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Jesuítas e programas de acção na origem de concepções doutrinárias e de definições jurídicas no século XVI (Europa e a América)

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JESUÍTAS E PROGRAMAS DE ACÇÃO NA ORIGEM DE CONCEPÇÕES

DOUTRINÁRIAS E DE DEFINIÇÕES JURÍDICAS NO SÉCULO XVI (EUROPA E

AMÉRICA)

Maria Leonor García da Cruz

Resumo

Concepções de poder em teóricos europeus e práticas políticas transmigram-se naturalmente para o No-vo mundo com a Expansão europeia. Experiências e vicissitudes no terreno, contudo, conduzem à redefinição de normas e influenciam controvérsias e reformulações sobre o estatuto jurídico de indivíduos e comunidades. Pro-gramas de acção em solo ultramarino, nomeadamente em missões americanas, não sem confrontos e debates, ocasionam toda uma informação actualizada que origina por vezes alterações em documentação legislativa e actua em reflexões doutrinárias. Da teologia ao direito, da ética à política, tudo parece conectar-se na procura de soluções para uma paz social em comunidades sob a lei portuguesa marcadas pelo multiculturalismo.

Palavras-chave

Leis. Missões. Ameríndios. Guerra justa. Escravatura.

JESUITS AND ACTION PROGRAMMES AT THE ORIGIN OF DOCTRINAL CON-CEPTS AND LEGAL DEFINITIONS IN THE 16TH CENTURY (EUROPE AND

AMER-ICA) Abstract

Concepts of power in European thinkers and political practices unsurprisingly cross over to the New World with European Expansion. Several events and difficulties on the ground, however, lead to the redefinition of regulations and influence controversies and reformulations with regard to the legal status of individuals and communities. Overseas action programmes, namely in American missions, albeit not free from conflict and de-bate, result in updated information which at times create alterations to legislative documents and acts on doctri-nal considerations. From theology to law, from ethics to politics, everything seems to unite to pursue solutions for social peace in communities under Portuguese law marked by multiculturalism.

Keywords

Laws. Missions. Amerindians. Fair war. Slavery.

1. FUNDAMENTOS DA ESTRUTURA POLÍTICA EM TEÓRICOS EUROPEUS QUINHENTISTAS:

SUPREMA AUTORIDADE, LEIS, RELIGIÃO, PAZ CIVIL, NATUREZA PLURAL DA SOCIEDADE

Com a modernidade sobressai a autonomia absoluta da política e a orgânica in-trinsecamente humana da res publica que possui em si as suas leis, regras e estru-turas constitutivas internas. Expressando uma ordem humana, institui-se de forma justa e eficaz. Assim o defende Maquiavel (MAQUIAVEL, 2010), assim como o de-fine Jean Bodin1 que, aliás, elabora a estrutura conceptual do Estado a partir da ideia

1 Sobre a comparação dos dois autores e influências em Bodin, ver CHAUVIRÉ, Roger. Jean Bodin

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de soberania (autoridade superior a qualquer outro poder). Tanto Maquiavel como Bodin terão tido os seus leitores atentos na Península Ibérica e em particular em Portugal mas nem sempre adeptos e quase sempre opositores.

O conteúdo divino do poder régio patenteia-se em Portugal nas leis fundamen-tais da monarquia no dealbar da Época moderna e pela sua majestade enquanto lu-gartenente de Deus na terra se pautam os grandes crimes e as penas máximas (pena de morte e confisco de bens) quer se referiram ao crime de lesa-majestade (figura régia e suas representações) ou ao crime de heresia (igualmente contra Deus). Não quer isto dizer, contudo, que não estejamos já perante uma autonomia de qualquer tutela política, incluindo a do poder do sumo pontífice, embora ainda sob influência de uma moralidade advinda dos mandamentos da Igreja católica, mesmo após a di-visão confessional da Europa.

O rei é cristão em Portugal como em outros países europeus desenvolvendo-se particularmente por teóricos espanhóis a acentuação da transmissão de poder de origem divina para a comunidade natural que a transmite, por seu turno para a so-ciedade política, deixando maior ou menor margem para um direito de rebeldia ou de resistência em caso de manifesta tirania. Se entre os teóricos políticos há consen-so que a organização de uma comunidade humana tem em vista a sua preservação e a sua liberdade, distinguem-se, contudo, interpretações sobre o fundamento da au-toridade que configura essa comunidade.

O jesuíta Juan de Mariana afirmará que

la república, donde tiene su origen la potestad, puede, exigiéndolo las cir-cunstancias, emplazar al rey, y si desprecia da salud y los consejos del pu-eblo, hasta despojarle de la corona; porque aquella, al transferir sus dere-chos ao príncipe, no se despojo del domínio supremo; pues vemos que sempre lo há conservado para imponer los tributos y para constituir leyes generales; de suerte que sin su consentimento de ningún modo se pueden variar por nadie…” (MARIANA, Liv.I, cap.VI, p.40)

Há princípios modernos na monarquia portuguesa mesmo numa concepção de poder ainda tradicional. O rei é absoluto não dependendo de outros poderes ou órgãos nas sua decisões, embora se possa aconselhar com súbditos de qualidade atestada e com profissionais de áreas específicas (da fazenda à guerra e à religião), revelando com isso uma sageza superior. A acção prática baseia-se no Direito, nas Ordenações do reino, podendo, contudo, o rei derrogá-las justificadamente e medi-ante condições formais. A sua consciência é a de uma pessoa pública, imagem reafirmada pela Mesa da Consciência,2 tribunal cuja criação em 1532 causou alguma

apreensão em Roma numa época de sérias conturbações na Cristandade.

não se baseia somente numa necessidade de um poder forte mas também na cisão entre razão e au-toridade da fé, afastando-se de uma filosofia política cristã.

2 Consulte-se a título de exemplo a determinação de letrados de 23 de Janeiro de 1569 facultada por

este órgão ao monarca no decorrer de uma consulta sobre a legitimidade de uma expedição militar punitiva / guerra justa de desagravo a tiranias e à morte do jesuíta Gonçalo da Silveira em terras do rei do Monomotapa e de defesa de situações cabíveis no direito das gentes. Com a argumenta-ção sobre estes princípios, sobressai a concepargumenta-ção moderna de poder ao definir-se o rei como “pes-soa pública” com autoridade para defender a sua república e seus vassalos (e não para ampliar o império ou a própria honra), revelando-se a plena justiça das suas acções. Documento publicado por João C. Reis. A Empresa da Conquista do Senhorio do Monomotapa. Lisboa: Heuris, 1984, pp. 37-39.

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Embora a vontade real seja soberana, do rei emanando as leis positivas que visam a conservação da sua autoridade e dos seus estados, não prescinde de uma relação dialogante com os seus súbditos em Cortes e fora destas, na prática quotidi-ana da justiça e na definição de sistemas de tributação (CRUZ, 2001). Nesta linha enaltecia Mariana o rei contrapondo-o ao tirano, considerando que as suas virtudes garantiriam mesmo na guerra o séquito de bons cidadãos, excusariam taxas extraor-dinárias e grandes impostos, pela persuasão (mencionando guerra próxima ou tesouro exaurido) contaria com o consentimento dos povos (MARIANA, L.I, c.V).

Embora a Companhia de Jesus e a Espanha católica pouco estimem Maquiavel ou Bodin, entre outros pensadores, desenvolvem obras que embora refutando, acabam por divulgar algumas das suas teorias e a argumentação por vezes conflui. Mariana, por exemplo, imbuído em parte de um espírito erasmiano fundamental-mente pedagógica no tocante à formação política e cristã do príncipe, reafirma como Bodin o princípio monárquico, mais conforme às leis gerais do universo, resultando a realeza na forma mais eficaz de evitar a discórdia civil, sobretudo a monarquia hereditária, mais regrada por uma lei constitucional, embora admita a existência dos modos clássicos de governo, três bons e três corruptos. A realeza teria na sua origem a livre eleição popular, partindo dessa concessão a sua legitimidade, e há limites práticos a uma excessiva autoridade imperial. Chega a concluir sobre a morte do príncipe que viola as leis do Estado. Quanto à Justiça, e aos juízes, parece beber em Erasmo como em Bodin o ideal de justiça, fundamentada no culto da virtude, reve-lando-se o juíz perante grandes e pequenos independente, severo e piedoso.

Rivadeneyra, padre jesuíta, no seu Tratado de la Religion Y Virtudes que deve

tener el Principe Christiano… (1595) que considera ímpio Maquiavel e Bodin cheio

de falsidades e erros lidos pelos homens de Estado, deste recolhe, todavia, lições que considera razoáveis sobre o conceito de tirano. Ambos acertam nas virtudes de justiça, fé e piedade que orientam o rei não tirano, o seu serviço ao bem público, preocupação por enriquecer o seu povo, ouvir avisos ou até admoestações de con-selheiros, manter a união e não aproveitar-se de divisões internas e de confiscos daí decorrentes, ser obedecido pelo amor e não pelo terror, buscar os melhores homens do reino a quem distribuir cargos e não vendê-los a desonestos a quem depois espo-lia como se fosse justiceiro, amar e não revelar-se um verdugo (RIVADENEYRA, L.2, c.9; BODIN, L.2, c.4. Cf. ALBUQUERQUE, 1978, pp. 79-85).

Os teóricos portugueses do Renascimento admitiam formas diversas de re-sistência mas são os peninsulares Soto, Suárez, Molina e Mariana, quem admite o tiranicídio (MARAVALL, 1955)3. Para Mariana, há nobreza na morte do tirano. Há,

contudo, que observar formas jurídicas se se trata de um tirano legítimo, atender à vontade popular cuja delegação se cumpre.

Note-se que no conceito moderno de soberania encontra-se o poder de fazer lei, lei fruto da acção humana e que enforma a república, independente, segundo alguns teóricos, de fundamentos tradicionais (direito natural ou divino). Ora as leis do Rei de Portugal chegam a todas as partes do seu Império, como o salientam escri-tores portugueses quinhentistas, caso de António Ferreira (CRUZ, 1998). Contudo, se for de sua vontade (vontade esta orientada por uma prática mais eficaz/proveitosa

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e que vise a paz) pode o rei decretar medidas de excepção ou persistência de regras anteriores (até pré-existentes ao regime português). Alvarás e cartas régias podem, de forma justificada formalmente, derrogar cláusulas das leis fundamentais do reino, isto, é, das Ordenações, juntando-se ocasionalmente ao corpo legislativo prin-cipal, como Leis extravagantes e vir a incluir-se em futuras Ordenações.4

Confirmação de estatutos e concessão de privilégios, de perdões ou de quitações, por outro lado, obedecem com frequência a uma prática ordinária de lib-eralidade régia, enquadrada contudo em pressupostos que visam a disciplina do corpo social e um equilíbrio entre corpos com vista à manutenção da autoridade e da paz social. Em troca espera-se o serviço régio com obediência e lealdade.

Deveremos citar Maurice Hauriou na sua definição de Estado Moderno (HAURIOU, 1914; 1948) enquanto Instituição e eixo de instituições, alicerçado no Direito e produtor de direito, seja o direito disciplinar com as suas regras gerais com vista à orientação do conjunto (mesmo que, eventualmente, com alguma tensão co-erciva), seja o direito estatutário, contrapartida do primeiro, que assegura o interesse das partes relacionadas (que concordam e consentem) e condiciona e impede actos arbitrários / tirania. Nesta conexão entre as partes e o todo, contudo, há que pon-derar algo igualmente definitório da modernidade do Estado: a legitimação ou le-galização, que, indubitavelmente, vincula a submissão a um poder superior.

Na monarquia deverá então o príncipe ser superior ou sujeito à Lei? Se o so-berano é quem tem a iniciativa legisladora, segundo Mariana quando esta decorre da urgência e da necessidade, isto é, se toma em nome da república na sua totali-dade, o príncipe deve-lhe igualmente obediência, podendo até ser constrangido a isso. Trata-se de leis fundamentais/constitucionais que só podem alterar-se com o consentimento unânime da comunidade. É o caso da lei de sucessão ao trono, da lei fiscal e do estatuto religioso. Precisando certos aspectos, concluir-se-ía pela superi-oridade do Estado em relação ao rei: “El constituir así como el derrogar las leyes de sucesión, no está en el derecho de los reyes, sino en el de la república, que es de quien recibieron estos el imperio robustecido com aquellas leyes” (MARIANA, L.I, c.III, p.27).

A religião, por seu turno, que deixa de ser fundamento político nos pensadores modernos seja Maquiavel ou Bodin, pode ser usada para o bem do Estado, dado o seu carácter de geradora de obediência. Não admira a oposição da Igreja aos dois autores por afastarem o catolicismo da fundação da estrutura política. Se na Pen-ínsula Ibérica, em contrapartida, se afirma uma fé única com a conversão geral de judeus e mouros e a expulsão do infiel, entre finais do s.XV e começos do XVI, nu-ma nu-manifestação de cultura política que continuará a acentuar-se nas décadas se-guintes, complementarmente e numa extensão da vontade régia, aliás escudada na sua legitimidade pelo próprio Papado, desenvolve-se o processo de evangelização dos povos gentios pela monarquia portuguesa em África, Ásia e América, secun-dada pela realeza espanhola.

Irá pretender-se, na Europa ou além-mar, essencialmente, a paz civil. Então qual o papel e a avaliação da guerra? Pode ser a forma de garantir a paz, segundo

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Maquiavel, mediante prévia preparação e garantindo o príncipe o comando dos exércitos próximos. Pelo saber, conquista-se e conserva-se a autoridade. O êxito rev-ela uma justa política. Esta apoia-se, não tanto num fundamento moral (segundo Mariana), mas na virtù do governante isto é, na sua capacidade intelectual e táctica de confrontar e vencer a contingência (MAQUIAVEL, 1976). Também Mariana, que verificando a realeza do seu tempo, acentua a questão da paz e da estabilidade, re-flectirá tais matérias e considerará quão proveitoso garantir a ocupação dos soldados e sua manutenção em regiões distantes.

Quanto a poderes existentes na sociedade, o soberano, na concepção moderna, tolera-os mas enquanto demonstram submissão. Num momento de transição, o gov-ernante inseria-se e praticava a sua acção política num contexto baseado em relações sociais diversificadas e na desigualdade dos homens e das suas qualidades. Numa concepção moderna, o carácter absoluto da soberania “não nega a natureza plural da sociedade, composta por estamentos, comunidades e corporações”5, mas deverá

dirigir essa pluralidade como potência unitária.

Poderá dizer-se que num processo de longa duração de abstracção em que o Estado indicará o corpo político na sua totalidade, a Razão de Estado é ainda identi-ficada com a arte de governar contra mudanças e corrupções, para obtenção da obediência dos súbditos. Convém, a esse propósito, recordar na Iconologia de César Ripa a representação da Razão de Estado6, figura militarizada e vigilante, com as

ordenações jurídicas a seus pés, que com a vara que impunha corta todas as plantas que se elevam demais, entrando em concorrência com o Estado.

Conviria a este, na concepção de Mariana, assim como assegurar uma justiça distributiva também vigiar de forma a que não se constituíssem fortunas excessivas. Daí na rectidão de julgamento do príncipe prudente uma certa desconfiança para com os grandes e os cortesãos e uma certa economia das graças. Isto teria ainda a ver com uma perspectiva da assistência local e regional que evitaria a vagabundagem através de instituições caritativas (sustentadas pelos bens do clero), migrações ori-entadas, moralização de costumes.

Se a soberania, na sua superioridade jurídica, implica a negação de um poder superior na ordem interna e externa, o conceito em Bodin parece ser de certa forma um ponto de chegada num processo evolutivo mais do que somente um percursor (ALBUQUERQUE, 1978, p.155) e não raras vezes a sua doutrina é usada permane-cendo o autor na sombra (ALBUQUERQUE, 1978, p.162). Como bem inventariou Martim de Albuquerque, encontram-se influências de Bodin, entre outros autores, em Martín González de Cellorigo autor do Memorial de la politica necessária, y útil

restauracion à la Republica de España (1600) e até plágios em Mártir Rizo no Norte de Príncipes (1626). Do poder de império com sentido próximo fala Saavedra Fajardo

autor também de Idea de um principe politico christiano. Representada en cien

empre-sas (Amberes, 1655), embora possa divergir de Bodin no que respeita a limites do

poder e à justiça na essência da soberania, aproximando-se mais da tradição medie-val dos objectivos do poder e do pensamento espanhol seiscentista.

5 DUSO, Giuseppe, Introdução” in DUSO, 2005, p.33 6 Ripa, Cesare, Iconologia, Roma, 1603. Disponível em:

http://lartte.sns.it/ripa/Iconologia_db/dettagli.php?idrecord=./ripa_img/1603/b/R427.gif. Imagem incluída e comentada por CRUZ, 2006.

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A soberania trata-se de uma autoridade preeminente, perpétua, absoluta e in-divisível, mesmo que oportunamente delegável. Acentua-se a soberania real na ex-acção de impostos e na autoria das leis (e capacidade de derrogá-las), assim como na transmissão de poder aos magistrados. Mas Juan de Mariana salienta claramente os limites ao poder do soberano (legislador). Ele próprio se submete às leis, embora possa se as circunstâncias o exigirem, estipular novas leis, interpretar e alterar dis-posições ou suprir omissões (MARIANA, L.I, c.IX), e deve respeitar poderes superi-ores, seja Deus, donde procede o seu poder, a moralidade de conduta dos actos hu-manos, ou a opinião dos cidadãos. É essa moderação no exercício do poder (recebido dos súbditos) que o distingue de um tirano.

Na génese do Estado moderno em quinhentos poder-se-á falar, assim, de monarquia absoluta, não de absolutismo, posição que traduz uma problemática con-ceptual importante. Recorde-se a reflexão crítica de Martim de Albuquerque na se-quência de Naef, Mousnier e de Vicens Vives7. Em teorias que se revelam contrárias

a uma monarquia absoluta, caso de Mariana, além dos limites ao poder do príncipe e entre estes alguns que o fazem depender do conjunto dos cidadãos (levantamento de impostos, por exemplo), sobressai também a escolha dos magistrados, escolha esta pela competência (honestidade e experiência) e evitando-se uma complexa e perigosa burocracia baseada no acumular de funções numa mesma pessoa ou numa duração excessiva, devendo acrescentar-se uma inspecção regular. Fruto da época, de lutas entre crenças, mas longe da modernidade por via da secularização, consid-era a importância de se aproximar Estado e Igreja, ou mesmo misturar-se religião e governo (clericalismo), preconizando a elevação da dignidade do bispo (com a sua obrigação de tratar das coisas sagradas e também de defender a república)8, homem

íntegro, piedoso e preparado, garantia da moralização. Não admira, pois, que deseje além de uma independência absoluta na administração do espiritual também a con-firmação dos homens da Igreja em dignidades temporais. Estas concepções, não demasiado distantes da definição dos sacerdotes na construção utópica de Thomas More, parecem-nos decorrentes claramente da formação jesuítica do autor e muito provavelmente do seu conhecimento das experiências dos religiosos a nível de gov-ernos e a nível das próprias organizações missionárias.

Em ofícios e honras parece aproximar-se de Bodin ao preconizar o reconheci-mento da nobreza e dos ricos de forma a beneficiar o bem público e o controlo de recursos pelo rei, investindo sobretudo no mérito. Acresce em Mariana o reconhecimento para a boa administração do império não só da escolha de gente de mérito (incluindo homens da Igreja bem formados em teologia e na ciência do direito dadas as disputas do tempo) (MARIANA, L.III, c.II) mas do apoio nas au-toridades locais e nas aristocracias regionais. Daí o valor que atribui ao Conselho

7 ALBUQUERQUE, 1968, 278-279, 373ss; ALBUQUERQUE, 1978, 54-59; NAEF, 1973; HARTUNG e

MOUSNIER, 1955; MACEDO, 1971; VICENS VIVES, (1960) 1984.

8 Mariana considera a separação de poderes (do governo temporal pelos reis e da administração das

coisas da religião pelos papas e bispos ), embora observe as vantagens da sua colaboração. Defen-de que Defen-deve haver uma mesma religião no império, estando os ministros do culto e os da república protegidos, embora os primeiros com imunidades e, oportunamente, com bens materiais. Devem harmonizar-se nos ofícios, colaborando uns em negócios da república e os outros em defender a religião. Condena a subordinação dos eclesiásticos a uma ordem temporal onde os ritos e leis da Igreja ficassem sob o arbítrio de magistrados profanos e cortesãos corruptos. Os governantes deve-rão, isso sim, proporcionar aos bispos o exercício dos seus plenos poderes para defender o culto e a religião, defender a justiça e com isso o bem público (MARIANA, L.I, c.X e L.III, c.II).

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activo do príncipe (de cidadãos de muito saber e de virtude comprovada)9 tanto

quanto ao das assembleias provinciais (MARIANA, L.I, c.II e c.V).

Enfim, Política, Direito, Ética, Teologia, Religião, tudo se encontra no Renas-cimento entrelaçado, apesar de tentativas de autonomia. Jean Bodin configura o seu património intelectual manipulando tanto um fundo medieval quanto fontes es-colásticas que conjuga e reelabora.

Os estudos realizados comprovam quanto em Maquiavel quanto em Bodin as circunstâncias históricas conturbadas (incluindo neste na matança de S. Bartolomeu de 1572) influíram na construção das suas concepções de Estado ou de soberania, de um poder sem superior na ordem internacional ou interna, uma unidade de coman-do e uma coesão de governo onde a própria moral se sujeita à eficiência coman-do Estacoman-do. Quanto à soberania, fundida na ideia de poder absoluto, deve-se considerar ante-cedentes medievais, salientando-se Guilherme de Ockham e sobretudo Marsílio de Pádua10. Já os termos de soberania e de soberano são usados na Europa desde o

úl-timo terço do século XIII e provadamente na literatura francesa jurídica e política de quinhentos (ALBUQUERQUE, 1978, pp. 68-71).

Quanto ao interesse das repercussões em Portugal, não é dispiciente abordar em conjunto a Espanha dada a “unidade cultural e ideológica da Península no período quinhentista e seiscentista, para não falarmos mesmo na unidade política durante a dinastia filipina” (ALBUQUERQUE, 1978, p. 72), com particular interesse especificidades em 1580 e depois na ruptura da monarquia dual. A coerência his-pânica deve-se em grande parte a vultos portugueses terem frequentado a Univer-sidade de Salamanca, assim como grandes figuras do pensamento teológico-jurídico espanhol estarem associadas à cultura e às universidades portuguesas. Neste caso saliente-se Martim de Azpilcueta Navarro, Luís de Molina e Francisco Suárez. Tal é revelado em Portugal também na escrita em castelhano e na edição de obras nos prelos portugueses.

Eivados de uma visão teológica de poder, natural se torna o repúdio a Maqui-avel e a Bodin entre os autores peninsulares dos séculos XVI e XVII. Além disso haveria muitas vozes que no Renascimento salientavam os limites de uma monar-quia absoluta, fossem concretizados nas leis divinas, nas leis naturais, nas próprias leis positivas ou numa consciência colectiva opositora da tirania. Na prática, ex-purgavam-se as traduções, permitindo-se a circulação de versões diversamente emendadas, integrais ou abreviadas. Também se conhecia Bodin por intermédio de outros autores, nomeadamente Giovanni Botero (1540-1617), amplamente conhecido e apreciado em Espanha, através do qual se terá divulgado o termo soberania tam-bém em Portugal (ALBUQUERQUE, 1978, pp. 130-133). Martim de Albuquerque inventariou diversos autores que recalcitraram contra Bodin, aliás na sequência ou não de ataques a Maquiavel, mesmo reconhecendo o estatuto intelectual daquele. Salienta vultos como Lope de Vega e Baltasar Gracián. Muitos não hesitaram em

9 O rei deveria escolher os melhores e mais ilustres, servindo-se deles como seus olhos e ouvidos

(recorde-se a roupagem da Razão de Estado representada por Cesar Ripa na Iconologia).

10 Marsílio de Pádua e Guilherme de Ockham negaram que o dominium de Deus sobre o mundo

fos-se análogo ao dominium temporal da Igreja sobre os fiéis. A autoridade temporal do Papa sobre es-tes não proviria da graça divina, mas sim do consentimento da hierarquia e dos seguidores da Igreja. Todo dominium nesse mundo é derivado de instituições jurídicas humanas. Conforme EI-SENBERG, 2000, p.148.

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apelidá-lo de herege e de ateu e de se manifestarem contra a sua tolerância religiosa, assim como de condenarem as suas proposições sobre a monarquia espanhola ou a política americana. Também a ideia de unidade, transparente na teoria de soberania, mal se articula com os particularismos regionais.

Também no caso português a oposição a Bodin reflectir-se-á não apenas em considerações religiosas. Saliente-se a esse propósito as posições de Pedro Barbosa Homem em os Discursos de la Juridica y Verdadera Razon de Estado… (Coimbra 1626) reportando-se a uma Razão de Estado católica (cristianização que se iniciara em termos teóricos em Itália com Giovanni Botero) e as de D. Francisco Manuel de Me-lo em passagens da sua obra ou de António de Sousa de Macedo na Lusitania

Liber-ata (Londres, 1645). O confronto será maior em Portugal com as bases teóricas da

Restauração de 1640, nomeadamento o direito de resistência e de revolta. Embora já os teóricos do Renascimento admitissem formas de resistência (sem serem adeptos do tiranicídio), conforme os estudos de Martim de Albuquerque (ALBUQUERQUE, 1968) recordem-se particularmente os tratadistas desde a crise sucessória de 1580 e a teoria da origem popular do poder, em confronto com Bodin. De salientar ainda Jo-ão Pinto Ribeiro UsurpaçJo-ão, RetençJo-ão e RestauraçJo-ão de Portugal, e Velasco de Gouveia, Justa Aclamação do sereníssimo Rey de Portugal D. João o IV.

A proximidade à ideia de soberania e a utilização do termo soberano encon-tram-se em Luís de Camões, assim como em Frei Amador Arrais (Diálogos – Das

condiçoens , e partes do bom Principe) salientando-se neste uma tónica de

moraliza-ção que recorda Erasmo no seu Elogio da Loucura: o Rei que não pretende o bem pú-blico não é verdadeiro Rei mesmo que ande de ceptro de ouro e roupa de púrpura. Também destaca Martim de Albuquerque Fr. Serafim de Freitas do qual, aliás, pub-lica um parecer até então inédito (ALBUQUERQUE, 1978, pp. 241-245). Considera que Domingos Antunes Portugal terá elaborado conceptualmente a teoria da sober-ania de forma mais acabada (Tratactus de donatinibus jurium et bonorum regiae

coro-nae, Lião, 1699). Acrescem os escritos em português de João Afonso de Beja (Parecer sobre a Bulla do Subsidio Ecclesiastico de Pio IIII, finais do séc. XVI), de António de

Freitas Africano (Primores políticos e Regalias do Nosso Rey Dom João o IV. De

mara-vilhosa memoria, Lisboa, 1641) sobre direitos reais ou regalias (propriedade do

so-berano) e a nacionalização e moralização que faz dos signos da soberania, os de Sousa de Macedo (Armonia Política, Haia, 1651) também a respeito da independên-cia do príncipe relativamente ao conselho.

Num balanço geral, os tratadistas peninsulares do século XVII parecem colocar a justiça como o fim do governo, limitando assim mais o poder absoluto, além de não considerar o Estado como entidade abstracta pertencente à comunidade con-cebida como um todo, não antecipando, pois, a doutrina moderna da soberania que virá a desenvolver-se já durante as lutas liberais.

2. NO INTERIOR DAS MISSÕES: NOVAS COMUNIDADES, DA SUJEIÇÃO

À PERSUAÇÃO, DEBATES POLÍTICO-JURÍDICOS E ÉTICOS SOBRE A GUERRA JUSTA E A ESCRAVATURA

Não nos repugna acreditar ter Juan de Mariana retirado ilações tanto de cam-pos de batalha ideológicos e práticos da Europa do seu tempo (guerras de religião

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em França, guerras do Império espanhol) como das experiências difíceis de mem-bros da Companhia em terras longínquas de missão com povos europeus e não eu-ropeus,11 aproveitando para comparar situações, problematizar evoluções e teorizar

mecanismos de coesão de diferentes comunidades. O seu "estado de natureza" seria uma construção atualizada pelas informações sobre o "verdadeiro" homem natural. No contacto com os ameríndios – através de relatos quantas vezes desenvolvidos em cartas de missionários – poderia aceder à concepção de comunidades naturais e a características que os homens da Igreja, indivíduos que ele valoriza extremamente pela sua sabedoria e competência, poderiam usar a seu favor para congregá-los em aldeias12, criando melhores condições para a sua conversão. Essas novas

comuni-dades, juridicamente definidas, constituiriam protecção do exterior (outras tribos, colonos, maus cristãos) e disciplina interna (normas ideologicamente orientadas pela Companhia e regras oportunas para estabelecimento da ordem e da estabi-lidade, algumas das quais provindas da mais alta autoridade).

Segundo Mariana, é a fraqueza humana que leva o homem a necessitar de grupo (passar da família para uma cooperação maior) para se defender de perigos externos, sejam animais selvagens sejam populações vizinhas, estando na origem da sua sociabilidade e da sua racionalidade, na criação de formas de protecção. Na se-quência dessa atitude proveniente não tanto de causas naturais mas do medo, ob-tem-se assim uma idade de ouro de fraternidade e igualdade. Mas a realidade progride. Da reunião em torno do sábio ou detentor de prestígio moral nasce a função real para protecção da multidão e, testemunhando a existência de perver-sidade, instituem-se necessariamente leis. As novas comunidades de indivíduos resultariam assim de uma necessidade natural de congregação dada a sua fraqueza e revelariam um consentimento de conjunto para o estabelecimento da nova organi-zação, mesmo que a isso os levasse o medo.

O jesuíta Manuel da Nóbrega13 no Diálogo sobre a Conversão do Gentio (Baía,

1556-1557)14, por seu turno, fundamentando-se na observação directa, descreve uma

comunidade sivícola, antropófaga, sem autoridade política e sem religião15, que,

11 José Eisenberg, aliás, estabelece conexões entre a prática missionária e reflexões do Padre Manuel

da Nóbrega, espelhadas no seu epistolário, e teorias posteriores desenvolvidas por Juan de Maria-na no seu De rege et regis institutione (1598-1599). Ver EISENBERG, 2000 (versão traduzida e revista da tese de doutoramento em Ciência Política defendida na City University of New York, EUA, em Abril de 1998), pese alguns erros historiográficos pontuais.

12 O projecto inicia-se com Nóbrega e Anchieta em São Vicente durante 1553, ao reunirem três tribos

num único lugar conhecido como Piratinim ou Piratininga, que mais tarde se tornaria a cidade de São Paulo. Nóbrega irá ampliar a reforma das missões estendendo-a a toda a costa brasileira, a par-tir de 1556.

13 Manuel da Nóbrega com estudos em Salamanca e na Universidade de Coimbra, entra na

Compa-nhia de Jesus em 1544 e participa em missões em Portugal, antes de partir para o Brasil onde chega em 1549 com o novo governador geral, Tomé de Sousa. Aqui permanecerá até à sua morte em 1570, tendo chegado a primeiro provincial do Brasil.

14 NÓBREGA. “Diálogo sobre a Conversão do Gentio”. In Cartas do Brasil…, pp. 215-250.

Con-forme Eisenberg salienta (EISENBERG, 2000, p.93), este Diálogo viria na tradição dos debates espanhóis sobre a conquista do Novo Mundo, levados a cabo por dominicanos e humanistas, na primeira metade do século XVI.

15 Apesar da referência pelos jesuítas aos índios Tupi os levar a considerar a falta de Rei, Lei e Fé

conforme a ausência das letras R, L e F, da sua língua, acabaram por reconhecer nessas sociedades três formas institucionais de autoridade: os chefes, os curandeiros ou pajés, e um conselho de an-ciãos. Tratava-se de uma cultura conectada com a guerra, muito ritualizada, assim como o próprio canibalismo. Virão a deparar-se também com a busca tupi de um paraíso terrestre, a terra-sem-mal, que originava migrações em massa e alguns confrontos com e entre colonos. No seu trabalho de aprofundamento do conhecimento do nativo e de tradução para tupi de ensinamentos e crenças cristãs, de notar que os jesuítas atribuiam significado tupi a palavras cristãs. Tratava-se de facilitar

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segundo alguns seus contemporâneos, só depois de muito submetida e após gerações poderia vir a converter-se. Tal facto, porém, não dehumaniza os nativos e chega-se a afirmar no Diálogo a igualdade entre os homens16. Impunha-se, segundo

ele, para a boa concretização do trabalho missionário, uma sujeição bem ordenada. Ora esta passa pela existência de leis ou normas que proíbam os ameríndios de comer carne humana e os fixem em aldeias estáveis onde possam ser instruídos, dado possuírem, como homens que são, alma e entendimento17.

Comparando com a teoria política que em breve seria desenvolvida por Juan de Mariana, os ameríndios, homens sociais, aglomerados, alguns já convertidos, beneficiariam de condições externas para melhor garantia da conversão: a perfeição dos evangelizadores (recorde-se a obediência de cada jesuíta à sua missão e em Mar-iana o enaltecimento do homem de Igreja e o seu papel não apenas no espiritual mas também em funções temporais) e uma sujeição moderada. Estaríamos aqui perante o exercício de uma autoridade não tirânica e o consentimento /adesão do índio às normas e, finalmente, à palavra de Deus? Questiona-se no Diálogo se o gen-tio só se virá a converter mediante o medo e sendo muito submetido. Quer isto dizer que não está em pauta uma conversão forçada mas uma sujeição às autoridades (pe-lo medo) para criar condições a uma posterior conversão (pela persuasão). Deverá atender-se ao conselho de Deus e de homens de boa consciência.

O facto de serem antropófagos revelaria que os índios no estado primitivo não seguiam a lei natural e teriam outras características entre as quais a crença na pa-lavra de feiticeiros, mas, ao mesmo tempo, há aqueles que revelam ter uma con-vivência amigável18 e são vários os testemunhos de verdadeiras conversões. Uma

das primeiras medidas a concretizar é, pois, sujeitar o gentio à lei natural19,

imped-indo que continue nas práticas antropofágicas e a destruir fazendas e a provocar o despovoamento de lugares, para o que é necessário severidade e castigo, segundo Nóbrega20. Em carta da Baía de Agosto de 1557 afirma claramente o seu programa

estratégico:

A ordem que desejamos era fazerem ajuntar ao gentio, este que está sojei-to, em povoa-ções convenientes, e fazer-lhes favores em favor de sua con-versão, e castigar nelles os males que forem pera castigar, e mantê-los em justiça e verdade antre si como vassalos d’El-Rei, e sojeitos à Igreja, como nesta parte são, e fazer-lhes tãobem justiça nos agravos e scandalos dos

na conversão dos ameríndios, de facto, mas simultaneamente trouxe uma proximidade e adaptação da doutrina cristã aos conceitos religiosos da cultura Tupi (EISENBERG, 2000, p.72).

16 Salientado também por EISENBERG, 2000, p.100.

17 Entendimento, memória e vontade seriam as três potências da alma, conforme se lembra no

Diá-logo (p.234). Todos os homens teriam uma alma e bestialidade em estado natural (p.237). Os ame-ríndios davam crédito a um feiticeiro e valorizavam a vingança dos inimigos, a valentia, a posse de muitas mulheres, para obtenção da bem aventurança (p.238). Além disso divinizavam o trovão pe-lo grande pavor que lhes inspirava (p.238). A diferença em relação a outros povos, de grandes civi-lizações não estaria no entendimento mas na mais complexa criação e organização (p.239), simpli-cidade esta que até poderia ser mais vantajosa no trabalho do missionário (p.241): “Mais fácil hé de converter hum ignorante que hum malicioso e soberbo”. Recorda-se a propósito o herege e o judeu pertinaz.

18 NÓBREGA. Diálogo, pp. 249-250.

19 NÓBREGA. “Ao P. Miguel de Torres, Lisboa, da Baía 8 de Maio de 1558”. In Cartas do Brasil…,

(pp. 277-292), p. 278. O padre Miguel de Torres, aragonês, quando convidado para confessor da Ra-inha D. Catarina tRa-inha já experiência de Visitador de Portugal e era Provincial de Andaluzia. Em 1555 assume o cargo de Provincial de Portugal até 1561. Posteriormente voltará a ser Visitador (1566-1567).

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christãos, o que se faria bem se a justiça secular e eclesiástica fosse mais zelosa, como convem à honrra de N. Senhor e bem comum da terra; e desta maneira podião hir cada dia ganhando gente e sojeitando-a ao jugo da rre-zão. E os que não quisessem recebê-lo, sobjeitá-los e fazê-los tributários ao serviço d’El-Rei e dos christãos, que os ajudassem a senhoriar, como se fes em todas as terras novas que são conquistadas, como do Peru e outras mui-tas.21

É notório em Nóbrega o conhecimento que recebe e comenta de casos de missão ocorridos na América espanhola. Teoriza sobre estratégias a seguir e compa-ra com experiências no Pacompa-raguai, nas Antilhas ou no Peru. A justificação política desenvolvida por Nóbrega para as Aldeias, ter-se-á tornado, aliás, modelo para as missões jesuíticas lideradas por José de Acosta em Juli, no Peru, e, mais tarde, para as reduções do Paraguai. Seria a reforma de Manuel da Nóbrega inspirada na enco-mienda , sistema que conduzia à submissão à autoridade da Coroa espanhola e im-plicava uma distribuição da força de trabalho indígena entre os colonos cristãos? Nele os colonos passaram a pagar um "salário" pelos serviços prestados, ficando os nativos livres e protegidos da escravatura. Foi uma vitória dos dominicanos ao gar-antir a aceitação e cumprimento da bula papal de 1537 pelas Cortes de Castela.

Nas Aldeias preconizadas pelo mesmo jesuíta, os ameríndios que aceitassem a submissão conservariam a sua liberdade e seriam protegidos contra os colonos, po-dendo naturalmente escolher, em seu lugar, a venda do trabalho a um senhor cris-tão. Mas os que recusassem a submissão seriam tratados como adquiridos em guerra justa, como escravos. Revela-nos Nóbrega um inequívoco desejo de sujeição tem-poral dos ameríndios à monarquia portuguesa (fazê-los vassalos do rei) e à sua jus-tiça, tal como ao poder da Igreja, requerendo o bem comum. Quando necessário in-terviriam os cristãos para o seu senhorio. Ora nem a justiça civil nem a eclesiástica parecem, todavia, ter o zelo bastante e além disso há que contar, segundo escreve, com a má conduta dos próprios cristãos. Não admira, pois, que os ameríndios genti-os fujam em parte por culpa dgenti-os colongenti-os que lhes tomam terras e roças e lhes in-cutem o medo de virem a ser mortos pelos brancos, acrescentando que os jesuítas os queriam juntos para facilitar tal tarefa. Fojem assim com os filhos, já doutrinados, forçados pela tirania, conforme afirma, e a má vizinhança e maus costumes dos cris-tãos. Trata-se, pois, de uma situação em que não reina a justiça, agravada pelo facto dos índios não terem direito a testemunhar contra cristãos. Anseia o jesuíta pela paz e estabilidade para poder baptizar e casar ameríndios.

É nítida a vontade de uma sujeição pacífica e zelosa como vassalos em pov-oações cristãs, fazendo reinar a justiça com vista ao bem comum. Nestes termos só quem recusasse a concórdia é que seria remetido a tributário e sujeito a outras for-mas de autoridade. A inclusão forçada na cultura cristã conduziria naturalmente num futuro próximo à conversão.22 Como salienta Eisenberg, “Na busca de novas

21 NÓBREGA. “Ao P. Miguel de Torres, Lisboa, da Baía (Rio Vermelho) Agosto de 1557”. In Cartas

do Brasil…, pp. 256-257. Nóbrega, passos adiante, dá como exemplo positivo os Carijós, senhore-ados pelos castelhanos do Paraguai, lugar, aliás, que atrairia o missionário. Volta a referi-los em Cartas de 2 de Setembro de 1557 e de 8 de Maio de 1558 ao mesmo destinatário, valorizando a sua observação directa ou por intermédio de escritos de várias experiências tidas no terreno (Cartas do Brasil…, pp.285-286).

22 Nos aldeamentos que, aliás, não eram auto-subsistentes como as reduções espanholas, dependendo

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cul-maneiras de converter os pagãos através da persuasão, Manuel da Nóbrega e seus colegas acabaram por realizar uma polêmica reforma do empreendimento mis-sionário, que precisava ser cuidadosamente justificada, tanto perante os seus supe-riores jesuítas como também perante a Coroa Portuguesa” (EISENBERG, 2000, p.21).

O problema da concretização das missões parece passar, de facto, na concepção de Nóbrega, pela falta de uma sujeição prévia à autoridade de gente que continua bravia e a conduzir-se pelo medo, aliado à má conduta dos próprios cristãos.23 Mas o

problema não reside só nestas circunstâncias pois apesar da melhor conduta e jus-tiça implantadas, os ameríndios continuavam com práticas bestiais. Daí Nóbrega afirmar que a ameaça índia só poderá acabar pelo temor e sujeição, pelo “jugo justo”, obtendo-se vassalagem dos índios, aumentando-se as criações e engenhos, e os homens escravos legítimos “tomados em guerra justa”.24 A Baía seria, aliás, o

modelo e incentivo para as outras capitanias, pelo terror que inspiraria, advindo daí maior povoamento. Contar-se-ia com o esforço de moradores, de seus escravos e de índios amigos.

O convite ou a persuasão dos nativos a saírem das tribos (vizinhas ou inimi-gas) e a morarem numa Aldeia, isto é, num novo povoamento, não era, como se vê, um acto tão pacífico assim, embora os ameríndios não fossem forçados a uma con-versão imediata. A sua recusa na mobilidade ocasionaria uma “guerra justa” por forças armadas, o que conduziria ao seu consentimento a submeter-se à autoridade jesuíta por medo de serem mortos ou escravizados. Terá tal posição dado origem a uma fundamentação do poder político (e sua legitimação) pelo medo e pelo consen-timento dos governados mais tarde desenvolvida teoricamente pelo teólogo jesuíta Juan de Mariana? É essa a tese de Eisenberg (EISENBERG, 2000, pp. 22, 92, 117). Questiona este mesmo autor:

“Não seria a reforma proposta por Nóbrega uma maneira mal disfarçada de forçar os índios à conversão? Amedrontar não seria o mesmo que coa-gir? Segundo a interpretação de Nóbrega, os índios submetidos dessa ma-neira ao mando jesuítico estavam, de fato, consentindo em fazê-lo. Para ele, provocar o medo não era coerção, mas sim uma forma de persuasão” (EISENBERG, 2000, p.91)25.

Estaríamos a assistir à congregação em torno da aplicação da justiça (entre ín-dios e para com cristãos) e, simultaneamente à normatividade pela aplicação da Lei que lhes proibiria comer carne humana, guerrear sem ordem do Governador, ter mais do que uma mulher, respeitar feiticeiros, andarem desnudos, fixarem-se entre cristãos com terras repartidas. Com os aldeamentos dirigidos pelos jesuítas e a dis-tribuição dos índios pelos colonos desarticulava-se a estrutura de autoridade das

turais europeias, ao mesmo tempo que o modelavam para o trabalho e para a actividade militar. Ver diferenças nas organizações em FRANZEN, 2003.

23 Insiste nesta mesma ideia em outra epístola. NÓBREGA, “Ao P. Miguel de Torres, Lisboa. Da Baía

2 Setembro de 1557”. In Cartas do Brasil…, p. 268 e pp. 272-273.

24 NÓBREGA, “Ao P. Miguel de Torres, Lisboa, da Baía 8 de Maio de 1558”. In Cartas do Brasil…,

p. 281.

25 Disserta no seu trabalho sobre a concepção tomista de medo (o servil e o filial que é próprio dos

que acreditam em Deus) e quanto os planos jesuíticos se baseavam na noção de medo servil, não forma directa de conversão mas modo de preparar para as almas receberem a fé cristã (EISEN-BERG, 2000, pp.107-108).

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sociedades Tupi,26 tanto mais que se aboliam os pajés e se esvaziava o poder dos

caciques. Os jesuítas, por seu turno, apropriavam-se nas Aldeias da maioria das funções do antigo conselho de anciãos.

Vem a propósito salientar a proposta de se criar um “protector dos índios”, acusador (e executor do castigo) e defensor, bem pago e – note-se – escolhido pelos jesuítas e aprovado pelo Governador.27 Na verdade procurou-se a sua concretização.

Se de início se tornava difícil encontrar disponível para tal função um bom cristão, com o tempo foi substituído pelo meirinho, nativo geralmente escolhido entre os chefes ameríndios forçados a viver na Aldeia para policiar a comunidade. Não se mostrando política eficaz, contudo, virá a encarregar-se das funções policiais e ex-ecutivas um colono cristão. Mas a indecisão e o debate continuarão a verificar-se no século XVI.

De notar que esta orientação de regras corresponde a práticas já usadas por D. Duarte da Costa e ao regimento de Mem de Sá, ou seja, a leis civis emanadas do so-berano.28 Embora de início contrariar os índios parecia ser uma orientação oposta à

vontade régia, irá na prática procurar-se fundir várias aldeias e, segundo Nóbrega, os índios estavam a aceitar de boa vontade o jugo,29 apesar da grande animosidade

dos colonos. A política secular torna-se, pois, em Nóbrega parte integrante das missões jesuíticas. Explica-o em carta ao Provincial português em 1558.30 Ao fim e ao

cabo, não se distancia tal concepção de colaboração entre os dois poderes, o tem-poral e o espiritual, da ideia já preconizada por Ockham nos finais da Época medie-val e que será medie-valorizada por Juan de Mariana.

A carta de Nóbrega de 5 de Julho de 155931 é uma das mais esclarecedoras da

orgânica de Aldeia, no tocante à doutrina quanto à disciplina e ao direito. Queixa-se da falta de padres para doutrinarem em aldeias de índios entretanto juntas e que visita quando pode32. De interesse a forma como se organiza em torno da Igreja o

ensino e a doutrina, desde a escola até à utilização dos neófitos junto dos seus famil-iares mais velhos, o uso da língua geral e do português, a missa e pregação pelos jesuítas e a pregação pelas casas dos índios do “meirinho, que hé hum seu Princi-pal”,33 meirinho esse que prende e castiga os infractores das normas estabelecidas,

complementando assim a justiça do Governador. Segundo indica os ameríndios teriam muita obediência aos Padres seja para se ausentarem da Aldeia seja para serem assistidos na saúde e ganhavam muito medo com os castigos que se aplica-vam aos criminosos. Quanto aos feiticeiros, eram perseguidos, e o mesmo aconteceu

26 Sobre as sociedades ameríndias, sob diversas perspectivas, se têm debruçado investigadores

CLASTRES, 1995; FERNANDES, 2006; MÉTRAUX, 2014.

27 NÓBREGA. Ao P. Miguel de Torres (1558), p. 282. 28 NÓBREGA. Ao P. Miguel de Torres (1558), p. 283. 29 NÓBREGA. Ao P. Miguel de Torres (1558), p. 284.

30 Esse texto ficou conhecido como Plano Civilizador de 1558. Conforme EISENBERG, 2000, p.109. 31 NÓBREGA. “Ao P. Miguel de Torres e Padres de Portugal, da Baía 5 de Julho de 1559”. In Cartas

do Brasil…, pp. 293-313.

32 Os objectivos de Nóbrega, nem sempre coincidentes com a vontade do Governador e os do seu

conselho, passavam por juntar aldeias numa povoação para melhor sujeição às normas e para que menos padres bastassem à conversão. NÓBREGA. “A Tomé de Sousa, Portugal, da Baía, 5 de Ju-lho de 1559”. In Cartas do Brasil…, (pp. 313-354) p. 332.

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com um índio que veio pregar a santidade,34 sendo redoutrinados alguns que o

recolheram, demonstrando grande arrependimento em suas consciências e devoção, levando outros a disciplinar-se em público. Também revelador de disciplina foi a integração de ameríndios, “grandes” e “pequenos”, em procissão católica. Muitos índios se mostravam “aparelhados” para o baptismo e para o casamento.

Os castigos parece surtirem efeito, entre os quais os aplicados por comerem carne humana, verificando-se o medo ao Governador.35 A propósito de uma

justifi-cação da guerra, Nóbrega também salienta os benefícios desta quando travada con-tra grupos rebeldes que atacam cristãos, legitimando mortes, cativeiro, queima de casas e barcos, para vir a suscitar o pedido de paz pelos ameríndios (o que revela o consentimento já mencionado em termos de teoria política com a concretização ju-rídica da sujeição) e o estabelecimento para isso de um tributo e de normas a cum-prir, colocando-se sob a obediência do Governador. Trata-se de uma situação que o jesuíta julgava impensável até então, como diz. Nessa guerra participavam os cate-cúmenos das povoações e outros índios.36

É, pois, de suma importância e motivo, aliás, de controvérsias, a questão das relações com o nativo. Haverá justificação da guerra? Trata-se de tema debatido de há muito na realidade da América espanhola e cujas reacções doutrinais irão ser quase imediatas (PIMENTEL, 1995, pp. 223-235): bula de Alexandre VI de 1493 con-ferindo à Coroa Espanhola o direito de conquistar e escravizar os habitantes das An-tilhas, então recém-descobertas; junta de juristas e teólogos convocada pelo rei em 1504; argumento da escravidão natural pelo humanista Juan Gines de Sepúlveda, autor do Democrates Secundum; Leys Nuevas de 1542 (VIEGAS, 1998); Francisco de Vitoria (HERNÁNDEZ, 1992) nas suas Relectiones, em De Indis, tratando do estatuto jurídico-antropológico dos ameríndios e defendendo que não estavam sob ju-risdição de qualquer imperador ou Papa, claramente formulando desde 1539 a teoria do poder indirecto.

Para o dominicano Vitoria, derivando o direito de ocupação das terras novas a) do direito natural de associação e comunicação, b) do direito de se pregar a religião cristã, c) da protecção dos inocentes contra a tirania e dos convertidos contra as ameaças dos pagãos e d) do consentimento dos nativos em aliança de guerra contra outros, somente em caso de violação de algum desses direitos pelos índios é que uma guerra contra eles poderia ser considerada justa ou, naturalmente em caso de agressão dos índios contra os cristãos.

Luís de Molina, jesuíta discípulo de Vitória e autor do Tractatus de iustitia et

de iure (1593-1609), colhe muito em toda a discussão castelhana sobre o estatuto

teo-lógico e ético, jurídico e político dos ameríndios e por certo em muias informações dos próprios padres da Companhia de Jesus e na prática de décadas. Seria justa a guerra que visasse recuperar algo injustamente ocupado, submeter súbditos in-justamente revoltados, vingar e reparar injúria inin-justamente recebida, tratando-se

34 Sobre o fenómeno da “santidade” entre os ameríndios e manifestações ocorridas no Brasil

envol-vendo gentios, colonos, mestiços e autoridades portuguesas, importa salientar o trabalho de inves-tigação VAINFAS, 2005.

35 NÓBREGA. Ao P. Miguel de Torres (1559), p.302. O medo na origem do consentimento à

sujei-ção (assim legitimada), aqui patente, voltaria a surgir em Juan de Mariana ao discursar sobre o es-tado natural e em Thomas Hobbes nos inícios do s. XVII. Conforme EISENBERG, 2000, p.18.

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mais de uma guerra defensiva do que de uma guerra movida pela ambição de am-pliar um império ou satisfazer ambições pessoais (HESPANHA, 2001, p. 942). Tam-bém Nóbrega defendeu que só quando movida com a finalidade de reparação de uma ofensa anteriormente sofrida é que uma guerra seria justa, cabendo ao vencedor dominium sobre a vida dos vencidos (segundo o direito das gentes).

Em causa salienta-se uma forte responsabilidade moral do monarca, uma vez que os ameríndios eram considerados vassalos do rei a quem cumpria protegê-los. Na legislação de D. Sebastião de 157037 e na de Filipe II de 1596 o tema da guerra

justa virá naturalmente salientada como condição de aprisionamento e escravatura do índio (mediante guerra legitimada pelas autoridades), excepção à sua natural condição de homens livres. Na Lei de 10 de Setembro de 161138, por seu turno,

reve-lar-se-á a preocupação pela confirmação da condição de “justa” desta guerra (e “para bem do Estado”) em circunstâncias de “guerra, rebelião e levantamento” do gentio devendo o Governador convocar uma Junta com o Bispo, o Chanceler e Desembar-gadores da Relação e todos os Prelados das Ordens informando-se o monarca das causas e argumentos para sua aprovação.

Regressando ao testemunho de Manuel da Nóbrega, também na carta que escreve a Tomé de Sousa, antigo Governador, em 1559, se revela o seu grande desejo por um lado de ver os cristãos reformados nos seus costumes e por outro que os gen-tios se predispusessem a receber a palavra Deus e a entrarem na Igreja “pois Christo N. Senhor por eles tãobem padeceo”. 39 Para isso existiam as missões e era esse o

objectivo do Rei ao mandá-las. Quanto a meios, insiste na sujeição do gentio e um Bispo que reformasse os cristãos. O bispo Pedro Leitão, enviado ao Brasil onde chegou em Dezembro de 1559, parece finalmente significar essa entidade, represen-tando o apoio do clero secular ao empreendimento missionário. A esse novo clima não seria estranho o existente a partir da década de 60 na Cúria romana, contexto que permitirá promulgar três bulas concedendo aos jesuítas no Brasil poderes para adaptar a lei eclesiástica. Como salienta Eisenberg, a 28 de Janeiro de 1561 Pio IV assinou a bula ln supereminentis, concedendo ao Bispo e aos jesuítas do Brasil po-deres para perdoar todos os pecados dos índios (excepto bigamia e homicídio) e pa-ra realizar casamentos consanguíneos. A 15 de Dezembro de 1567, Pio V, por seu turno, emite as bulas Cum Gratiarum Omnium e Cupientes pro Dispensatione, ambas dirigidas aos jesuítas, concedendo a primeira o direito de dispensar os índios de toda a lei positiva da igreja referente ao matrimónio e a segunda o direito de dar indulgências in perpetuum para todos os que visitassem igrejas ou hospitais manti-dos pelos missionários (EISENBERG, 2000, p. 115).

Por outro lado, apesar de não ser essa a orientação inicialmente preconizada, diminuía naturalmente o distanciamento entre a actividade missionária e os prob-lemas seculares da administração colonial, tendo as autoridades para mais os padres como confessores. Nas Aldeias os jesuítas exerciam directamente a autoridade tem-poral, facto que não terá revelado contrariedade ao Visitador de 1566. Será que além da questão da instituição de um regime tutelar para os índios se estaria desenhando

37 BNP, Fundo Geral, Ms. 801, f. 105v. Ley sobre aliberdade dos gentios das Terras do

Bra-zil, e em q casos S podem ou naõ podem captivar. Publicado em CRISTÓVÃO, 2010, pp. 117-119.

38 SILVA, 1854, pp.309-312 e excertos em CRISTÓVÃO, 2010, pp. 130-133. 39 NÓBREGA. A Tomé de Sousa (1559), p. 318.

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um projeto de tutela de toda a sociedade colonial, definido a partir do poder indi-recto (potestas indirecta) que a Igreja e a Companhia de Jesus poderia exercer legit-imamente em caso de degenerescência da ordem moral que impedisse a salvação dos governados, conforme foca Zeron? (ZERON, 2002, pp.232-233)40. Recorde-se a

propósito dessa decadência fenómenos de licenciosidade de costumes pelos colonos e formas ilegais de redução à escravatura do ameríndio.

“O conceito de escravatura, tal qual hoje se define, estava ausente da cultura ameríndia”, tendo sido introduzida pelo europeu, afirmam-no M. Adelina Amorim e José Mendes (AMORIM e MENDES, 2010, p. 30). Porém, desde cedo após o primeiro encontro com o índio que há notícia de escravos41 e a fixação colonial, com

uma alegada necessidade de mão-de-obra sobretudo com o desenvolvimento do cul-tivo de terras ou roças e a cultura açucareira, conduzirá ao seu cativeiro e escravi-zação, recorrendo-se ao resgate (compra de capturados nas guerras entre tribos) ou às “entradas” (incursões pelas aldeias do sertão) conduzidos pelos colonos e, natu-ralmente, a confrontos e reacções dos nativos. O nativo, em caso de necessidade (fome generalizada, por exemplo), também ele poderia descer do sertão e, forçada ou voluntariamente, ser feito escravo.

Os ameríndios são os “negros” (dada a maior parecença com os africanos do que com os asiáticos) ou “negros da terra” por oposição aos escravos africanos de-nominados “negros da Guiné” (embora estes acabem por vir também do Congo e de Angola) e com os quais se encontram lado a lado nas plantações. Parte da legislação a eles respeitante trataria da questão da escravatura. Os casos tradicionalmente pre-vistos desta pela lei civil eram o de guerra justa, comutação da pena de morte, ne-cessidade extrema, condição do ventre materno. A bula Sublimus Dei de 1537 deter-minara que todos os nativos da América eram livres, não podendo ser escravizados. Os dominicanos aceitavam, contudo, a justificação da escravatura de índios derrota-dos em guerra, apelando à ius gentium. Recorde-se que algumas questões antecipa-das pelos dominicanos no séc. XVI continuariam pendentes no epistolário jesuíta de meados da centúria.

Quando Tomé de Sousa, nomeado governador geral, chega ao Brasil, aliás com o primeiro grupo de Jesuítas, procura implementar a orientação régia expressa no seu Regimento. Este se revelava, por um lado, o estado de revolta de ameríndios particularmente na Baía e as medidas extremas previstas para acabar com as destru-ições de fazendas e povoados de colonos, por outro lado, expressava o repúdio por actos de captura ilegítima (sem autorização pelas autoridades, fosse o governador, o provedor-mor ou o capitão da capitania) que os europeus praticavam, assim como incentivava à confraternização com os nativos “amigos” no povoamento pacífico, no comércio e na defesa do território (CRUZ, 2017). Os Jesuítas, por seu turno, ini-ciaram o processo sistemático de evangelização, de “redução” dos gentios, chocando naturalmente com uma mundividência estranha. Sobre os Índios exerciam-se tirani-as, sendo a sua sujeição um logro para roubos, em lugar de lhes proporcionar con-versão e justiça. Esta teria sido a intenção de D. João III, “Rei sancto” como o

40 Do mesmo autor ver Ligne de Foi: la Compagnie de Jésus et l’esclavage dans le processos de formation de la société coloniale en Amérique portugaise (XVIe-XVIIe siècles). Paris: Honoré Champion, 2009. 41 Recorde-se o carregamento de trinta índios feitos cativos embarcados com pau-brasil na nau Bretoa

em 1511, destinados ao comércio europeu. Conforme Artur Teodoro de Matos citado por AMO-RIM e MENDES, 2010, p. 29, nota 7.

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lida Nóbrega42 mais do que escoar população do reino em demasia, povoar e criar

engenhos, buscar riquezas.

Nóbrega exalta-se contra os cristãos que terão ensinado ao ameríndio a rou-barem-se e a venderem-se como escravos.43 Por medo e por cobiça do resgate, os

ín-dios vendem filhas e os mais desamparados, os de práticas do mar assaltam e ven-dem os do sertão. Piorando a situação nota-se a cumplicidade de muitos cristãos e o facto dos ameríndios assim feitos escravos não terem doutrina nem ensino, viverem conforme os seus costumes e os donos praticarem a mancebia com gentios.44 Na

época em que escreve ao ex-governador Tomé de Sousa, as suas esperanças reno-vam-se pois Mem de Sá leva Regimento do rei com propósitos de “por paz ou por guerra” ajudar à conversão. O Governador terá revelado desde logo “prudencia, zelo e virtude, asy no boom governo dos christãos como do gentio, pondo tudo na ordem que N. Senhor lhe ensinou”45. De acordo com uma prática concorde com a ideologia

reinante em Portugal definindo uma monarquia de justiça e velando pela paz social, Mem de Sá teria praticado no Brasil diversas obras no sentido de acabar com longas demandas deixando sem iniciativa de corrupção procuradores e escrivães, servindo Deus e o Rei. Satisfazendo Nóbrega, limitou o jogo e rapinas e com isso blasfémias. Mais do que tudo, juntou quatro ou cinco aldeias dos arredores da cidade numa povoação no Rio Vermelho, para que fossem aproveitadas as roças e outros proveitos, construiu a Igreja de São Paulo e deu exemplos de comportamento jun-tamente com os grandes da terra. Juntou mais aldeias e construiu mais duas igrejas a mais léguas de distância. E mandou apregoar a Lei,46 contudo, nem sempre

acatada.

Revelou, pois, pleno apoio aos Jesuítas, com concentração de milhares de índi-os administradíndi-os no temporal e no espiritual pela Companhia. Queixa-se Nóbrega dos escândalos e falsidades criadas pelos brancos em torno de atitudes tomadas pela autoridade por se sentirem lesados pessoalmente nas disposições que o Governador tomou em prol do bem comum e do serviço régio.47 Também a junção de aldeias

trouxe a discórdia junto daqueles que se aproveitavam do serviço dos ameríndios perto das suas fazendas e os deixavam viver nos seus costumes. Dado ficarem estes sob domínio, logo alguns e a Câmara pretendiam que houvesse repartição como se dera nas Antilhas e no Peru. O Governador não encontrou causa justa para isso.

O jesuíta, por seu turno, a quem pareceria bem conquistar-se a terra e repartir os índios pelos moradores desde que se obrigando a doutriná-los48, recorda que

42 NÓBREGA. A Tomé de Sousa (1559), p. 328. 43 NÓBREGA. A Tomé de Sousa (1559), p. 326. 44 NÓBREGA. A Tomé de Sousa (1559), p. 327.

45 NÓBREGA. A Tomé de Sousa (1559), p. 333. Corresponderia ao bom governante de Mariana que

controlaria os seus súbditos e os conteria nos seus deveres através do exemplo da sua própria con-duta (MARIANA, L.I, c.V).

46 NÓBREGA. A Tomé de Sousa (1559), p. 334. 47 NÓBREGA. A Tomé de Sousa (1559), p. 340.

48 Com o trabalho e debates de Las Casas e outros dominicanos assim como com a bula Sublimus Dei

(1537) estipulando que todos os nativos do Novo Mundo eram homens livres, através das encomi-endas os índios passariam a vender a sua mão-de-obra aos colonos. Nos aldeamentos da América portuguesa e na perspectiva de Nóbrega, havendo uma ameaça de violência justamente aplicada e uma guerra justa movida pelas autoridades coloniais, recusando-se os ameríndios a povoar as Al-deias, poderiam ser tornados escravos. Embora considere não haver coerção, o índio consentia por medo, logo era coagido. EISENBERG, 2000, p.22.

Referências

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