III Mostra de Pesquisa da Pós-Graduação
PUCRS
A imparcialidade como marco essencial da prestação jurisdicional
penal e seus reflexos nas regras que definem a competência pela
prevenção do juízo.
André Machado Maya, Prof. Dr. Nereu José Giacomolli (orientador)
Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Faculdade de Direito, PUCRS,
Resumo
O presente trabalho é parte integrante do projeto de pesquisa em desenvolvimento no Mestrado em Ciências Criminais da PUCRS, e pretende analisar o tratamento dispensado pela Corte Constitucional da Espanha e pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos à regra da prevenção do juízo, a partir da leitura da garantia da imparcialidade dos órgãos jurisdicionais como uma garantia fundamental dos acusados em processo penal.
Introdução
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos, desde a década de 1980, vem proferindo decisões no sentido de preservar o direito, de qualquer acusado, de ser julgado por um juiz imparcial.1 Em várias delas, tem consagrado “o entendimento de que o juiz com poderes investigatórios é incompatível com a função de julgador” (LOPES JR., 2006). Seguindo essa linha, e certamente por influência dessa jurisprudência, o Tribunal Constitucional da Espanha, na célebre sentença 145/88, passou a entender que o juiz instrutor está impedido de julgar o processo, sob pena de violação da imparcialidade objetiva.2 Trata-se, no caso, do acolhimento da doutrina que compreende a garantia da imparcialidade como um princípio supremo do processo (ARAGONESES ALONSO, 1997) ou, ainda, como a essência da atividade jurisdicional (GIACOMOLLI, 2006).
1 Dentre outras, são exemplos as decisões proferidas nos casos Piersak e De Cubber.
2 Afirma a decisão, numa de suas passagens: Es precisamente el hecho de haber reunido el material necesario
para que se celebre el juicio o para que el Tribunal sentenciador tome las decisiones que le corresponda y el hecho de haber estado en contacto con las fuentes de donde procede ese material lo que puede hacer nacer en el ánimo del instructor prevenciones y prejuicios respecto a la culpabilidad del encartado, quebrantándose la imparcialidad objetiva que intenta asegurar la separación entre la función instructora y la juzgadora. (DE LA
OLIVA SANTOS, Andrés. Jueces imparciales, fiscales “investigadores”, y nueva reforma para la vieja crisis
Essa imparcialidade, objeto da preocupação dos processualistas europeus, remonta suas origens ao surgimento do Estado denominado moderno, quando sob forte influência racionalista, o Estado foi concebido como instrumento de garantia dos direitos naturais dos homens. Nesse período chamado liberal, o juiz era uma figura neutra, que tinha sua função limitada à aplicação literal da lei. Posteriormente, com o advento do Estado social, diante da necessidade de intervenção na esfera privada como forma de dar a todos condições iguais de acesso aos direitos fundamentais, em especial diante da ineficiência do Poder Executivo, surgiu a necessidade de que o Poder Judiciário passasse a desempenhar um papel de maior atuação na garantia desses direitos, originando-se, daí, a figura do juiz intérprete do ordenamento jurídico como um todo, o juiz criativo (POZZEBON, 2005). Nesse contexto, a imparcialidade, que no período liberal era vista como sinônimo de neutralidade, passa a desempenhar o papel de garantidora da racionalidade da função jurisdicional, viabilizando os ideais racionais de previsibilidade das decisões e de segurança jurídica.
A doutrina processualista contemporânea, fortemente influenciada pela racionalidade que impera desde a criação do Estado moderno, seguiu, desde então, trabalhando o conceito de jurisdição sob o pilar da imparcialidade, concebida como a garantia de que o juiz não possua vínculo com as partes ou com o objeto em litígio. É essa a lição que se extrai da doutrina de, dentre outros, FERRAJOLI, que inclui a imparcialidade como um dos pilares do denominado principio de jurisdicionalidad, MONTERO AROCA, que a trabalha como consectária da garantia de independência dos juízes, ARMENTA DEU, que eleva a imparcialidade à condição de pressuposto do princípio acusatório no processo penal, e, no Brasil, LOPES JR., que trabalha a imparcialidade como pressuposto básico do devido processo legal.
É sob esta ótica, portanto, que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos vem firmando sua jurisprudência no sentido de conceber a prevenção como regra de exclusão de competência processual. No Brasil, entretanto, o art. 75, parágrafo único, do CPP, estabelece a prevenção do juízo como regra de fixação da competência, em nítida contradição com a jurisprudência européia, muito embora o país seja signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos, que no seu artigo 8ª, inciso I, prevê a garantia judicial de julgamento por um juiz imparcial, nos mesmos moldes do que dispõe a Convenção Européia dos Direitos Humanos no seu art. 6º, inciso I.
O objetivo do presente trabalho, pois, parte da tomada de posição da Corte Européia de Direitos Humanos, acerca da regra da prevenção, para estudar as normas processuais e
regimentais do direito brasileiro em face da garantia de imparcialidade do órgão jurisdicional, com o que nos propomos analisar, a partir do estudo da imparcialidade, até que ponto trata-se de uma garantia meramente formal, ou, não sendo, se seria possível alcançar uma garantia efetivamente material de imparcialidade, como parece pretender a Corte Européia, e, para além disso, verificar também os contornos éticos do julgamento por um juiz prevento.
Metodologia
A abordagem básica do presente estudo centra-se no método dedutivo, partindo-se de princípios e orientações doutrinárias e jurisprudenciais válidas e preexistentes, em especial relacionadas à garantia da imparcialidade, para então chegar a conclusões particulares sobre o problema proposto.
Além do levantamento de material doutrinário e jurisprudencial, que consiste na primeira parte da pesquisa, pretende-se complementar o estudo com uma investigação de campo, para o que serão adotados os métodos quantitativo e qualitativo, que consistirá no levantamento de processos da 2ª Vara do Júri de Porto Alegre e da 1ª Vara Federal também de Porto Alegre, referentes ao período de um ano, a partir dos quais se analisará o teor das decisões cautelares proferidas, comparando-as com o resultado final do processo, com o que se pretende averiguar in concreto os efeitos da prevenção sobre a imparcialidade do órgão julgador.
Resultados
O trabalho, por estar ainda na sua fase inicial, não possui ainda resultados concretos, muito embora os dados doutrinários e jurisprudenciais até o momento levantados permitam suscitar a discussão sobre se seria possível alcançar um julgamento efetivamente imparcial, na medida em que o juiz é uma pessoa em contato com os anseios e problemas sociais? E, a partir desse questionamento, como situar a questão da prevenção do juízo?
Conclusão
De forma preliminar, pode-se afirmar que a imparcialidade é um dos pilares fundamentais da jurisdição, um dos pressupostos do processo acusatório. Não fosse assim, cairia por terra o ideal do Estado de situar-se como um terceiro entre as partes, com a finalidade precípua de solucionar conflitos através da aplicação da lei. Por outro lado, entretanto, é também possível afirmar, desde já, a impossibilidade de se alcançar aquele ideal
de neutralidade típico do Estado liberal absenteísta, na medida em que, conforme lição de MIRANDA COUTINHO, o conhecimento, ou o saber, pressupõe a participação ativa do observador sobre o objeto investigado, o que, no processo penal, significa uma interação entre o juiz e as partes (MIRANDA COUTINHO, 2001).
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