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Os Dilemas da África Contemporânea: a persistência do neocolonialismo e os desafios da autonomia, segurança e desenvolvimento ( )

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Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 125-149, jul./dez. 2008 125

Os Dilemas da África Contemporânea: a

persistência do neocolonialismo e os

desafios da autonomia, segurança e

desenvolvimento (1960-2008)

André Luiz Reis da Silva*

Resumo

Este artigo discute a formação da África contemporânea, considerando as dificuldades apresentadas após a independência, como o neocolonialismo e a instabilidade política interna. Analisa também o papel do continente durante a Guerra Fria, para verificar o impacto com o seu fim, nos anos 1990, com a marginalização e posterior reafirmação do continente. Por fim, problematiza os novos interesses na África, na última década, e as possibilidades de autonomia do continente.

Palavras-chave: África Contemporânea. Relações Internacionais. Pós-colonialismo.

Passados cerca de cinqüenta anos do processo de independência, o continente africano ainda parece permanecer com os mesmos problemas e dificuldades da década de 1960. Os meios de comunicação de massa mostram a África como ela se fosse uma série de acidentes e conflitos, pois apenas nestes momentos ela é subitamente lembrada. O “esquecimento” intermitente da África até recentemente também alcançava a pesquisa acadêmica que, com exceção de poucos comprometidos pesquisadores, também projetava sobre o continente apenas as imagens do atraso, do exotismo e do pessimismo. Muitas vezes, a “lembrança” da África vinha acompanhada da construção, sobre ela, da noção de um paraíso perdido na história, subjugado e vitimizado pelas maquinações européias, em uma visão que desumanizaria o continente, pois não lhe atribuiria as contradições existentes em qualquer sociedade.

Na realidade, dada a incipiente produção de conhecimento sobre a África no Brasil, pouco sabemos sobre o dinamismo e a criatividade das sociedades africanas, na sua realidade objetiva e na busca de soluções para seus problemas. Sem a pretensão de esgotar o tema, este artigo tem como objetivo precisamente problematizar as interpretações correntes sobre os problemas da África contemporânea e verificar como o pós-Guerra Fria impactou o continente, bem como as recentes mostras de sua reafirmação no sistema mundial, após uma fase de marginalização e

* Doutor em Ciência Política e Mestre em História (UFRGS). Professor do Departamento de História da Faculdade Porto-Alegrense (FAPA), lecionando História da África Contemporânea no Curso de Pós-Graduação. Contato: reisdasilva@hotmail.com.

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desinteresse internacional. O objetivo inicial é trabalhar a hipótese de que o continente africano não pode ser inteiramente responsabilizado pelos problemas da África, nas décadas recentes, pois o passado colonial recente, o neocolonialismo e a dependência externa continuam afetando a região. Mesmo no contexto de uma nova disputa pelo continente, verificada na última década, pode-se afirmar que a África vem desenvolvendo estratégias para aumentar sua autonomia no sistema internacional, buscando a superação de seus problemas e dificuldades.

A África independente e a situação neocolonial:

primeiras dificuldades

As independências na África constituíram um importante marco na História mundial contemporânea. Trouxeram para o sistema mundial mais de 50 países independentes, que têm procurado influir neste sistema, buscando formas alternativas de desenvolvimento. Juntamente com os países asiáticos, formavam a maior parte do Terceiro Mundo, que tinham a característica comum de sofrerem com o subdesenvolvimento e com o passado colonial recente. Estes Estados foram incorporados à ONU, dando um novo perfil à Assembléia Geral, introduzindo novos temas e novas demandas de transformação do sistema internacional.

Mas os países afro-asiáticos também tinham mecanismos próprios de articulação. Em 1955, ocorreu, em Bandung (Indonésia), com a participação total de 29 países, a primeira Conferência Afro-Asiática, patrocinada por Indonésia, Índia, Birmânia, Paquistão e Ceilão. Nesta reunião, considerada o marco do terceiro-mundismo e do não-alinhamento, foi lançada a Carta de Bandung, um documento de dez pontos reivindicando a autodeterminação dos povos e criticando o racismo e o colonialismo. Inicialmente patrocinado pelos asiáticos, esse movimento colaborou para a descolonização africana, que estava ocorrendo.

Em 1961, realizou-se em Belgrado (Iugoslávia), a Primeira Conferência dos Países Não-alinhados, que convergiam na busca de um caminho próprio nas relações internacionais. Tendo como principais articuladores Tito (Iugoslávia), Nasser (Egito), Nehru (Índia) e Sukarno (Indonésia), os participantes da reunião elaboraram as bases de sua orientação política. Eles rejeitavam a divisão do mundo em dois blocos feita pela guerra fria e postulavam uma Nova Ordem Econômica Internacional mais justa. O Movimento dos Não-Alinhados fez reuniões sucessivas, aprofundando suas convicções políticas (luta contra o imperialismo, colonialismo, neocolonialismo, racismo, bem como a qualquer tipo de agressão ou dominação externa) e debatendo questões econômicas, como o preço das matérias primas, o desenvolvimento e a dívida externa. Diversos países africanos participaram ativamente destas atividades.

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Na África, a maioria das independências foi conquistada na década de 1960. Somente em 1960, o “ano africano”, mais de uma dezena de países tornaram-se independentes. Na África inglesa, a descolonização teve um caráter em geral mais pacífico (ou menos conflituoso) do que na área de colonização da França, que tentava retardar o processo através de infrutíferas mudanças e tentativas de integração das antigas colônias, como a Conferência de Brazzaville, da qual nenhum africano participou, mostrando o caráter unilateral da negociação francesa. Na África Austral, persistiram os bastiões brancos na África do Sul (sob o regime de segregação racial do Apartheid, desde 1948), na Rodésia do Sul e nas colônias portuguesas de Angola e Moçambique. A descolonização da África Portuguesa só ocorreria em 1974-1975, após longo processo de luta armada e da Revolução dos Cravos em Portugal.

As independências mostraram as fragilidades dos novos países, como as fronteiras herdadas do período colonial, a ausência de quadros qualificados em número suficiente para ocupar postos na economia e na administração dos Estados Independentes, bem como a situação neocolonial imposta pelas ex-metrópoles. O neocolonialismo caracteriza-se pela relação de dependência e pela manutenção da exploração entre os países desenvolvidos e subdesenvolvidos, numa relação de troca desigual. Constituem a condição a que a maioria das ex-colônias submeteram-se os tratados e acordos bilaterais com a antiga potência colonial ou com os EUA, referentes à cultura, economia e acordos militares. Aos países africanos estavam destinadas as atividades econômicas do período colonial. Em 1990, dois terços dos 450 milhões de africanos continuavam a viver da terra, num quadro que mescla produção para subsistência e superexploração capitalista.

Nesse sentido, o presidente de Gana e militante da unificação da África, Kwame N´Krumah, já denunciava, no início dos anos 1960, a situação neocolonial. Para o líder africano, o neocolonialismo representava o imperialismo em sua fase final e “mais perigosa”, cuja essência é a de que todo o Estado que está sujeito ao neocolonialismo é teoricamente independente e tem todos os adornos exteriores da soberania internacional. Entretanto, seu sistema político e econômico é dirigido do exterior. Continuando com N´Krumah:

O neocolonialismo é a pior forma de imperialismo. Para aqueles que o exercem, significa o poder sem a responsabilidade e para aqueles que o sofrem, significa exploração sem alívio. Nos dias do antigo colonialismo, a potência colonial tinha pelo menos que explicar e justificar, as ações que realizava no exterior. Na colônia, aqueles que serviam à potência imperial dominante podiam pelo menos esperar a sua proteção contra qualquer ação violenta dos seus opositores. Com o neocolonialismo, nenhum dos dois casos acontece.1

1 N´Krumah, Kwame. Neocolonialismo: último estágio do imperialismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 4.

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A retirada dos quadros de comando das ex-colônias provocou um vácuo de poder, em que as disputas por sua ocupação ocorriam entre grupos étnico-lingüísticos locais e grupos econômicos com interesses específicos. As fronteiras deixadas pelos colonizadores não correspondiam aos recortes étnicos e históricos pré-coloniais. Nesse sentido, o primeiro grande teste da África independente centrou-se na questão da estabilidade das fronteiras, havia dificuldades para efetivar a concepção pan-africana de Estados Unidos da África ou para as federações ou semi-federações criadas pelas potências colonizadoras. Na Organização da Unidade Africana (OUA), criada em 1963, acabou prevalecendo a tese da cooperação e não da integração entre os países. As incipientes organizações regionais, de expressão predominantemente inglesa ou francesa, desenhavam distintos projetos para a cooperação. Conforme Sombra Saraiva:

Para as primeiras, a independência política conduziria naturalmente o continente à soberania econômica. Esse era o passo mais seguro em direção à cooperação e integração continentais. Para os países de expressão francesa, a manutenção de laços com a metrópole associando-se a seus interesses parecia uma boa forma para alcançar a gradual integração continental.2

A questão é que as colônias tinham recursos econômicos muito diferentes. As regiões com mais recursos não queriam se associar às mais pobres. Um exemplo é a Costa do Marfim, com plantações de cacau, produção de marfim e fácil acesso às rotas marítimas. Na África equatorial, o Gabão (rico em petróleo e minerais) assumiu posição similar. Pouco importava se Nkruma de Gana, Senghor do Senegal ou Modibo Keita do Mali pensassem em unidades maiores. O fracasso das tentativas de consolidar agrupamentos políticos maiores durante os primeiros anos da independência africana foi, entretanto, compensado por um grau notável de sucesso na prevenção da desintegração das unidades territoriais básicas criadas durante o período colonial. Assim, embora presenciando diversas guerras separatistas (Congo/Zaire, Nigéria, Sudão, etc.), os países africanos conseguiram, em grande parte, manter suas unidades territoriais.

As análises superficiais sobre os conflitos africanos reforçaram o clichê de explicar a instabilidade política da África como centralmente oriundas das fronteiras herdadas do colonialismo, que seriam “fronteiras artificiais”. Em primeiro lugar, o conceito de “fronteiras artificiais” deve ser problematizado. Em História, o conceito de fronteira não-artificial perde sentido, pois todas as fronteiras dos Estados modernos foram historicamente construídas (e, portanto, poderiam ser diferentes), a partir de uma afirmação interna e externa, normalmente com o recurso da

2 SARAIVA, José Flávio Sombra. Cooperação e Integração no Continente africano: dos sonhos pan-africanistas às frustrações do momento. Revista Brasileira de Política Internacional. N. 36 (2), 1993, p. 33.

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violência na sua definição. Entretanto, como a História não se repete, os Estados africanos não estão passando por processo equivalente aos europeus na Idade Moderna, já que ocorrem em outro contexto espaço-temporal, e podem, exatamente por isso, superar os problemas deixados nos Estados europeus, construindo soluções criativas, flexíveis e adaptadas, como Estados multinacionais e multiculturais.

Em segundo lugar, as fronteiras africanas foram, de fato, em grande parte, herdadas do colonialismo. Mas a implantação das fronteiras coloniais também havia sido resultado de acordos com chefes políticos africanos que tinham uma região sob seu domínio ou da luta colonialista contra os povos de diversas regiões que não queriam estabelecer os acordos ou a eles se impunham. Dessa forma, a implantação colonialista européia na África não conseguiu anular completamente a realidade africana preexistente. Assim, as fronteiras africanas atuais são o resultado de complexas interações entre as estruturas estatais, étnicas e territoriais africanas preexistentes, das transformações provocadas pelo imperialismo e das próprias opções tomadas pelos novos governos africanos quando da independência. Conforme Wolfang Dopkce

Os Estados pré-coloniais tinham, na sua composição e estrutura, as mesmas características [multidão de etnias diferentes]: cortavam através de suas fronteiras, grandes regiões culturais e lingüísticas e não se distinguiam pela homogeneidade étnica. Nesse sentido, a fronteira moderna na África parece até menos ‘artificial’. A multietnicidade e as culturas e etnias politicamente divididas representam uma forte tradição africana desde a época pré-colonial, sobrevivendo até os dias atuais.3

Nesse sentido, as principais fontes de instabilidade política da África, que resultaram em conflitos, não se originam principalmente na disputa de “fronteiras étnicas”, mas de interesses geopolíticos e geoeconômicos, tanto localizados, como potencializados por interesses estrangeiros. Conforme Samir Amin, os povos da periferia, separados por fronteiras na maioria dos casos arbitrárias e artificiais, não constituem, muitas vezes, nem uma nem várias nações. Constituem uma ou várias etnias em momentos diversos de agregação e desenvolvimento, em processo de formação nacional. O problema da fusão de etnias em nações nas sociedades periféricas mostra o caráter extrovertido da formação desses países, no qual a burguesia e suas elites tradicionais, ligadas aos agentes imperialistas externos, formam uma economia desarticulada internamente. A dominação internacional reflete-se na estruturação interna desses países dependentes e, “as lutas de classes manifestam-se freqüentemente como lutas étnicas, podendo, pois, ser manipuladas do interior e do exterior por

3 DOPCKE, Wolfgang. A vida longa em linhas retas: cinco mitos sobre as fronteiras na África Negra. Revista Brasileira de Política Internacional. N 42, vol. 1, 1999, p. 99.

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classes reacionárias e forças imperialistas”.4 Nesse sentido, a divisão dos

países em unidades menores, cada uma com uma etnia, não resolveria o problema básico do subdesenvolvimento, da superexploração do campo, da dependência externa nos países africanos e das enormes fraturas sociais nestas localidades.

Depois da descolonização, a África foi o continente com o maior número de conflitos armados. Desde 1955, apenas Tunísia, Costa do Marfim, Benin, Guiné Equatorial, Gabão, Botswana, Malaui e Madagascar não vivenciaram conflitos armados, representando um quinto dos países africanos. Nestes conflitos armados, a maioria resultou em conflitos internos aos países, principalmente levantes contra o regime no poder. Embora muitos conflitos internos tivessem simpatia e apoio dos países vizinhos, raramente ocorreu uma guerra aberta entre dois Estados africanos. Das cerca de 30 disputas fronteiriças ocorridas da descolonização até meados dos anos 1990, 25 não envolveram violência, mas negociações diplomáticas.5

Em pouco tempo, também ocorreu uma verdadeira enxurrada de golpes militares (1965-1966), por exemplo, na Nigéria, Argélia, Zaire, Gana, República Centro-Africana, Alto Volta e Burundi. Em 1967, a maioria das novas nações africanas não estava mais nas mãos de legisladores eleitos, mas de regimes militares ou de governos civis autoritários. Em muitos casos, ante a latente pressão das forças centrífugas nestes jovens países, o exército constituía a única organização com base nacional que poderia garantir a preservação da integridade do país durante o período inicial da independência.

O imperialismo tardio e a descolonização da África

portuguesa

Os portugueses mantiveram, no continente africano, um colonialismo antigo e prolongado. Foram os primeiros a implantar o domínio europeu na África, na época das grandes navegações, no século XV. Foram uns dos últimos a sair, lutando para prolongar ao máximo o imperialismo colonialista. O colonialismo português na África foi constituído pelas colônias de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.

Na realidade, quando da descolonização, na década de 1970, Portugal consistia apenas em um país periférico e dependente (embora europeu), procurando manter o que considerava uma de suas últimas possibilidades de potência. Nesta época, restavam apenas as lembranças

4 AMIN, Samir. Classe e nação: na História e na crise contemporânea. Lisboa: Moraes editores, 1981, p. 149.

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do pioneirismo português nos mares, nos séculos XV e XVI, montando um gigantesco aparelho colonial e comercial. No contexto europeu da década de 1970, o imperialismo colonialista e o fascismo salazarista português destoavam das novas tendências do capitalismo internacional, embora tivesse sentido sua existência na manutenção dos bastiões brancos conservadores na África, representando resistência ao socialismo africano e ao movimento terceiro-mundista.

Desde o fim do tráfico de escravos, em meados do século XIX, o colonialismo português dedicava-se à exploração mineral e agrícola de suas colônias, bem como ao fornecimento de mão de obra para as empresas mineradoras na África Austral. Em seus territórios, os portugueses serviam também como intermediários de investimentos diretos de países e grupos imperialistas mais desenvolvidos, como alemães, belgas e ingleses, bem como posteriormente de empresas sul-africanas. A administração colonial portuguesa não procurou criar elites locais, nem desenvolver elementos de autogoverno assimilados. Conforme o historiador africano Joseph Ki-Zerbo escreveria na década de 1970, “poder-se-ia dizer que a colonização portuguesa é a colonização francesa sem a inteligência e a laicidade”.6

Embora o governo português se proclamasse defensor da democracia racial e utilizasse o discurso do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre, justificando o colonialismo com a idéia de que a obra “redentora-civilizatória” de construção de uma comunidade “afro-luso-brasileira” ainda não estava completa nas colônias africanas, o colonialismo português também foi erguido sobre um racismo evidente. Na Lei Colonial de 1930, o governo português dividiu a população em indígenas e não-indígenas, estas compreendendo os brancos e os negros assimilados, cerca de 3% da população. Em 1953, os assimilados receberam cidadania portuguesa, numa estratégia divisionista de cooptação de uma pequena elite educada nos moldes ocidentais. Enquanto, nos anos 1960, rapidamente foram ocorrendo as independências nas colônias inglesas e francesas (tanto negociadas como através de lutas de libertação), Portugal procurava resistir às pressões e manter as colônias. É neste contexto que surgem os movimentos armados de libertação das colônias portuguesas.7

Portugal vivia, na época das descolonizações, a ditadura salazarista do Estado Novo, um regime inspirado no fascismo, institucionalizado, em 1933, por Antonio de Oliveira Salazar. O regime salazarista havia sobrevivido à Segunda Guerra Mundial (permaneceu neutro na guerra) e recebido apoio internacional, como uma espécie de bastião anti-comunista, tanto na península ibérica como em suas extensões coloniais. A recusa em conceder as independências para as colônias africanas fez aumentar a presença militar portuguesa na África, a partir de 1961, a qual não diminuiu com a ascensão de Marcelo Caetano ao poder português, em

6 KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra. Lisboa: Europa América, volume 2, p. 272. 7 LINHARES, Maria Yedda. A luta contra a metrópole: Ásia e África. 1945-1975. São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 100.

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1968. Em 1969, a maior parte do exército português estava mobilizado na África, atingia, em 1972, a marca de 140 mil homens e comprometia mais da metade do orçamento metropolitano para a rubrica “defesa e segurança”. Portugal beneficiava-se da OTAN, recebendo da aliança atlântica armamentos modernos que, em princípio, deveriam ser utilizados na defesa do território português.8

A escalada da guerra colonial, especialmente em Angola, foi um dos principais fatores de desgaste do regime do Estado Novo, levando à insurreição armada de 25 de abril de 1974, que deu início à “Revolução dos Cravos” e ao processo de descolonização. Neste momento, oficiais portugueses de média patente derrubaram o governo de Caetano, provocando o ressurgimento de diversos grupos que disputavam o poder e mergulharam o país num clima de agitação revolucionária. Com a Revolução dos Cravos, foram realizadas as negociações para oficializar a independência das colônias africanas, as quais o governo português naquele momento pouco controlava. Estava encerrando um dos últimos remanescentes do fascismo do entre-guerras e do colonialismo imperialista. Em Angola, a colônia mais importante para os portugueses, a descolonização foi um processo complexo e emblemático. Em 1956, foi fundado, por Agostinho Neto, o MPLA (Movimento para a Libertação de Angola) de inspiração marxista e que buscava ampla base nacional e popular, embora tivesse mais força nas zonas urbanas e no centro do país. Em 1962, foi fundado a FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola), dirigido por Holden Roberto. Baseado no Norte de Angola, tinha bases étnicas e relações com o Zaire. Em 1966, um dissidente do FNLA, Jonas Savimbi, criou a UNITA (União Nacional pela Independência Total de Angola), com base de atuação no Sul de Angola. Os três grupos, além de lutarem contra Portugal, também lutavam entre si. Em 1971, a UNITA fechou um acordo secreto de colaboração com o comando português da Zona Militar Leste (ZML), a “operação madeira”, através da qual ajudou as forças armadas portuguesas no combate aos outros dois movimentos. Este acordo manteve-se até o início de 1974, quando recomeçaram os combates entre a UNITA e as forças portuguesas.

Em janeiro de 1975, os Acordos de Alvor formataram um governo de transição em Angola, estabelecendo um ministério paritário entre os três movimentos, bem como a realização de eleições. O processo eleitoral acabou não ocorrendo, com o reinício dos conflitos entre os três grupos. A FNLA e a UNITA uniram-se para combater o MPLA, que acabou saindo vitorioso, com Agostinho Neto proclamando a República, em novembro de 1975. A FNLA se desintegraria pouco tempo depois, restando à UNITA, apoiada por África do Sul, China e EUA, o combate ao governo federal, que recebia apoio da URSS, de Cuba e dos demais países socialistas e de alguns governos africanos. O governo angolano teve de lutar, por quase duas

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décadas, até conseguir pacificar o país, com a morte, em combate, de Jonas Savimbi, em fevereiro de 2002.

Os nacionalistas de Guiné Bissau e Cabo Verde fundaram, em 1953, um movimento de defesa da descolonização, o PAIGCV (Partido Africano para a Independência de Guiné Bissau e Cabo Verde), dirigido por Amílcar Cabral que, em 1963, iniciou a luta armada. Através de uma guerra popular prolongada, o PAIGCV foi paulatinamente conquistando o território, isolando os portugueses. Nem mesmo o assassinato de Amílcar Cabral, no início de 1973, impediu a declaração de independência, em setembro do mesmo ano. Em 1974, Portugal reconheceu o novo Estado. As ilhas de Cabo Verde ganharam, em 1975, o status de país independente de Guiné Bissau.

Em São Tomé e Príncipe, os nacionalistas fundaram, em 1960, o CLSTP (Comitê de Libertação de São Tomé e Príncipe) que agia na defesa da descolonização e da reforma agrária. Em 1972, o CLSTP foi transformado em MLSTP (movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe), que realizou intenso trabalho de conscientização popular e articulação internacional com os movimentos das outras colônias portuguesas, pelo qual chegaram a constituir a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colônias Portuguesas (CONCP). O MLSTP foi o movimento que negociou o processo de independência em São Tomé e Príncipe, em 1975, após a Revolução dos Cravos. Em Moçambique, o movimento de descolonização criou a Frelimo, em 1962, que reunia diversas tendências, mas cujo programa defendia uma revolução popular socialista. Iniciada no norte do país, a guerrilha foi paulatinamente avançando no território, concentrando os portugueses ao sul, os quais sobreviviam graças à ajuda militar da OTAN. Em 1975, com a Frelimo já vencedora, foram assinados os Acordos de Lusaka, reconhecendo a independência. O governo passou para o líder da Frelimo, Samora Machel, que implantou um modelo socialista de desenvolvimento. Além das dificuldades econômicas, Machel precisou enfrentar as ações da Resistência Nacional Moçambicana, Renamo, um grupo anticomunista apoiado pela África do Sul. Samora Machel morreu em 1986, num desastre aéreo, e foi sucedido pelo chanceler Joaquim Chissano. As lutas entre o governo e a Renamo devastaram o país.9

A descolonização portuguesa foi um dos fatos de maior importância na África negra, nos anos 1970, com significados regionais e internacionais. Em primeiro lugar, tradicionalmente se coloca que a Revolução dos Cravos foi a causa imediata das independências das colônias portuguesas. Mas também é importante refletir que dialeticamente as lutas anticoloniais contribuíram para a queda do regime salazarista em Portugal, perpetrada pelo próprio exército, desgastado na manutenção de um colonialismo agonizante. Dessa forma, os africanos, através de sua luta, contribuíram para as mudanças políticas ocorridas na própria metrópole.10

9 RIBEIRO, Luiz Dario. Descolonização da Ásia e da África. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 33, jan-jul 2003, p. 80.

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As ex-colônias portuguesas buscaram inspiração no marxismo e aproximaram-se do bloco socialista. Entretanto, estruturalmente não conseguiram fugir inteiramente à condição neocolonial na relação com as antigas potências européias. Embora as jovens nações africanas de “expressão portuguesa” tivessem como princípio o modelo socialista e procurassem aplicar um programa que envolvia nacionalização das empresas, reforma agrária, alfabetização em massa e grandes obras públicas, as dificuldades eram enormes. Além de conflitos e dificuldades internas, o neocolonialismo (ou imperialismo sem colonização) manteve-se, na medida em que relegava às jovens e frágeis nações africanas o papel de economias fornecedoras de matérias-primas, numa situação de troca desigual. Entretanto, para a esquerda mundial, tornava-se mais um exemplo da via socialista de busca da autonomia na luta contra o imperialismo. No contexto da Guerra Fria, significava a ampliação da presença soviética no continente, o que ampliava a margem de manobra dos africanos e o interesse estratégico das grandes potências.

A Guerra Fria e crise econômica na África

Os conflitos africanos foram alimentados pela Guerra Fria, pois a disputa sistêmica entre EUA e URSS buscava aliados na África. Vários países (como a França) mantiveram bases aéreas ou navais no Continente, reforçando o comércio internacional de armas. De fato, a mera presença da URSS e de seus aliados foi de grande importância para os africanos e sua relação com o mundo ocidental, configurando um importante espaço de barganha. A presença soviética na região estimulava os EUA a apoiarem o regime ditatorial de Mobutu no Zaire, a guerrilha da Unita em Angola e o Apartheid na África do Sul.

A independência das colônias portuguesas provocaram, na África Austral, uma reviravolta na geopolítica regional, na década de 1970. Após a descolonização da África portuguesa, em 1974/75, formou-se um grupo de países de orientação progressista, denominado países da linha de frente (envolvendo Zâmbia, Angola, Botsuana, Moçambique e Tanzânia) cujo objetivo central era a crítica aos regimes racistas da Rodésia e da África do Sul, que ocupava ainda a Namíbia e através dela promovia ataques aos outros países na região. Com a ascensão de um governo negro na Rodésia (que trocou então o nome para Zimbabwe), em 1980, a África do Sul foi ficando mais isolada na região. Apoiados pela URSS, Cuba e outros países socialistas, os países da linha de frente tinham como objetivo a eliminação do Apartheid e da agressão sul-africana, bem como o desenvolvimento das jovens nações africanas de forma independente.

Para Cuba, a presença na África significava poder participar do grande jogo das relações internacionais no contexto da Guerra Fria.11 De 11 CHALIAND, Gerard. A luta pela África: estratégia das grandes potências. São Paulo: Brasiliense, 1982.

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fato, os cubanos estiveram presentes na política africana. Em 1961, um navio cubano levou armas à guerrilha argelina e voltou carregado de feridos e órfãos. Depois, tropas cubanas foram à Argélia para defender suas fronteiras ameaçadas. De 1964 a 1965, o governo cubano enviou tropas para o Congo e o comandante Ernesto Che Guevara participou das operações, enquanto outro grupo foi enviado ao antigo Congo-Brazzaville. Em 1966, os cubanos prestaram sua ajuda — militar, médica e material — às forças antiimperialistas do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Os cubanos também combateram junto aos revolucionários de Moçambique e da Etiópia e ajudaram os nascentes governos independentes a fundarem e treinarem suas forças armadas. De 1975 a 1990, milhares de cubanos lutaram ao lado do governo angolano.

No plano inter-regional, ressalte-se a cooperação entre os africanos e os árabes, em especial após o choque petrolífero de 1973. A solidariedade dos países africanos à chamada questão árabe contra Israel e a participação de nove países da Organização da Unidade Africana na Liga Árabe contribuíram para essa aproximação. Enquanto o Banco Árabe para o Desenvolvimento Econômico da África (BADEA) financiava diversas ações no continente africano, os países árabes exportadores de petróleo tentavam atenuar o aumento de preços para os consumidores africanos. Em 1977, ocorria a Conferência de Chefes de Estado da OUA e da Liga Árabe no Cairo, cujos princípios elencados eram o não-alinhamento, a solidariedade afro-árabe e a condenação ao sionismo, ao colonialismo e ao apartheid. Entretanto, a cooperação afro-árabe foi muito inferior, em termos de recursos, ao que os países africanos imaginaram e ainda sofreu as vicissitudes dos conflitos no Oriente Médio, que paralisaram muitas vezes os projetos de cooperação.12

Se, estrategicamente, o continente africano ganhava espaços e margens de manobra, foi na economia que suas fragilidades mais se ressaltaram. Muitas oscilações na história econômica recente da África ocorreram devido às descobertas sucessivas de petróleo em alguns países e das flutuações de seu preço no mercado mundial. Países como Líbia e Nigéria viram suas receitas crescerem enormemente em função da venda do petróleo. Enquanto as crises do petróleo aumentaram as rendas dos países exportadores (incluindo também Argélia, Gabão, Costa do Marfim, Angola e Congo), para os países africanos, que dependiam das importações de petróleo, elas foram um verdadeiro desastre. A crise também veio para os países exportadores, quando o preço baixou, pois não puderam manter seus orçamentos. Na Nigéria, durante esses anos, a renda per capita recuou a menos de um terço do patamar que havia atingido no começo do da crise do petróleo. O endividamento externo alcançou enormes cifras. Em 1988, o serviço da dívida dos países africanos tropicais correspondia em média a

12 SARAIVA, José Flávio Sombra. Cooperação e Integração no Continente africano: dos sonhos pan-africanistas às frustrações do momento. Revista Brasileira de Política Internacional. N. 36 (2), 1993, p. 38-39.

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47% de suas exportações. A fonte quase única de empréstimos eram o FMI e o Banco Mundial, que exigiam o ajuste estrutural nos moldes do neoliberalismo, com privatizações, diminuição dos gastos do Estado e abertura econômica.13

Ainda em 1981, o Banco Mundial lançou um documento, conhecido como Relatório Berg. O objetivo deste relatório era defender a tese de que os problemas econômicos e de desenvolvimento na África tinham causas internas. Criticava profundamente os governos africanos, em especial aqueles que teriam incentivado a produção industrial em detrimento das políticas de proteção à agricultura, bem como o “excesso” de Estado na economia. Praticamente inocentando as variáveis externas, o relatório concluía que a solução estava na substituição das “más políticas” pelas “boas políticas”. Seria apenas uma questão de escolha racional. Na mesma época, os próprios governos africanos questionaram a leitura internalista e estado-minimalista da crise africana. Em 1981, foram publicados os resultados do encontro de chefes de Estado africanos que havia ocorrido em Lagos. O Plano de Ação de Lagos descreveu a crise africana como uma série de choques externos, em especial a deterioração dos termos de troca, o pagamento do serviço da dívida externa e o protecionismo dos países desenvolvidos. A solução não estaria nas políticas de mercado, mas na capacidade de os Estados africanos mobilizarem recursos nacionais para a integração e a cooperação econômica.14

Os anos seguintes foram, porém, de crise econômica e fome na África. Em 1985, ocorreu um novo encontro da Organização da Unidade Africana (OUA) , em Adis Abeba, para discutir o tema, com o objetivo de preparar um plano de ação em conjunto com a ONU. No encontro foi produzido um documento, o Africa’s Priority Programme for Economic Recovery, 1986–1990 (APPER), no qual os governantes africanos aceitavam a tese da responsabilidade interna da África nos problemas do continente e concordavam em implantar as reformas liberais preconizadas pelo Banco Mundial, em troca especialmente da renegociação da dívida externa com a comunidade internacional, bem como a promessa de buscar soluções para o problema da deterioração dos preços das matérias-primas. O neoliberalismo afirmava-se no continente.15

Na realidade, os custos da crise econômica mundial das décadas de 1970/1980 foram, em grande parte, repassados para o Terceiro Mundo. Os países ricos conduziram então uma política de redução das importações e os países exportadores de matéria primas tiveram seus recursos diminuídos em virtude da queda dos preços e do volume das exportações. Os bancos privados com sede em países desenvolvidos e as instituições de

13 OLIVER, Roland. A experiência africana: da pré-história aos nossos dias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, p. 278.

14 ARRIGUI, Giovanni. The african crisis: World systemic and regional aspects. New Left Review, n. 15, maio/junho 2002, p. 07-08

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crédito internacionais, como o Banco Mundial e o FMI, elevaram as taxas de juros, provocando a explosão das dívidas externas. Para pagar o serviço da dívida, os países africanos tiveram de exportar cada vez mais. Como são exportadores basicamente de matérias primas e produtos pouco elaborados, sua oferta aumentou no mercado mundial, desvalorizando com isso seus preços. Deve-se levar em conta também a revolução tecnológica, com sua tendência à desvalorização de matérias primas. Neste contexto, a década de 1980 representou, do ponto de vista econômico, a década perdida para a África, houve a redução do PIB do continente e a exclusão de regiões inteiras do mercado mundial. Nesse contexto, ocorreu a bifurcação do Terceiro Mundo. Enquanto os países do Leste Asiático (em especial os tigres asiáticos) cresciam a taxas elevadas, assistia-se à estagnação e ao declínio econômico em amplas áreas da América Latina e do continente africano.

A África no pós-Guerra Fria: marginalização e conflitos

micro-centrados

No final da década de 1980, os sinais do fim da Guerra Fria começaram a aparecer. Depois da derrota da batalha de Cuito-Cuinavale sofrida pelos Sul-Africanos para as tropas cubano-angolanas em 1988, os EUA e a África do Sul decidiram negociar a pacificação. Os Estados Unidos propuseram a retirada cubana em troca da independência da Namíbia (que era ocupada pela África do Sul e utilizada como ponta de lança para atacar Angola). Em 1989, os cubanos retiraram-se de Angola e da Etiópia e foi iniciado o processo de independência da Namíbia, concluído em 1990. O fim da Guerra Fria também influiu na queda dos regimes de partido único apoiados pelo Ocidente, enquanto ocorria ou a derrubada dos regimes marxistas ou pelo menos a conversão de parte de seus dirigentes ao liberalismo. O governo sul-africano promoveu a libertação do líder negro Nelson Mandela, em 1990, e o fim do Apartheid, em 1991.

O fim da Guerra Fria não trouxe, entretanto, a solução para os conflitos e problemas africanos, pois representou para o continente a perda de importância estratégica e da capacidade de barganha. Assim, a África passou a sofrer os efeitos da marginalização e da desestrategização do continente por parte das grandes potências, que diminuíram a cooperação e os instrumentos de ajuda. Retirados os esteios que garantiam algum “equilíbrio” regional, ocorreu o desencadeamento de violentos conflitos, em grande parte “tribalizados”: carregados de forte conteúdo étnico, com armas menos modernas, com financiamentos privados (empresas multinacionais, senhores da droga, velhas elites oligárquicas) ou governamentais, nacionais e internacionais.

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Assim, ocorreu, na década de 1990, uma série de conflitos no continente africano: os conflitos em Ruanda e Burundi, na Somália, na Libéria, Zaire, Serra Leoa e Nigéria, entre outros. Com dificuldades, a Organização da Unidade Africana criou forças de Paz para barrar conflitos como na Libéria e em Serra Leoa. Entre as intervenções da ONU, é importante ressaltar a na Somália, em 1992, que tinha como objetivo “restaurar a esperança no Chifre da África” através da liquidação dos conflitos clânicos que ocorriam no país, desde a queda de Siad Barre em 1991. A operação, com custo elevado para a ONU e para os EUA, transformou-se em um fracasso, quando tentaram capturar o General Mohammed Aiddid, líder da Aliança Nacional Somali. Após a morte de vários capacetes azuis, os EUA e a ONU negociaram, em 1994, sua retirada do país, em troca de um piloto militar norte-americano que havia sido capturado. A crise na Somália persiste até os dias de hoje.

Na esteira das crises dos anos 1990, foi o conflito entre hutus e tutsis, que envolveu Ruanda, Burundi e o Zaire, o que mais impactou, pelas suas dimensões e conseqüências. O massacre mútuo entre tutsis e hutus (com quase um milhão de mortos) parecia um conflito “étnico”, mas deitava raízes na forma da colonização belga, que havia fomentado a diferença entre as etnias como forma de manter o aparelho colonial. A queda de Mobutu no Zaire, em 1997, teve um significado estratégico, pois privou a França de um importante aliado no continente, que apoiava as políticas ocidentais contra os governos progressistas. Em 1997, as tropas da Aliança das Forças Democráticas para a Libertação (AFDL) derrubaram o presidente do Zaire (Mobuto) e proclamaram a República Democrática do Congo (RDC) com Laurent-Désiré Kabila como presidente. Em agosto de 1998, militares banyamulenge (congoleses tutsis de origem ruandesa) lançaram um movimento de rebelião no Kivu, no conflito conhecido como Segunda Guerra do Congo, que teve a presença de milhares de soldados da ONU na tentativa de debelar o conflito.

Em janeiro de 2001, Laurent-Désiré Kabila, assassinado, foi substituído por seu filho Joseph. De fevereiro de 2002 a abril de 2003, ocorreu o diálogo intercongolês em Sun City (África do Sul) entre o governo, os rebeldes, a sociedade civil e a classe política, período no qual foram assinados acordos de paz entre a RDC, Ruanda e Angola. Em 2003, ocorreu a formação de um governo de transição chamado de União Nacional, composto pelo presidente Joseph Kabila e por quatro vice-presidentes, de diferentes tendências políticas do país. Essa Guerra do Congo (1998-2003) tinha, como pano de fundo, o controle de minerais estratégicos, como do Coltan, combinação de duas palavras que correspondem aos minerais columbita e tantalita, dos quais se extraem metais utilizados na fabricação de equipamentos eletrônicos avançados. Estes metais são considerados altamente estratégicos e 80% de suas reservas encontram-se na República Democrática do Congo.

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A Libéria, com seus quase três milhões e meio de habitantes, é a república mais antiga da África negra. De 1997 até agosto de 2003, foi dirigida pelo ex-chefe de guerra Charles Taylor, quando foi substituído pelo vice-presidente, Moses Blah. Este país já havia mergulhado, de 1989 a 1997, em uma longa guerra civil, liderada por Charles Taylor, então chefe de um dos bandos armados. O conflito entre diferentes grupos guerrilheiros deixou milhares de mortos e exilados. Desde 1999, o regime de Taylor enfrentava a rebelião dos Liberianos Unidos pela Reconciliação e a Democracia, LURD, quando alcançaram e cercaram a capital Monróvia. Em agosto de 2003, Taylor retirou-se do país, sob a proteção das tropas da União Africana.

Neste contexto, é importante reiterar que as análises que explicam os conflitos e a violência pela mera existência de diferentes identidades étnicas religiosas e culturais, na realidade obscurecem o caráter dinâmico e multifacético das identidades étnicas, assim como a capacidade de muitos grupos étnico-culturais de conviver pacificamente em grande parte da África e do mundo. Além disso, o discurso essencialmente “étnico” ou “identitário” da crise esconde a atuação e a responsabilidade dos diferentes atores africanos e internacionais que, em sua luta por poder e recursos, instrumentalizaram as identidades étnicas e culturais. Mascara também as profundas fraturas sociais herdadas do colonialismo e retro-alimentadas no neocolonialismo e pelas disputas das grandes potências.

A privatização de muitos conflitos também deve ser registrada. Como afirma Christopher Clapham, as relações externas do continente foram privatizadas, não somente através da subversão pelos interesses privados dos políticos internos e externos ao continente, mas também através do deslocamento das relações tradicionais mantidas pelo Estado, oriundas do processo de globalização, com a presença e interferência das agências e órgãos internacionais, organizações não-governamentais, igrejas, etc. Além disso, verifica-se que muitos conflitos africanos têm origem ou são alimentados por interesses de empresas estrangeiras em obter ou controlar determinadas concessões para exploração econômica (sobretudo extrativismo mineral e petrolífero).16

O Fim do Apartheid e a nova África do Sul: o reencontro

com o continente

Em abril de 2004, foram realizadas as terceiras eleições federais na África do Sul desde que a elite branca do país, depois de 46 anos de regime de Apartheid, negociou sua saída do poder, em 1994, quando foi eleito presidente do país o líder da resistência negra, Nelson Mandela. Nesses

16 CLAPHAM, Christopher. Africa and the international system: the politics of state survival. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p. 256.

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dez anos, a África do Sul demonstrou a consolidação de um novo regime pós-Apartheid que, embora não tenha provocado as transformações esperadas no regime social vigente no país, tem sinalizado importantes mudanças com efeitos internos e internacionais, que, de certa forma, marcam a transição para uma reafirmação da África no sistema mundial. Situada na rota comercial para as Índias e habitada por diversos grupos negros, a região foi colonizada, a partir do século XVI, principalmente por imigrantes holandeses (chamados bôeres ou africânderes), que desenvolveram uma língua própria, o africâner. Durante o século XIX, ocorreu uma série de conflitos entre os ingleses (que foram ocupando a região), os negros e os bôeres. Com os choques, os bôeres emigram para o nordeste (em 1836), fundando duas repúblicas independentes, Transvaal e Estado Livre de Orange. A entrada dos ingleses no Transvaal resultou na Guerra dos Bôeres, que culminou com a vitória britânica. A partir de 1911, a minoria branca, composta de africânderes e descendentes de britânicos, promulgou uma série de leis que consolidou seu poder sobre a população negra. A política de segregação racial do Apartheid (separação, em africâner) foi oficializada em 1948, com a chegada ao poder do Partido Nacional (PN). O Apartheid impedia o acesso dos negros à propriedade da terra e à participação política e os obrigava a viver em zonas residenciais segregadas, proibindo-se inclusive casamentos e relações entre pessoas de raças diferentes.

Na década de 1950, a oposição ao Apartheid ganhou força, quando o Congresso Nacional Africano (CNA), organização negra criada em 1912, deflagrou uma campanha de desobediência civil. O Massacre de Sharpeville, ocorrido em 1960, no qual a polícia matou 67 negros que participavam de uma manifestação, provocou protestos no país e no exterior. O governo declarou o CNA ilegal e prendeu, em 1962, seu principal líder, Nelson Mandela, o condenando à prisão perpétua. Enquanto isso, em maio de 1963, o Parlamento da África do Sul aprovou um projeto de Lei que previa a tortura para os detidos. Na década de 1970, a política do Apartheid recrudesceu. Uma série de leis classificava e separava os negros em grupos étnicos, na tentativa de confiná-los em territórios denominados bantustões.17

Com o fim do império colonial português na África (1975) e a queda do governo de minoria branca na Rodésia, atual Zimbabwe (1980), o domínio branco na África do Sul entrou na defensiva. Em 1976, uma nova onda de protestos culminou com o massacre de Soweto. Na década de 1980, o fim da Guerra Fria desestrategizou o Apartheid, as pressões internas e internacionais aumentaram e obrigaram o governo a iniciar algumas reformas.18 O fim do Apartheid na África do Sul foi um dos acontecimentos 17 KI-ZERBO, op., cit., p. 296-298.

18 DOPCKE, Wolfgang. Uma nova política exterior depois do Apartheid: reflexões sobre as relações regionais da África do Sul, 1974-1998. Revista Brasileira de Política Internacional. N 41, vol. 1, 1998, p. 137-138.

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de maior impacto na África Pós-Guerra Fria. A África do Sul, na década de 1980, experimentava o isolamento diplomático internacional devido à sua política racista de segregação interna. A crítica interna e internacional ao regime racista foi se intensificando, até que, com a posse de Frederik De Klerk na presidência, em 1989, ocorreram várias mudanças no país. Em 1990, Mandela foi libertado e o CNA recuperou a legalidade. De Klerk revogou as leis raciais e iniciou o diálogo com o CNA. Sua política, criticada pela direita, foi legitimada por um plebiscito, em 1992, pelo qual os brancos, os únicos que puderam votar, aprovaram o fim do Apartheid.

Inconformados com o avanço das reformas, líderes extremistas brancos fundaram, em 1993, a Frente Nacional Africânder (FNA). Mesmo com a resistência dos extremistas, De Klerk convocou para 1994 as primeiras eleições multirraciais para um governo de transição. Em abril de 1994, Nelson Mandela (que juntamente com De Klerk ganhou o Prêmio Nobel da Paz, em 1993) foi eleito presidente da África do Sul. A aliança do Congresso Nacional Africano (CNA) de Mandela com o Partido Nacional (PN) de De Klerk viabilizou o primeiro governo multirracial do país. A transição negociada também foi criticada por organizações como o Partido Liberdade Inkatha, organização zulu, que disputava com o CNA a representação política dos negros sul-africanos.

O governo de coalizão dirigido por Mandela enfrentou o desafio de restaurar as propriedades das famílias negras atingidas pela lei de 1913, que garantia 87% do território sul-africano à minoria branca. Por não concordar com os rumos do governo, o Partido Nacional retirou-se, em 1996. A Comissão de Reconciliação e Verdade, criada em 1995 com o objetivo de promover a reconciliação entre os sul-africanos, não conseguiu maiores avanços. Entretanto, leis abrangentes contra discriminação de raça, gênero e deficiência física e contra o uso de termos racistas pela mídia foram aprovadas, em janeiro de 2000.

Em 1999, o vice-presidente Thabo Mbeki foi eleito para dirigir o país. As eleições parlamentares de junho de 1999 foram vencidas pelo CNA, que formou uma coalizão com o partido Frente Minoritária, assegurando dois terços das cadeiras da Assembléia Nacional. O Partido Nacional, que governou o país entre 1948 e 1994, disputou as eleições com o nome de Novo Partido Nacional (NNP). Nesse contexto, Thabo Mbeki assumiu a Presidência com o desafio de garantir a continuidade do regime democrático e reduzir as diferenças sociais entre brancos e negros.

As mudanças promovidas na África do Sul têm sido lentas, descontentando a maioria da população negra, que observa as riquezas do país ainda concentradas nas mãos da minoria brancas. O programa de governo teve como metas uma transição gradualista, respeitando a propriedade privada, as relações com as multinacionais e os interesses estrangeiros no país, bem como seguindo algumas das metas do FMI e do Banco Mundial, como liberalização da economia e limitação de gastos sociais. Como resultado, aumentaram algumas desigualdades sociais. A

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participação dos negros na riqueza tem aumentado, porém beneficiando somente uma elite relativamente pequena (os chamados “buppies”). O desemprego sul-africano, cujos números oficiais apontam 30%, e a AIDS, com cerca de cinco milhões de soropositivos, têm demandado um esforço adicional do governo na execução de políticas públicas de emprego e saúde. A concentração das terras nas mãos dos brancos - base fundamental do regime colonial e do Apartheid na África do Sul – ainda permanece. O governo implantou um programa de reforma agrária que, com um orçamento limitado, pouco restituiu de terras aos negros. Nesse contexto, os conflitos rurais têm recrudescido, inclusive estimulando a formação, em 2001, do Movimento do Povo Sem-Terra.

Mesmo com a persistência desses problemas, a maioria da população tem apoiado o governo do CNA. Tal fato foi demonstrado com a reeleição de Thabo Mbeki para a presidência do país, em abril de 2004. Nestas terceiras eleições democráticas na África do Sul, o CNA obteve cerca de 69,6% dos votos, um sucesso para o partido, que havia alcançado 66,4% nas eleições de 1999 e 62,6% nas primeiras eleições multirraciais, em 1994. A África do Sul tem contribuído para a retomada do desenvolvimento africano e a melhor projeção internacional. A África do Sul pós-Apartheid representa peça-chave no desenvolvimento africano, seja por sua projeção econômica e política, seja pelas expectativas geradas e efetivadas com o fim do Apartheid. O povo negro sul-africano venceu o Apartheid racial, conquistando direitos civis e políticos, mas ainda tem pela frente o enorme desafio de superar o Apartheid social e a pobreza, na luta pela garantia dos direitos sociais.

A nova diplomacia e o “renascimento” africano na busca

da autonomia

A marginalização e a desestrategização da África ocorridas com o fim da Guerra Fria também marcaram uma nova etapa nas relações internacionais e no processo de desenvolvimento do continente. Ao mesmo tempo em que o mundo passa por uma reorganização internacional no sistema pós-Guerra Fria, a África vem dando sinais de profundas transformações e novas tendências, no sentido de sua reafirmação, busca de soluções e construção de sua autonomia. O momentâneo desinteresse dos países desenvolvidos pela África, nos anos 1990, conferiu uma oportunidade para o continente reorganizar-se em bases mais autônomas. Essa autonomia está baseada no relativo enfraquecimento da influência direta européia na África, em especial a francesa e na rearticulação regional africana provocada pela África do Sul e outros países-pólo no continente.19 19 VIZENTINI, Paulo. África: relações Internacionais e construção do Estado-nação. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 33, jun-jul 2003, p. 89-117.

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Assim, no plano das Relações Internacionais, a África do Sul tem patrocinado uma importante inflexão, com significados regionais e internacionais. A nova diplomacia pós-Apartheid buscou construir parcerias regionais, ingressando na Organização da Unidade Africana e no Movimento dos Não Alinhados e estabelecendo parcerias em vários países, destacando-se China, Brasil, Cuba, Líbia, Índia, entre outros. A África do Sul está articulada com o bloco econômico da África Austral (SADC) e tem promovido intensa cooperação econômica no continente. Também é importante salientar sua recente associação com o Brasil e com a Índia na formação do G-3.

A Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC) remonta ao bloco político de luta contra os países que viviam sob governos racistas (África do Sul e Rodésia), denominado “Países da Linha de Frente” e o bloco econômico equivalente, Conferência de Coordenação do Desenvolvimento da África Austral (SADC), fundados em 1980. Os blocos não avançaram devido à guerra persistente e à ausência da maior economia da região, a da África do Sul. Com o fim do regime do Apartheid, no início dos anos 1990, a situação mudou completamente, com a adesão da África do Sul. São membros da SADC atualmente os seguintes países, cada qual com uma função: África do Sul, finanças e investimentos; Angola, energia; Botswana, produção animal e agrária; Lesoto, conservação da água, do solo e turismo; Malauí, florestas e fauna; Maurício (sem função específica); Moçambique, transportes, cultura e comunicações; Namíbia, pesca; Suazilândia, recursos humanos; Zâmbia, minas; Zimbábue, segurança alimentar. A Tanzânia, a República Democrática do Congo e as Ilhas Seichelles aderiram posteriormente ao bloco.

A SADC é considerada o maior bloco de toda a região africana, possuindo atualmente um PIB de quase 200 bilhões de dólares e uma população total de mais de 200 milhões de pessoas. Em suas exportações, a SADC arrecada uma média de 53,5 bilhões de dólares e gasta em média 52,8 bilhões de dólares em importações. África do Sul, Namíbia, Botswana, Lesoto e Swazilândia formam o núcleo central da SADC, pois constituem a União Aduaneira da África Austral (SACU), uma zona de livre comércio. Em 2001, foi lançado o NEPAD (Nova Parceria para o Desenvolvimento Africano), um plano de desenvolvimento do continente africano. Este plano tem como características o vínculo entre democracia, governabilidade e desenvolvimento econômico, uma abordagem diferenciada do FMI e do Banco Mundial dos problemas africanos, além de ter sido criado pelos próprios africanos. Propondo uma nova base ideária de inserção internacional da África, o Plano retoma certa ofensiva diplomática do continente no debate sobre seu desenvolvimento.

No campo político, foi ratificada por 53 países do continente, em julho de 2002, a criação da União Africana (UA), que substituiu a Organização da Unidade Africana (OUA). O único país que dela não participa é o Marrocos, em função da admissão do Saara Ocidental como

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Estado membro. Com objetivos de aumentar a integração e cooperação entre os povos africanos, este novo organismo foi dotado de um Conselho de Paz para tratar dos conflitos na região, ao mesmo tempo em que tentou propor a criação de um bloco econômico para promover o desenvolvimento dos países da região. No início de 2003, a União Africana tomou posição contrária ao ataque norte-americano ao Iraque, sem a aprovação do Conselho de Segurança. Em 2004, entrou em funcionamento o Parlamento Africano, com sede na África do Sul.

Dessa forma, vislumbra-se a possibilidade do “renascimento” africano, através do processo de cooperação e da reafirmação no sistema mundial. Embora persistam os conflitos, o neocolonialismo e o subdesenvolvimento, assistimos a recomposição social e política no continente africano, através do processo de cooperação, reafirmação e procura de soluções negociadas, o que tem aberto muitas possibilidades para seu desenvolvimento. Os povos do continente africano têm renovadas as suas possibilidades de reconstruir sua autonomia. Talvez os povos africanos promovam a nova ligação sul-sul, unindo os povos da América Latina, África e Ásia na luta por um mundo melhor, superando a bifurcação dos anos 1980 e 1990.

Considerações finais: entre o renascimento e a nova

disputa pela África

A nova disputa no continente africano, ocorrida nos últimos anos, retoma e atualiza os antigos interesses imperialistas (minerais, pontos estratégicos, possibilidades de investimentos lucrativos) e modifica o panorama geopolítico africano. Como instrumentos, encontram-se ainda as características centrais do neocolonialismo, como projeção militar, dependência financeira e dívida externa, dependência comercial, diversas formas de “ajuda” (bilateral e multilateral) associadas a determinados condicionamentos de “bom comportamento”. Entretanto, Convém ressaltar que há um potencial neocolonialista e não um neocolonialismo automatizado nas relações entre os países africanos e os países imperialistas. Entre os principais agentes atuando na África, verifica-se a manutenção dos interesses europeus (sobretudo franceses e ingleses) em disputa com atores que estão procurando aumentar sua presença no continente, entre os quais podemos citar Estados Unidos, China (ocupando vazios deixados por outras potências, como a Rússia), bem como Índia e Brasil, estes dois últimos nos marcos da cooperação sul-sul.

Os Estados Unidos, após o fracasso da intervenção na Somália (finalizada em março de 1994), havia diminuído seu interesse no continente, mas, no final da década, o interesse foi renovado, como manifestado no encontro com ministros africanos ocorrida em Washington, entre 15 e 18

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de março de 1999. A estratégia americana, segundo Pierre Abramovici, está assentada em dois eixos: manter acesso ilimitado a mercados importantes (petróleo, minerais) e garantir segurança nas vias de comunicação e de transporte.20

Nesse contexto, o programa Acri, (African Crisis Response Initiative) norte americano de meados dos anos 1990, foi transformado em 2002, em Acota (Africa Contengency Operations Training Assistance), um programa de treinamento militar estendido a diversos países e padronizado de treinamento ofensivo. Desde então, os Estados Unidos vem aumentando significativamente sua presença na África, com a justificativa da “luta contra o terrorismo”. Nesse sentido, nos dias 23 e 24 de março de 2004, os chefes de estado-maior de oito países africanos (Chade, Mali, Mauritânia, Marrocos, Niger, Senegal e Tunísia) participaram, pela primeira vez, de uma discreta reunião na sede do comando europeu do exército norte-americano (US-Eucom), em Stuttgart. O Acordo referia-se ao Sahel, entre as zonas petrolíferas do norte do continente e as do Golfo da Guiné. Significativa é também a participação indireta de Washington, no mês de março de 2004, numa operação militar realizada por quatro países do Sahel (Mali, Chade, Niger e Argélia) contra o Grupo Salafista para a Pregação e o Combate (GSPC).21 Em 2008, o governo

norte-americano anunciou a criação da Africom (África comand), num engajamento militar dos Estados Unidos no continente.

Os europeus, sobretudo França e Inglaterra, procuram manter suas posições neocoloniais na África. Este é o caso da França que detém diversas bases militares e uma forte presença econômica em suas antigas colônias. Nesse contexto, além dos acordos existentes entre países da Europa e África (Cotonou, Francofonia, Commonwealth e CPLP), ocorreu, em 2000, a primeira cúpula entre os chefes de Estado dos dois continentes. Em 2007, ocorreu a segunda cúpula, cujo objetivo principal era forçar os países africanos a assinar novos tratados comerciais (APE) antes de 31 de dezembro de 2007, em aplicação da Convenção de Cotonou (junho de 2000), que previa o fim dos acordos de Lomé (1975, nos quais diversos produtos africanos detinham alguns privilégios alfandegários na União Européia). O acordo, que permitiria que os produtos europeus entrassem na África de forma privilegiada, não foi concluído e as negociações terminaram em fracasso, após a recusa dos governos do Senegal, África do Sul e Namíbia. A China desponta como um dos maiores investidores na África recente. Para o governo chinês, a África não representa apenas fonte de matérias-primas e fonte de produtos, mas significa também um palco político importante, em que 45 países mantém relações diplomáticas com a China. Essa parceria também rende dividendos políticos para o governo chinês, como ocorreu com o caso de Tiananmen, em 1989, no qual vários países africanos manifestaram apoio à China (Egito, Mauritânia, Gana,

20 ABRAMOVICI, Pierre. Activisme militaire de Washington en Afrique. Paris: Le Monde Diplomatique. Julliet, 2004. p. 14 –15.

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Togo, Gabão, Angola, Quênia), afirmando que era um problema interno da China e evitando seu isolamento. Desde 1990, por sete anos consecutivos, a China conseguiu evitar, na ONU, resoluções anti-chinesas com o apoio dos países africanos (que representam mais de 50 votos). Na década de 1990, dez dirigentes chineses de alto escalão realizaram cerca de 30 visitas à África. Entre 1989 e 2000, durante 12 anos, os ministros das relações exteriores visitaram a África no início de cada ano. É também importante recordar que a China continental e Taiwan disputam apoio diplomático e reconhecimento no continente africano, por isto muitos países aproveitam para aumentar a capacidade de barganha.22 Nesse sentido, em 2000, a

China e os países africanos estabeleceram a Focac (Fórum on China-África Cooperation). Em 2003, ocorreu um encontro, em Adis Abeba, e, em 2006, outro em Pequim, no qual o Presidente Chinês Hu Jintao reuniu-se com Chefes de Estado ou governo de 48 países africanos.23

O continente africano também é palco de interesse renovado da política externa brasileira. Durante o governo Lula, verifica-se a articulação entre o discurso interno de identidade afro-brasileira (com políticas públicas) e as relações destacadas com o continente africano, rompendo com a idéia de “parcerias seletivas”, para pensar a África de forma global. Dentro da formulação de uma nova política externa, o governo Luis Inácio Lula da Silva tem procurado nova aproximação com a África, em especial a África do Sul, que tem interesses semelhantes no sistema internacional, como a defesa da multipolaridade. Busca também estabelecer, no continente africano, parcerias no campo comercial e político. Desde que assumiu o governo, em 2003, o Presidente Luis Inácio Lula da Silva já realizou oito visitas ao continente e promoveu intensas parcerias. Uma das parcerias estratégicas mais promissoras é a que está se estabelecendo entre Brasil e África do Sul, não apenas em relação a temas regionais, mas também mundiais, como o G-3 (fórum que integra Brasil, Índia e África do Sul), o Conselho de Segurança, as questões da paz e do desenvolvimento. Ambos os países são fortes candidatos a líderes de pólos de poder regional na conformação de um sistema mundial multipolar.

Em síntese, verifica-se um renovado interesse no continente africano, que mantém e atualiza os antigos interesses imperialistas, mas em outro contexto. O elemento novo é a capacidade de resposta que os governos africanos tem colocado nessa relação, na busca pela autonomia e na possibilidade de utilização seletiva dos investimentos externos. A nova democracia africana também tem produzido uma nova elite política, mais ousada em termos diplomáticos e de busca de autonomia nos projetos de desenvolvimento. Com a diminuição e a resolução de muitos conflitos

22 MING, Zhang Hong. A política chinesa na África. In. BELLUCCI, Beluce. Abrindo os Olhos para a China. Rio de Janeiro: EDUCAM, 2004, p. 263-265.

23 OLIVEIRA, Amaury Porto. A política africana da China. In: África – II Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional: o Brasil e o mundo que vem ai. Brasília: Funag, 2008, p. 13.

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(comparativamente aos anos 1990), o crescimento econômico e o aumento dos interesses internacionais pelo continente, verifica-se que a África entrou em uma nova fase que, ainda longe do “otimismo renascentista” apregoado, tem mostrado avanços concretos, rumo à autonomia. Contraditoriamente, porém, os interesses neocolonialistas persistem e rearticulam-se em um novo contexto de disputa pelo continente.

Recebido em agosto de 2008. Aprovado em outubro de 2008.

Title: The Dilemmas of Contemporary Africa: the Persistence of Neocolonialism and the Challenges of Autonomy, Security, and Development (1960-2008)

Abstract

This article discusses the formation of contemporary Africa, considering the difficulties faced by the continent after independence, such as neocolonialism and domestic political instability. This study also analyzes the role of the continent during the Cold War and its ending, in the 1990s in order to verify the impact political confrontation caused in the continent, resulting, first, in marginalization and, later, reassurance. Finally, this article examines the interest in Africa, in the last decade, and the possibilities of the continent’s autonomy.

Key words: Contemporary Africa. International relations. Post-colonialism.

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