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A SOCIOPOÉTICA COMO MÉTODO DE PESQUISA INSTITUINTE E DECOLONIAL

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Revista de Humanidades e Letras

ISSN: 2359-2354 Vol. 5 | Nº. 2 | Ano 2019

Jacques Gauthier

A SOCIOPOÉTICA COMO MÉTODO DE

PESQUISA INSTITUINTE E DECOLONIAL

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RESUMO

Retomando detalhadamente as orientações básicas da sociopoética (instituição do grupo-pesquisador, valorização das culturas de resistência, pesquisar com o corpo inteiro, utilizar técnicas artísticas de produção de dados e respeitar a propriedade intelectual da comunidade acolhedora da pesquisa sobre a mesma), assim como, os passos de uma pesquisa sociopoética padrão, o autor relaciona essas orientações com conceitualizações da antropologia e da psicologia; sobretudo, ele discute os fecundos conceitos de Deleuze e Guattari: o grupo-pesquisador é um devir, rizomatizando. Mas Deleuze e Guattari têm seus limites, e o autor vem trazendo sua própria conceptualização, numa perspectiva decolonial que contempla a característica espiritual dos saberes e métodos indígenas, africanos e afrodescendentes. O Corpo sem Órgãos, conceitualizado por esses autores, vêm de fato da experimentação por Antonin Artaud do peiote ameríndio. Não é um mero Corpo sem Órgãos, é um Corpo com Coração, corpo de alegria conforme as cosmovisões xamânicas norte-americanas do povo Seneca, e as tradições taoístas e budistas. Tomando por exemplo pesquisas recentes, inclusive, uma feita em estado de transe ayahuasqueiro, ele mostra como o transe se torna método, além da intuição, valorizada pela sociopoética. A partir de exemplos precisos, ilustra os conceitos de “confeto”, “intuiceto” e “personagem conceitual”, e estabelece que o “devir-vacuidade” é fonte de qualquer devir. Nas pesquisas sociopoéticas, o conhecimento de si e a autocura andam junto com a produção cooperativa de conhecimentos, o que é um retorno às origens xamânicas do saber, que inclui sincronicidades fascinantes. Em Simondon encontramos os conceitos de “individualização” e “disparação” como processo pelo qual fluxos infra-individuais se combinam para criar uma realidade de dimensão superior, aqui o devir-filósofo do grupo-pesquisador. Para teorizar a passagem da interculturalidade crítica e poética para uma transculturalidade espiritual, além do conceito de vacuidade, é rapidamente proposta a referência à Psicologia transpessoal, rumo a uma Cultura da Paz.

Palavras-chave: Sociopoética; interculturalidade; filosofia da pesquisa; epistemologia decolonial; espiritualidade.

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RESUMÉ

Reprenant en détail les orientations de base de la sociopoétique (institution du groupe-chercheur, valorisation des cultures de résistance, recherche avec l'ensemble du corps, utilisation de techniques artistiques de production des données et respect de la propriété intellectuelle de la recherche par la communauté qui l´a accueillie), et aussi les étapes de la recherche sociopoétique classique, l’auteur relie ces orientations à des conceptualisa-tions de l’anthropologie et de la psychologie; il discute surtout les concepts féconds de Deleuze et de Guattari: le groupe-chercheur est un devenir, rhizomatisant. Mais Deleuze et Guattari ont leurs limites et l'auteur apporte sa propre conceptualisation, dans une perspective décoloniale qui intègre la caractéristique spirituelle des savoirs et des mé-thodes des peuples autochtones, des afro-descendants et africains. Le Corps sans Orga-ne, conceptualisé par ces auteurs, est issu de l´expérience d'Antonin Artaud avec le peyotl amérindien. Ce n'est pas un simple Corps sans Organe, c'est un Corps avec un Cœur, un corps de joie selon la vision du monde chamanique américaine du peuple Seneca et les traditions taoïste et bouddhiste. Prenant pour exemple ses recherches récentes, notamment en état de transe dû à l´ayahuasca, il montre comment la transe devient une méthode, au-delà de l’intuition valorisée par la sociopoétique. À partir d’exemples précis, il illustre les concepts de "confect", "intuicept" et "personnage con-ceptuel", et établit que le "devenir-vacuité" est la source de tout devenir. Dans les re-cherches sociopoétiques, la connaissance de soi et l’auto-guérison vont de pair avec la production coopérative des connaissances, ce qui est un retour aux origines chamani-ques du savoir, qui comprend des synchronicités fascinantes. Dans Simondon, nous trouvons les concepts d’«individuation» et de «disparation», processus par lesquels des flux infra-individuels se combinent pour créer une réalité de dimension supérieure, ici le devenir-philosophe du groupe-chercheur. Pour théoriser le passage d'une interculturalité critique et poétique à une transculturalité spirituelle, outre le concept de vacuité, la réfé-rence à la psychologie transpersonnelle, vers une culture de la paix, est rapidement pro-posée.

Mots-clé: Sociopoétique; interculturalité; philosophie de de la recherche; épistémologie décoloniale; spiritualité.

Site/Contato

www.capoeirahumanidadeseletras.com.br capoeira.revista@gmail.com

Editores

Marcos Carvalho Lopes marcosclopes@unilab.edu.br Pedro Acosta-Leyva leyva@unilab.edu.br

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A sociopoética como método de pesquisa instituinte e decolonial

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A SOCIOPOÉTICA COMO MÉTODO DE PESQUISA

INSTITUINTE E DECOLONIAL

Jacques Gauthier1 Para René Lourau, in memoriam

Alfredo Martin Sandra Petit

Introdução

Recebi um convite para participar da 1. Semana da África organizada pela UCSAL, Uni-versidade Católica de Salvador, em maio de 2017, através de uma oficina sociopoética e respondi favoravelmente com muita alegria. Com efeito, ao priorizarem a plena autoria dos participantes da pesquisa na realização da mesma, assim como, a interculturalidade crítica e a criatividade ar-tística envolvendo as potências do corpo como modo de produção dos conhecimentos, os socio-poetas se sentem “em casa” desde que se trata da descolonização dos saberes e da invenção de uma epistemologia decolonial. O corpo, os afetos, a potência do grupo, a mobilização de fontes do conhecimento geralmente negligenciadas pela academia, tais como a emoção, as sensações, a intuição e até, aspectos espirituais, constituem a originalidade instituinte da sociopoética como método de pesquisa.

Seu objetivo é elaborar coletivamente problemas a partir do tema gerador da pesquisa, e criar o que chamamos de “confetos” (misturas de conceitos e afetos) e “intuicetos” (misturas de intuição e de conceitos); brincamos de identificar o “personagem conceitual” que se expressa através do grupo-pesquisador. Por exemplo, na mais recente pesquisa que facilitei, no curso de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE - em Caruaru com o tema-gerador da

Fala Sensível, o personagem conceitual (ou seja, nosso grupo-pesquisador) foi identificado como

ABAYOMI.

O que diz a Wikipédia? A palavra abayomi tem origem iorubá, e costuma a ser uma boneca negra, significando aquele que traz felicidade ou alegria. (Abayomi quer dizer

en-1 Foi criado nas montanhas onde amadurece o carvão, graduou-se em filosofia com mestrado na área. Encontrou na

Nova-Caledônia (ainda colônia francesa) o povo do Inhame e participou da criação do sindicato indígena dos trabalhadores da Educação lutando pela independência. É doutor em Educação pela Universidade de Paris 8 e pela Universidade Popular de Kanaky, pesquisando com as Escolas Populares Kanak. Ogan do Candomblé e diplomado em Medicina Tradicional Chinesa (acupuntura), ele pesquisa a inter e transculturalidade, no diálogo entre a ciência acadêmica e as ciências dos povos que foram colonizados - tentando teorizar o reencontro entre ciência e espiritualidade, saber e sabedoria.

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contro precioso: abay=encontro e omi=precioso). O nome serve para meninos e meninas, indis-tintamente.

No candomblé quem cria ABAYOMI é Nanã, a avó ligada à águas do pantanal, à lama destruidora e fecunda ao mesmo tempo, à terra-mãe sagrada da criação fecundada pelos mortos, à reciclagem das matérias usadas (inclusive, nossos corpos, na morte). A alegria das roupas mul-ticolor dá destaque, sedução e poder.

Era só para dar um exemplo. Encontraremos na continuação desta contribuição exemplos de confetos e intuicetos criados por outro grupo-pesquisador, dessa vez, da área de educação. A oficina realizada na UCSAL em maio de 2017 não teve duração suficiente para permitir a forma-ção de pesquisadorxs sociopoetas, foi apenas uma iniciaforma-ção e incitaforma-ção, para os participantes te-rem uma ideia daquilo que fazemos quando pesquisamos com orientações sociopoéticas.

Infelizmente ninguém registrou o número de trabalhos sociopoéticos realizados na aca-demia na área de educação, mas na área de enfermagem foram identificados, só nos últimos 5 anos, cerca de 61 textos científicos publicados em periódicos e bibliotecas virtuais como: Scielo, LILACS, BDENF, periódico CAPES, e BVS.

Experiências com a utilização da abordagem sociopoética são o coração de numerosas te-ses de doutorado e dissertações de mestrado, assim como, de artigos de pesquisa originais desen-volvidos principalmente no Brasil; mas pesquisadores e pesquisadoras de outros países como Espanha, México, Peru e Portugal vêm utilizando essa abordagem

O que é a sociopoética?

A sociopoética segue cinco orientações básicas, suas cinco estrelas multicolor (ver GAUTHIER, 2012):

1) A instituição do grupo-pesquisador, coletivo sensível e inteligente autor e responsável pela pesquisa, inspirado nos “Círculos de Cultura” segundo Paulo Freire (FREIRE, 1987e nas “Assembleias Gerais” da Análise Institucional (LOURAU, 1993): os participantes, chamados de copesquisadores, são pesquisadores e pesquisadoras de si, através da potên-cia do grupo considerado um “continente bom” – para falar como Melanie Klein (ver PETOT, 2017) - acolhedor das angústias, desejos e prazeres de cada um/a, sem julgamen-to nem preconceijulgamen-to. De fajulgamen-to, os/as copesquisadores/as aprendem, mesmo que a oficina sociopoética não demore mais que 16 horas (o que pode ser suficiente para uma pesquisa de Mestrado), a sonhar com o outro, a entrar no sonho do outro, a “devanear o outro” - como diria Donald Woods Winnicott (WINNICOTT, 1975) -, a devanear juntos. Além disso, o grupo-pesquisador marca (insisto sobre o hífen na palavra composta) que ele não

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A sociopoética como método de pesquisa instituinte e decolonial

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é apenas constituído pela adição de pessoas - não é um grupo que pesquisa -, mas se defi-ne como personagem singular, intelectual coletivo, filósofo original e evadefi-nescente (ele se dissolverá) criador de problemas inéditos, de confetos e intuicetos, assim como, de

per-sonagens conceituais. Tomando formo de sujeito em processo de individuação, o

grupo-pesquisador é obviamente percorrido de fluxos diversos, heterogêneos, assim como, de contradições ou conflitos, assumindo paradoxos e incertezas: seu pensamento é um devir (conforme conceitualizaram Deleuze e Guattari em DELEUZE e GUATTARI, 2016) e ele é um filósofo coletivo, porta-voz do personagem conceitual (definido em DELEUZE e GUATTARI, 1992). Já vimos um exemplo de personagem conceitual, mas por que fa-lamos de “pensamento em devir”? Pois, o devir é uma fuga fora dos engessamentos insti-tuídos, das normalizações naturalizadas, no sentido de criar elos instituintes, muitas vezes inesperados e “impensáveis”, constituindo assim novas formas de desejar, se alegrar, se expressar, em dispositivos compostos por áreas ou elementos heterogêneos. Vou dar um exemplo: Deleuze e Guattari enfatizam a pertinência filosófica de “devires-minoritários”, e entre eles, selecionam o “devir-mulher” como ponto de partida de todos os devires (ver Mil Platôs, capítulo 10). De fato, referem-se à obra literária de Marcel Proust com seu “devir-garota”, mas podemos falar do devir-mulher do homem combatendo o machismo e patriarcado (já de maneira bem prática, trocando fraldas e lavando louça, ou tornando-se Oxum em rituais do Candomblé – o segundo não impedindo o primeiro), assim como, do “devir-mulher” da própria mulher, que se torna militante feminista, em casa como fora de casa em lugar de criar filhos esperando tudo e seu contrário da mãe. Na sociopoética, o grupo-pesquisador vivencia um “devir-filósofo”: sua potência crítica para com as domi-nações sofridas e internalizadas pelos seus membros é muito maior da de qualquer um e, coisa linda, essa potência crítica vem sendo atualizada em produções de tipo artístico: a crítica é o lado cara da moeda, a criação, o lado coroa. Assim se tecem ligações inimagi-navelmente poéticas entre áreas heterogêneas: a vida é mais bonita que nunca.

2) Um extreme cuidado com as culturas dominadas e/ou de resistência é a segunda estrela da sociopoética. Qual sua cor? Você decide! Culturas indígenas, afrodescendentes, cultu-ras de mulheres, de trabalhadores do campo e da cidade, cultucultu-ras de crianças, cultucultu-ras de moradores de rua etc. Existem várias maneiras de cuidar com essas culturas no decorrer da pesquisa. Pode ser, pedindo a um sábio ou uma sábia da cultura dominada para inter-pretar os dados produzidos em referência aos conceitos e valores da mesma (por exem-plo, um pajé ou uma Iyalorixá, ou uma mulher camponesa do interior); ou, utilizando uma vivência característica dessa cultura para a produção dos dados; ou ainda, introdu-zindo no grupo-pesquisador alguém vivendo neste mundo cultural diferente como

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ga, a fim de ajudar a perceber outros aspectos, normalmente imperceptível, do tema-gerador da pesquisa. Trata-se, no mínimo, de descolonizar nossas práticas e aprender a pensar de maneira mais ampla, menos “narcisista” (como diria Eduardo Viveiros de Cas-tro, VIVEIROS DE CASTRO, 2013), mais aberta à alteridade, diferença e heterogenei-dade. No melhor dos casos conseguimos pesquisas autenticamente interculturais, com di-alogicidade entre o mundo acadêmico e o mundo, por exemplo, indígena, de quilombo ou de bairro popular. Em todos os casos contestamos o privilégio dado pela academia ao “logos”, à fala racional, já que os movimentos sociais e as comunidades populares não possuem necessariamente a mesma concepção da racionalidade (ela é muito mais prática e engajada, no caso), e não limitam seu jeito de pensar ao mero “cérebro esquerdo”, como se diz, mas pensam com todas as faculdades cognitivas do corpo... tosa as células e cone-xões do cérebro.

3) Assim, a terceira orientação da sociopoética é a exigência de produzir conhecimentos a partir de todas as potências do corpo, e não apenas a razão abstrata, que possui um altís-simo valor, mas não esgota nossa força cognitiva e criativa: a sensibilidade (no toque, no cheiro, na escuta e fala etc.), a emoção, a intuição, a gestualidade, a imaginação (e nota-damente, a faculdade de pensar em imagens, tão valorizada por Jung - ver por exemplo, JUNG, 1995) e até a razão prática (fazer ou dizer a coisa certa no momento certo) partici-pam do que nos é oferecido com o nosso corpo para investigar o ambiente e nossa relação com o mesmo. Isso é a fonte das noções de “confeto” e de “intuiceto”: ninguém pensa apenas com a razão abstrata de tipo lógico. Isso foi comprovado por muitas pesquisas re-centes em biologia e psicologia cognitiva, por exemplo, por Damásio ou Stern (ver DAMÁSIO, 2012 e STERN, 1989). Mas é só ouvir as pessoas que vivem ao nosso redor para perceber o quanto elas são motivadas a compreender o mundo pelos seus afetos. E a intuição, também, tem um papel pouco estudado porque discreto, mas relevante, nas nos-sas orientações e tomadas de decisão. Assim, os sociopoetas sabem se entregar com con-fiança e ousadia às suas intuições, no decorrer das suas pesquisas, particularmente no momento do estudo dos dados, “em casa” – ou “na mata”, pouco importa.

4) Daí o caminho das artes, da prática de técnicas de inspiração artística para a produção dos dados: artes plásticas, música, dança, teatro, contos e poesia são o caminho real para que se expressem esses saberes do corpo, geralmente velados, subconscientes ou inconscien-tes. Com dinâmicas de inspiração artística queremos que participe da pesquisa o

incons-ciente de cada um/a – pelo menos, aquilo que nunca seria expresso em entrevistas, por

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sociopoe-A sociopoética como método de pesquisa instituinte e decolonial

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tas acostumados/as com a prática do seu método acham curioso o fato de que pesquisado-res/as conscienciosos/as consigam se satisfazer com entrevistas, que lembram com tanta força as armadilhas da escola... Queremos, sim, mobilizar em bons caçadores de nós os nossos inconscientes, individuais e coletivos, como co-autores das nossas pesquisas.

Obviamente, não separamos o corpo da mente nem do espírito, pois, no ser huma-no a distinção entre esses três aspectos da pessoa é artificial e, tanto pratica como teori-camente, inconsistente. Depois do trabalho coletivo (na ordem: produção dos dados num estado de relaxamento total favorecendo a livre circulação das energias em nós e o sur-gimento de imagens inconscientes; análise dos dados “na hora”, pelo grupo-pesquisador; estudo “frio”, na solidão, desses dados pelo/a facilitador/a, como se o grupo-pesquisador fosse um filósofo sensível só; contra-análise, pelo grupo-pesquisador, das “conclusões hipotéticas”, dos problemas, confetos e intuicetos oriundos do estudo realizado pelo/a fa-cilitador/a) depois desse trabalho que estrutura o tempo das oficinas é desejável que acon-teçam entrevistas individuais ou em pequenos grupos para precisar a singularidade e ori-ginalidade da contribuição de tal ou qual pessoa, e entender assim melhor as diferenças percorrendo o pensamento coletivo, além de valorizar cada ser na sua diferença, o que possui efeitos terapêuticos.

5) A quinta orientação é o cuidado com a posse da pesquisa, pelo próprio

grupo-pesquisador, e não pela academia. Não podemos tratar os participantes como objetos uma vez a pesquisa finalizada. Eles devem nos orientar sobre o uso da mesma pelos seus pró-prios objetivos e não apenas a favor dos nossos objetivos acadêmicos - nós, geralmente, já estamos em processo de formação acadêmica através de mestrados, doutorados etc.: o interesse pela pesquisa, desde o início foi, primeiro, nosso; mas o grupo como tal, ou a comunidade acolhedora do projeto, podem pedir nossa contribuição na realização de mostras, intervenções artísticas ou sociais etc., tornadas possíveis pela pesquisa. Esse as-pecto é politicamente da maior importância: quem vai ao campo de pesquisa em “con-quistador vergonhoso”, ou seja, envolvido/a na sua luta egocentrada para se qualificar academicamente - e que precisa imperativamente se apossar dos saberes dos outros (ge-ralmente, membros de grupos populares), para mim é um explorador dos saberes criados pelas práticas populares, um explorador científico do povo. Isso é politicamente inaceitá-vel. A sociopoética, pelo contrário, fornece dispositivos para que aqueles detentores de saberes populares se tornem filósofos, ou melhor, vivenciem um devir-filósofo através do grupo-pesquisador. Eles participam da produção de saberes científicos sem que esses sa-beres lhes sejam roubados por acadêmicos e acadêmicas frequentemente “bem

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nados;/as” - e da esquerda política! – que criam assim uma mais-valia de conhecimento, exploração grátis dos saberes populares, que no caso de povos que foram colonizados, pode ser um estupro realizado para com o Sagrado Ancestral (de fato, esses povos geral-mente se protegem, ao não desvelarem à academia seus saberes mais vitais em termos es-pirituais e culturais). Veremos na continuação desta contribuição que na sociopoética, podemos convocar os Antepassados e Ancestrais, assim como, as Plantas de Poder, como produtores de conhecimento e co-autores da pesquisa.

Uma pergunta, antes de sairmos da contemplação do nosso mundo penta-estralado: O que é científico, o que é filosófico, no trabalho sociopoético? A resposta é fácil: o filosófico é o aspecto dominante das sessões de pesquisa, a elaboração de pro-blemas, a criação de confetos e intuicetos. Agradeço muito à colega e amiga Profa. Dra. Sandra Petit que chamou minha atenção sobre esse aspecto desde o século passado: “Com a sociopoética tive uma visão nova e prazerosa da filosofia!”. O aspecto científico aparece quando se coloca a pesquisa sociopoética em diálogo com outras pesquisas pro-duzidas pela academia, seja com abordagem próxima, seja com abordagem distante, bem padronizada pelo instituído: como fonte de pesquisas qualitativas, a sociopoética produz conhecimentos científicos de um grupo sobre si próprio, que não deixa de fora seu in-consciente (contrariamente à maioria das pesquisas), e “diz algo” sobre a comunidade de origem deste grupo. Permite conhecer melhor essa comunidade, numa ida e vinda entre o interior e o exterior (escrevo “o exterior”, porque os facilitadores colocam os dados pro-duzidos em interação dialógica com as teorias científicas de que a academia gosta: per-tence às regras do jogo da escrita universitária; pretendemos enriquecer as teorias dos grandes pensadores da área em que atuamos).

Estou cada vez mais convencido de que a sociopoética, que festejou seus 20 anos em 2015, tem brilhante futuro no século XXI, que será o século da descolonização do pensamento, da democratização e autogestão dos dispositivos de pesquisa e do empoderamento dos sujeitos, frente aos perigos de uniformização e manipulação dos corpos, das mentes e dos espíritos pelo e dentro do “Capitalismo Mundial Integrado” - para falar como Félix Guattari (GUATTARI, 1981).

Sociopoética e epistemologia decolonial

Vou tentar destacar o aspecto instituinte da sociopoética em termos epistemológicos:

1. O fato de que a produção do conhecimento é coletiva. Cinco aspectos devem ser considerados:

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A sociopoética como método de pesquisa instituinte e decolonial

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a) O grupo é acolhedor e não apenas ninguém avalia ninguém, mas sobretudo, existe um respeito e carinho mútuos que facilitam a expressão de realidades íntimas que, frequentemente, tal ou qual copesquisador/a descobre no momento em que comenta sua criação (até, aconteceu uma vez num grupo-pesquisador do Rio Grande do Sul que uma participante vivencie um “flash” em que visualizou um trauma sexual que tinha totalmente recalcado); às vezes, essa descoberta interage com a fala ou criação de outro participante e ajuda na distanciação de si, ampliando a mente. Não é raro pessoas vivenciarem processos de autocura no decorrer da pesquisa, apesar do contra-to ser exclusivamente de produção de conhecimencontra-tos. Os facilitadores não podem e não devem brincar de terapeutas: seria trair a confiança colocada neles. Apenas, de-vem saber lidar com risos, choros e outras manifestações emocionais, o que não é muito difícil. O interessante, aqui, é que voltamos ao mundo filosófico de antes de Aristóteles, quando ensinar algo era curar e quando educar era cuidar. No meu ver, voltamos às origens xamânicas do pensamento, quando não tinha uma barreira no ní-vel do diafragma, quando as energias corporais estavam fluentes, integrando o físico, o emocional, o cognitivo e o espiritual (ver REICH, 1995, LOWEN, 1997).

b) Nessa visão “coletivista” da pesquisa científica e filosófica existe o exato contrário da homogeneização e padronização dos seres tal como é produzida pelo capitalismo consumista globalizado. A sociopoética valoriza as diferenças ínfimas, as perspecti-vas originais e singulares. Se quisermos encontrar vistas maioritárias, comumente compartilhadas, é melhor escolher outra abordagem de pesquisa! Temos uma paixão pela não-conformidade. Isso me lembra a civilização melanésia onde, quando uma pessoa só, isolada na sua visão, diz o contrário de todas as outras, o grupo lhe dá uma importância impar: será que essa pessoa não tem um terceiro olho, mais potente que os olhos comuns? As entrevistas individuais que acontecem no fim da pesquisa são infinitamente mais ricas que as entrevistas habituais em pesquisas normalizadas, pois têm por objetivo a explicitação da diferença de cada um/a (a qual apareceu em intera-ção com o inconsciente), e a fascinante reflexão dos interessados sobre sua originali-dade revelada no grupo e pelo grupo - que eles nem sabiam possuir antes da pesquisa. c) Assim, o desvelamento racional – base da filosofia eurodescendente – encontra o

sentido do mistério e da parte de escuridão que há em toda luz, típico do modo de pensar nas culturas da Ancestralidade (ver SODRÉ, 1988 – do outro lado do Atlânti-co, Michel Serres falava da filosofia lunar dos Romanos, que se opunha à filosofia so-lar dos Gregos, ocupados a colocar tudo na luz crua de Apolo – ver SERRES, 1983...

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Podemos igualmente voltar ao jovem NIETZSCHE, 2007, que opunha o dionisismo com seu aspecto sombrio, telúrico e selvagem, à luz apolíneo do conceito). A noção sociopoética de confeto integra o lunar com o solar, o selvagem com o racional. Com o intuiceto ligamos o Sol conceitual da racionalidade com o Plasma do Raio que ex-cede a racionalidade, rasgando (O-YÁ = “Ela rasgou!”, em Iorubá) o Céu do Logos, das nossas falas acadêmicas, por intuições repentinas sem qualquer tipo de justificati-va razoável.

d) Nessa interação entre o coletivo e o singular fluem os conhecimentos como ondas energéticas. A fala, nas civilizações da Ancestralidade, é uma potência, ela é, como dizem os linguistas, “pragmática”, ela é criadora, ela é um devir. O interessante é que certas falas-conhecimentos-energias me atravessam assim como atravessam, por exemplo, 3 outros membros do grupo-pesquisador: elas são infra-individuais. Por cer-to lado, elas mostram a existência desses outros em mim, e de mim neles. E no mes-mo tempo, elas podem se opor à fala de 2 outros copesquisadores, e combinar com a fala de um outro abrindo novas perspectivas. Assim, essas falas íntimas tomam seu pleno sentido no grupo inteiro, na estrutura complexa do filósofo coletivo que somos. Descobrimos que pensar é um processo coletivo dentro da prática da pesquisa, de maneira bem concreta e vivencial – o que se opõe totalmente ao individualismo rei-nando na academia. Gilbert Simondon foi o teórico desse tipo de processo de indivi-duação, do pré-individual ao grupal com seu conceito de “transdução” (SIMONDON, 2005), mas podemos também dizer que este processo é parecido com o que acontece em rituais sagrados africanos, afrodescendentes ou indígenas, quando energias de mesma frequência criadas ou “chamadas” pelo dispositivo grupal perpassam vários corpos, ao mesmo tempo que essas energias infra-individuais participam do andamen-to do grupo, ampliando assim os corpos individuais num corpo coletivo integrado nas suas contradições e diferenças, e incluído em forças cósmicas (o “Axé”).

e) Existe aqui um aspecto espiritual, sempre negado no mundo acadêmico eurodescen-dente: nessa livre confrontação e interação entre saberes vindos do inconsciente, o “eu” se enfraquece, assim como os apegos. Tornamo-nos mais fluídos, mais abertos e flexíveis. Alguns entre nós (mas nem todos, existe total liberdade de aderir ou não: mais uma vez, a sociopoética não é uma teoria, mas um método) acreditam que essa abertura nos relaciona com seres espirituais não encarnados, que se atualizam em nós... e, eventualmente, participam diretamente da pesquisa.

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A sociopoética como método de pesquisa instituinte e decolonial

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2. O grupo-pesquisador é autor da pesquisa, e não o facilitador acadêmico que apenas é guardião do tempo, da importantíssima igualdade entre todos no direito de se expressar, da ausência de qualquer forma de julgamento sobre o outro e, obviamente, aquele que fornece as técnicas de produção de dados, assim como os resultados do estudo, “em casa” (ou “na mata!”), dos dados da pesquisa. As hierarquias de poder-saber, tão estudadas pela Análise Institucional (e desconstruídas pelos “analisadores” – ver LOURAU, 1975), por Foucault em todos os momentos de sua obra (por exemplo, FOUCAULT, 2000), por De-leuze e Guattari em Mil Platôs (DELEUZE e GUATTARI, 1980), são ativamente subver-tidas pelo grupo-pesquisador. Estamos num ambiente libertário que lembra o mundo in-dígena onde a noção de “chefe” não possui sentido e onde os saberes são compartilhados (salvo os do xamã, que são saberes de cura na comunidade e de guerra contra os agresso-res), ou ainda, as Assembleias Gerais do movimento operário libertário.

3. Parece-me que integramos, sem querer fazê-lo conscientemente – o que é mais inte-ressante! - o “perspectivismo” indígena evidenciado por Eduardo Viveiros de Castro (VIVEIROS DE CASTRO, 2013). Com efeito, mostramos a quem ainda podia duvidar disso, que uma técnica de produção de dados permite a atualização expressiva de certos aspectos do tema gerador da pesquisa, e deixa outros aspectos na sombra. Com uma nica oriunda do Teatro do Oprimido segundo Augusto Boal (por exemplo, a fecunda téc-nica do “Teatro-Imagem”, ver BOAL, 1988), aparecerão dados muito diferentes daqueles favorecidos por uma técnica de criação em artes plásticas. Imaginem a distância, ainda, com dados que viriam de entrevistas! Aqui é bom se conscientizar de que o dispositivo do grupo-pesquisador favorece “ilusões grupais” (sobre esse conceito, ver KAES, 1991) podendo acabar em minimizar as contradições dentro do grupo e criar dados um pouco ingênuos e pior: muito negativos em termos de conhecimento: ilusões de consenso. Acontece raramente, mas pode acontecer, e quando acontece, é bom implementar uma técnica mais agressiva, que obrigue os participantes a buscar as contradições dentro deles, e perceber que dentro do grupo existem contradições e até, conflitos cognitivos. Mas fi-camos tranquilos: a técnica do teatro-imagem adaptada à pesquisa (ver GAUTHIER, 2012) sempre revela os conflitos velados... até, o próprio Teatro do Oprimido foi criado para isso, e para resolver esses conflitos no benefício dos oprimidos. A técnica do “diário de itinerância” oriunda da Análise Institucional (ver notadamente BARBIER, 2006), on-de cada copesquisador/a poon-de escrever, colar, on-desenhar... tudo que quiser – até os sonhos da noite - durante as sessões, e socializado no início ou no fim de cada sessão, pertence à nossa visão perspectivista da vida.

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4. Pensamos com o corpo, com nossas emoções e sensações e até, motricidade; pen-samos chorando, rindo, dançando: eis uma contribuição decolonial no fazer-ciência. Se você não acreditar nisso, participe de um ritual, você verá! Claro que a academia desqua-lifica essas “coisas de selvagens”. Mas, da mesma maneira que Bergson deu suas letras de nobreza à intuição considerada um método filosófico válido expressando o “Elã vital” (e foi valorizado por essa razão como “filósofo negro” pelo poeta e pensador da “Negri-tude” Leopold Sedar Senghor – ver BERGSON, 2006, DELEUZE, 1966 sobre o bergso-nismo, e DIAGNE, 2011, sobre a relação entre Sennghor e Bergson), podemos justificar o transe como método. É entrar numa lógica onde não somente o pensamento não está cortado das suas origens na vida, no vivo, mas onde ele encontro seu elo com a espiritua-lidade, o que é constante nas culturas da Ancestralidade. Isso é de fundamental

importân-cia numa perspectiva decolonial. Até no lado racional, o dispositivo sociopoético permite

a expressão da racionalidade (diferente do discurso acadêmico privilegiando o “logos”) que os Gregos chamavam de “kairos” – tão presente nas classes populares, racionalidade do falar certo e agir certo no momento certo, e saber calar e não agir em outros momentos (aprendi isso com as educadoras da Escola Comunitária Luiza Mahin do bairro Uruguai em Salvador, ver GAUTHIER 2012).

5. A sociopoética acolhe essas lógicas outras, lógicas do corpo, lógicas do grupo, lógi-cas espirituais, desconhecidas pela academia, Vou apenas dar dois exemplos:

a) Numa pesquisa de Mestrado realizada com indígenas Pataxó do Extreme-Sul da Bahia, a Sociopoeta que orientei Maria Geovanda Batista encontrou uma situação na qual duas anciãs, Dona Zabelê e Dona Jovita (a qual me deu meu nome indígena, Jupatí) que mantiveram a tradição e os saberes ancestrais no pior momento da repres-são colonial, uma – hoje desencarnada - sendo a referência de sabedoria da aldeia, ou-tra, xamã e Mãe-de-Santo na Umbanda, pediram para serem facilitadoras com Geo-vanda da pesquisa realizada na aldeia com o tema gerador do brincar indígena (os in-dígenas chamam de “brincadeira” seus rituais sagrados!). Assim foi a dança do Toré uma técnica de produção de dados, na qual apareceram espíritos que Candomblé e Umbanda chamam de “Caboclos”, e os próprios Pataxó, de “Encantados”. Essas enti-dades, esses Antepassados participaram da pesquisa, produzindo dados (ver

BATISTA, 2004).

b) Numa pesquisa com o tema-gerador da “Noção de saúde em populações afrodes-cendentes e indígenas” que facilitei com dois grupos-pesquisadores compostos prin-cipalmente por afrodescendentes em Salvador (e Tupinambá do Sul do Estado, e

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Pa-A sociopoética como método de pesquisa instituinte e decolonial

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taxó do Extreme-Sul), uma no Terreiro de Candomblé onde eu atuava como Tata (Ogã) do Nkisi (Orixá) Tempo, outra no turno noturno de um Colégio Público com-posto quase exclusivamente de evangélicos/as, apareceu uma concepção do corpo e da saúde onde o aspecto espiritual era de primeira importância (era só trocar “Jesus” por “Orixá”, e reciprocamente). Isso é, com certeza absoluta, uma herança africana compartilhada por dois grupos que se olham como gatos e ratos, os evangélicos e os candomblecistas, os quais são frequentemente (não se deve generalizar) assimilados a criaturas do diabo pelos primeiros. É irônico para os “crentes” que lhe seja lembrada com força sua herança africana, cultural e religiosamente desprezada pela referência bíblica - na versão instituída em muitas igrejas evangélicas brasileiras. Será que a téc-nica academicamente instituída das entrevistas teria evidenciado tal proximidade dos evangélicos com a África dos seus ancestrais? Duvido. Ainda que no caso seja prová-vel, já que os evangelistas são muito racionais e conscientes na proclamação da sua fé (diremos que é o lado “americanização” do Negro... que se tornou um homem ou uma mulher lógica e pragmática).

6) Geralmente, os sociopoetas se apoiam na esquizo-análise de Deleuze e Guattari para teorizar sua prática (ver DELEUZE e GUATTARI, 1980). No entanto, a sociopoética não é uma teoria, e sim um método podendo acolher qualquer construção teórica “acima” (como generalização) ou a propósito (como explicitação) dele. Mas na versão mais recen-te da recen-teorização da sociopoética por mim, seu criador, a ligação entre saber e sabedoria, ciência e espiritualidade é fortemente afirmada, com a certeza de que Deleuze e Guattari pararam no meio do caminho. Assim, na sociopoética tal como a vejo hoje (e ninguém tem obrigação de me seguir), o Corpo sem Órgãos, CsO - tal como conceitualizado em DELEUZE e GUATTARI, 2014, “cresce espiritualmente” em Corpo com Coração, CcC. Com efeito, critico nossos autores por trabalharem principalmente o aspecto Yang, viril, agressivo, cheio, de dentro para fora (Deleuze seria de Ogum, guerreiro nômade do rizo-ma, do inhame, e Guattari de Iansã, fogo da paixão e do raio, da velocidade criadora es-pacial e temporalmente ilimitada – ver VERGER e CARYBÉ, 1985; PRANDI, 2001), desconsiderando o aspecto Yin das coisas, feminino, acolhedor, vazio e de fora para den-tro. Ao integrarmos, como fazem os orientais no taoísmo e no budismo esses duplos as-pectos ganhamos um centro sim, o Coração, que por certo não é um órgão no sentido da medicina alopática ocidental, mas pode ser um “órgão” no sentido da Acupuntura Tradi-cional Chinesa, ou seja, um organizador de fluxos energéticos no seu meridiano e, en-quanto Coração (o Imperador!), no corpo em geral. Este Coração tem a capacidade de se relacionar com os fluxos compassivos e amorosos do universo inteiro, na prática

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medita-Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.5 | Nº. 2 | Ano 2019 | p. 247

tiva da Vacuidade. Deleuze e Guattari, apesar dos aspectos africanos da sua filosofia (ver GAUTHIER, 1999), ficam eurodescendentes, ao desconhecerem o mais importante de todos os devires, que não é o mulher” como afirmam após Proust, nem o “devir-imperceptível”, mas bem, o “devir-vacuidade”. Este devir, o devir-vacuidade, é a prática consciente do elo entre todos os seres sem exceção (GAUTHIER, 2010; 2011). No meu ver, a sociopoética entra nessa lógica como prática científica e filosófica, pois, para com-preender profundamente o outro no grupo-pesquisador, e intuir direto o devir-filósofo no qual estou imerso como membro do grupo-pesquisador, tenho de me esvaziar e me desa-pegar (das minhas crenças, do meu ego, dos meus medos e expectativas etc.).

7) Além disso, ao olharmos com cuidado a origem desse conceito de CsO na obra de Antonin Artaud, percebemos que vem da sua experimentação do peiote com os indígenas Tarahumara do México, no ano de 1937 (ARTAUD, 1971). Como gosto de dizer, as plantas de poder indígenas proporcionam uma ICAÍ, ou seja, Intensificação-Caotização-Ampliação-Integração/Inclusão da Consciência, abrindo-a para o Amor cósmico. Ao ex-perimentarmos essas Mestras de Conhecimento e Saúde, percebemos rapidamente que dentro da experiência da intensificação, ampliação e “desorganização”, caotização do corpo/mente se escondia sua Integração (talvez no sentido de “integração do Self” em Jung – ver JUNG, 1995) e Inclusão numa Consciência-Universo que alguns chamam de “Deus”, outros – os indígenas norte-americanos - de “Grande Mistério”, e os orientais, de “Vacuidade”. Existe uma epistemologia revolucionária, instituinte, das plantas de poder, com a qual pretendo continuar a dialogar teórica e praticamente.

8) Tentamos estudar em várias pesquisas realizadas em estado ICAÍ de consciência (para falar simplesmente, dentro da ação da medicina indígena sagrada Ayahuasca, casa-mento entre um cipó, o mariri, e uma folha, a chacrona, que traz muito DMT ao cérebro, substância psicoativa) os efeitos da epistemologia nativa das Américas sobre os saberes que produzimos. Para os indígenas e as egrégoras espirituais que inspiraram a partir da década de 30 com o nascimento da Igreja do Santo Daime e sua expansão longe da mata nativa, a Ayahuasca é uma Médica e uma Professora, que nos conecta com a Ancestrali-dade: “Aya”, em língua quéchua são os espíritos mortos, e “Huasca”, o cipó – Ayahuas-ca, o cipó dos mortos. Para falar simplesmente, a ingestão da bebida sagrada nos conecta com o divino em nós, nos outros e no Cosmo, com potentes efeitos de cura física, psíqui-ca e espiritual (a evitar formalmente em psíqui-caso de tendências esquizofrênipsíqui-cas – ver

NARANJO, 2015, para pesquisas psicológicas e espirituais sobre os efeitos da ayahuas-ca). Na pesquisa que vou citar, o tema gerador foi “Quem é o/a cuidador/a ambiental?”

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A sociopoética como método de pesquisa instituinte e decolonial

________________________________________________________________________________________________________________________________ – era uma investigação realizada com um grupo-pesquisador pequeno de 10 pessoas,

to-das praticando uma forma de cuidar do ambiente natural e humano, com no seu seio um professor-pesquisador universitário e uma pesquisadora em Educação Ambiental.

Vou me aproveitar dessa apresentação para mostrar concretamente o que chamamos de “elaboração de problema”, “criação de confetos e intuicetos” e “personagem conceitual”.

a) Utilizamos o método do Conto russo inspirado na obra do linguista russo Vladimir Propp (ver PROPP, 1970), com a diretriz de cada copesquisador/a desenhar em esta-do de transe e sob efeito das mirações (imagens, acompanhadas ou não de falas) da-das pela Ayahuasca, 12 cartas A4 respondendo aos 12 momentos de todo conto tradi-cional russo (e de muitos filmes de aventura de todos os tempos!). São os seguintes:

Quem é o herói, a heroína do conto? - o “objeto” desejado - o lugar onde acontece -

o “vilão” que compete pelo mesmo objeto ou atrapalha a vida do herói, da heroína - uma interdição possivelmente transgredida - a derrota do/a herói/heroína - o doador que aparece para dar sua ajuda, o “objeto” doado por ele - a vitória - o aliado im-previsto que surgiu de repente na luta - a marca recebida e o triunfo festejado. Cada

copesquisador/a desenhou e apresentou sua história ao grupo, explicitando cada dese-nho (o que em estado de transe, não é fácil!). Me limitarei a mencionar aqui as “con-clusões hipotéticas” que apresentei como facilitador aos demais membros do grupo-pesquisador para “contra-análise” (realizei esse dever-de-casa do facilitador, de fato, na mata uma semana depois da sessão de produção dos dados, sob a ação da medicina indígena chamada “rapé” – mistura de tabaco e de várias plantas ou folhas com diver-sas propriedades curativas e de conexão com a espiritualidade).

b) Exemplo de dois problemas que identifiquei - entre os cinco que o grupo discutiu após minha volta da mata:

- O problema do positivo e do negativo (os assim chamados “bom” e “ruim”) no fazer e no dizer (na expressão) do/a cuidador/a ambiental, por causa da internalização das repres-sões oriundas da escravidão e do capitalismo, assim como, da instituição acadêmica. - O problema da exigência de estar ao mesmo tempo dentro e fora da situação vivenciada, por causa dos limites institucionais das nossas práticas.

Comentário: só para insistir sobre o interesse desses problemas para gente que lida com o cuidar ambiental, saiu com força o desgaste criado pelas exigências rígidas e padroniza-das da academia eurodescendente no Brasil, que se opõem frontalmente à flexibilidade exigida pelo cuidar de si e pelo cuidar da natureza – sendo inseparáveis esses dois tipos

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Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.5 | Nº. 2 | Ano 2019 | p. 249

de cuidar. Contrariamente ao que se deveria, os pesquisadores e pesquisadoras acabam criando couraças autodestrutivas e/ou depressivas, em lugar de se beneficiar com alegria das energias naturais que querem preservar e expandir. É impossível se entregar a aca-demia, sem manter um distanciamento crítico lúcido e saudável.

c) Exemplo de um confeto e de um intuiceto:

- O confeto de “Portais transculturais de subtilização, purificação e harmonização insti-tuintes a partir das tensões e conflitos externos e internos”.

Comentário: dentro da situação criada pelo contexto institucional apontado pelos proble-mas acima examinados, não há outra escolha que vivenciar uma forma de transmutação das energias em nós. Esse processo é favorecido pela interação com comunidades de cultura outra que a academia, numa perspectiva “transcultural”. Talvez seja a transculturalidade o lugar onde comunicamos com as energias da natureza aquém do falar, na fonte da espiritu-alidade.

- O intuiceto de “Revelação progressiva do velado em mim pela desconstrução do mais

seguro e pela minha responsabilização no coletivo rumo à criação de dispositivos insti-tuintes de reciprocidade, criadores de sincronicidades”.

Comentário: vou só insistir sobre este ensinamento muito valioso trazido pela Ayahuasca (uma avó pequena de cabelos brancos que podemos cruzar na floresta, segundo o imaginá-rio indígena): não podemos avançar sem renunciar definitivamente às nossas crenças, in-clusive, teóricas, mais enraizadas em nós. Como se diz: “Não é brincadeira não!”. Algo sé-rio, no brincar indígena! E as sincronicidades, várias sincronicidades muito estranhas e ins-tigantes apareceram neste momento da pesquisa, provavelmente na medida em que abri-mos mão de vários apegos nossos, para facilitarabri-mos as trocas energéticas, afetivas e cogni-tivas, com os outros membros do grupo-pesquisador, e com a natureza envolvente. (lem-brando que JUNG, 2011, chama de sincronicidade eventos que acontecem aparentemente por acaso, mas cuja aparição simultânea possui um forte sentido para os sujeitos envolvi-dos. Jung nunca escreveu que as sincronicidades eram a manifestação de uma vontade di-vina – tipo: “Nada acontece por acaso” -, pode acreditar que sim, pode acreditar que não. Qualquer que seja nossa crença, nada nos impede de projetar um significado fascinante à sincronicidade dos eventos: somos humanos).

- Por que chamo isso de intuiceto – e não de confeto? Porque, como seve, estamos com um pé fora do racional, e aceitamos essa transgressão da Ordem Acadêmica como positiva, criadora de conhecimentos válidos.

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A sociopoética como método de pesquisa instituinte e decolonial

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- Uma inquietação: Esses resultados não seriam induzidos pela técnica utilizada, envolven-do uma “Parceira Estranha”, a Planta de Poder Ayahuasca? Provavelmente. Mas toda nica cria suas induções. A entrevista coloca os entrevistados em situação neo-escolar, téc-nicas teatrais convocam a corporeidade e induzem respostas corporais etc. O importante é se conscientizar dessas induções no processo de pesquisa: a objetividade não é falta (total-mente ilusória e mistificadora) de implicação dos pesquisadores no seu objeto de estudo e nas suas técnicas de produção de dados – sofremos demais com as autoproclamadas “uni-versalidade e objetividade” dos conhecimentos eurodescendentes, que lhes permitiram desqualificar os conhecimentos dos colonizados como particulares (pensemos no horrível “Dia do Índio” e no qualificativo “afrodescendente”... E você acadêmico/a, você descende

ninguém?... Nem da Universidade tal como concebida na Europa medieval?). A

sociopoé-tica valoriza o Universal dentro dos saberes e dos métodos indígenas e africanos, incluindo os transes ayahuasqueiros e candomblecistas, ao mesmo tempo que destaca o perspecti-vismo crítico-poético (o particularismo) do seu olhar. A mesma mistura de particularismo e universalismo existe na academia eurodescendente, nas universidades budistas da Índia do início da era comum que os invasores muçulmanos destruíram etc.

d) O personagem conceitual criado foi “A Coruja da ancestralidade negríndia,

media-dora de sincronicidades a partir de durações heterogêneas, por desvelar os segredos da noite dentro de nós e estrelar nosso olhar, assim como, tornar um Sol nosso cora-ção”.

Obviamente, é difícil para quem não participou da pesquisa saber o que está atrás dessas palavras, o que vivenciamos como grupo-pesquisador em estado de transe (não disse que o transe devia ser valorizado como método, da mesma maneira que Bergson valorizou a intuição como método?). Mas já se tem uma ideia da riqueza e complexidade dos achados, e o quanto mexemos de maneira fecunda com nosso inconsciente. Como já disse, muito ativa nessa sessão e nos dias que seguiram foi a noção de sincronicidade, tal como elaborada por Jung. Assim, a nossa amiga sociopoeta – e pesquisadora na “Pretagogia” que ela criou (ver PETIT, 2015) -, a Prof. Dra. Sandra Petit da Universidade Federal do Ceará (UFCE) apareceu de repente, me oferecendo uma Coruja de madeira dos índios Pitaguary (ou “Potiguara” do Ceará - povo Tupi que resistiu heroi-camente à colonização portuguesa) muito parecida com a Coruja que desenhei no momento do

Aliado inesperado da minha história – devo dizer que nessa pesquisa, de maneira anarquizante

fui ao mesmo tempo copesquisador e facilitador (roubei um pouco, não sei qual o castigo que está me esperando...). Encontrei imediatamente a teorização da mesma, da linda e inesperada Coruja, no livro de Jamie Sams que estava lendo neste momento preciso: “Les 13 mères originel-les” (com o subtítulo: “A Via Iniciática das Mulheres Ameríndias”) – na cosmovisão do povo

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Seneca da América do Norte. Na página 93 encontramos este poema caracterizando essa coruja, conselheira da “Mãe da Terceira Lua” (tradução minha).

Protetora do doce,

Ela pesa a verdade para que todos possam ver nela A Lei Divina, e ela busca a harmonia

Que vai tornar livre o espírito. Lá, no meio do caos

Das provações terrestres, ela fica reta, Pronta a fazer justiça,

E a compaixão está fluindo das suas mãos. É ela quem responde quando o erro

Mostra a cara destruidora Do ódio e da avidez humanos, Que dividem os humanos em crenças e raças.

Guardiã das leis do Grande Mistério Cujos caminhos tentamos seguir,

Possamos aceitar a unicidade Das verdades que te ouvimos pronunciar.

(SAMS, 2016)

Não temos espaço para elaborar mais esses aspectos. É só apontar que Jamie Sams pro-põe exatamente o que chamamos de confetos na sociopoética, aqui diretamente oriundos da cul-tura popular indígena: no processo de Cura e Justiça, a Terceira Mãe toma a posição do Jacaré, que ajuda na digestão e assimilação da verdade, proporcionando o mergulho dos seus pensamen-tos nas águas dos seus sentimenpensamen-tos pessoais. Não estou inventando: os índios forma os primeiros sociopoétas, e quero que sejam nossa referência. Mas ninguém tem obrigação de querer comigo.

Tecido (Tantra, em sânscrito) intercultural:

Em nossa pesquisa, a Coruja apontava para o conhecimento oculto, velado, que está den-tro da nossa Estrela-Olhar-Coração e até, Sol. É como a noite denden-tro de nós, do dia, como a es-trela ou a lua dentro do sol. Assim, a Educação e o Cuidar ambientais são momentos de descons-trução e destruição do instituído, a partir da Ancestralidade negríndia, simbolizada pela Coruja pretagoga, filósofa e sociopoeta.

Na visão Seneca apontada por Jamie Sams, a Terceira Mãe – ou Mãe da Terceira Lua - manda para a Terra-Mãe o seu cordão umbilical, recebendo ondas de calor oriundas da profundi-dade da terra, enquanto vem sonhando as diferentes soluções para os problemas e conflitos colo-cados. No caso, a cura e a harmonia dependem do respeito dos direitos dos oprimidos e também, da humildade e discrição de cada um/a. Ter gentileza e compaixão para consigo e para com os outros, confiar nas suas forças e na solidariedade do grupo são valores fundamentais que

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permi-A sociopoética como método de pesquisa instituinte e decolonial

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tem ver o que é semelhante dentro das diferenças, se apoiar no outro e encontrar um elo comum de sororidade: é a restauração do Caminho de Beleza. Cada um/a é responsável pelas suas pró-prias ações. Há de alimentar em nós a Bondade amorosa, sem alimentar as penas e mágoas pas-sadas. É assim que caminhar na Beleza é ser portador vivo/a do amor.

Todo isso é fala de Jamie Sams. Poderia ser um parágrafo de qualquer relato de pesquisa sociopoética! Anotei, no nosso relato:

“A Coruja Branca indígena, conselheira da Mãe da Terceira Lua, não tem a severidade nem a crueldade das Iá Mi (possivelmente, ela não carrega o medo dos homens – ma-chos – frente aos poderes ocultos das Mães sobre o destino, e sim a sabedoria feminina, confiante e compassiva, numa civilização membro da Confederação Iroquesa que não colocou a sabedoria “matrística” – segundo o conceito de MATURANA e VERDEN-ZOLLER (2004) na dependência dos homens como aconteceu na África Iorubá, e sim deu proeminente poder político às mulheres).

“Iansã, companheira de Xangô (Iansã toma por vezes a forma de uma borboleta; ela manda aos Eguns - os espíritos dos mortos), estava muito presente como energia duran-te toda a sessão de pesquisa. Aqui encontramos, com a Coruja branca da Mãe da Ter-ceira Lua, a energia de Xangô, amante apaixonado de Iansã, justiceiro que odeia a mentira, a ilusão e o engano”.

(Anotações minhas, inéditas)

Estamos mais que na interculturalidade crítico-poética, estamos na transculturalidade e espiritualidade.

Conclusões

A sociopoética, cujo nascimento foi ligado a meu envolvimento sindical nas lutas do po-vo kanak do Pacífico-Sul pela independência socialista contra o colonialismo e capitalismo fran-cês, bastante politizada na onda libertária da Análise Institucional, estava desde o início intima-mente intercultural, com a convicção de que tinha de convidar para a pesquisa as potências cria-tivas do corpo e do inconsciente. Aprendi das culturas da Ancestralidade de lá a necessidade de que as gerações, principalmente dos avós e netos, sonhem umas com outras (aqui diríamos: “dos Pretos-Velhos e dos Erês”). Que o fluxo vital do devaneio recíproco nunca esteja rompido. A partir de Winnicott (1975), criei o conceito de Espaço-Tempo Coletivo Transicional (ETCT) pa-ra marcar esse espaço de sonho e criatividade, esse espaço-tempo de poeticidade entre gepa-rações (GAUTHIER, 1996).

Pelas minhas iniciações no candomblé de “nação” angola, no budismo Vajrayana da li-nhagem Kagyu e pela minha prática das medicinas sagradas indígenas, entrei na escuta da di-mensão espiritual das “Epistemologias do Sul” (SANTOS e MENESES, 2010). Parece-me uma dimensão importante da reflexão epistemológica no seio das “culturas de agência” - como diriam os/as autores/as de língua inglesa - que não somente resistem, e sim criam o mundo. Essa dimen-são espiritual foi particularmente negligenciada pelas epistemologias coloniais, por causa do

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ape-Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.5 | Nº. 2 | Ano 2019 | p. 253

tito de dominação, e também, pela identificação muito rápida e acrítica entre espiritualidade e religião. A religião é uma forma de dominação social, enquanto a espiritualidade é abertura a uma nova dimensão.

Gilbert Simondon, já citado (SIMONDON, 2005), criou o conceito de “disparação” para pensar o desequilíbrio, a assimetria existindo entre a visão de cada um dos olhos – assimetria que produz a passagem para uma dimensão superior, o volume: é o conflito visual entre o olho direi-to e o olho esquerdo (cada um vendo em dimensão 2, plana), que gera a terceira dimensão... or-dem superior, salto qualitativo. Da mesma maneira, os nossos conflitos culturais, longe de terem apenas a cara de um obstáculo, são também a coroa de uma comunicação numa dimensão supe-rior, precisamente transcultural e espiritual. Até, é no silencio, na intuição e no transe que entra-mos, ou melhor, co-construímos essa dimensão, que podemos chamar de “quinta dimensão” ou de fractal de 4 (4<d<5; sobre as fractais, ver MANDELBROT, 1989: os fractais possuem duas características: eles não têm uma dimensão inteira – são entre o ponto e a linha, ou entre a linha e o plano, ou entre o plano e o volume, como as nuvens, por exemplo... – e se duplicam infinita-mente, vão cada vez mais fundo na sua não-ocupação de todo o espaço... ou do tempo: as batidas cardíacas são fractais, “regularmente irregulares”, assim como a geometria das árvores etc. As fractais cantam o ritmo da vida).

O fascinante é o fato de que os encontros e desencontros culturais através dos quais as epistemologias do Sul se configuram como epistemologias de resistência criativa de dimensão superior às epistemologias do Norte aproximam o sagrado xamânico com as conquistas mais re-centes da física e da biologia acadêmicas. O que se tornou relevante no fim do século XX e neste início de século não são os estados estáveis conhecidos através de leis regulares, mas os estados “longe do equilíbrio” e submetidos a altíssimas energias onde a imprevisibilidade vence a neces-sidade (ver PRIGOGINE e STENGERS, 1988). Encontramos os mesmos fenômenos práticos e cognitivos quando cantamos, dançamos e entramos naqueles estados de consciência que gosto de chamar de ICAÍ - Intensos, Caóticos, Amplos e Integrados/Inclusivos. O físico prêmio Nobel de química Ilya Prigogine gostava de dizer que ele aprendeu mais tocando piano e lendo Bergson sobre a essência do Tempo que frequentando o Cursos de Física da sua Universidade. O que teria acontecido com a física teórica de alto nível se ele tivesse conhecido o transe ayahuasqueiro ou candomblecista? Em que esplendidas equações nos teria levado?

Finalizarei essa contribuição, na qual me sinto alegremente implicado, propondo a intro-dução de considerações oriundas da Psicologia transpessoal nas nossas lutas epistemológicas, rumo a uma Cultura da Paz para o planeta, a humanidade e os outros seres sem exceção (ver, por exemplo, SALDANHA, 2008; BLIN e CHAVAS, 2011 e, em relação à epistemologia decolonial do transe ayahuasqueiro, o JORNAL OF TRANSPESSOAL RESEARCH. V7, N1. 2015).

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Des-A sociopoética como método de pesquisa instituinte e decolonial

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colonizar as mentes é também descolonizar nossas relações com os animais, as árvores, as águas, as plantas alimentares e medicinais, todas nossas esferas de poder. Não é apenas lutar contra um adversário exterior; é também lutar dentro de nós – nova maneira de amar, e de nos amar.

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Jacques Gauthier

Foi criado nas montanhas onde amadurece o carvão, graduou-se em filosofia com mestrado na área. Encontrou na Nova-Caledônia (ainda colônia francesa) o povo do Inhame e participou da criação do sindicato indígena dos trabalhadores da Educação lutando pela independência. É doutor em Educação pela Universidade de Paris 8 e pela Universidade Popular de Kanaky, pesquisando com as Escolas Populares Kanak. Ogan do Candomblé e diplomado em Medicina Tradicional Chinesa (acupuntura), ele pesquisa a inter e transculturalidade, no diálogo entre a ciência acadêmica e as ciências dos povos que foram colonizados - tentando teorizar o reencontro entre ciência e espiritualidade, saber e sabedoria.

Referências

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