homens.

Isso não implicou o abandono da biografia. O gênero foi renovado em obras como O Problema da Incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais (1942) e Em torno do Heptaméron: amor sagrado, amor profano (1944), de Lucien Lebvre, e O Mediterrâneo

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e o Mundo Mediterrâneo de Filipe II (1949), de Fernand Braudel. Os historiadores da Escola dos Annales direcionaram a biografia para explicar problemas de pesquisa mais gerais, seja de ordem temática ou teórica, enfocando principalmente o contexto medieval. Além disso, o projeto daqueles historiadores era o de relacionar a trajetória individual dos “grandes personagens” às estruturas e aos processos sociais que lhes atribuíram determinadas funções e papéis. Nesse sentido, a contribuição dos Annales confirma a necessidade do uso do individual pela singularidade da representação possível de uma época. Sendo assim, o gênero ainda estava privilegiando os “grandes homens”, as figuras notáveis, representantes das elites políticas, militares e intelectuais. Assim, eram relegados ao esquecimento da historiografia os indivíduos comuns, os subalternos, os dominados, os excluídos, as minorias e os pobres. Essa crítica se tornou comum. E a principal justificativa dos historiadores dos Annales era que havia uma “escassez de fontes”, de documentos, sobre os indivíduos que não eram políticos ou não tinham ligações com a política – com a “história oficial”. Para além de essa justificativa remeter aos preceitos da historiografia positivista, baseada em documentos oficiais, ela também foi criticada por não incluir na história os “de baixo”. Esta crítica acabou consolidando uma nova corrente historiográfica, a micro-história, que desenvolveu um conjunto de estudos como Os queijos e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição (1976), de Carlo Ginzburg, e A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII (1985), Giovanni Levi, que procuravam, ao reduzir a escala da análise ao plano do indivíduo comum, estabelecer novas conexões entre o particular e o geral. No lugar dos grandes personagens tidos como responsáveis pelos grandes acontecimentos, agora, fazia parte da história sujeitos subalternos, comuns e esquecidos. Por conta disso, a microanálise histórica se estruturou no jogo entre a descrição detalhada do que é enfocado com a relação com o contexto social mais amplo e que passa a ser complexificado pela análise do microssocial.

As contribuições da Escola dos Annales, todavia, superam as suas críticas. Afinal, ela permitiu tal renovação no campo historiográfico que o estudo biográfico, por exemplo, passou de mera extensão do modelo tradicional de escrita historiográfica, com narrativas cronológicas, factuais e sem análises e explicações aprofundadas das vidas “grandes homens” (reis, militares, políticos, filósofos, artistas) à problematização das

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estruturas e processos socioeconômicos e culturais que permitiram a existência daqueles homens, daquelas instituições, daquelas mentalidades e daquelas práticas. Ainda assim, a narrativa biográfica era, mesmo de modos distintos, baseada num indivíduo, na sua singularidade, na sua representatividade, na sua exemplaridade e na sua notoriedade.

No campo da comunicação brasileiro, os estudos biográficos estão mais relacionados ao contexto contemporâneo de boom da memória, quando as mídias passaram a consolidar o seu papel de gestora da memória coletiva e a permitir o forjamento de memórias e identidades individuais, quando passou a haver uma sobrevalorização do passado com o maior interesse por museus e pela história, assim como com projetos memorialistas e de preservação. Os estudos brasileiros de comunicação, especialmente a partir do anos 2000, contam com um grande diversidade de preocupações com os modos com os quais os processos de lembrar e esquecer, bem como os de construção do “eu” e do “outro”, estão sendo configurados pelos discursos e dispositivos midiáticos. Há, ainda, aqueles trabalhos que procuram recontar uma trajetória. Com raras exceções, os princípios da historiografia tradicional são frequentemente reproduzidos, de modo consciente ou não (o que é ainda mais problemático), reforçando a crença de que uma vida para ser contada ela deve ser de um “grande homem” e baseada num conjunto farto de documentos que permitam o restabelecimento do passado no presente, por uma narrativa cronológica, linearmente orientada pelas sucessões de ações individuais. Desse modo, acaba-se realizando aquilo que Pierre Bourdieu identificou como “ilusão biográfica”. Toma-se uma característica ou um conjunto de características do indivíduo (pionerirismo, subversão, engajamento, conservadorismo) para demonstrar que, “desde sempre”, fora uma qualidade essencial daquela personalidade. Desse modo, não se observa não apenas a multiplicidade de características, mas os modos como elas foram discursivamente produzidas e socialmente reconhecidas ao longo de um tempo. A produção historiográfica, seja na História, na Comunicação ou em qualquer outro campo do conhecimento, não pode se privar de realizar uma profunda reflexão teórico-metodológica, numa interface com a Teoria e a Filosofia da História. Deixar de fazer isso implica acabar repercutindo um senso comum historiográfico, do qual a matriz positivista é a mais estruturante e evidente. O processo histórico não pode ser somente considerado como cumulativo, que vem do passado e se

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inscreve no presente como no fluxo de uma evolução, na qual um fato causa e gera outro subsequente. Nisto há naturalização da história, caracterizada pelo parco tensionamento entre continuidade e ruptura e ausência de uma imaginação histórica que ultrapasse a simplista interpretação binômica de causa-efeito ou crítica das fontes como a verificação da “verdade dos fatos” e não do modo como os fatos são narrados. Acredito que essa tendência predominante vem da falta de três perguntas básicas: Por que contar essa história? Como contar essa história? Por que contar a história dessa forma?

Para a minha tese de doutorado, para demonstrar, na trajetória artístico-intelectual de Dias Gomes, entre 1939 e 1999, as mediações culturais entre o campo da política (enfatizando o seu envolvimento no Partido Comunista Brasileiro) e o da mídia (tomando as suas relações profissionais com o teatro, o rádio, o cinema e a televisão), optei por realizar aquilo que denominei como uma biografia comunicacional. A metodologia me permitiu analisar sua história de vida como um texto que tece e é tecido por outros textos. Não procurei o Dias Gomes “em si”, por ele mesmo, mas nas relações comunicativas, em acontecimentos vivos e historicamente localizados. Ao analisar os textos produzidos por Dias Gomes (tanto os seus artigos, ensaios, entrevistas e relatos autobiográficos quanto os que escreveu para o teatro, o rádio, o cinema e a televisão), destaquei os seus sentidos públicos, produzidos dentro das condições de possibilidade, das interações coletivas e do conjunto de relações sociais, interesses, disputas, crenças e princípios dos campos pelos quais transitou em cada época, e avaliados pelos seus pares e pelos críticos que atribuíram diferentes valores e julgamentos às suas ações, escolhas e motivações nos exercícios de suas atividades artístico-intelectuais. Sendo assim, a trajetória de Dias Gomes foi analisada como um conjunto de fluxos enunciativos que constituíram distintos circuitos comunicativos.

Assim, a própria análise das mediações culturais não partiu de um pressuposto voluntarista, como se elas fossem algo plenamente originado do próprio Dias Gomes. Procurei mostrar como essas mediações foram se constituindo ao passo em que ele se formava como dramaturgo e profissional das mídias e, também, como militante comunista. Esse processo, certamente, nunca foi completo. Contou com diversas estabilizações mais ou menos permanentes a partir das quais Dias Gomes ancorou a sua

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existência e foi reconhecido, consagrado ou condenado, por suas escolhas. Sendo assim, a construção da figura pública de Dias Gomes como um mediador cultural foi realizada para além de suas ações e textos, mas a partir das suas redes de sociabilidade e circulação de sentidos e práticas sociais, dos conflitos e dos modos como ele foi representado por outros em determinados espaços midiáticos.

A noção de biografia comunicacional, cunhada e desenvolvida nesta tese, pode ser usada por outras pesquisas que procurem analisar, para além das ações individuais dos biografados, o circuito das produções de sentidos sociais presentes numa determinada trajetória artístico-intelectual. Necessariamente, como busquei realizar, trata-se de um estudo multifacetado. É preciso considerar que: 1) o “eu” apenas se constituiu como tal em relação a um “outro”, num processo que faz a trajetória individual seja sempre semi-alheia, porque parte de um mundo dialógico de produção de sentidos; 2) as relações sociais de produção, circulação e consumo dos textos (num sentido amplo que abarca a multiplicidade de linguagens, trabalhos e materialidades) associados a um determinado indivíduo são constitutivas de uma prática discursiva dialógica, isto é, daquele conjunto de signos que, ao dialogarem entre si, formam o objeto – uma vida, no caso – a que se referem; 3) as modulações e balizas das formas dos sentidos sociais que compõem a trajetória de determinado indivíduo devem ser compreendidas como possíveis pelo conjunto de regras, negociações, disputas e ações existentes no interior de determinado campo social numa situação comunicativa específica, mas também nas permanências e atualizações do habitus de determinado campo social ou daquele produzido nos trânsitos entre vários; 4) a trajetória individual é um evento vivo, justamente porque se trata de um por em ação discursos, interesses e motivações que têm localizações sociais e históricas distintas que, nessa complexidade performática, forma um todo orgânico e múltiplo; e 5) as formas de sociabilidade e relações com outros indivíduos são mediadas pelas conjunturas e estruturas existentes e atuantes no interior de determinado campo e em dada situação, o que faz com que não seja possível desconsiderar a análise estrutural ou sistêmica daquela da trajetória individual.

As possibilidades de tomar uma vida como um conjunto de circuitos comunicacionais não se encerram com Dias Gomes. Elas, muito menos, se encerram na

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análise da vida pública de um artista ou intelectual. Obviamente, os sentidos públicos sobre uma vida são acionados dentro da regularidade enunciativa de um conjunto específico de gêneros de discurso. O ensaio publicado num periódico vinculado ao PCB é, certamente, diferente de uma troca de cartas com um amigo que, também, é militante. Estabelecer e analisar os modos de circulação desses sentidos também podem fazer partes de uma biografia comunicacional. O íntimo não é, dentro da perspectiva bakhtiniana a que me filio, meramente uma ligação autêntica com o “verdadeiro eu”, mas também uma modalidade comunicacional de produção discursiva. É, também, a produção de um “outro” como “eu” para ser apresentado a outrem. Está, portanto, fundamentalmente associada a outros, aos modos como os outros nos veem, como procuramos ser vistos pelos outros e como podemos dar sentido à nossa existência de modo a sermos reconhecidos pelos outros, convencendo-os discursivamente de que somos “nós mesmos”. Sendo assim, o íntimo precisa ser conectado ao público: aos constrangimentos sociais, às estruturas de poder, aos trabalhos mais consagrados, às imagens públicas e às formas mais comuns de produção e de reconhecimento do “eu”. Para a minha tese, no entanto, o objetivo foi mostrar como diversos processos comunicacionais constituíram a experiência e a figura pública de Dias Gomes como um artista entre o comunismo e as mídias. Pareceu-me, naquele momento, que o público seria mais eloquente do que o íntimo.

Quando elaborei o conceito-método de biografia comunicacional, imaginei que a trajetória de outros intelectuais, literatos ou profissionais das mídias poderiam ser analisados segundo esta perspectiva, além de Dias Gomes. Pensei que, por exemplo, a trajetória de Machado de Assis poderia ser analisada do ponto de vista comunicacional, destacando não apenas os textos (crônicas, contos, poemas, livros) do autor, mas, principalmente, a atuação de um conjunto diferenciado de agentes, constrangimentos, normas literário-sociais, críticas, textos biográficos, discursos e sentidos imbricados na constituição de cada texto e da imagem pública dele, analisando, por exemplo, a diversidade de reconhecimentos que foi produzida antes de sua consagração como o mais importante romancista brasileiro. Poderiam também ser analisados, dessa forma, a trajetória de Nelson Rodrigues e os modos diversos de reconhecimento (entre

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consagrações e depreciações), o que tornaria muito mais complexo o entendimento do seu reconhecimento mitificado como um “anjo pornográfico”.

Também penso que esta noção pode contribuir para análise da proliferação de biografemas e autobiografemas em diferentes produtos midiáticos. No lugar de se estudar exclusivamente fragmentos das “narrações do eu” construídas, por exemplo, por meio de dispositivos digitais e publicados como textos em blogs ou em perfis do Facebook, como performances no YouTube, como fotografias pessoais compartilhadas no Flickr, ou, ainda, em cartas, livros, entrevistas, reportagens jornalísticas, depoimentos e confissões, poderia haver uma análise sistêmica dessas práticas discursivas. Isso consiste em, dentro da perspectiva de uma biografia comunicacional, considerar as redes de produção de sentidos, práticas e mediações socioculturais estabelecidas entre autores, editores e leitores. Apesar das reconfigurações do impacto da digitalização das mídias, ainda há, de forma vigorosa, um sistema de reconhecimento que valora e consagra determinados discursos como autênticos, confiáveis ou interessantes. É certamente esse processo comunicacional que não pode ser desconsiderado.

Referências

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