Não me abra, sem ser com instrumento próprio, e com todo o cuidado, para não danlficar-me.
Não umideça as pontas dos dedos, para virar minhas folhas.
Não me manuseie com mãos sujas. Não faça anotações em minhas páginas. Não rasgue, nem arranque minhas folhas. Não me erga, tomando-me apenas por uma das capas e, ao ler-me, não se apoie em mim, com os cotovelos, ou com os braços.
Não me deixe aberto, ou com a lombada para ci-ma, nem me deixe em lugares que não sejam meus.
Não coloque entre minhas folhas, objeto algum, mais espesso que uma folha de papel.
Não dobre os cantos de minhas folhas, para mar-car o ponto em que parou: use, para isso, uma tira de papel, ou marcador apropriado.
Pense qae não devo llcar em seu poder, se não durante o tempo estritamente necessário, pois nosso ser solicitado por outros leitores: de-volva-me a Biblioteca, no prazo marcado.
Lembre-se de que nos podemos encontrai novamente e de que vo-ei não gostaria de me vir envelhecido, suja. estragado.
Cuide de mim, e, em troca, eu o ajudarei a ser feliz proporcle-naiuo-llie a mais preciosa arma, na luta pela vida - a INSTRUÇÃO.
ASPECTOS DA F E S T A Considerações s o b r e o s e n t i d o d a f e s t a do, K u a r u p e do C a r n a v a l 0300039943
mu mu n
RETOMSADO
Dissertação a p r e s e n t a d a ao I n s t i t u t o d e L e t r a s , Ciências S o c i a i s e E d u c a -ção , U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l P a u l i s t a "Júlio d e M e s q u i t a F i l h o " - Campus de A r a r a q u a r a , p a r a obtenção d o título de MESTRE em LETRAS s o b a orientação do P r o f . D r . DANTE T R I N G A L I .s i g n i f i c a r ? Pareceme que s i g n i f i c a r s i g n i f i c a a p o s s i b i l i d a d e d e q u a l -q u e r t i p o d e informação s e r t r a d u z i d a numa l i n g u a g e m d i f e r e n -t e " . ( C l a u d e L e v i - S t r a u s s )
DEDICO
a o s meus p a i s , I r e s e
Odo-n e , e à m i Odo-n h a m u l h e r , R e Odo-n a
a o P r o f . D r . D a n t e T r i n g a l i , meu o r i e n t a d o r , p e l a s c o n s t a n t e s ob-servações que t r o u x e p a r a o e n r i q u e c i m e n t o crítico d e s t e t r a b a -l h o : a o P r o f . D r . E d w a r d L o p e s , p e l o i n t e r e s s e e empenho g e n e r o s o com que acompanhou o p e r c u r s o d e s t e t r a b a l h o .
INTRODUÇÃO
São a b u n d a n t e s o s e s t u d o s d o tema d a f e s t a
nos domínios d a E t n o l o g i a , E t n o g r a f i a , A n t r o p o l o g i a e S o
c i o l o g i a , p e l a s m e t o d o l o g i a s t r a d i c i o n a i s próprias d e s
-s e -s campo-s. Não temo-s, porém, a intenção de a n a l i -s a r o
tema da f e s t a através de t a i s m e t o d o l o g i a s . P r i m e i r o por
f a l t a r n o s formação específica em t a i s áreas de c o n h e c i
mento e também p o r p a r e c e r n o s que n o s s o tema, o da f e s
t a , p o d e r i a s e r v i s t o s o b o u t r a s l u z e s . Inúmeras m a n i
-festações f e s t i v a s , de v a r i a d o s m o t i v o s , t r a z e m relações
e correlações na s u a significação. C o n c e n t r a m o - n o s . em
duas f e s t a s e x p r e s s i v a s d a c u l t u r a b r a s i l e i r a : o K u a r u p
e o C a r n a v a l . Com v i s t a s a uma reflexão de caráter e x
ploratório, r e d u z i m o s n o s s o c o r p u s a e s s a s d u a s f e s t i v i
dades a f i m d e l e v a n t a r m o s a s i n v a r i a n t e s d e n o s s o o b j e
-t o , em níveis m a i s homogêneos possíveis de análise. E
a s s i m , numa abordagem semiótica e u t i l i z a n d o - n o s de um
método hipotético-dedutivo, n o s s a dissertação b u s c a r e c o
l o c a r o s e n t i d o da f e s t a . D e n t r o d e s s a abordagem i n s
-truída p e l a m e t o d o l o g i a semiótica, optamos, m a i s p a r t i c u
l a r m e n t e , p e l o exame dos complexos c o n f i g u r a d o r e s d e t r a
ços d i s t i n t i v o s , p e r t i n e n t e s ao n o s s o o b j e t o de análise
- a interrupção do t r a b a l h o , a máscara, a f a n t a s i a , a
dança e a g e s t u a l i d a d e , que se m a n i f e s t a m p o r intermédio
d e várias m o d a l i d a d e s d e d i s c u r s o s , q u e r v e r b a i s , q u e r
O n o s s o método p a r t e d e uma p o s t u r a d a S e
-miótica segundo a q u a l p r o d u z i r s e n t i d o é e s c o l h e r e com
b i n a r e que também f u n d a o o b j e t o como um s i m u l a c r o d a
-q u i l o a -que s e r e f e r e , u m s i g n o , v i r t u a l . A s s i m , com a
m e t o d o l o g i a que e s c o l h e m o s , e s t a r e m o s m o s t r a n d o a s f u n
-ções d e d e t e r m i n a d o s v a l o r e s que r e v e s t e m o o b j e t o d e
n o s s a dissertação e , através d e s s a s funções, é que r e
-c o n s t r u i r e m o s o s e n t i d o " f e s t a " . A n a t u r e z a e o homem,
j á c o l o c o u G r e i m a s ( 1 ) , s e m a n i f e s t a m p a r a nós s o b a f o r
ma d o s s i g n o s que podem, p e l a mediação lingüística, s e r
r e u n i d o s e m c o n j u n t o s , r e c o r t a d o s e r e i n t e r p r e t a d o s c o
m o s i s t e m a s d e relações, t o r n a n d o s e a s s i m o b j e t o s c i e n
-tíficos; na mesma m e d i d a , as transformações d o s
fenôme-n o s d a fenôme-n a t u r e z a e a s mudafenôme-nças r e s u l t a fenôme-n t e s d a a t i v i d a d e h u
mana podem s e r i g u a l m e n t e t r a n s c o d i f i c a d a s e d e n o m i n a
d a s , c o n v e r t e n d o s e a s s i m em descrições b a s e a d a s em u n i
d a d e s lingüísticas com caráter d i s c u r s i v o . A s s i m a n a l i
s a r e m o s a l g u n s a s p e c t o s d a f e s t a , como é p r o d u z i d a e c o
-mo f i c a e n v o l v i d a n a t e i a de relações humanas q u e s e -
mo-b i l i z a p a r a produzí-la. P r o c u r a r e m o s e n f i m mo-b u s c a r o
s e n t i d o r e s u l t a n t e d a intersecção d a s múltiplas relações
s o c i a i s que produzem uma f e s t a .
0 O b j e t o d e análise e n v o l v e f e s t a s e m s o c i e
dades " s i m p l e s " e " c o m p l e x a " . Porém, u l t r a p a s s a o o b j e
-t i v o d e s -t e -t r a b a l h o -traçar uma l i n h a divisória e n -t r e a s
s o c i e d a d e s " s i m p l e s " e "complexa" , d e f i n i n d o - a s de manei_
p i e s " e s t a r e m o s n o s f i x a n d o numa s o c i e d a d e caçadora-cole
t o r a ( e também p e s c a d o r a , como a x i n g u a n a ) , uma s o c i e d a
-d e que não a c u m u l a b e n s , mas que o s -d i s t r i b u i a o s e u g r u
po, i n c l u i n d o o e x c e d e n t e , e s t e , p r o d u z i d o e consumido p e
l o grupo t r i b a l , em f e s t a . P o r o u t r o l a d o , s o c i e d a d e
"complexa", p a r a e s t e t r a b a l h o , é uma s o c i e d a d e que a c u
-mula, não d i s t r i b u i s e u s . b e n s e onde o e x c e d e n t e é comer
c i a l i z a d o d e n t r o d e u m princípio d a e c o n o m i a monetária.
D e n t r o d e s s e p o n t o de v i s t a , a g r a n d e diferença e n t r e
e s s a s s o c i e d a d e s está em que a s o c i e d a d e " s i m p l e s "
procu-r a v i v e procu-r num d e t e procu-r m i n a d o equilíbprocu-rio e n t procu-r e o gprocu-rupo e s e u
meio n a t u r a l : a d a p t a - s e a e l e , não o t r a n s f o r m a - a f i m d e
f a z e - l o p r o d u t i v o . 0 t r a b a l h o e m t a i s s o c i e d a d e s e x i s t e
p a r a a s s e g u r a r á* subsistência do g r u p o t r i b a l e a s u a
p o s t u r a está h a r m o n i o s a m e n t e l i g a d a a s u a religião. N a
s o c i e d a d e "complexa" o t r a b a l h o é uma realização i n d i v i
-d u a l ; é e s p e c i a l i z a -d o p a r a c e r t a s pro-duções -d e b e n s e
serviços, i s t o p o r q u e , sempre p a r t i n d o d e
característi-c a s i n d i v i d u a i s , a s o característi-c i e d a d e "característi-complexa" e x p e r i m e n t o u
nov a s n e c e s s i d a d e s d i a n t e d e s e u mundo e p r o c u r o u s a t i s f a
-zê-las, f a z e n d o com que r o m p e s s e , de m a n e i r a insolúvel,
o equilíbrio e n t r e s e u g r u p o , o equilíbrio c o l e t i v o . A
s o c i e d a d e "complexa", c o n s u m i s t a , l i q u i d o u com o c o n s e n
-s o , que há na -s o c i e d a d e " -s i m p l e -s " , de que o e x c e d e n t e ge
r a desequilíbrio e n t r e o grupo ( e x a t a m e n t e o que v a i d r a
m a t i z a r o C a r n a v a l , numa espécie de resignação, que l e m
versão de s t a t u s ) . A . s o c i e d a d e " c o m p l e x a " t o r n o u - s e com
p l e x a n a s duas n e c e s s i d a d e s , nos s e u s d e s e j o s . Com a
moeda, e s s e s d e s e j o s e n e c e s s i d a d e s não t i v e r a m m a i s l i
-m i t e s e ne-m d e t i v e r a -m o avanço i n d i s c r i -m i n a d o da t e c n o l o
g i a n a extração dos r e c u r s o s n a t u r a i s . A s s i m , com e s s a
p e r s p e c t i v a , d e uma s o c i e d a d e " s i m p l e s " , a x i n g u a n a , a n a
l i s a m o s a f e s t a d o K u a r u p . D a s o c i e d a d e "complexa", c o n
temporânea, a n a l i s a m o s o C a r n a v a l .
Dada a h e t e r o g e n e i d a d e dos d i s c u r s o s d o
K u a r u p e do C a r n a v a l optamos não p o r um c o r p u s rígido ( 2 ) ,
o que n o s s e r i a até impossível, d a d a s a s s u a s condições
de produção, mas p o r um c o r p u s r e p r e s e n t a t i v o , s i g n i f i c a
t i v o , d e onde pudéssemos i n v e n t a r i a r bem a s correlações
e n t r e a s i n v a r i a n t e s que o c o r r e m n a s manifestações d i s
-c u r s i v a s do K u a r u p e do C a r n a v a l . Os d i s -c u r s o s do Kuarup
e d o C a r n a v a l são, p o r t a n t o , heterogêneos. várias n a
-ções ( 3 ) d o A l t o X i n g u c e l e b r a m o K u a r u p . R e t i r a m o s a s
i n v a r i a n t e s o c o r r e n t e s n a s f e s t i v i d a d e s d o K u a r u p d e s s a s
nações, b a s e a n d o - n o s n o r e l a t o d e P e d r o A g o s t i n h o e m
K w a r i p : M i t o e R i t u a l n o A l t o X i n g u ( 4 ) . D o C a r n a v a l ( 5 )
a n a l i s a m o s também s u a s i n v a r i a n t e s q u e s e fundamentam n a
e r a pagã e a t r a v e s s a m a e r a cristã, até n o s s o s d i a s , s e n
do f e s t e j a d o em r u a s e c l u b e s .
Embora j á tenham s i d o o b j e t o s d e p e s q u i s a s ,
e s t a s f i z e r a m análises de a s p e c t o s i s o l a d o s d a s f e s t i v i
-d a -d e s e não -de um p e r c u r s o -de s e n t i -d o -d a s manifestações
9
-p a r a e s s a s d u a s f e s t a s . A n a l i s a r e m o s e s s a s f e s t a s como
práticas s i g n i f i c a n t e s ( 6 ) , onde papéis pré-definidos vão
nos a p r e s e n t a r p a r a d i g m a s c u l t u r a i s d a s o c i e d a d e x i n g u a -na e da s o c i e d a d e contemporânea b r a s i l e i r a q u e promove o C a r n a v a l . Buscamos, com e s t a p e s q u i s a , i n v a r i a n t e s d a f e s t a , p o r meio de s e u s vários a s p e c t o s , a f i m de o p e r a -c i o n a l i z a r um modelo q u e r a s t r e i e o p e r -c u r s o do s e n t i d o d a f e s t a .
0 K u a r u p é uma celebração que tem s e u
iníc i o numa f e s t a de l u t o , t e r m i n a n d o n o u t r a f e s t a de e x a l
-tação à v i d a , onde a comunidade x i n g u a n a , p r o m o t o r a do
c i c l o do K u a r u p , f a z uma n o v a demarcação espácio-temporal
n a a l d e i a n o t r a n s c u r s o d e t o d a s e s s a s f e s t i v i d a d e s . 0
l u t o d a a l d e i a é l e v a n t a d o e substituído p e l a v i d a , r e p r e
s e n t a d a p o r um t r o n c o de m a d e i r a , o K u a r u p , a própria
substância d e onde v i e r a m o s x i n g u a n o s , segundo s e u s m i
-t o s d e o r i g e m . E s s e -t r o n c o é que repõe a p e r d a d a a l d e i a
de a c o r d o com o p a r a d i g m a d a n a r r a t i v a mítica, r e e q u i l i
-b r a n d o a v i d a do g r u p o t r i -b a l , através d a ritualização
d e s s e s e u m i t o . P r o c u r a m o s d e m o n s t r a r t o d a s e s s a s c a r a c
terísticas também com a a j u d a dos gráficos da p e s q u i s a às
campo de P e d r o A g o s t i n h o , a que já n o s r e f e r i m o s . A f e s
ta do K u a r u p , de a c o r d o com a hipótese que p r o c u r a m o s de
m o n s t r a r , p r o v o c a , numa a l d e i a do A l t o X i n g u , uma r e o r g a
nização de s e u espaço. Na v e r d a d e p r o p o r c i o n a mesmo a
d e uma nova t o p i a ( 7 ) . N a semantização d e s s a n o v a t o
-p i a , m o d i f i c a m - s e a vivência e o -p e r c u r s o no es-paço e
i n s t a u r a - s e , c o n s e q u e n t e m e n t e , uma n o v a c r o n i a . E m
sín-t e s e , um novo espaço é sín-t e m p o r a l i z a d o , v i v i d o .
0 C a r n a v a l contemporâneo, que a n a l i s a m o s c o
m o uma f e s t a d a s o c i e d a d e "complexa", tem s u a s f e s t i v i d a
d e s m a r c a d a s p e l a l i b e r d a d e , p e l a s e n s u a l i d a d e , p e l o e r o
t i s m o e p e l a s máscaras. É um espetáculo "sincrético" que
t o d o s podem p a r t i c i p a r d e n t r o de uma vivência c a r n a v a l i
z a d a que d u r a e n q u a n t o d u r a o C a r n a v a l um mundo i n v e r
-t i d o , r e n o v a d o , f e s -t i v o . A m e d i d a , porém, que o m i -t o do
C a r n a v a l f o i s e n d o d r a m a t i z a d o , podemos n o t a r que f o i
t e n d o s e u s e n t i d o d e o r i g e m e s v a z i a d o , p e r d e n d o s u a memó
r i a . C o n s e r v o u , .porém, d a s s u a s o r i g e n s , a l g u n s traços
míticos básicos. A f e s t a c a r n a v a l e s c a é híbrida; t e v e
o r i g e m pagã e tem h o j e características cristãs; não é
uma f e s t a d e u m m i t o e l a b o r a d o . S u a trajetória n a e r a
cristã contemporânea, em 3 ou 4 d i a s de f o l i a , segundo
n o s s a hipótese, é de uma c o r r i d a c o n t r a a m o r t e , a m o r t e
já p r e a n u n c i a d a p e l a Q u a r e s m a , tempo de penitência. Com
i s s o p a s s a a e n c e n a r , de uma f o r m a simultânea a v i d a ( f a
zendo f o l i a ) e a m o r t e ( i n t e r r o m p e n d o a f o l i a n a q u a r t a
-- f e i r a d e c i n z a s ) . A f e s t a c a r n a v a l e s c a , e n f i m , com t r a
ços míticos que a i n d a t r a z de suas o r i g e n s e com o s t r a
-ços que a d q u i r i u n a e r a cristã, " b r i n c a " com o c o n t r a t o
s o c i a l , e s t e que, e m d i a s n o r m a i s , d i a s d e t r a b a l h o , man
l i -d a s s e s s o c i a i s . P a r a o e s t u d o c o n t r a s t i v o d e s s a s d u a s modal i d a d e s d e r i t u a i s f e s t i v o s , a p a r e n t e m e n t e tão d i f e r e n -t e s , o r a argumen-tamos d e s v e n d a n d o o s s i g n o s , o r a demons-t r a m o s o p e r c u r s o d e s e n demons-t i d o d o s s i g n o s . A s s i m , n o s s o d i s c u r s o p o r v e z e s o s c i l a e n t r e o hermenêutico e o c i e n
tífico. É hermenêutico quando t r a b a l h a m o s com e n u n c i a
-dos da ordem do p o d e r s e r e p o d e r não s e r ; é científico
quando a r t i c u l a d o com b a s e e m e n u n c i a d o s d a ordem d o s e r
e não s e r . 0 d i s c u r s o hermenêutico r e v e l a c o n h e c i m e n -t o s , i n -t e r p r e -t a - o s . É u m d i s c u r s o d o c r e r . 0 d i s c u r s o científico constrói c o n h e c i m e n t o s , i n v e n t a r i a - o s . É um d i s c u r s o d o s a b e r . E s s a s fundamentações d i f e r e n t e s d e d i s c u r s o p o s s i b i l i t a m c o n s t r u i r uma m a t r i z p r o f u n d a d a i n t e r t e x t u a l i d a d e que s e t r a m a n o r i t u a l d e s s a s d u a s fes_ t a s . E s t e exercício d e i n t e r t e x t u a l i d a d e , p o r
meio d a seleção d e traços i n v a r i a n t e s d e c a d a r e p r e s e n
-tação f e s t i v a , m o s t r a - s e p a r c i a l , p l u r a l , não a m b i c i o n a o
NOTAS
( 1 ) GREIMAS, A . J . Semiótica e Ciências S o c i a i s . São
P a u l o , E d i t o r a C u l t r i x , 1 9 8 1 , p . 22.
( 2 ) Incluímos n o Apêndice d e s t e t r a b a l h o o s r e l a t o s que
f e z O r l a n d o V i l l a s - B o a s dos m i t o s d o K u a r u p e d a o r i
gem d o p e q u i , n a r r a t i v a s d e f u n d a m e n t a l importância
p a r a a análise d o s e n t i d o d a f e s t a d o K u a r u p . Estão
a o l a d o dos r e l a t o s f e i t o s p o r P e d r o A g o s t i n h o dos
mesmos m i t o s . Queremos com i s s o d e i x a r c l a r a a exis_
tência d a s v a r i a n t e s e i n v a r i a n t e s d o m i t o d a f e s t a
do K u a r u p .
( 3 ) Kamayiurá, Awetí, Waurá, Yawalapití, M e h i n a k u , K u i
-kúro, K a l a p a l o , Txukahamãi e Nahukwá-Matipú. E s s a s
nações d o A l t o X i n g u estão d e n t r o d e uma u n i d a d e geo
gráfica, c u l t u r a l e s o c i a l . S u a s celebrações a p r e
-s e n t a m v a r i a n t e -s . Porém, e -s -s a -s v a r i a n t e -s -são
míni-mas. 0 K u a r u p a t e s t a e s s e p o n t o d e v i s t a .
( 4 ) AGOSTINHO, P e d r o . K w a r x p : M i t o e R i t u a l no A l t o
X i n g u . EPU/EDUSP, 1 9 7 4 .
( 5 ) A s o r i g e n s d o C a r n a v a l estão n a c u l t u r a g r e c o -
roma-n a . Nem p o r i s s o o " d i s c u r s o c a r roma-n a v a l e s c o é úroma-nico,
a s s i m como não é uno o c a r n a v a l b r a s i l e i r o ( o B r a s i l
c o n h e c e u o C a r n a v a l através d e P o r t u g a l , que s o f r e u
13 -embora t e n h a u m padrão u n i v e r s a l , a d q u i r i u m u i t a s f o r m a s no tempo e no espaço. A f e s t a c a r n a v a l e s c a f o i a s s u m i d a p e l a s populações u r b a n a s n a s s u a s vá-r i a s c l a s s e s s o c i a i s , • que a c a b a vá-r a m compondo n o v o s mo t i v o s p a r a a f o l i a c a r n a v a l e s c a . N e s s a s composições estão i m p r i m i d o s o s n o v o s v a l o r e s , o s n o v o s traços c u l t u r a i s a d q u i r i d o s p e l o C a r n a v a l contemporâneo. ( 6 ) 0 t e r m o prática l e v a n o s a p e n s a r numa a t i v i d a d e h u -mana. 0 termo s i g n i f i c a n t e , p o r s u a v e z , l e v a - n o s a
p e n s a r num dado sensível, que t e n h a d e t e r m i n a d o s e n
-t i d o . O s d o i s -t e r m o s , j u n -t o s , prá-tica s i g n i f i c a n -t e ,
l e v a m n o s a c o n c e i t u a r uma ação do homem que dá s e n
-t i d o a uma d e -t e r m i n a d a sequência de s e u compor-tamen-
comportamen-t o d i a n comportamen-t e do mundo, d o s o u comportamen-t r o s e de s i próprio.
( 7 ) A f e s t i v i d a d e r e o r d e n a o tempo e a noção de tempo re
marcado é p r o j e t a d a p a r a o a m b i e n t e humano onde i n s
-t a u r a n o v a s demarcações p a r a o espaço -t e m p o r a l i z a d o
n a v i d a s o c i a l . A s s i m , t o p i a e c r o n i a s e r i a m
seman-tizações ( n o v a s denominações e periodizações) do tem
A f e s t a h o j e é uma suspensão
espáciotempor a l do a q u i / a g o espáciotempor a , do t o p o s d o m i n a n t e . 0 homem, em f e s
-t a , s u p e r a a b a r r e i r a espácio--temporal, e s s a prisão n o
tempo e n o espaço d a história, m a n i p u l a d o s p e l o d i a a
-d i a -d o t r a b a l h o p r o -d u t i v o .
P a r a o cristão, o d i a f e s t i v o , com a t i v i d a
-d e s l i v r e s , está l a t e n t e no -domingo -de c a -d a semana. 0
m i t o d o Gênesis ( 1 ) , n a irrupção d e u m d i s c u r s o bíblico,
m a r c o u o s d i a s d a criação do mundo, n a r r a n d o o s d i a s d e
t r a b a l h o de D e u s , o c r i a d o r do mundo, f i x a n d o em s e i s d i a s
o t r a b a l h o da criação e o d e s c a n s o do c r i a d o r no sétimo,
o domingo, g u a r d a d o h o j e como d i a d e d e s c a n s o .
V o l t a n d o n o s à n a r r a t i v a bíblica, t e x t u a l
-mente, lemos que após s e t e d i a s o cosmos e s t a v a e s t a b e l e
e i d o e o c a o s a f a s t a d o , através do t r a b a l h o solitário de
Deus, num tempo e espaço p r i m o r d i a i s . Deus, a t o r d o d i s
c u r s o bíblico, t e r m i n o u " a o b r a q u e t i n h a f e i t o : e d e s
-c a n s o u n o d i a sétimo, d e p o i s d e t e r a -c a b a d o s u a s o b r a s .
E abençoou o d i a sétimo, e o s a n t i f i c o u , p o r q u e n e s t e
d i a c e s s o u e l e d e p r o d u z i r t o d a s a s o b r a s que t i n h a c r i a
do" ( 2 ) .
Temos então uma p r i m e i r a oposição e n t r e d i a
útil e d i a f e s t i v o , p a r a a b u s c a do s e n t i d o d a f e s t a , em
a l g u n s d e s e u s vários a s p e c t o s , como p r e t e n d e m o s
1 5
-Nos d i a s d e h o j e f a c i l m e n t e o b s e r v a m o s que
o homem, no s e u d i a útil, de t r a b a l h o , e n c o n t r a - s e p r o d u
z i n d o , c o m p e t i n d o com o u t r o s homens, num tempo d e c o n f l i
t o , de produção, de i n t e r e s s e s e num espaço comprometido
com o t r a b a l h o e a produção; ao p a s s o que no d i a f e s t i v o
v a i s e e n c o n t r a r e m "confraternização" com o u t r o s h o
mens, num tempo marcado p a r a f e s t e j a r , d e l i m i t a d o , d e s
-comprometido e num espaço c e r t o , pré-determinado.
F i c a e s t a b e l e c i d o , a s s i m , num p r i m e i r o
mo-mento, a r u p t u r a que o m o t i v o d a f e s t a p r o v o c a no t o p o s
d o m i n a n t e . 0 homem, em s e u d i a de t r a b a l h o , espaço e
tempo de s e u p r o g r a m a "útil", está c o m p e t i n d o com o u t r o s
homens, e n q u a n t o que, em d i a f e s t i v o , está em " l i b e r d a
-de" com e s s e s o u t r o s homens.
P o r o u t r o l a d o , devemos r e f l e t i r q u e o f a - 1 i
z e r humano e n c o n t r a s e u s e n t i d o não n a u t i l i d a d e do d i a
ou na f e s t i v i d a d e do d i a , mas no conteúdo ( v a l o r ) do ob- \
j e t o d e s e u q u e r e r . E p a r a i s s o o f a z e r humano sempre
f o i p o r t a d o r d e uma competência e d e uma p e r f o r m a n c e ( 3 ) .
N a s u a competência sempre q u i s alguma c o i s a , pode e s o u
-b e f a z e r alguma c o i s a , e n q u a n t o que, n a s u a p e r f o r m a n c e ,
r e a l i z o u o s e u f a z e r , f a z e n d o alguma c o i s a , e m d i a s
úteis o u e m d i a s f e s t i v o s .
Não poderemos d i z e r , n o c a s o d a c u l t u r a d e
uma s o c i e d a d e " s i m p l e s " , que e s s e s p o v o s v i v a m uma d i c o
-t o m i a e n -t r e d i a ú-til/dia f e s -t i v o , uma v e z que não v i v e m
t r a b a l h o p r o d u t i v o , c o m p e t i t i v o , c a p i t a l i z a d o . Porém,
poderemos sempre d i z e r q u e t a n t o o homem d e uma s o c i e d a
-de " s i m p l e s " q u a n t o o -de uma s o c i e d a d e "complexa" s e n t e m
a n e c e s s i d a d e de s e l o c a l i z a r e m d i a n t e do mundo. E q u e
somente poderão t e r uma p o s t u r a d i a n t e do mundo, s e s i
-t u a r e m o q u e o mundo é p a r a e l e s (não e x i s -t e s u j e i -t o sem
o b j e t o ) . Terão então que e n c o n t r a r u m s e n t i d o p a r a o
mundo, terão que d i m e n s i o n a r o o b j e t o de s e u q u e r e r , t e
-rão que p r o j e t a r o s e u q u e r e r .
P r i m e i r a m e n t e , ambos perceberão q u e são d o
minados p e l o mundo. Têm q u e comer, t o m a r água. São d o
m i n a d o s f i s i c a m e n t e p e l o mundo. 0 p r o b l e m a c e n t r a l p a s
-s a a -s e r então o e n t e n d i m e n t o d e -s -s e mundo, o domínio d e -s
s e mundo, no s e n t i d o de s a b e r e m o q u e e s s e mundo é. P r e
c i s a m conhecê-lo. E a p a r t i r do momento em q u e l h e dão
s e n t i d o , t r a n s f o r m a n d o o caótico em f o r m a , numa f o r m a e s
t r u t u r a d a , fundamentam (no s e n t i d o d e f u n d a r ) s u a C u l t u
17
-NOTAS
( 1 ) A definição d a criação do mundo p a r a o homem é uma
definição c u l t u r a l . P e l o c r i s t i a n i s m o o Gênesis mos
t r a a n e c e s s i d a d e do homem em impor um s e n t i d o a o
mundo em que v i v e . A enunciação, q u e d e b r e o u o d i s
-c u r s o bíbli-co do Gênesis, -c r i a o mundo no s e n t i d o d e
o p e r a c i o n a l i z a r s u a revelação p a r a o próprio homem,
como um espetáculo, uma c e n a o b s e r v a d a . A e n u n c i a
ção , no Gênesis, c o l o c a o s e r humano no mundo a t r a
-vés d a língua, a r t i c u l a n d o o s e n t i d o do homem s e r e
e s t a r no mundo, onde a n a t u r e z a , q u e e l e v ê , tem a
f o r m a da constituição do mundo e e l e a vê através de
uma visão humana, já com uma n a t u r e z a c u l t u r a l i z a d a ,
o r g a n i z a d a p o r e l e . E e s s e s e n t i d o é dado d e n t r o d e
u m raciocínio s i m p l e s , binário, que v a i c o r r i g i n d o o
caótico, f a z e n d o a p a s s a g e m do c a o s em cosmos, a t r a
-vés da operacionalização d a s oposições céu/terra,
l u z / t r e v a s , t e r r a s / m a r e s , e t c ; t r a b a l h a n d o a s oposjL
ções e d a n d o - l h e s f o r m a : f a z e n d o o p r i m e i r o d i a n a
união d a t a r d e com a manhã, c r i a n d o a n i m a i s s e l v a
-g e n s e domésticos e t c .
N a v e r d a d e , n o d i s c u r s o bíblico, a enunciação c o l o
c a a criação do mundo p e l o t r a b a l h o de D e u s , D^ (des_
t i n a d o r ) , c r i a d o r , onde o indivíduo, D 2 , é destinatá r i o d a criação d e s s e mundo.
bíblica, d o Gênesis, n a articulação d e s s e d i s c u r s o ,
um s e n t i d o p a r a o equilíbrio do mundo humano, d e s d e
s u a criação, d e s d e o t r a b a l h o d e s u a criação, f i c a n
-d o i n s t a u r a -d o também o -d i a f e s t i v o , após s u a criação,
comemorado em d e s c a n s o ( e o c r i s t i a n i s m o não s e s e p a
r o u , até h o j e , d e s s e arquétipo mítico que c r i o u p a r a
e x p l i c a r a criação do mundo. É p o r t a n t o d u a l i s t a ,
c o n t e m p o r i z a m i t o e h i s t ó r i a ) .
( 2 ) Gênesis - 2, 19 - Bíblia S a g r a d a ; B a r s a , C a t h o l i c
P r e s s , 1968.
( 3 ) Os c o n c e i t o s de competência e p e r f o r m a n c e que a q u i
u t i l i z a m o s u l t r a p a s s a m a s definições que c a d a u m tem
n a Lingüística, p a r a nomearem d u a s problemáticas d a
ação humana, definições q u e ganham na Semiótica; com
petência como um s a b e r - f a z e r , o que t o r n a possível um
f a z e r , a l g o v i r t u a l , p o t e n c i a l , próprio d a c r i a t u r a
humana e p e r f o r m a n c e , como o f a z e r , a realização des_
2. A FESTA DO KUARUP
2 . 1 . 0 p r o g r a m a do m i t o
Se os m i t o s n o s l e v a m a uma fórmula do h o
-mem, como n o s d i s s e G u s d o r f ( 1 ) , a essência do f e s t i v o
pode n o s l e v a r à disposição, à intenção, ao p r o g r a m a do
homem ou d a s o c i e d a d e que f a z uma f e s t a e à s u a p o s t u r a
d i a n t e do mundo.
P r e t e n d e m o s e n c a m i n h a r e s s a observação d e
G u s d o r f t a n t o p a r a uma s o c i e d a d e " s i m p l e s " , pré -
políti-c a , que r e a l i z a s u a f e s t a , f e s t a de um m i t o d e políti-caráter
" s a g r a d o " , como para- uma s o c i e d a d e política, " c o m p l e x a " ,
que já f a z uma f e s t a mítica de caráter " p r o f a n o " .
A f e s t a de um m i t o , s a g r a d a , está f i r m a d a e
r e c o n h e c i d a d e n t r o d e u m p a c t o t r i b a l , e é r e a l i z a d a p e
-l o s componentes d e uma s o c i e d a d e " s i m p -l e s " n a prática d e
u m c u l t o , u m r i t u a l . A f e s t a p r o f a n a , d e uma s o c i e d a d e
"complexa" está p r e v i s t a no c o n t r a t o s o c i a l d a s o c i e d a d e
moderna; é uma compensação de d e s e j o s de uma s o c i e d a d e
que d i r i g e o s esforços d e s e u s componentes p a r a o t r a b a
l h o , p a r a a produção. Não h á m a i s a c o n t e c i m e n t o s n a v i
d a do homem moderno com o v u l t o d e um m i t o , a c o n t e c i m e n
p r i m o r d i a i s , dos m i t o s e x e m p l a r e s ( A r e a l i d a d e , p a r a o
homem moderno, e n c o n t r a s e r e i f i c a d a , h i s t o r i c a m e n t e a r
-t i c u l a d a ) . Os m i -t o s de o r i g e m , e x e m p l a r e s , quando r e a -t u a
l i z a d o s , f a l a m d a s condições que atuam n a v i d a do homem
de uma s o c i e d a d e " s i m p l e s " , que c o n h e c e os s e g r e d o s de
s e u mundo e que o r e p e n s a em s u a o r i g e m , v o l t a n d o - s e no
tempo, d i a n t e de q u a l q u e r desequilíbrio em s u a c o m u n i d a
-de. 0 m i t o , como o c o n t r a t o s o c i a l moderno, é um modelo
e x e m p l a r de c o n d u t a , v i v i d o numa dinâmica do tempo d a s o
c i e d a d e " s i m p l e s " , até à s raízes d e s u a significação. S e
gundo M i r c e a E l i a d e ( 2 ) "o m i t o g a r a n t e ao homem que o
que e l e s e p r e p a r a a f a z e r j á f o i f e i t o , e a j u d a - o a e l i
m i n a r a s dúvidas que p o d e r i a c o n c e b e r q u a n t o ao r e s u l t a
-do de s e u empreendimento". 0 a u t o r de M i t o e R e a l i d a d e
a f i r m a a i n d a que, "graças ao m i t o , o mundo pode s e r d i s
-c e r n i d o -como Cosmo p e r f e i t a m e n t e a r t i -c u l a d o , inteligível
e s i g n i f i c a t i v o . Ao n a r r a r como a s c o i s a s f o r a m f e i t a s ,
os m i t o s r e v e l a m p o r quem e p o r q u e o f o r a m , e em q u a i s
circunstâncias" ( 3 ) . T o d a s e s s a s revelações " e n g a j a m o
homem m a i s ou menos d i r e t a m e n t e , p o i s c o n s t i t u e m uma h i s
tória s a g r a d a " ( 4 ) .
A eficácia do r i t u a l - a encenação de um mi.
t o - r e s o l v e o s p r o b l e m a s do homem de uma s o c i e d a d e " s i m
p i e s " , d e n t r o de uma dinâmica do tempo que e n v o l v e s u a
própria história " s a g r a d a " . 0 homem moderno a n a l i s a s u a
história n a p e r s p e c t i v a d o tempo irreversível, d o s f a
2 1 -2.2. A presença da idéia da m o r t e A f e s t a d o K u a r u p r e a l i z a d a p e l a s t r i b o s d o A l t o X i n g u v i v i f i c a a lembrança d a s o r i g e n s do c o s r i i c ex i n guano, o s r i o s n o s s e u s l e i t o s , o s o l em s e u l u g a r . . . a p a r t i r de um s e r mítico, M a v u t s i n i , q u e c r i a a s m u l h e r e s
Kwat e Y a í , numa a l d e i a Murena - c e n t r o do mundo. Com
e s s e a t o p r i m o r d i a l o cosmos f o i e s t a b e l e c i d o n o u n i v e r
-so x i n g u a n o e -somente f o i q u e b r a d o com a m o r t e da
mu-l h e r p r i m o r d i a mu-l . Nas p a mu-l a v r a s d e P e d r o A g o s t i n h o 6 " a irrupção d a m o r t e , o a f a s t a m e n t o do i d e a l e s t a b e l e c i d o , p e l a n a r r a t i v a paradigmática e mítica" ( 5 ) . A m o r t e d e s o r g a n i z a o cosmos x i n g u a n o e f u n da o c a o s . A s s i m , quando d e s a p a r e c e um componente da t r i b o ou d a comunidade i n t e r t r i b a l , t o d o o g r u p o p r e c i s a s e r e e s t r u t u r a r d i a n t e d e t a l p e r d a . A celebração d o Kuarup o b j e t i v a i s s o . 0 m i t o p r e c i s a s e r r e a t u a l i z a d c p a
r a que não h a j a o s e n t i m e n t o d e alguma desintegração t r i
b a l . Repondo a p e r d a no mundo x i n g u a n o , o m i t o é a e x
-pressão v i v a d o s tempos p r i m o r d i a i s , i d e a i s , quando t a l
p e r d a não e x i s t i a . 0 comportamento r e l i g i o s o e ritualístico dos x i n g u a n o s b u s c a e s s e i d e a l e o a t i n g e s i m b o l i c a m e n t e n a f e s t a do K u a r u p . Achamse a s s i m , r e i n t e g r a d o s n a m i -t o l o g i a x i n g u a n a , n a s u a comemoração. S u a c u l -t u r a é r e a t i v a d a , como f o i a cosmovisão de s e u g r u p o . 0 K u a r u p l e m b r a alguém, s u b s t i t u i alguém, é
c r i a s e alguém, l e m b r a s e alguém, e t o d a s a s t r i b o s a m i
-g a s comparecem. 0 K u a r u p f a z a p a s s a -g e m d o i n d e f i n i d o , o
c a o s p a r a o s x i n g u a n o s , p a r a o e s t r u t u r a d o , o cosmos,
mantendo v i v a a lembrança d a s o r i g e n s , d a criação d o s
p r i m e i r o s s e r e s humanos, quando a m o r t e não e r a c o n h e c i
d a . 0 K u a r u p a p a g a a presença d a m o r t e , r e p o n d o com v i
-da o mundo x i n g u a n o .
0 K u a r u p é um t r o n c o de m a d e i r a e a m a d e i
-r a , segundo os x i n g u a n o s , é a p-róp-ria substância de onde
v i e r a m . E s s e t r o n c o é que repõe a p e r d a de a c o r d o com o
p a r a d i g m a d a n a r r a t i v a mítica.
0 c i c l o d o K u a r u p , p a r a P e d r o A g o s t i n h o ,
" c o r r e s p o n d e a um r e c r i a r simbólico do cosmo x i n g u a n o ,
c u j a s características s o c i a i s básicas s e e x p r e s s a m p e l a
própria e s t r u t u r a e conteúdo mítico d a f e s t a , r e c r i a r e s
s e e m que a s forças d e s r u p t i v a s d a m o r t e e d a d e s i n t e g r a
ção s o c i a l s e vencem, e a p a r t i r do q u a l n o v a v i d a r e s
-s u r g e , num e -s t r u a r d e v i t a l i d a d e " ( 6 ) .
2 . 3 . Uma f e s t a de l u t o r e o r g a n i z a o tempo e o espaço
p a r a nova v i d a
A f e s t a do K u a r u p p r o v o c a numa a l d e i a do A l
to X i n g u uma reorganização de s e u espaço. Na v e r d a d e pro
v o c a mesmo a dessemantização de um espaço, s e m a n t i z a n d o
23
ção d e s s a n o v a t o p i a , m o d i f i c a n d o a vivência e o p e r c u r
-s o n e -s -s e novo e-spaço, i n -s t a u r a - -s e uma n o v a c r o n i a . E m
síntese, um novo espaço é t e m p o r a l i z a d o , v i v i d o .
A dessemantização de um espaço e a s e m a n t i
-zação de o u t r o vêm d a prática s i g n i f i c a t i v a do
imaginár i o d o gimaginárupo humano x i n g u a n o , n a s u a m a n e i imaginár a d e o imaginár g a n i
-z a r o u r e o r g a n i -z a r o s e u espaço, c a l c a d a n a e s t r u t u r a
f u n d a m e n t a l d e s u a c u l t u r a .
P a r a f i n s de análise d a organização do s e n
-t i d o n a cons-trução d o espaço d a a l d e i a , s e p a r a m o s d u a s
p r i m e i r a s e g r a n d e s oposições: o espaço construído e o
espaço não construído ( 7 ) , q u e podem s e r v i s u a l i z a d o s n a
: v • V E G E T A Ç Ã O ACIMA OE I M (INCLUI A R V O R E S ! V E G E T A Ç Ã O R A S T E I R A E R A L A / A T A C E S S O PRINCIPAL I a 7 = c a s a s ( 1 , 2 e 3 = c a s a s em padrão t r a d i c i o n a l , com e s t r u t u r a s i m p l i f i c a d a ; 4 = c a s a e m padrão t r a d i c i o n a l , a m a i o r d a a l d e i a e p r i m e i r a a s e r construída; 5 = c a s a com p l a n t a b a i x a em f a l s a e l i p _ s e , t a l como a s t r a d i c i o n a i s , porém com diferenciação e n t r e t e t o e p a r e d e s ; 6 e 7 = c a s a s com p l a n t a b a i x a r e t a n g u l a r e diferenciação e n t r e t e t o e p a r e d e s ) . 8 = j i r a u s p a r a s e c a g e m d e m a n d i o c a 9 = b a l i z a s p a r a j o g o d e f u t e b o l 10 = g a i o l a de gavião I I = c a s a dos homens 12 = t r o n c o d e s c a s c a d o 13 = s e p u l t u r a . F i g . 1 ( F i g u r a r e p r o d u z i d a do l i v r o Habitações Indígenas, de Sílvia C a i u b y N o v a e s e t a l i i . São P a u l o , N o b e l / EDUSP, 1983, p . 1 0 9 ) ;
25
-N o espaço construído c o l o c a m o s a s c a s a s ,
construídas em círculo, c i r c u n d a n d o o espaço não c o n s
-truído, o t e r r e i r o , um espaço amplo, l i v r e . A s c o s t a s
d e tudo i s s o a n a t u r e z a , a Mãe N a t u r e z a .
0 espaço construído, a c a s a , não é l i v r e , é
p r i v a t i v o de um d e t e r m i n a d o grupo de m o r a d o r e s , que tem,
n e s s a organização e s p a c i a l s u a p r i v a c i d a d e r e s g u a r d a d a
n o i n t e r i o r d e l e .
0 espaço não construído, l i v r e , é um espaço
comum, s o c i a l , amplo. 0 espaço amplo, p r i n c i p a l m e n t e nu
ma c u l t u r a " s i m p l e s " é um espaço onírico, de r e p r e s e n t a
-ções, apresenta-ções, exibições. Não é um espaço a p r i s i o
nado, como o do i n t e r i o r d e uma c a s a . É um espaço de e x
teriorizações, um m i c r o - u n i v e r s o , um cosmo, que p r e c i s a
s e r dominado, m a n i p u l a d o , p a r a s e r v i v i d o . N e s s e espaço
o homem p r o c u r a l i b e r t a r - s e , é um espaço d e f e s t a .
A f e s t a do K u a r u p é um a c o n t e c i m e n t o que se
r e a l i z a num espaço não-construído, l i v r e , e x t e r i o r ,
amp l o , s o c i a l . Porém, s u a organização, q u e vem d e um amp a c
-t o -t r i b a l , p a s s a p e l o espaço cons-truído, i n -t e r i o r , p r i v a
do. N e s s e momento a organização e s p a c i a l d a a l d e i a q u e
a n t e c e d e a f e s t a é d e s s e m a n t i z a d a p a r a a semantização do
( F i g u r a r e p r o d u z i d a do l i v r o Habitações Indígenas, de Sílvia C a i u b y N o v a e s e t a l i i . S a o P a u l o , N o b e l / EDUSP, 1983, p . 1 1 6 ) .
ÁREAS PÚBLICAS ivVJ: ÁREAS PARTICULARES
( F i g u r a r e p r o d u z i d a do l i v r o Habitações Indígenas, de Sílvia C a i u b y N o v a e s e t a l i i . S a o P a u l o , N o b e l / EDUSP , 1983, p. 1 1 1 ) .
27
-O K u a r u p é um c i c l o de f e s t a s q u e começa
num r i t u a l funerário, numa f e s t a de l u t o .
A m o r t e de um n a t i v o líder ou de l i n h a g e m do
t r i b o x i n g u a n a é p e r i g o s a p a r a a a l d e i a e p a r e n t e s próx_i
mos. T o r n a - s e necessário a "reparação do dano" p a r a o
f u n c i o n a m e n t o c o e s o d a a l d e i a e n v o l v i d a p e l a m o r t e . E s
-s a reparação é f e i t a no c i c l o do K u a r u p , n a própria o r g a
nização s o c i a l d e s s a f e s t a , onde, s e g u n d o comentários d e
Pedro A g o s t i n h o ( 8 ) , o s x i n g u a n o s mergulham n o início
dos inícios d e s e u s m i t o s d e o r i g e m e r e i n t e g r a m o p r e -s e n t e n o p a -s -s a d o , a n u l a n d o a -s -s i m o tempo d e conflito,caó t i c o , em que l h e s d e i x o u o a c o n t e c i m e n t o de uma m o r t e . Como o início do c i c l o do K u a r u p é um r i -t u a l funerário, e s s e r i -t u a l -tem s e u p o n -t o de p a r -t i d a a -t r a vés de um g r u p o de n a t i v o s d e uma mesma a l d e i a ( e n t e r r a -d o r e s ) -d i r i g i n -d o - s e a o s e n l u t a -d o s ( -d o n o s -d e u m morto lí-d e r o u lí-d e l i n h a g e m lí-d e s s a a l lí-d e i a ) p r o p o n lí-d o - l h e s o e n t e r r o p e l o K u a r u p . 0 e n t e r r o i n i c i a a reorganização do s e n t i d o do espaço v i v i d o p e l a a l d e i a d u r a n t e o c i c l o do K u a r u p ;
i n s t a u r a uma nova t o p i a e uma nova c r o n i a . 0 c o r t e j o
s a i d a c a s a d o morto dando v o l t a e m e i a n a p a r t e c e n t r a l
d e s s a residência ( c f . F i g . 2 ) . ( 0 i n t e r i o r d e uma r e s i
-dência x i n g u a n a é um espaço construído, p r i v a d o , de u s o
do grupo doméstico. A área c e n t r a l é s o c i a l e d e s e r v i
ço) ( 9 ) . A s s i m , o c o r t e j o p a s s a a dessemantizála, i n
t r a f u n c i o n a l i d a d e . D e p o i s o c o r t e j o s a i p e l a p o r t a d o s
f u n d o s . (A p o r t a dos f u n d o s é uma saída íntima do g r u p o
d e m o r a d o r e s . Com o c o r t e j o , p e r d e a q u e l a saída s u a i n
-t i m i d a d e e ganha o u -t r a dimensão s e m â n -t i c a ) . Em s e g u i d a
o c o r t e j o r e t o r n a p e l a p o r t a d i a n t e i r a novamente p a r a o
i n t e r i o r d a residência. P e l a s e g u n d a v e z o c o r t e j o f a z
d o i s c i r c u i t o s e meio no c e n t r o d a residência ( o s m o v i
-mentos tendem sempre a c e n t r a l i z a r , i s t o é, o r g a n i z a r o
c a o s , d e s f a z e r o excêntrico, o que não está c e n t r a l i z a d o ,
d e s s e m a n t i z a n d o a s s i m o espaço i n i c i a l caótico, s e m a n t i
-zando o u t r o , cosmológico), t e n d e n d o p e l a d i r e i t a , numa
direção o p o s t a a o p r i m e i r o , alcançando l o g o após a p o r t a
d i a n t e i r a (uma v e z f e c h a d o s o s d o i s c i r c u i t o s p e r c o r r i
-d o s p e l o c o r t e j o , f i c a q u e b r a -d a a p r i v a c i -d a -d e -do espaço
v i v i d o p e l o g r u p o doméstico, f i c a d e s s e m a n t i z a d a e s s a o r
ganização e s p a c i a l i n i c i a l , ganhando o u t r o s e n t i d o
tam-bém o s espaços s o c i a l e de serviço l o c a l i z a d o s no c e n t r o
da mesma r e s i d ê n c i a ) .
Os movimentos d e n t r o da residência são
semp r e c e n t r a l i z a d o r e s ; semp a r t e m semp a r a a e s q u e r d a , d e semp o i s , semp a
-r a a d i -r e i t a , onde j u n t o s f e c h a m um cí-rculo. 0 último
movimento também é c i r c u l a r , onde o c o r t e j o r o d e i a n o v a
-mente, de uma só v e z , o c e n t r o da residência do morto e
s e d i r i g e p a r a o c e n t r o do t e r r e i r o , onde está a s e p u l t u
r a , que é r o d e a d a v e z e m e i a , d a mesma m a n e i r a q u e n o e s
29
-s e p u l t u r a e-stão i n -s t a u r a d a -s a nova t o p i a e a c r o n i a d a
a l d e i a p a r a o início d e s e u K u a r u p . 0 espaço d a a l d e i a
f o i r e o r g a n i z a d o , n a s u a área construída e n a s u a área
não construída, em s e u espaço a b e r t o e no s e u espaço f e
-chado, r e a r t i c u l a n d o , a i n d a , m a i s d u a s condições e s p a c i a i s ,
dos espaços p r i v a d o x comum e i n t e r i o r x e x t e r i o r , além
d e i n s t a u r a r uma relação d e t r o c a com a N a t u r e z a ( C f .
F i g . 4 ) . F a s e A C a s a d o Morto Cortejo F ú n e b r e F a s e C * Sepultura F i g . 4 ( F i g u r a extraída do l i v r o de P e d r o A g o s t i n h o . K w a r i p : M i t o e R i t u a l no A l t o X i n g u . São P a u l o , EPU/EDUSP, 1974, p. 2 1 4 ) .
2.4. 0 p a c t o e n t r e a V i d a e a M o r t e
A relação de t r o c a que uma t r i b o x i n g u a n a ,
num r i t u a l funerário do K u a r u p , mantém com a N a t u r e z a é
c o n c o m i t a n t e à reorganização (dessemantização e s e m a n t i
zação) do espaço de s u a a l d e i a p a r a t o d o o c i c l o do K u a
-r u p .
0 e n t e r r o d e u m n a t i v o d e l i n h a g e m d a c u l t u
ra x i n g u a n a é uma relação de crédito e débito ( d e t r o c a )
e n t r e a N a t u r e z a e a C u l t u r a .
A s o c i e d a d e ' s i m p l e s " v i v e c o n s t a n t e m e n t e f a
zendo t r o c a s , p a c t o s , c o n t r a t o s , e n t r e o mundo d a n a t u r e
z a e o mundo d a c u l t u r a .
A s s i m , quando uma comunidade x i n g u a n a s o f r e
uma p e r d a , f i c a e s t a b e l e c i d o um débito d e s s a comunidade
com a n a t u r e z a , de a c o r d o com o s i s t e m a de t r o c a que s u a
c u l t u r a mantém com e l a .
A V i d a está p r e s a , p o r t a n t o , a uma t e i a d e
relações:
1. Ao n a s c e r um n a t i v o , a n a t u r e z a c o n t r a i um cré
d i t o com a comunidade (através do g r u p o fanvi
l i a r d e s s e r e c é m - n a s c i d o ) .
VIDA I 2. A comunidade, com e s s e n a s c i m e n t o , c o n t r a i um
débito com a n a t u r e z a , a s s u m i n d o e s s e crédito
com a família.
3. E a família c o n t r a i um débito com a c o m u n i d a
3 1
Na ocasião da m o r t e d e s s e n a t i v o e s s a r e l a
-ção e n t r e crédito e débito, e s s e c o n t r a t o , p r e c i s a s e r
r e s o l v i d o . A resolução vem num o u t r o c o n t r a t o , num o u
-t r o p a c -t o , que dá o r i g e m ao c i c l o do K u a r u p , ao r i -t u a l f u
nerário d o K u a r u p , p r o p r i a m e n t e d i t o .
A M o r t e p r e n d e - s e a o u t r o t i p o d e relações:
1 . A família ( o g r u p o f a m i l i a r , dono do m o r t o )
p r e c i s a p a g a r o débito ( d a v i d a de um de seus
e l e m e n t o s ) com a comunidade (que c o n t r a i u por
e l a um débito com a n a t u r e z a , com o n a s c i m e n
MORTE ^ t o d e s s a c r i a t u r a ) . 0 g r u p o f a m i l i a r (dono d o m o r t o ) p r e c i s a e n t r e g a r o m o r t o à comuni-dade ( r e p r e s e n t a d a p e l o s e n t e r r a d o r e s ) . 2. A comunidade ( e n t e r r a d o r e s ) p a g a o débito à n a t u r e z a e n t e r r a n d o , e n t r e g a n d o a e l a , o mor t o .
0 grupo f a m i l i a r , dono do m o r t o , está p a g a n
do s e u débito j u n t o à comunidade quando d e i x a e n t r a r em
s e u espaço p r i v a d o o c o r t e j o d e p e s s o a s a l h e i a s a e s s e espaço ( o s e n t e r r a d o r e s ) e d e i x a l e v a r o m o r t o d o espaço f a m i l i a r , íntimo, ao s e u espaço de r e t o r n o à n a t u r e z a - a s e p u l t u r a , n o c e n t r o d a a l d e i a . N e s s e a t o o c o n t r a t o t r i b a l é cumprido. C o n t r a t o , d e a c o r d o com a e t i m o l o g i a da própria p a l a v r a , s i g n i f i c a p a c t o , p a c t o p a r a o começo
de um novo a s s u n t o : é a ação de início d e s s e novo a s s u n
1 . A família p a g a s e u débito à c o m u n i d a d e ( r e cebendo d a n a t u r e z a alguém v i v o e e n t r e g a n d o - l h e m o r t o ) . 2. A comunidade p a g a s e u débito à N a t u r e z a CONTRATO 4 ( d e v o l v e n d o m o r t o , alguém que h a v i a r e c e b i
d o v i v o , através d e uma família s u a ) : s u b s
t i t u i n d o a m o r t e p e l a v i d a , através do K u a r u p , a f i g u r a de m a d e i r a que é a essên c i a d a v i d a x i n g u a n a . Após o e n t e r r o , e n l u t a d o s e e n t e r r a d o -r e s -renovam a p i n t u -r a ; e s s e f a z e -r semp-re s e -r e p e t e n a s e t a p a s do c i c l o do K u a r u p d e p o i s d o s r i t o s funerários. E m c o n t i n u i d a d e a o p e r c u r s o d a f e s t a , e s t a b e l e c e - s e u m novo e n t e n d i m e n t o e n t r e o s e n l u t a d o s e o s e n t e r r a d o r e s :
e s t e s pedem autorização p a r a a construção do "apenap"
( C f . F i g . 5 ) - uma " c e r q u i n h a b a i x a e f e i t a d e t r o n c o s
que r o d e i a t e m p o r a r i a m e n t e a s s e p u l t u r a s " ( 1 0 ) . Novamen
t e f i c a i n s t a u r a d a a relação e n t r e e n t e r r a d o r e s e donos
3 3 -• F i g . 5 ( F o t o r e p r o d u z i d a d o l i v r o d e P e d r o A g o s t i n h o . K w a r l p : M i t o e R i t u a l no A l t o X i n g u . São P a u l o , E P U / E D U S P , 1974, p . 2 2 6 ) . 0 p r o j e t o d e f a z e r d o s e n t e r r a d o r e s é subme t i d o ao q u e r e r d o s d o n o s do m o r t o . Como a aceitação do e n t e r r o já prevê a celebração d a f e s t a do K u a r u p , há uma conversação e n t r e o s f u t u r o s d i r e t o r e s d a f e s t a e o s d o -nos d o m o r t o ; o s p r i m e i r o s a p r e s e n t a m o p r o j e t o d o f a z e r d a f e s t a e c a b e , a o s d o n o s d o m o r t o , p o r s u a v e z , e m i t i r o q u e r e r o u não-querer em relação a f e s t a p r o p o s t a . T a n t o o c o r t e d e m a d e i r a p a r a a construção do " a p e n a p " , como o c o r t e d o s t r o n c o s a s e r e m i m p l a n t a d o s n a f e s t a o s K u a r u p , é serviço p a g o a o s e n t e r r a d o
-r e s p e l o s d i -r e t o -r e s d a f e s t a , com c o m i d a , numa t -r o c a d e
serviços. A t r o c a c o n t i n u a s e n d o e n t r e o mundo n a t u r a l
( c o m i d a ) e o c u l t u r a l (serviços r i t u a l i z a d o s ) . É a
relação d e t r o c a , d e prestação d e serviços, e n t r e g r u p o s
d a t r i b o , q u e l o c a l i z a o s e r no espaço e no tempo d e l i
SER ESPAÇO a l t e r n a n d o p i n t u r a com o avanço d o s r i t u a i s e c o l o c a n d o s e sempre d i a n -t e d a n a -t u r e z a e d a c u l t u r a . r e m a r c a d o a p a r t i r dos r i t u a i s f u -nerários . d e s d e o s r i t u a i s d e f l a u t a u r u a ( C f . F i g . 6), que i n i c i a m a f e s t a do K u a r u p / e da l u t a ( C f . Apêndi c e ) , q u e f i n a l i z a o c i c l o , até a confraternização f i n a l . TEMPO avança com o s r i t u a i s d o s r i -t u a i s f u nerários até o banho que l e v a n t a o l u t o , p a s -s a n d o p e l a , l u t a e p e l a distribuição d e c a s t a n h a d e p e q u i , s e g u i d a d e con f r a t e r n i z a -çao.
i . B . R e n a s c e a idéia d a V i d a A prestação de serviços, p e l a t r o c a , é, p o r -t a n -t o , f e i -t a e n -t r e o s n a -t i v o s , r e l a c i o n a n d o o s mundos d a n a t u r e z a e d a c u l t u r a . Da mesma forma o i m p l a n t e do K u a r u p não d e i x a de r e f l e t i r r e l a c i o n a m e n t o idêntico e n -t r e a q u e l e s d o i s mundos. 0 K u a r u p r e p r o d u z a idéia d e reposição na c u l t u r a x i n g u a n a (já d i s s e m o s que a m a d e i r a
é t i d a como a essência do x i n g u a n o ) : e l e repõe alguém a
Mãe T e r r a , s a l d a n d o o débito d a comunidade j u n t o a N a t u
-r e z a , p a -r a que e s t a c o n t i n u e c o n t -r i b u i n d o com comida,com
v i d a . P o r i s s o é f r e q u e n t e a t r o c a d e serviços p o r comjL
d a em todo o c i c l o do K u a r u p ; e l a a p a r e c e em várias e t a
-p a s que vão c o n q u i s t a n d o a v i d a n a s c o n s t a n t e s relações,
e n v o l v i d a s n a s t r o c a s , e n t r e o mundo d a n a t u r e z a e o mun
do da c u l t u r a , que l e v a n t a m o l u t o d a c o m u n i d a d e t r i b a l ,
até um banho simbólico r e a l i z a d o que m a r c a o f i n a l do l u
t o .
0 K u a r u p é p l a n t a d o numa procissão idêntica
à d o e n t e r r o . A s f l a u t a s u r u a p r e v i a m e n t e a n u n c i a m e s s a
e t a p a . Segundo P e d r o A g o s t i n h o , o a t o d e i m p l a n t e d o
Kuarup rememora, através d o s marakaíp ( c a n t o r e s ) que can_
37 -O t r o n c o d a a r v o r e e t r a z i d o d a mata, n a h o r i z o n t a l , o c u l t o , i n d e f i n i d o , "morto". 0 t r o n c o vem da n a t u r e z a . É um crédi_ to que a n a t u r e z a dá à comunidade p a r a que e l a promova o u t r a v i d a . 0 t r o n c o ( o u t r o n c o s ) d e árvore é c o l o c a d o no meio d o t e r r e i r o , n a v e r t i c a l , d e f i n i d o K u a r u p " t a l " , " v i v o " . A comunidade, com o crédito o b t i d o j u n t o à n a t u r e z a , s u b s t i t u i uma m o r t e , pagando s e u débito com a n a t u r e z a . N o r m a l i z a s u a v i d a t r i b a l . MORTE X VIDA Nos r i t u a i s do e n t e r r o , a dessemantização do espaço da a l d e i a p a r a a semantização do o u t r o , o do c i c l o do K u a r u p , i n i c i a - s e a p a r t i r de uma residência, a dos e n l u t a d o s . A g o r a , no r i t u a l d a implantação do K u a
-r u p ( 1 1 ) , a ação que p -r o v o c a uma dessemantização e uma
nova semantização e s p a c i a l p e r c o r r e o espaço d e t o d a s a s
residências, através da dança d a s f l a u t a s u r u a ( v e j a no
Apêndice f o t o que i l u s t r a a dança d a s f l a u t a s u r u a ) , e n
-v o l -v e n d o homens e m u l h e r e s , m a r c a n d o a duração do c i c l o
F i g . 6
( F i g u r a extraída do l i v r o de P e d r o A g o s t i n h o . K w a r i p : M i t o e R i t u a l no A l t o X i n g u . São P a u l o , EPU/EDUSP, 1974, p. 2 1 7 ) .
Duas u n i d a d e s d e dança podem s e r o b s e r v a
-d a s na -dança -d a s f l a u t a s u r u a ( C f . F i g . 6 ) , no c i c l o -do
K u a r u p . Vamos chamá-las, a p r i m e i r a , de uma dança d e
u n i d a d e mínima, e a s e g u n d a , de uma dança com uma u n i d a
de máxima. A que c o n t a com uma u n i d a d e mínima de d e s l o
-camento e s p a c i a l i n c u m b e - s e ( s e g u n d o o s critérios que
f i x a m o s p a r a a n o s s a análise de dessemantização e
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-espaço i n t e r i o r de uma residência x i n g u a n a . Os "dançari
n o s " p e r c o r r e m o espaço d e m a i o r p r i v a c i d a d e , a t r a v e s s a n
d o a s duas p o r t a s d a residência, f r e n t e e f u n d o s , c o r t a n
do o espaço s o c i a l e de serviço, p e l o c e n t r o d a c a s a
( C f . F i g . 2 ) . E s s a u n i d a d e , conforme d e m o n s t r a a F i g . 6 ,
a b r e e f e c h a o c e r i m o n i a l . N a a b e r t u r a , d e s e n v o l v e - s e
como uma u n i d a d e mínima, p e r t o d a s e p u l t u r a , que d e p o i s
v a i s e r e p e t i r nos i n t e r i o r e s d e t o d a s a s o u t r a s residên
c i a s , p a r a , f i n a l m e n t e , f e c h a r o c e r i m o n i a l f r e n t e a o
"apenap".
Uma u n i d a d e máxima em t e r m o s de d e s l o c a m e n
-t o e s p a c i a l pode s e r n o -t a d a n o p e r c u r s o que d e s e n v o l v e
n o . t e r r e i r o , que.é o espaço de representação de t o d a a
t r i b o , u m espaço'"tribal. E s s a u n i d a d e também dessemant_i
z a um espaço p a r a a semantização de o u t r o , ou s e j a , c o n s
trói o espaço de f e s t a , através do movimento no t e r r e i r o
e m s u a t o t a l i d a d e , p e r c o r r e n d o o espaço e x t e r i o r d a s r e
-sidências.
Todos o s movimentos c o n t i d o s n e s s a s d u a s
u n i d a d e s , mínima e máxima, são f e i t o s com avanços e r e
-cuos , t o d o s são c e n t r a l i z a d o r e s ; até a s f l a u t a s r i s c a m u n
círculo quando g i r a m s o b r e o e i x o onde s e d e s l o c a o c o r
-po, como já o b s e r v o u P e d r o A g o s t i n h o .
Após o c e r i m o n i a l de implantação do K u a r u p ,
os t r o n c o s são queimados com o f o g o t r a z i d o da c a s a dos
e n l u t a d o s , r e t o r n a n d o , após a queima, a c a s a d e s s e s . Es_
o fogo p e r t e n c e n t e a quem repôs uma v i d a no s o l o x i n g u a
-no e é l e v a d o a o s v i s i t a n t e s , j u n t o com a m a d e i r a do
"apenap", p a r a a queima d u r a n t e t o d a a n o i t e que permane
cerão a c o r d a d o s , c o n c e n t r a d o s n a s u a "autoconsciência t r i
b a l " p a r a a l u t a do d i a s e g u i n t e . Os v i s i t a n t e s estão
a o r e d o r d a a l d e i a , j u n t o à mata, j u n t o à n a t u r e z a . S u a
localização n o s p o s s i b i l i t a traçar o p e r c u r s o do f o g o d a
s e g u i n t e m a n e i r a :
1 . vem d a c a s a dos e n l u t a d o s , s i m b o l i z a n d o a morte;
2. a c e n d e o K u a r u p , que r e p r e s e n t a a reposição da v i d a
n o s o l o x i n g u a n o , v o l t a n d o à c a s a dos e n l u t a d o s ;
3 . é p o s t e r i o r m e n t e d e v o l v i d o à n a t u r e z a quando l e v a d o
a o s v i s i t a n t e s (que f i c a m nos a r r e d o r e s d a mata que
c i r c u n d a a a l d e i a ) , j u n t o com a m a d e i r a do "apenap"
( a s e p u l t u r a ) , p a r a a queima, d u r a n t e a n o i t e que a n
t e c e d e a l u t a . Os v i s i t a n t e s t u d o r e c e b e m como d e p o
-sitários de um novo crédito de v i d a da t r i b o j u n t o a
n a t u r e z a .
2.6. L u t a : u m r i t u a l i n t e r t r i b a l p e l a V i d a
A l u t a ( 1 2 ) é o clímax do K u a r u p , i n a u g u r a
uma nova e t a p a de v i d a numa comunidade x i n g u a n a , uma v e z
que a p e r d a o c o r r i d a n e s s a t r i b o x i n g u a n a j á está, n e s s e
momento, r e p o s t a d e n t r o do espaço comunitário. 0 p a c t o
t r i b a l já está novamente f i r m a d o . A l u t a r e p r e s e n t a e n
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-v i d a , c u j o r e s g a t e p e l a t r i b o d á a comunidade u m no-vo
crédito. E s s e novo crédito está r e p r e s e n t a d o n o s u b s t i
-t u -t o d a v i d a , n a f i g u r a d e m a d e i r a , n o K u a r u p ; m a i s e s p e
c i f i c a m e n t e , o crédito está s i m b o l i z a d o n o c i n t o d o K u a
-r u p , um a d o -r n o que p a s s a a s e -r o p-rêmio da comunidade na
d i s p u t a i n t e r t r i b a l , q u e s e r e s u m e numa l u t a s i m u l a d a .
Com e s s a prática i n s t a u r a - s e novamente e n t r e a
comunida-d e x i n g u a n a a a comunida-d v e r s i comunida-d a comunida-d e t r i b a l e c o m p l e t a - s e , a s s i m , o
r e s g a t e d a v i d a s u s p e n s a d u r a n t e o l u t o . A comunidade,
que é c r e d o r a da reposição de uma v i d a , doa, através do
c i n t o d o K u a r u p , e s s e crédito r e a t a n d o o s compromissos
i n t e r t r i b a i s com a v i d a .
2.7. 0 p e q u i : o m i t o que i n s t a u r a a idéia da V i d a
Após a l u t a há a distribuição d a c a s t a n h a
d o p e q u i : o s n a t i v o s e s p e r a m que e l a amadureça e c a i a d a
árvore. Uma v e z caída, madura, e l a é c o l o c a d a em c i m a
d a s e p u l t u r a , c o b r i n d o - a . Quando, d e p o i s d a l u t a , a c a £
t a n h a p a s s a a s e r distribuída, s u a distribuição é f e i t a
p e l a moça púbere, que até n e s s e momento e s t a v a r e c l u s a na
a l d e i a e que, a g o r a , l i b e r t a d a n o c i c l o d o K u a r u p , j á p o
d e p r o c r i a r ( 1 3 ) .
A f e s t a é e n c e r r a d a com m u i t a c o m i d a . A co
m i d a , como v i m o s , é um pagamento freqüente f e i t o como
t r o c a ( 1 4 ) d e serviços r e a l i z a d o s d e s d e o s p r e p a r a t i v o s
-ços p e l o início d o p r o c e s s o d e l e v a n t a m e n t o d o l u t o d a
a l d e i a ) , até o s e u e n c e r r a m e n t o n a confraternização e n
-t r e a s comunidades d a s várias -t r i b o s p a r -t i c i p a n -t e s d a
f e s t a . A comida r e p r e s e n t a sempre a v i d a n e s s a f e s t a .
A s s i m , e l a i n i c i a o c i c l o K u a r u p e e n c e r r a e s s e mesmo
c i c l o , que r e l e m b r a a história da o r i g e m da v i d a da corau
n i d a d e x i n g u a n a , n o tempo e n o espaço d e uma d e s u a s a l