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Algumas considerações acerca da transmissão psíquica entre gerações e seus efeitos

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Academic year: 2021

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SILVIA DA COSTA

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DA TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES E SEUS EFEITOS

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UNIJUÍ – UNIVERSIDADE DO NOROESTE DO ESTADO DO RS DHE – DEPARTAMENTO DE HUMANIDADES E EDUCAÇÃO

CURSO DE PSICOLOGIA

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DA TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES E SEUS EFEITOS

SILVIA DA COSTA

ORIENTADORA: MSC NORMANDIA CRISTIAN GILES CASTILHO

Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito parcial para conclusão do curso de formação de Psicólogo

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A Deus, e aos meus queridos Egon, Valentina, Elisabeth, Pedro e Brigitte.

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Estou só... Desdita,

Não me procureis entre os vivos Nem entre os mortos.

Nem viva, nem morta.

Em doloridos cuidados tocaste, No amargo sofrer paterno,

Em todo o passado de nossas penas, Nós, os celebrados filhos de Lábdaco. Maldito leito de minha mãe,

unida ao seu próprio filho, meu pai,

nascido dessa mesma desdita mãe, dos quais eu, infausta sou filha. Vou, desventurada, habitar com eles Sem esposo.

Que triste enlace, irmão, alacançaste. Com tua morte me matas.

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TÍTULO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DA TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES E SEUS EFEITOS

ALUNA: SILVIA DA COSTA

ORIENTADORA: NORMANDIA CRISTIAN GILES CASTILHO

RESUMO:

O presente trabalho monográfico visa apresentar algumas considerações acerca da transmissão psíquica entre gerações, tendo como fonte de pesquisa bibliográfica a teoria psicanalítica. Em um primeiro momento, trabalha-se o texto “Moisés e o monoteísmo”, onde Freud enfatiza o assassinato do patriarca dos hebreus, como um ponto de ruptura na cadeia de transmissão e, através da operação do recalque, e de forma equivalente à neurose individual, o judaísmo é tomado como um “sintoma” que vem no lugar de uma verdade recusada, onde a transmissão supõe uma criação psíquica ou cultural. Em um segundo momento, discorre-se sobre operações psíquicas como a repetição, a pulsão e as possibilidades de simbolização, como conceitos fundamentais, na tentativa de se pensar a transmissão.

Palavras-chave: Transmissão psíquica. Recalque. Repetição. Simbolização.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 6 1 MOISÉS E O MONOTEÍSMO: A RELIGIÃO JUDAICA E A TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES ... 8 2 A TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES: PERCURSO E ALGUNS DE SEUS EFEITOS ... 21 CONCLUSÃO ... 36 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 38

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INTRODUÇÃO

A transmissão psíquica é imposta a cada um. Ao nascer, a criança é acolhida por um grupo que, ao mesmo tempo, lhe oferece um lugar a ocupar, e lhe destina uma carga a assumir.

O interesse acerca do tema da transmissão psíquica evidenciou-se na realização do Estágio Supervisionado e Seminário em Psicologia e Processos Clínicos, em que aspectos relacionados à inscrição do sujeito em uma cadeia geracional a qual é um elo e a qual se submete, apresentavam-se, em alguns casos, fortemente marcadas pela repetição, expressando-se em uma dimensão de vergonha e interdição.

Dentro dessa temática, o presente trabalho tem como objetivo discorrer sobre a “transmissão psíquica entre as gerações” e os possíveis entraves que esta pode causar na subjetivação do sujeito. Para trabalhar tal questão, este estudo se caracteriza em uma pesquisa bibliográfica, organizada em dois capítulos.

Na tentativa de compreender os principais aspectos da transmissão do psiquismo entre as gerações, evidenciou-se que esta ocorre intimamente ligada a um outro. O grupo que acolhe a criança e que a nomeia, que a terá imaginado, investido e que lhe fala, não apenas como consequência da língua, mas pelo efeito do desejo dos que se colocam como mensageiros das representações, das proibições e do desejo do grupo, fará com que ocorra várias ações psíquicas que convocam, de forma inconsciente, este sujeito, a responder a uma dupla atribuição: ser o elo de uma cadeia a qual está submetido e, “ser para si mesmo seu próprio fim”.

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Desta forma, no primeiro capítulo trabalhamos com o texto de Freud “Moisés e o monoteísmo”, em que o autor apresenta uma equivalência entre o sintoma neurótico e o fenômeno religioso, onde o judaísmo é tomado como um “sintoma” que vem substituir uma verdade recusada. Freud (1996a), ao enfatizar o assassinato de Moisés, propõe um ponto de ruptura na cadeia de transmissão, como um ponto de descontinuidade, o que remete a uma falha no saber mosaico. O longo intervalo de tempo transcorrido entre o ponto de interrupção e o surgimento da religião judaica caracterizaria a equivalência do fenômeno com o mecanismo do recalque, assim como ocorre na neurose individual. Desta forma a transmissão psíquica não é uma simples repetição mas, para além disso, supõe uma produção, psíquica ou cultural.

Partindo desse ponto, para tentar compreender o percurso da transmissão, no segundo capítulo iremos abordar as principais operações psíquicas que possibilitam a transmissão como a repetição, a pulsão e as possiblidades de simbolização. No trajeto desses conceitos, enfatiza-se que o trabalho de ligações e representações podem “falhar”, e a transmissão psíquica pode ser alienante e não estruturante para os descendentes.

Aquilo que é transmitido sem distâncias, sem possibilidade de ligação e sem transformação, transpassa as gerações sendo lançado, em estado bruto, no psiquismo dos descendentes, vindo a comprometer de forma drástica a subjetivação destes.

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1 MOISÉS E O MONOTEÍSMO: A RELIGIÃO JUDAICA E A TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES

A partir da nossa questão de investigação de como se dá a transmissão psíquica entre gerações no que se refere a seus aspectos psicológicos e inconscientes, neste primeiro capítulo trabalha-se a transmissão a partir da Freud (1996a), em sua obra “Moisés e o monoteísmo”, onde o autor teoriza de forma mais específica, sobre a transmissão do trauma entre gerações e, fazendo alusão a termos como “herança arcaica” e “filogenia”, para se referir a uma genealogia do sujeito que se dá não somente na hereditariedade relacionada ao determinismo biológico como herança genética nos organismos mas, para além disso, em uma genealogia ligada a uma transmissão que se dá no social, a partir da relação com o outro, portanto no campo da linguagem, da capacidade humana de simbolizar, sujeitando-nos, enquanto humanos, a uma cadeia genealógica que nos antecede. Portanto, essa transmissão não se refere a conteúdos conscientes, mas leva em conta o conceito fundamental inaugurado por Freud: o inconsciente.

Na obra Moisés e o monoteísmo, Freud (1996a) ressalta o corte, o obscuro e o não dito sobre a história do povo hebreu e de seu grande líder Moisés, como um ponto de descontinuidade na cadeia de transmissão, sendo que justamente nesse ponto obscuro, o assassinato de Moisés, reside à força da religião judaica. A morte violenta do patriarca do povo hebreu opera um corte, uma falha no saber mosaico, que para Freud indica justamente, o lugar de causa e perpetuação do judaísmo. Desta forma, aquilo que continuou agindo nesses restos “esquecidos”, nas lacunas da tradição comunicada e no que foi recalcado, possibilitou a constituição da base

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da religião judaica, onde a transmissão da mensagem monoteísta está fundamentada “naquilo que insiste em não se deixar inscrever”.

Apoiado em registros históricos, Freud (1996a) apresenta a hipótese de que Moisés foi um príncipe egípcio, e não um hebreu, como aparece nos relatos bíblicos, e que teria recebido grande influência de sua crença monoteísta de um faraó chamado Amenófis IV, o qual subiu ao trono do Egito por volta de 1375 a.C.

Para Freud (1996a), este é o primeiro relato histórico de uma religião monoteísta.

O reinado de Akhenaton durou 17 anos, e após sua morte seus sucessores não conseguiram manter a imposição do faraó quanto à adoração exclusiva ao Deus único e, a classe sacerdotal até então proibida de prestar culto a outros deuses, vingou-se do faraó relegando seu nome e sua religião ao mais completo esquecimento, abolindo completamente sua religião e memória.

A partir deste fato, sem condições de permanecer em sua terra por motivos políticos, Moisés “adota” os hebreus estabelecidos no Egito como seu próprio povo, torna-se mediador de uma promessa divina, e lidera-os em seu retorno a Canaã.

Em sua peregrinação pelo deserto como líder do povo hebreu, Freud supõe que Moisés levou consigo um número significativo de egípcios, que eram seus seguidores e servos mais próximos. Este grupo, apesar de ser em quantidade bem menor que os judeus, exerceu forte influência sobre estes, pois os egípcios se mostravam culturalmente mais fortes e possuíam uma tradição que os hebreus não tinham.

Para Freud (1996a) o homem Moisés não foi apenas um líder político dos hebreus estabelecidos no Egito e condutor do povo em seu regresso à sua terra natal, mas também foi seu legislador (tábuas da Lei) e educador, mediador entre

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Deus e o povo, introduzindo-lhes o costume egípcio da circunsição como marca da escolha divina e pertencimento a Deus, um sinal que representava a separação dos judeus de outros povos, ou seja, Moisés foi o grande patriarca do povo judeu.

O Moisés egípcio que liderou o povo em sua saída do Egito rumo à terra prometida era descrito com características evidentes de se tratar de um egípcio aristocrata, um príncipe, sacerdote ou alto funcionário, sendo criado em “toda saberia dos egípcios”. Já o Moisés vinculado a Cades, descrito como o genro de Jetro, o sacerdote madianita, não se parece mais com o egípcio neto do faraó, torna-se, a partir dessas narrativas, um pastor, um homem de Deus equipado por Javé para operar milagres.

Para Freud (1996a), sua hipótese constituía-se em que, quando Moisés “adotou” o povo hebreu, até então estabelecido no Egito, apresento-lhes sua crença em seu Deus universal, originada da religião do faraó Akhenaten e, ao juntar-se aos hebreus, trouxe consigo, como era de costume a um egípcio de grande importância, um grupo razoavelmente grande de pessoas que eram seus seguidores, escribas, empregados e servos domésticos.

Assim, Freud (1996a) interpreta este período de “pastoreio no deserto” como a representação do Êxodo do Egito em que Moisés “governou o povo com mão forte”, e onde são narradas ocorrências de uma série de revoltas do povo contra sua autoridade, lançando a suposição de que um desses levantes populares tenha culminado no assassinato do grande líder Moisés.

Depois do episódio do assassinato de Moisés, o povo seguiu para uma localidade chamada Meribá-Cades, uma faixa de terra ao sul da Palestina considerada um oásis pela variedade de fontes e poços.

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Ao se estabelecerem em Cades, aos poucos e, principalmente por influência dos vizinhos madianitas árabes, a religião que Moisés inseriu ao povo hebreu foi abandonada, sendo adotado o culto ao Deus Javé, que era predominante naquela região. A união dos hebreus e egípcios seguidores de Moisés, com as tribos já estabelecidas em Cades foi que originou a nação judia, ou seja, o povo de Israel. Sendo que o selo desta união foi a adoção de uma nova religião, comum a todas as tribos daquela região, a religião de Javé. Esta religião em comum originou-se da fusão entre o monoteísmo de Moisés e o Deus Javé, cultuado na região de Cades. Com esta união, as doutrinas mosaicas até então “esquecidas” pelos hebreus, retornaram e tornaram-se predominantes na fundação da religião monoteísta judaica.

Em vista disso, dado o fato de Moisés ocupar o lugar de patriarca do povo e mediador da lei, ou seja, lugar de pai simbólico, o seu assassinato, configurou-se em uma experiência traumática para os hebreus. Desta maneira, entre a geração seguinte houve um abandono da doutrina mosaica recebida pelos seus pais e, um longo período de tempo transcorreu, sem que nenhum sinal da religião introduzida por Moisés se manifestasse.

Freud (1996a) supõe que transcorreu, aproximadamente, um século para que essas doutrinas ressurgissem, tornando-se permanentes no judaísmo.

Para Freud (1996a) a compreensão da origem do judaísmo como equivalente ao fenômeno psicológico que ocorre na neurose individual, onde a religião judaica origina-se de um acontecimento traumático fundante, que é recalcado e vem a ressurgir, caracterizando-se como retorno do recalcado. Desta forma, configura-se em um fenômeno psicológico referente à neurose coletiva, justamente por tratar-se de um trauma coletivo. Onde o autor coloca que:

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[...] nunca duvidei de que os fenômenos religiosos só podem ser compreendidos segundo o padrão dos sintomas neuróticos individuais que nos são familiares – como retorno de acontecimentos importantes, há muito tempo esquecidos, na história primeva da família humana – e de que têm de agradecer exatamente a essa origem por seu caráter compulsivo, e de que, por conseguinte, são eficazes sobre os seres humanos por força da verdade histórica de seu conteúdo. (FREUD,1996a, p.72).

Deste modo, o período em que a religião mosaica manteve-se esquecida pelo povo judeu, relaciona-se ao fenômeno da latência que, de forma equivalente, ocorre na constituição da neurose individual.

O período de latência está localizado entre a organização sexual infantil e adulta, sendo esta uma fase que tem como especificidade o recalcamento da energia sexual. Após o declínio do Complexo de Édipo, considerado o trauma constitutivo no sujeito neurótico, ocorre o período de latência, onde esta energia sexual que é recalcada, efetua um desvio para um alvo não sexual, sendo investida, ou, sublimada, em atividades sociais e ligadas a criações culturais.

Para Freud (1996a), de forma equivalente, na fundação da religião judaica o trauma fundante refere-se ao assassinato daquele que incide como o representante da lei, ou seja, Moisés como Pai simbólico que opera a interdição do gozo.

Em vista disso, o período de latência foi esse tempo em que o conteúdo consciente da experiência traumática manteve-se recalcado. O período em que a geração posterior à que vivenciou o Êxodo do Egito estabeleceu-se em Cades, e as doutrinas mosaicas foram relegadas ao esquecimento. Neste período, o apagamento das concepções de Deus por Moisés, pode ser tomado como uma tentativa de esquecer o crime cometido contra o patriarca dos hebreus.

Da mesma forma com que ocorre na neurose individual, aquilo que foi relegado ao esquecimento emerge na operação do “retorno do recalcado”, processo pelo qual os conteúdos recalcados não são destruídos, mas mantidos pelo recalque,

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tendendo a ressurgir no campo consciente, de maneira deformada ou distorcida, ou seja, na forma de sintomas. O retorno destes conteúdos se dá sob a forma de uma formação de compromisso entre as três instâncias psíquicas: id, ego e superego. Os elementos recalcados insistem em reaparecer, o que denota um caráter indestrutível a estes conteúdos.

O encontro entre as duas religiões em Cades, a de Moisés e a de Javé, relaciona-se ao período de latência, onde aqueles que vivenciaram o fato traumático no Êxodo procuraram reprimir as lembranças da morte de seu líder e legislador. Desta forma, através dos escribas egípcios, registraram por escrito os primeiros acordos em comum entre as duas partes, a religião de Moisés e a religião de Javé, para a fundação da nova religião. Nesses registros, o conteúdo das narrativas escritas omitiam o fato traumático da morte violenta do fundador da religião monoteísta entre os hebreus. Portanto, se na tradição escrita foram omitidos os fatos relativos à morte violenta de Moisés, havia entre as gerações uma transmissão oral dos mesmos conteúdos e, apesar do risco de distorções ligada a esta transmissão, ela poderia ser mais verídica que os relatos escritos. Destas divergências entre os registros escritos e os relatos orais sobre os mesmos conteúdos da história do povo judeu resultou a tradição do povo judeu. Aquilo que foi omitido nos registros escritos oficiais, nunca se perdeu realmente, a transmissão referente ao fato traumático vivido no Êxodo sobreviveu remetido na força das tradições. Em que, para Freud (1996a, p. 83):

O fenômeno de latência na história da religião judaica, com o qual estamos lidando, pode ser explicado, portanto, pela circunstância de que os fatos e as ideias que foram intencionalmente repudiadas pelos que podem ser chamados de historiadores oficiais, nunca se perderam realmente. Informações sobre eles persistiram em tradições que sobrevivem entre o povo.

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Diante disso, quanto ao retorno dos conteúdos inconscientes, estes sempre ocorrem “à posteriori”, ou seja, após um trauma, no sentido de uma experiência vivida com muita intensidade, onde acontece um afluxo excessivo de excitações, produzindo uma marca indelével no psiquismo. Este excesso de excitação causa uma impossibilitando de elaboração ou ressignificação. Entretanto, o período de latência é o tempo decorrente à um acontecimento traumático, em que o fato é esquecido/recalcado para que só mais tarde surjam seus efeitos.

Para a fundação do judaísmo, foi o tempo que se deu após o fato que marcou o povo hebreu com seus efeitos traumáticos, que foi recalcado, reaparecendo somente mais tarde, quando na união da religião de Moisés e a religião de Javé, as doutrinas monoteístas de Moisés retornaram com força total.

Assim, a geração que participou do Êxodo do Egito vivenciou a morte violenta do patriarca e legislador do povo hebreu, após o trauma ocorreu o período de latência, em que a geração de seus filhos recalcaram os conteúdos traumáticos vivenciados pela geração anterior e, apesar dos registros escritos operarem na tentativa de ocultar o fato traumático às gerações posteriores, os pontos obscuros da história do Êxodo do Egito retornaram na geração seguinte. Este retorno se deu na forma de acordos estabelecidos entre as duas religiões, a de Moisés e de Javé, onde o monoteísmo mosaico prevaleceu dando origem a tradição judaica, efetivando o retorno destes conteúdos inconscientes que foram transmitidos entre as gerações. Dentre um dos aspectos importantes que pode ser destacado na tradição judaica, e que pode ser usado como exemplo correspondente à transmissão dos conteúdos recalcados, é a prática da circuncisão como obrigatória entre os judeus.

A circunsição, que basicamente consiste na remoção parcial ou total do prepúcio (pele que cobre a extremidade do pênis), é uma prática que remete aos

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não ditos da história do povo hebreu, como uma transmissão no corpo, denotando um símbolo de virilidade ligado á figura de Moisés como patriarca do povo hebreu, aquele que opera a função simbólica e que coloca-se como interditor, reforçando a castração.

Nesse sentido, a herança também se faz via corpo, onde o corpo media a obtenção de um saber através da inscrição. A marca no corpo contém o segredo transmitido, como um empecilho ao esquecimento. O rito da circuncisão remete a uma separação, já que se trata de um corte, indicando a falta ou a privação como produtora de sentido e também como uma espécie de metáfora de pertença e de identidade grupal. Logo, a circuncisão como forma de explicitar o ingresso do sujeito na comunidade judaica, em que seu rito simboliza um elemento da procedência do judaísmo como religião e grupo étnico particular sendo, portanto, sinal de identidade e diferença.

De forma equivalente, na neurose individual, a castração opera como a situação traumática por excelência, como operação simbólica que determina uma estrutura subjetiva e que decorre da proibição exercida pela função paterna, onde o pai simbólico interdita o sujeito de ocupar a posição ideal de falo materno.

Na neurose individual, o bebê, ao nascer, encontra-se em total condição de dependência e precisa, além de ter suas necessidades orgânicas supridas pela mãe, no sentido de aquela que opera a função materna, necessita também do investimento subjetivo desta, para que venha estruturar-se como sujeito desejante.

Neste encontro com a imagem sustentada pelo discurso e olhar materno, a criança é inserida em uma relação identificatória, denominada “relação especular” onde, nessa relação a criança apreende sua própria imagem como uma totalidade unificada, podendo assim, através do efeito integrador da identificação especular

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constituir uma imagem corporal, esta relação mãe-filho é sustentada por uma ilusão de completude, em uma alienação, em que ambos sentem-se completos.

A castração é esta operação de corte na relação fusional mãe-filho, operada pela função paterna, interditando a criança de ser o falo materno, fixando limites nesta relação, onde o pai simbólico instaura a primeira grande lei a qual o futuro sujeito estará submetido.

A função paterna como aquele que possibilita o encontro com a alteridade, alguém através do qual um ato social se efetua, que intervém como lei para a criança, inscrevendo o sujeito para além do desejo materno, sendo que a operação da lei simbólica possibilitará a instauração da falta.

A castração, ou seja, esta operação de corte, feita pelo pai simbólico na relação mãe-filho, é considerada o trauma humano por primazia, que produz uma divisão, uma falta que é constitutiva e que possibilita o advir do sujeito desejante. Este processo de deslizamento das posições na constituição do sujeito é chamado de Complexo de Édipo.

Com o declínio do Complexo de Édipo inicia-se o Período de Latência, como um intervalo, uma pausa na evolução da sexualidade infantil, o que corresponde a uma maior intensidade do recalque, que consiste em um afastamento de certos conteúdos do campo da consciência, sendo mantidos no campo do inconsciente. Estes conteúdos referem-se às vivências sexuais da criança, operando uma amnésia infantil relacionada aos traumas sexuais vividos. Nesta fase, ocorre uma mudança nos investimentos de objetos de identificação com os pais e um aumento das sublimações referentes à sexualidade.

As experiências sexuais traumáticas que se recalcam estão relacionadas a este desejo de completude com a mãe, colocando-se como falo materno, assim

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como o desejo de morte do pai como inimigo simbólico, aquele que precisa ser eliminado por interditar o desejo de completude na relação fusional mãe-filho.

Estas leis constituintes no advento do sujeito consistem na lei do incesto e do parricídio, sendo os dois crimes simbólicos, em que o assassinato do pai implica o sujeito ultrapassar este pai, ou seja, a realização do desejo implica em matar o pai. Assim, cria-se um inimigo a ser derrotado e o objeto de desejo a ser alcançado.

De forma ambivalente, o neurótico está em dívida com o pai simbólico, por este interditar o impossível, e culpa-se pelo desejo de morte do pai, onde matar o pai significa poder falar em nome próprio.

Trauma e recalque estariam na origem da constituição psíquica do sujeito neurótico, assim como na fundação da religião judaica, como manifestação de uma neurose coletiva, em que a transmissão de um trauma coletivo de uma geração à outra foi decisiva para perpetuar o judaísmo tornando-o uma tradição tão forte até os dias de hoje.

Ainda de forma equivalente para a compreensão do advento da neurose, Freud (1996c, p. 142) em “Totem e Tabu” referindo-se a herança arcaica da humanidade coloca que:

só podia ser morto se todos os membros do clã participassem da morte e partilhassem da culpa na presença do deus de maneira que a substância sagrada pudesse ser produzida e consumida pelos membros do clã, garantindo assim sua identidade uns com os outros e com a divindade. (p. 142).

Desta forma, o mito do pai da horda primitiva, o mito é trabalhado quanto a necessidade do assassinato das figuras onipotentes, para que o trabalho de luto permita a inscrição da perda como função simbólica, ou seja, para a emergência do sujeito e sua inscrição no campo simbólico.

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Neste mito fundador da neurose, Freud (1996c) se apropria das ideias evolucionistas de Darwin para construir a hipótese de que, em um tempo primevo, nossos ancestrais viviam em hordas e eram governados por um pai tirano, que tinha a primazia sobre todas as mulheres, punindo e afastando os filhos gerados. Um dia estes filhos se reuniram, com o intento de matar e devorar o pai déspota.

Juntos, os irmãos assassinaram o pai, para terem acesso ao gozo interditado por este, colocando fim a horda patriarcal e como forma de identificarem-se com o pai primitivo e adquirirem sua força, o devoraram em um “banquete totêmico”.

Com a invasão do sentimento de remorso, que retorna da afeição ao pai que foi recalcada, os filhos foram tomados de culpa, em uma clara ambivalência de amor-ódio em relação ao pai, sua morte não disponibilizou o acesso à satisfação pulsional, ao contrário disso, intensificou sua interdição, e o pai morto tornou-se mais forte do que quando estava vivo.

Na tentativa de solucionar a culpa, os irmãos instituem um clã com novas leis, entre estas a proibição do ato criminoso, através da reverência a figura totêmica como substituto ao pai que, justamente por estar morto, torna-se representante da lei, criando-se, a partir disso, a interdição do incesto, em seu caráter a título de dívida perpétua sendo, portanto, transmitida entre os elos da cadeia geracional.

Como este trauma é indizível, é sem palavras, necessita ser contado, o que lhe atribui um valor de herança arcaica. Desta forma, o assassinato do pai da horda primitiva caracteriza um “ato fundador” da cultura e da organização social, que são alcançadas pelo acordo feito entre os irmãos, demonstrando como o pai déspota primitivo se transforma no Pai simbólico que reforça as exigências da instância superegóica para que possamos viver em civilização, a morte do pai não produz sucessores, é uma questão de lei, um lugar vazio e ao mesmo tempo um lugar de

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referência, onde a transmissão desta lei simbólica internalizada é passada entre as gerações. A respeito disso, Freud (1996a, p. 113) nos coloca que:

[...] a herança arcaica dos seres humanos abrange não apenas disposições, mas também um tema geral: traços de memória da experiência de gerações anteriores. Desta maneira, tanto a extensão quanto a importância da herança arcaica seriam significativamente ampliadas.

Assim, o pai simbólico, operador da castração, é quem exerce o interdito e, remetido ao mito do assassinato do pai primevo, tanto na neurose individual quanto na religião judaica como uma neurose coletiva, aquilo que no início se constituiu como um ideal em um primeiro momento de identificação, precisa “cair” como imagem idealizada, a necessidade da morte do pai para que se dê o início tanto na constituição do eu no sujeito neurótico quanto na organização da cultura, sendo necessária a queda das figuras onipotentes, para que o trabalho de luto permita a inscrição da perda como função simbólica onde, tanto o sujeito neurótico, como o monoteísmo são construídas a partir deste ponto não representável.

Nos argumentos de Freud (1996a), o que estaria na origem da religião seria uma necessidade infantil, relacionada ao estado de dependência, e à saudade do pai suscitada por este sentimento de desamparo e necessidade de proteção, onde a figura tanto do pai como do líder encarna aquele que sustenta a ilusão de salvação frente ao desamparo, de forma a apaziguar a angústia comum a todos.

Na fundação da religião judaica, Moisés encarna a figura do patriarca dos hebreus, e como tal lidera o povo no Êxodo do Egito, colocando-se como interditor do gozo diante do povo, ou seja, como Pai Simbólico.

Moisés como egípcio, traz a ideia de Pai como estrangeiro, aquele que vem de fora e, assim como em Totem e Tabu, é vencido e assassinado, onde mais uma vez trata-se de um Pai morto, marcado pela ausência.

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Os acontecimentos relacionados à história do Êxodo do Egito, foram registrados e impressos nos textos bíblicos, permitindo sua leitura. Mas a omissão quanto aos fatos, causou uma deformação nos registros, esta falsificação da letra é onde situa-se a segunda morte de Moisés, como apagamento e que, segundo Freud

(ano), irá sustentar o desmentido da primeira morte. Desta forma, o saber é escrito com a deformação do texto, em suas lacunas e naquilo que omite, onde as distorções apresentadas nos textos trazem honra ao Deus Javé e, segundo Freud (1996a), esta honra deveria ser conferida a Moisés, o que opera a escrita como fratura, que inclui algo de estranho, estrangeiro no monoteísmo, mantendo, desta forma, a ambiguidade do Pai.

Para Freud (1996a), a herança arcaica que acompanha a lei foi preservada como escritura, transmitindo-se pela letra, sendo este saber escrito, saber deformado, que vem a destacar no “a posteriori”, como retorno daquilo que estava suspenso pelo recalque. Uma vez que, o elo transferencial com o Pai e com a Lei, operou como condição necessária, para que ocorresse a possiblidade de uma transmissão simbólica. Portanto, é nesta malha de relações que o sujeito é constituído, em que transmite e recebe mensagens conscientes e inconscientes. Nesta trama de informações e narrativas o sujeito tem a possibilidade de construir uma memória e uma historicidade.

No próximo capítulo, iremos percorrer a trajetória constitutiva, sempre observando que, inevitavelmente, uma geração não pode existir sem a que a precede, e deve gerar outra para dar continuidade a vida além de seu desaparecimento. o nos possibilita pensar a constituição psíquica operando sempre em articulação com o transmitido, com aquilo que é herdado, e sobre os possíveis entraves desta herança.

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2 A TRANSMISSÃO PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES: PERCURSO E ALGUNS DE SEUS EFEITOS

Neste segundo capítulo trabalha-se nossa questão fundamental, ou seja, como se dá a transmissão psíquica entre gerações. Como se passa um objeto, pensamentos, afetos ou histórias de uma pessoa para outra, de uma geração para outra. Para tanto, nos iremos nos deter às operações psíquicas, sem as quais não é possível pensar a transmissão. Destas operações psíquicas destacaremos: além do recalque, trabalhado no capítulo anterior, a repetição, a pulsão e as possibilidades de simbolização.

O tema da transmissão psíquica entre gerações nos remete ao conceito freudiano de “compulsão à repetição” e, dentro desta concepção, torna-se fundamental discorrer sobre os conceitos de “princípio do prazer” e “princípio da realidade” que, segundo Freud (1996b), constituem o alicerce do destino dos acontecimentos psíquicos e, ambos os princípios, instituem as duas formas de funcionamento mental.

O princípio do prazer é, por parte de um organismo, o evitamento da dor, sofrimento ou tensão. Todos os seres obedecem a este princípio, mas no homem, os processos psíquicos inconscientes buscam a obtenção de prazer, sendo este o princípio que domina completamente o comportamento infantil. Nele o que impera é a busca de prazer a qualquer custo, sendo alcançado através da descarga de qualquer aumento de tensão. Assim, este princípio representa o desejo instintivo de satisfação, uma energia interna enorme, que é alterada pelas exigências do mundo externo, ou seja, pelo princípio da realidade. Desta forma, levando-se em conta a diversidade do meio externo, que impõe obstáculos à vida e limita os estados

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prazerosos, o sujeito, de certa forma, é convocado a lidar com esta realidade que se impõe, aprendendo a suportar o adiamento do prazer. Para isso, o princípio da realidade mantém os níveis de tensão mais ou menos constantes no aparelho psíquico, apesar do desprazer momentâneo.

Em “Além do princípio do prazer”, de 1920, Freud (1996b) vai observar que em alguns casos, a repetição não tem como objeto experiências agradáveis, mas sim experiências que causaram sofrimento, vindo a descobrir uma outra força que opera na vida psíquica, onde impera a dor ao invés do prazer.

Primeiramente, o autor se refere às experiências inerentes aos sonhos vinculados às neuroses traumáticas, consideradas experiências nada agradáveis.

Para trabalhar o conceito de compulsão à repetição Freud (1996b) vai partir da observação do neto de um ano e meio com a brincadeira do carretel, chamada fort-da (“fort”/fora e “da”/aqui ), um jogo de aparecimento e desaparecimento, como uma repetição ao mesmo tempo lúdica e simbólica do afastamento e retorno da mãe.

O jogo do fort-da, consistia basicamente no ato de lançar o carretel longe, de forma que ficasse escondido e puxá-lo novamente, para que reaparecesse. Nesta brincadeira, repetida incansavelmente pela criança, Freud (1996b) observou que tratava-se da reprodução das constantes idas e vindas da mãe da criança.

Com o jogo da “ausência na presença”, a criança buscava controlar sua angústia de separação do corpo materno, passando a construir noções de um “eu-não-eu”, “perto-longe” e “interno-externo”, emergindo o primeiro espaço fora do corpo da mãe e vindo a marcar seu próprio corpo. Esta perda momentânea da mãe é compensada pelo desaparecimento e aparecimento dos objetos que cercam a criança. Assim, o menino cumpre em relação ao carretel um papel ativo, frente às

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saídas da mãe, as quais vivenciou passivamente e, desta forma, pondo fim, através da brincadeira, ao sentimento de abandono que envolve a situação de separação e reencontro com a mãe, facilitando à criança suportar sem angústia sua ausência.

Freud também observou nesta situação lúdica que, por mais que o desaparecimento do brinquedo fosse à ação mais repetida, o prazer maior gira em torno do segundo ato, ou seja, o retorno do objeto. Toda a sequência, em seu conjunto, insiste em repetir-se, mais além do caráter inicialmente desprazeroso da vivência como tal, sendo este um modo primordial de simbolização.

Outro aspecto que Freud (1996b) utiliza para trabalhar o conceito de compulsão à repetição parte da análise clínica, de forma particular em sua ligação com o fenômeno de transferência, levando em conta que no processo terapêutico tem-se como princípio tornar consciente o que é inconsciente. Contudo, este processo não opera se for apenas relacionado nas considerações teóricas do analista, sendo estas comunicadas ao paciente. Para que a terapia tenha efeito, o paciente é levado, pelo próprio processo terapêutico: “a repetir o material reprimido como se fosse uma experiência contemporânea, em vez de... recordá-lo como algo pertencente ao passado” (FREUD, 1996b, p. 29).

Neste sentido, elementos relacionados à passagem edípica, assim como frações da vida sexual infantil são revividas na transferência, onde a compulsão à repetição apresenta-se produzida pelas resistências do ego.

Dentro desta perspectiva, o que domina o princípio do prazer é representado por uma compulsão, como força que comanda e pela qual o sujeito insiste em repetir experiências desagradáveis e estados de desprazer, mantendo o sofrimento como espécie de marca, à qual não consegue se libertar.

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Esta outra força que opera para “além do princípio do prazer” relaciona-se a um fluxo pulsional feroz, denominado por Freud (1996b) de catexias móveis, onde o aparelho psíquico se mostra em maior medida e complexidade, na tentativa de controlar esse fluxo com a intenção de preservar sua organização.

Para Freud (1996b), o conceito de compulsão à repetição está diretamente relacionado ao conceito de pulsão de morte, pois parte do princípio de que todo organismo, enquanto substância viva surgiu de um estado inanimado, assim, a tendência desta substância viva é voltar a esse estado anterior, ou seja, retornar ao estado inanimado.

Freud (1996b, p. 54) coloca que pulsão é “um impulso inerente à vida orgânica, a restaurar um estado anterior de coisas” .

Aqui Freud (1996b) refere-se à pulsão desligada, aquela desvinculada de qualquer representação, sendo indestrutível e se mantendo estagnada: não se descarrega e nem se inscreve como representação.

A tendência dessa força pulsional é desligar o que fora atingido, constituído. Seu retorno é no sentido de dispersão, quando nem havia organização da vida psíquica. Podemos compreender a compulsão à repetição como um mecanismo constituinte originário, quando é preciso que algo se inscreva para que haja vida, para que possa haver psiquismo, sendo por meio da compulsão à repetição que a insistência possibilita a inscrição.

Essa pulsão “feroz” origina-se do excesso de excitação no aparelho psíquico, como resultado do efeito do trauma, em que o nível de excitação não encontra condições de ser absorvido pelo aparelho psíquico, ocorrendo uma espécie de transbordamento, sendo que este resto se repete compulsivamente, como algo não elaborado, e continua repetindo-se, em uma única direção: satisfazer-se. Enquanto o

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sujeito não elaborar uma representação para vincular-se, a pulsão repete-se em busca de satisfação plena, conduzindo-se pela via mais curta que é a descarga imediata.

De forma mais específica, a repetição à compulsão é uma pressão exercida por uma soma de manifestações afetivas, cuja importância o aparelho psíquico não tem condições de assimilar, por tratar-se de quantidade, fazendo com que o sujeito retome o que não foi consumado, ou seja, a vivência traumática, cujo sofrimento torna-se indizível, sem possibilidades de ser nomeado.

Para Lacan (apud MAZZARELLA, 2006), a repetição não é sempre o do mesmo e sua busca é de um objeto impossível de ser atingido. Para ele, a repetição divide-se entre tiquê e autômaton, podendo ser da ordem do acaso, do trauma e do simbólico.

A repetição relacionada ao tiquê opera por meio da marca, daquilo que pertence ao sujeito, mas que não foi dito, que não lhe é conhecido, sendo sempre o encontro com o real faltoso, aquilo que se encontra sempre no mesmo lugar. Desta forma, está sempre em busca de simbolização, que só seria possível de ser atingida através da fala, das palavras e, caso isso não ocorra, segue insistindo em repetir. Já a repetição como autômaton, refere-se a repetição que constitui os diversos lugares ocupados pelo sujeito no decorrer de sua vida, por meio da atribuição do significante, portanto, daquilo que já foi inscrito. Logo, trata-se dos referenciais simbólicos, aqueles que podem representar a falta, vindo a permitir que cada integrante do grupo familiar construa sua própria história a partir daquilo que lhe foi transmitido, vindo a instaurar a diferença entre as gerações. Desta forma, a transmissão psíquica e a herança, em seu aspecto de apropriação por parte do sujeito é compreendida como estruturante da psique.

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Outra operação psíquica fundamental na constituição e que vincula-se de modo direto à transmissão psíquica é a pulsão, definida por Freud (1996b, p. 127)como um conceito:

[...] situado na fronteira entre o mental e o somático, como representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida de exigência feita à mente no sentido de trabalhar em consequência de sua ligação com o corpo.

Na teoria freudiana, há uma transformação do corpo biológico em corpo erógeno, onde era instinto (puramente biológico) surge a pulsão, justamente neste limite bio-psíquico. Assim, o instinto é sempre inscrito em um determinismo que antecede o indivíduo, é da espécie. Já a pulsão dialetiza sujeito e ambiente, constituição e experiência subjetiva. Desta forma, para lidar com o excesso de estimulação externa o aparelho psíquico possui uma saída motora que é a fuga, as intensidades vindas do exterior são atenuadas, pois passam pelos sistemas sensitivos. Contudo para lidar com a intensidade de estímulos internos pulsionais não há como mover um mecanismo de fuga, pois o psiquismo não possui proteção contra as intensidades provenientes do próprio organismo.

Esta constante pressão que pulsão opera, estimula a exigência de uma saída para o excesso de pressão que circula. Sendo assim, as pulsões mobilizam o psiquismo e pressionam o organismo a encontrar saídas possíveis e assim, impulsionam o psiquismo realizando a tarefa do sistema nervoso em trabalhar com os estímulos, livrando-se deles, ou seja, empurrando-os para fora.

Sendo assim, o psiquismo surge, justamente, para dar conta do “caos” que resulta da vida pulsional. O trabalho do psiquismo é ir instituindo limites, criando contornos, como forma de estabelecer eu e não-eu, dentro e fora. Desta maneira, a pulsão constitui-se no “representante-representativo”, no psíquico, das exigências

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somáticas do sujeito, ou seja, o psiquismo oferece uma base representacional às pulsões, como forma de conseguir adiar a satisfação imediata e encaminhá-las a realidade externa, ou seja, o princípio da realidade.

Segundo Freud (1996b, p. 20):

[...] não abandona a intenção de fundamentalmente obter prazer; não obstante, exige e efetua o adiamento da satisfação, o abandono de uma série de possibilidades de obtê-la, e a tolerância temporária do desprazer como uma etapa do longo e indireto caminho para o prazer.

Portanto, a representação é maneira como a pulsão se faz presente no aparelho psíquico e, o que a representação representa, em última instância, é a pulsão. De certa forma, as representações se originam para ajudar o sujeito a pensar, significar e a dar um sentido a vivências que podem ser, por vezes, impensáveis, aterrorizantes e catastróficas, vivências estas relacionadas ao seu mundo interno ou externo.

Freud (1996b) trabalha com as distinções entre representação-coisa, essencialmente visual e que caracteriza o sistema inconsciente, e a representação-palavra, essencialmente auditiva que caracteriza o sistema pré-consciente/consciente.

As representações-coisa estão ligadas as vivências visuais das situações emocionais do ego, ou seja, com as imagens memorizadas e sentimentos. Já a representação-palavra, que são auditivas, estão relacionadas aos traços mnésicos auditivos, contudo também integram sentimentos e desejos, sendo que as representações-palavra nunca serão encontradas no inconsciente, estando ligadas apenas ao campo pré-consciente, sendo que neste campo encontramos todos os tipos de representações, tanto auditivas, visuais, táteis e degustativas.

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Segundo Freud (1996b), a união entre a representação-coisa e a representação-palavra correspondente caracteriza o sistema pré-consciente/consciente sendo que no sistema inconsciente só compreende traços mnésicos de coisa. Desta forma, ao associar a imagem ao conteúdo verbal, a lembrança pode assumir o seu “índice de qualidade” específico da consciência, onde a passagem de um impulso, de uma pulsão, puramente visual, para o consciente, ou seja, o registro da percepção para o registro do pensamento. Assim, a representação pré-consciente engloba a coisa e a representação-palavra.

Somente quando os registros de percepção ligam-se as representações verbais, existe a possibilidade de acesso à consciência. Este processo que vai da representação-coisa à representação-palavra refere-se à via da representação, da simbolização, que vai da crueza do organismo à complexidade do corpo.

É acerca das representações-palavra que recai o recalcamento secundário, que faz do representante ideativo da pulsão o conteúdo do inconsciente. Mas também existem aquelas representações mais primitivas, mais próximas das sensações, os traços mnêmicos, as representações-coisa, fazendo com que o corpo contenha uma grande variação de possibilidades, inclusive, aquelas que encontram-se ainda aprisionadas em um mundo encontram-sem palavras, onde o corpo exprime restos de um processo de transcrição que não se completa.

Esta marca que opera na dimensão real do corpo é impossível de ser conhecida, justamente por ser indizível, para esta marca não há palavras, não havendo inscrição como representação, o corpo é tomado como depositário de mensagens alheias, que são recebidas pelo sujeito a partir de sua forma singular de compreensão.

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O corpo mostra marcas da trajetória do psiquismo como possibilidade de representação e de restos não simbolizáveis, o que levam a mecanismos de transmissão entre as gerações, que se apresentam no corpo como algo inominável, levando a um movimento de compulsão à repetição da ordem da tiquê.

Neste sentido, podemos pensar no nascimento de um bebê que, ao surgir na família é, praticamente, um estrangeiro que precisa ser conhecido e reconhecido, assim como inserido à teia familiar.

Esta entrada do bebê convoca uma reorganização familiar, os lugares se movimentam com a chegada de novos membros no grupo, onde filhos se transformam em pais, pais em avós e assim sucessivamente, causando a movimentação de conteúdos inconscientes.

Para a criança, que inicialmente ocupa o lugar de objeto na relação parental, os elementos primitivos e fundamentais dos processos de identificação estão ligados a sua condição de desamparo e o vínculo afetivo com os pais.

Destes elementos fundamentais no processo de identificação infantil derivam as transmissões inconscientes, tanto de um indivíduo para o outro, quanto através das gerações.

É neste percurso da transmissão que encontram-se as bases da continuidade narcísica, a conservação dos vínculos familiares, processos de manutenção da vida como: os mecanismos de defesa, pensamentos, convicções, ideias etc. Entretanto, com a chegada do bebê e com a mobilização desses elementos inconscientes, também as marcas sem inscrição costumam aparecer, e estarão em jogo os conteúdos transmitidos como os traumas infantis, recalcamentos, não-ditos, segredos...

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Já para os pais, o nascimento de um filho vem para cumprir os sonhos de desejo insatisfeitos e, como mais um elo na corrente geracional, assegurar-lhes a imortalidade. Assim, é através do filho que os pais têm seu narcisismo renascido e, através deste reviver narcísico investido no filho, possibilitará que este tenha, aos poucos, uma imagem unificada de seu próprio corpo, ou seja, possibilitando ao filho a constituição do eu, instante de unificação do “eu”.

Desta imagem idealizada do eu edificada pelos pais e projetado no filho, Freud (1996b) chamou de “eu ideal”, como um caminho em busca do narcisismo dos pais que foi abandonado diante da imposição da realidade.

Os pais, ao investirem libidinalmente no filho, colocam-no na posição de objeto, e é deste lugar que depende sua sobrevivência psíquica e a possibilidade de advir um sujeito.

Esta condição de eu ideal em que o filho é posto, diz de uma condição de completude narcísica com a mãe. Entretanto, na medida que introduz-se o complexo de Édipo e com este a instalação do supereu, perde-se o eu ideal, vindo a instalar-se o ideal do eu. O ideal do eu, vem a instalar-ser uma promessa de restabelecimento da vivência de completude. Contudo, para o sujeito não há uma substituição completa da condição de eu ideal pelo ideal do eu. Neste sentido, há uma transformação no ideal do eu, que permanece no adulto como tentativa de reconquistar a perfeição narcísica, operando agora, pelo caminho das identificações. Assim, para encontrar a completude perdida, a criança irá amparar-se nos ideais dos pais.

Neste contexto, o bebê herda uma história construída de palavras, abrindo a possibilidade de, enquanto constitui-se como sujeito, conseguir apossar-se desta história, produzindo sua própria versão, vindo a criar à possibilidade de significar e ressignificar o que lhe foi transmitido.

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O bebê é atravessado pela história que o antecede, inclusive pelos espaços vazios e falhas desta história. Portanto, quando as palavras faltam, podemos entender os sintomas físicos e psíquicos como vestígios de algo transmitido, através destas lacunas, entre as gerações. No entanto, as repetições são causadas por estes espaços vazios e, enquanto a lacuna do não-dito segue pulsando, o inconsciente segue manifestando-se, ou o corpo continua expressando aquilo que não foi representado, ou seja, os segredos produzem repetições.

Apesar de o bebê não entender as palavras, ele é receptivo a estas, e são as palavras que irão permitir que essa criança venha a falar e a fazer conexões entre o sentido que se transmite e as percepções do que se vive. Desta maneira, a porta de passagem para o campo da representação, da inscrição e da simbolização está submetido à palavra. Desta forma, a transmissão psíquica é um processo constitutivo e constituinte do sujeito, por intermédio da qual alguém pode fazer parte de uma genealogia familiar. Toda a vida psíquica depara-se com o impulso de transmitir algo: afetos, sintomas, mecanismos de defesa, traumas etc. Estas transmissões se dão por intervenções orais ou não, conscientes ou inconscientes.

Neste sentido, deve-se ficar claro que a transmissão nunca é inerte/passiva, no sentido de que constantes modificações oportunizam sua apropriação por parte do sujeito.

Dentro desta perspectiva, Golse (apud MAZZARELLA, 2006), cujo trabalho versa sobre a transmissão psíquica entre as gerações aborda a distinção feita por Torok, Abraham e Tisseron entre transmissão intergeracional e trangeracional. A esse respeito, a autora expõe que:

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Na intergeracionalidade há modificação daquilo que foi transmitido de uma geração à outra, pois transformações e ligações podem ser realizadas pela descendência. Assim, uma geração fica situada em relação às precedentes, e os integrantes dela, inscritos em uma genealogia, podem fazer da herança algo próprio. (MAZZARELA, 2006, p.81-82).

Neste sentido, a transmissão intergeracional permite transformar aquilo que se recebeu em algo próprio, quando o sujeito é capaz de apreender o que lhe foi transmitido, podendo transpor a imobilidade de um destino traçado pelo narcisismo e pelos investimentos do grupo parental. Já na transmissão trangeracional, Mazzarela (2006, p. 82) aponta que:

Trata-se de um material não transformado e não simbolizado, geralmente referido a segredos, não-ditos, interditos e ao indizível. Como só pode ser reconstruída a posteriori, tem sido estudada especialmente por psicanalistas que trabalham com adultos. Contudo, acredito que também pode ser escutada nas análises com crianças.

Segundo a autora, na herança transgeracional há uma impossibilidade de simbolização que impede a estruturação e favorece a alienação, onde o transmitido transita fora da abrangência de um trabalho de simbolização (MAZZARELA, 2006). Desta maneira, assim como é transmitido entre as gerações algo estruturante na constituição do sujeito, como supereu e ideal do eu, podem também ser transmitidas mensagens sem significação. Neste tipo de transmissão, a criança torna-se forçosamente depositária destas mensagens que movem-se obscuras e incompreensíveis para ela, comprometendo parte de sua subjetividade, pois abriga em si o irrepresentável e o impensável, e em um movimento de repetição, que suplica por sentido.

Estes “restos absurdos”, destinados à repetição e apresentado às identificações da criança com a furtiva esperança de, como herdeira e substituta do narcisismo dos pais, venha realizar aquilo que falhou.

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Na transmissão psíquica transgeracional, os traumas recebem um lugar singular, pelo fato de ficarem fora da perspectiva de simbolização e da linguagem. Assim, em “estado bruto” são lançados no psiquismo da criança que, sem possibilidades de processamento psíquico, estes restos do traumático são repetidos no decorrer das gerações.

Dentro desta concepção, os segredos são uma forma distinta de transmissão, estando sempre presentes nas histórias familiares. Assim, pode-se dizer que os segredos são histórias que não são contadas, sendo que a sua transmissão pode ser alienante ou não-estruturante para o sujeito, criando um significativo entrave à sua subjetivação.

Em vista disso, ainda citando Mazzarela (2006, p. 113), a autora nos traz que os segredos que transpassam gerações podem dividir-se em duas classificações: “O segredo é uma forma privilegiada de transmissão psíquica geracional. Entretanto, é preciso diferenciar pelo menos duas categorias de segredo que atravessam gerações: o não-dito do proibido de dizer e o do inominável”.

Para a autora, o não dito como proibido de dizer, relaciona-se a uma proibição determinada, pressupondo uma interdição do tipo: “disso não se pode falar”. Existe algo a ser escondido, geralmente associado à vergonha e à culpa. Apesar de não faladas, essas histórias perseveram nas gerações que as precedem sob forma de um recalcamento que ocasionalmente reaparece (MAZZARELA, 2006).

Neste ponto, é importante destacar que o não-dito como proibido de dizer alude ao campo do que um dia foi dito. Como segredo, trabalha-se com um conteúdo distante da consciência no sentido da censura e do recalcamento, tratando-se assim, de algo que já teve categoria de simbolizado. Deste modo, no

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recalque secundário, sofre repressão apenas aquilo que, antecipadamente, ganhou representação. A proibição é ao acesso à representação.

Quanto ao segredo como não-dito do inominável ou, daquilo que não se falou por ser indizível, por não haver palavras para descrevê-lo, encontra-se fora do registro do inscrito. Este tipo de segredo circula entre os elos da corrente geracional como indizível, forcluído, não amarrável. Assim, sem conexões possíveis, está destinado à repetição como tentativa de representação.

Ao exceder o limite do simbolizável, ou seja, fora da linguagem, estas experiências são transmitidas por outros caminhos que não o do recalque. Estas vivências traumáticas que, por sua força e agressividade, impossibilitam aqueles que as vivenciaram transformar tais experiências em palavras que, nestes casos, elas são insuficientes ou, simplesmente, não alcançam sua significação.

Neste sentido, a possível natureza traumática e alienante de tais experiências não elaboradas, deixam às gerações posteriores afetos que não foram suportados e, portanto não podem ser pensados, compreendidos e representados.

Acerca do segredo relacionado ao não-dito como inominável pode-se usar como exemplo as vítimas do Holocausto ou “Shoá”, como é chamado pelos judeus , que em hebraico significa “catástrofe”. Entre os que vivenciaram o Holocausto havia aqueles que não podiam falar com seus filhos sobre o fato, e aqueles que declaravam a impossibilidade das palavras expressarem aquilo que foi ouvido, visto e vivido. Aquilo que se refere ao desumano é difícil de ser nomeado como ocorrência intolerável. Logo, não se pode fazer alusão a algo ao qual não se têm palavras.

Para que a simbolização se torne possível, o ser humano precisa de uma distância mínima, ou seja, quando a realidade é invadida pelo sofrimento, horror e

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morte, coloca o homem perto demais, nessas circunstâncias de violência extrema, a distância necessária para a simbolização desaparece.

Uma vez que, desde o nascimento, a transmissão é imposta a cada um, tornando o homem herdeiro daquilo que, dentro de seu grupo de origem, se produziu e se silenciou, constituindo-o psiquicamente como sujeito do inconsciente e sujeito do grupo. Certos conteúdos podem, e serão, impostos às gerações que virão mas, a transmissão tem a característica de não ser passiva, havendo, por meio daquele que a recebe, a possibilidade de uma reelaboração do que foi transmitido.

Assim, podemos dizer que pagar o preço de nos tornarmos sujeitos, ocupar um lugar dentro de uma filiação e ter a possibilidade de construir uma história, é assumir nossa herança de ditos e não-ditos, dos silêncios , dos excessos, do vazio, enfim, daquilo que se apresenta na história de cada um. Arcar com a herança é poder retomar a transmissão com um aspecto inovador para o sujeito, ou seja, sob sua própria responsabilidade.

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CONCLUSÃO

O presente estudo teve o objetivo de trabalhar algumas questões acerca da transmissão psíquica entre as gerações, discorrer como esta ocorre, e pensar no trabalho de ligações e transformações como fundamentais no processo de transmissão psíquica. Levando em conta os acontecimentos com potencial traumático, que impossibilitam o trabalho de ligação e transformação dos conteúdos transmitidos, podendo vir a criar sérios entraves na subjetivação do sujeito. Desta forma, a transmissão torna-se um trabalho psíquico dual, ou seja, relativo ao sujeito e ao grupo familiar. Os processos de transmissão envolvem um contato com, e entre, os níveis intrapsíquicos e intersubjetivos. Estes contatos são intermediados pelo grupo, pelos arranjos e pelas formações psíquicas em ação. A junção destes fatores auxiliam na transformação gradual dos conteúdos transmitidos e recebidos, para que, gradativamente, o sujeito possa vir a apropriar-se destes.

Apesar de a transmissão psíquica apresentar para o sujeito um legado imposto, forçado, existe a possibilidade deste sujeito ser pensador e criador do que lhe foi transmitido.

O trabalho de ligações e transformações daquilo que foi herdado, permite a cada geração localizar-se em relação às outras, inscrevendo cada membro em um grupo e em uma cadeia geracional. Logo, a transmissão psíquica funda a subjetividade do sujeito, onde este constitui uma história tornando-se dono, possuidor de sua herança. Neste espaço de transcrição modificada por sua singularidade, o sujeito tem a possibilidade de construir sua novela individual neurótica. Neste sentido a transmissão psíquica é estruturante.

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Mas, o que dizer daqueles acontecimentos vivenciados pelo sujeito como traumáticos, sendo transmitidos sem que se possa suportar os afetos que o desencadeiam, sem a possibilidade de que algum pensamento sobre o fato venha contê-lo ou representá-lo. Traumas que não puderam ser simbolizados. Assim, na história de muitos sujeitos, o trauma estabelece as condições para a transmissão entre gerações, privado de um intervalo que preceda uma transcrição transformadora. Desta forma, pensar a clínica sob o prisma da herança psíquica, levando em consideração a transmissão geracional, solicita um trabalho que permita a possibilidade de criação e transformação, oportunizando ao sujeito pensar-se como único, singular dentro da narrativa familiar.

Portanto, o que se oferece é um espaço de escuta, onde este sujeito possa dizer algo e, ao dizer, trazer de novo a existência ou fazer existir, oportunizando algum trabalho de elaboração. É necessário dizer algo, mesmo que esse algo nunca seja o todo, pois diante do real, a representação do todo é impossível, haverá sempre um resto que resiste a simbolização. Uma parte da experiência de viver sempre será indizível.

Desta forma, quando os elementos primordiais da história familiar estão proscritos, o desafio torna-se trabalhar a reconstrução de uma narrativa capaz de integrá-los. E para que se possa promover a apreensão de uma herança torna-se fundamental a criação de um mito acerca de sua procedência, pois é necessário ter algum acesso a origem para que se conceda um sentido à existência e, para que, justamente, o paciente possa posicionar-se frente sua ascendência, vindo a construir um sentido de pertencimento e uma vivência singular.

Assim, da mesma forma que se opera na tentativa da construção de um mito que passa a fazer parte da história de vida do paciente, é também preciso levá-lo a

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perceber “o impossível de ser conhecido”, onde possa ser trabalhada a consolidação de limites. Onde nomear o impossível é inscrever a possibilidade do saber e admitir os limites do representável.

Assim, cabe ao psicólogo, nomear a impossibilidade, discernir uma geracionalidade e sua dimensão enigmática, apontando um sentido de reconhecimento, pelo paciente, de sua alienação diante daquilo que foi herdado, sempre na tentativa de buscar um termo final para as tramas letais da repetição.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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