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Pragmatismo contra normativismo: investigações sobre a teoria política de Carl Schmitt

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Academic year: 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

INSTITUTO DE CULTURA E ARTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

PRAGMATISMO CONTRA NORMATIVISMO.

INVESTIGAÇÕES SOBRE A TEORIA POLÍTICA DE CARL SCHMITT

DEYVISON RODRIGUES LIMA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

INSTITUTO DE CULTURA E ARTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

DEYVISON RODRIGUES LIMA

PRAGMATISMO CONTRA NORMATIVISMO.

INVESTIGAÇÕES SOBRE A TEORIA POLÍTICA DE CARL SCHMITT

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DEYVISON RODRIGUES LIMA

PRAGMATISMO CONTRA NORMATIVISMO.

INVESTIGAÇÕES SOBRE A TEORIA POLÍTICA DE CARL SCHMITT

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Ceará como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Filosofia.

Linha de Pesquisa: Ética e Filosofia Política

Orientador: Prof. Dr. José Maria Arruda.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará

Biblioteca de Ciências Humanas

L697p Lima, Deyvison Rodrigues.

Pragmatismo contra normativismo : investigações sobre a teoria política de Carl Schmitt / Deyvison Rodrigues Lima. – 2011.

200 f. , enc. ; 30 cm.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Instituto de Cultura e Arte, Departamento de Filosofia,Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Fortaleza, 2011.

Área de Concentração: Ética e Filosofia política. Orientação: Prof. Dr. José Maria Arruda.

1.Schmitt,Carl,1888-1985. – Crítica e interpretação. 2.Pragmatismo. 3.Autenticidade(Filosofia). 4.Ciência política – Filosofia. I. Título.

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TERMO DE APROVAÇÃO

Dissertação intitulada "PRAGMATISMO CONTRA NORMATIVISMO. INVESTIGAÇÕES SOBRE A TEORIA POLÍTICA DE CARL SCHMITT" de autoria do mestrando Deyvison Rodrigues Lima, apresentada em 31/10/2011 como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia do Programa de Pós-Graduação em Filosofia - Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará, examinada pela banca constituída pelos seguintes professores

________________________________________________ Prof. Dr. José Maria ARRUDA (Orientador) - UFC

________________________________________________ Prof. Dr. Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva SAHD - UFC

________________________________________________ Prof. Dr. Evanildo COSTESKY - UFC

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AGRADECIMENTOS

De uma forma especial, esta pesquisa se desenvolveu no caminho das ideias inquietantes do Prof. José Maria Arruda e da busca de respostas às questões sempre fundamentais do Prof. Manfredo Oliveira: devo a eles aquilo que sei da

filosofia.

Ao Zé, mais uma vez, gratidão pela amizade, no sentido mais schmittiano do termo, e admiração pela extrema generosidade com que me acolheu desde o início, bem como à biblioteca emprestada e às conversações calorosas e enérgicas que sempre

me enchiam de prazer;

Aos Prof. Luiz Felipe, Prof. Fernando Rodrigues e Prof. Evanildo Costesky pela participação em minha banca examinadora;

Ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia, em especial aos professores e aos funcionários que auxiliaram minha formação e ofereceram inestimável estímulo acadêmico; deixo meus sinceros agradecimentos à Alexandra Gondim que com

muita competência conseguiu se desvencilhar dos trâmites burocráticos.

Às Casas de Cultura da UFC – britânica, francesa e alemã, por me haverem ensinado outras línguas;

Ao CNPq, pelo financiamento desta pesquisa;

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RESUMO

A presente dissertação tem como proposta a reconstrução das teses de Schmitt acerca da distinção moderna entre facticidade e validade em teoria política. O objetivo deste estudo é analisar os paradigmas políticos modernos – normativismo e realismo – como consequência do problema da relação entre imediatidade e mediatidade da forma política. A hipótese de trabalho desta pesquisa é, afinal, a investigação de que, por um lado, (I) se a teoria política de Schmitt se configura em contraposição ao modelo normativista, por outro, não se adequa ao paradigma do realismo político – seja realismo fraco seja realismo forte –, representando uma proposta teórica alternativa diante do problema da mediação racionalista; assim, (II) torna-se necessário perscrutar quais as características fundamentais do projeto schmittiano de reestruturação do paradigma da teoria política desenvolvido, de forma geral, em três momentos distintos na sua reflexão: o primeiro articulado através da noção de Entscheidung e, posteriormente, trabalhado no âmbito de uma teoria da exceção; o segundo momento denominado de existencialismo político; e o terceiro momento, desenvolvido a partir da teoria do nomos. Os resultados principais desta dissertação são a demonstração de que Schmitt empreendeu uma tentativa de reestruturação dos paradigmas políticos da modernidade diante do problema da mediação entre ser e dever-ser e, enfim, a indicação de que o autor desenvolveu a tese de que não há mediação possível, mas apenas a imediatidade de uma força jurídica não mediada por leis, ou seja, um fato institucional concreto e ordenativo entre o universal e o particular através do qual dispensa a necessidade de uma teoria normativa da justificação da ordem (legitimidade), pois o Sein é, antes de qualquer coisa, realidade social mediada e constituída juridicamente, por isso, a legitimidade deve ser compreendida como histórica e concreta demonstrando a co-originariedade entre ser e dever-ser e, assim, solucionando o paradoxo mediação/imediação através da proprosta do pragmatismo político.

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ABSTRACT

This dissertation proposes the reconstruction of Schmitt’s thesis about the modern

distinction between facticity and validity in the field of political theory. The purpose is to analyse the modern political paradigms – normative and realism – as a consequence of the problematic relationship between immediate and mediate in the

political way. The hypothesis is (I) if on the one hand Schmitt’s political theory arises in opposition to the normative model, on the other it cannot be applied to the political realism – be it strong or weak – meaning an alternative theoretical proposal in the

face of the rationalist mediation; therefore (II) it’s necessary to scrutinize what are the essential characteristics of the Schmittian project of restructuring of the political theory paradigm developed, generally speaking, in three distinct moments of the discussion: the first articulated by means of the notion of Entscheidung and later developed within the scope of the Theory of Exception; the second called political existentialism; and the third developed from the theory of nomos. The main findings of this research are the demonstration of Schmitt undertakes an attempt of reorganize the modern political paradigms in the face of the problem of the mediation

between “being” and “ought to be”, and the possibility that the author developed the

thesis of there is possible mediation, but only the immediateness of a legal force does not mediated by laws, in other words, a real and legal institutional fact between the universal and the particular by means of which needs no necessity of a normative theory of justification of law (legitimacy), for the Sein is even now, and first of all, a social reality mediated and constitued legally, hence, the legitimacy should be

understood as historical and real demonstrating the cooriginality between “being” and “ought to be”, and, finally, solving the mediate/immediate paradox by means to a

political pragmatism.

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SUMÁRIO

Introdução...14

I. Posição do Problema...15

II. Hipótese de trabalho...20

III. Considerações sobre o método e percurso da pesquisa...28

Capítulo 1. A teoria da mediação racionalista...34

1.1 O problema da mediação na modernidade...34

1.2 A teoria normativista de Schmitt em Der Wert des Staates und die Bedeutung des Einzelnen...67

1.3 O decisionismo em Die Diktatur e em Politische Theologie...72

Capítulo 2. A teoria do político...95

2.1 O conceito do político (Der Begriff des Politischen)...99

2.1.1 Estatal e político (staatlich e politisch)...99

2.1.2 A autonomia do político...114

2.2 O conceito de inimigo ...125

2.3 O conceito de amigo ...129

2.4 Conflito e Consenso: polemiologia enquanto hermenêutica do político...134

2.5 Pragmatismo político e Linguagem...145

2.6 Dos fatos às normas: o critério da forma de vida como legitimação existencial do poder público...150

Capítulo 3. A teoria do nomos...163

3.1 Posição do Problema...165

3.2 O pensamento da ordem concreta (konkretes Ordnungsdenken)...169

3.3 O Jus publicum Europaeum...173

3.4 O conceito de nomos...180

Considerações Finais – Comparação e alargamento dos paradigmas políticos entre facticidade e normatividade: a proposta do pragmatismo histórico-concreto...185

Referências Bibliográficas...191

I. Obras de Schmitt...189

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LISTA DE ABREVIATURA DAS OBRAS DE CARL SCHMITT

Der Begriff des Politischen – BP

Die Diktatur – DD

Ex Captivitate Salus – ECS

Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus – GLhP

Gesetz und Urteil - GU

Glossarium – GL

Der Hüter der Verfassung – HV

Land und Meer – LM

Legalität und Legitimität – LL

Der Leviathan in der Staatslehre des Thomas Hobbes – LSTH

Das Nomos der Erde – NE

Politischen Romantik – PR

Die Politische Theologie – PT

Positionen und Begriffe – PuB

Staat, Grossraum, Nomos – SGN

Theorie des Partisan – TP

Über die drei Arten des rechtswissenschaftlichen Denkens – DarD

Verfassungslehre – VL

Verfassungsrechtliche Aufsätze – VA

Volksentscheid und Volksbegehren – VV

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NOTA SOBRE AS TRADUÇÕES E AS CITAÇÕES

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INTRODUÇÃO

Em linhas gerais, a filosofia política moderna pode ser dividida em dois paradigmas distintos: o normativismo e o realismo1. Os extremos no pensamento

político podem ser delimitados por abordagens racionalistas, de um lado, ou cratológicas, de outro. Abordagens racionalistas requerem princípios normativos e desenvolvem uma teoria sobre a validade da ação humana, constituindo assim uma filosofia prática em termos éticos. Abordagens cratológicas levam em consideração as determinações concretas de relações de poder, movendo-se no interior do paradigma da Realpolitik.

A questão decisiva na discussão entre ambas posições é acerca da relação entre moral e política, ethos e kratos, isto é, se o político é entendido como Macht ou como Recht. No primeiro caso, dá-se uma fundamentação política das normas; no segundo, obtém-se uma fundamentação normativa da política. Assim, qualquer

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proposta em filosofia política deve necessariamente estabelecer-se entre uma abordagem mais racionalista ou mais cratológica: se normativo-prescritiva, a teoria política se movimenta na direção da reflexão acerca melhor forma de governo, dos fins estatais e dos meios para sua implementação, da arquitetura de um tipo estatal ideal, da investigação do fundamento normativo do poder, do dever de obediência e da legitimidade do poder político ou ainda dos princípios universais de uma teoria da justiça; se interpretativo-analítica, ao contrário, ela se movimenta em torno do fenômeno do poder e de suas formas concretas ou efetivas, afirma a autonomia do político em relação à moral, demonstra maior interesse pela quaestio facti do que pela quaestio iuri, é mais atenta às perspectivas particulares do que às formas universais e desenvolve muito mais uma hermenêutica do poder do que uma teoria normativa da ação política, pois o fundamento da norma seria engendrado a partir da imanência da realidade fática.

Nestes termos, a distinção dos paradigmas fundamentais do pensamento político moderno exposta de modo esquemático desvela o estatuto da filosofia política e do direito sob uma fratura aparentemente insuperável que traduz, na verdade, a estrutura específica da modernidade, qual seja, a cisão entre ser e dever-ser, entre princípios contextualistas e princípios normativistas, entre particularidade e universalidade, entre imediatidade concreta e mediação racionalista, entre facticidade e validade, que na teoria política de Carl Schmitt encontra uma tentativa de ressignificação e de recomposição que consiste no objeto das investigações deste estudo.

I. Posição do Problema

A origem e a importância da problemática acerca do estatuto teórico da política no âmbito da is-ought question é, nesta dissertação, a chave interpretativa da obra do jurista tedesco. Apesar de inúmeros intérpretes e da publicação cuidadosa de diários, epístolas, documentos e textos do autor nos volumes da Schmittiana e em outras coleções2, o status quaestionis da Carl-Schmitt-Forschung

2 Sobre o estado das publicação das obras de Carl Schmitt e as traduções brasileiras, cf. a lista completa nas referências bibliográficas. Sobre o Nachlaß de Schmitt, depositado no Nordrhein-Westfalisches Hauptstaatsarchiv na cidade de Düsseldorf, contém sua vastíssima Briefwechsel

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apresenta, para além de qualquer divergência a respeito de sua biografia, ao menos dois elementos delicados: a estrutura argumentativa e conceitual fragmentada do seu pensamento peculiarmente ensaístico e sua inserção ambígua na tradição da filosofia política e do direito contemporâneos, o que torna necessário investigar mais profundamente a Opera schmittiana e as consequências da sua teoria política no interior mesmo desta tradição de uma maneira conceitualmente mais consistente, diagnosticando, de resto, os déficits e, porventura, as falhas estruturais de seu pensamento.

Não obstante a destranscendentalização e a deflação metafísica por que passaram as teorias políticas da modernidade com a separação entre ética e política e com a cientificização do saber, no início do século XX, promovidas desde o positivismo de A. Comte e J. S. Mill e pela concepção científica de mundo do Wiener Kreis, o modelo hegemônico da filosofia prática contemporânea revela uma forte vinculação ao legado do universalismo, racionalismo e normativismo filosóficos: universalismo porque reflete o político para além dos contextos concretos, produzindo teorias sobre as formas universais das instituições políticas; racionalismo porque procura estabelecer as condições de validade e justificação racional da ação política; normativismo porque adota como tarefa da filosofia estabelecer os princípios através dos quais o poder possa ser legitimado. Estes elementos estão presentes na maior parte das teorias políticas contemporâneas sejam elas derivadas do paradigma jurídico-político do rationalistisches Naturrecht, das teorias tradicionais do contrato, matriz do pensamento político normativista-liberal, sejam ainda a partir da fundamentação discursiva do Direito, da reabilitação da filosofia prática via argumento transcendental ou de uma fundamentação racional última do tipo idealista-objetiva da política e do direito3.

biblioteca particular, de manuscritos à edições raras. Sobre o Nachlaß schmittiano, cf. E. Frhr. v. MEDEM. "Der wissenchafliche Nachlaß von Carl Schmitt. Information über Inhaltsübersicht und Zugangsmöglichkeit des im Hauptstaatsarchiv Düsseldorf lagernden Bestands",in H. QUARITSCH (Hrsg.) Complexio Oppositorum. Über Carl Schmitt. Berlin: Duncker & Humblot, 1988, pp. 32-25. Cf. ainda, de VAN LAAK, "Der Nachlaß Carl Schmitts", in Deutsche Zeitschrift für Philosophie, 42, 1994, 1, pp. 141-154. Evidentemente, uma epístola ou um diário não possui o valor teorético de um texto publicado, exposto a revisões do autor e de leituras de críticos, porém demonstra suas inquietações intelectuais e o cabedal de afinidades que o jurista tedesco mantinha desde o início na década de 1910 até seu exílio na longínqua Plettenberg a partir dos anos subsequentes à 2ª guerra mundial, além de realçar elementos teóricos e biográficos importantes pressupostos na sua obra.

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A partir das tipologias apresentadas, fatigadas pelo uso e apanhadas em plena contradição, Carl Schmitt, o mais jovem clássico do pensamento jurídico-publicista e político moderno4, é frequentemente classificado, de modo inadequado, como um autêntico cratólogo ou um realista político, uma vez que a estrutura teórica que dá sistematicidade ao seu extenso e múltiplo pensamento seria, precisamente, a reflexão sobre a relação entre poder e ordem a partir da análise das condições fáticas sem determinações normativas prévias e da tese do antagonismo entre amigos e inimigos enquanto modus fundamental da política, na qual a polemicidade aparece como o critério distintivo que, enquanto tal, não se deixa enquadrar em normas ou parâmetros racionais5. No entanto, a situação teórica de Schmitt não é tão simples de ser definida, pois sua vasta obra, eivada do início ao fim pelo polémos, situa-se no limiar da decadência do racionalismo moderno e do jus publicum Europaeum e, embora coerente na sua estrutura geral, possui múltiplas possibilidades hermenêuticas. Da mesma maneira que outros autores da República

hipotético. Sobre a transformação da filosofia política na modernidade, adiante, cap. 1; sobre a transição dos paradigmas, cf. VAZ, H.C de Lima. Escritos de Filosofia II. São Paulo: Loyola, 1988, pp. 161-180 e 257-262. Ao contrário, a teoria realista em política não busca uma fundamentação normativa através de alguma instância que transcende a esfera empírica, mas sim afirmar a dimensão não normativa das relações de poder, ou seja, sustentam a hipótese de que o que deve valer é determinado pela imanência das situações históricas, além de rejeitar qualquer vinculação forte entre moral e política. O elenco de representantes realistas em teoria política reúne pensadores diversos como, por exemplo, Bodin, Maquiavel, Guicciardini, Botero, Naudé, Hobbes, Hegel, Marx, Cortés, Burke, Nietzsche, Mosca, Pareto, Weber, entre outros. Sobre as teorias realistas em política, de uma perspectiva analítica e histórica, cf. PORTINARO, Pier Paolo. Il realismo político. Bari: Laterza, 1999. Sobre uma filosofia prática em termos normativos, é notório o movimento de reabilitação da filosofia prática representado sobretudo por Rudiger Bubner, Otfried Höffe, Karl Heinz Ilting, Manfred Riedel e Joachim Ritter, partindo da releitura de Aristóteles e Kant na tentativa de fundamentar uma concepção normativa do direito e da política, sobre isso, cf. por todos M. Riedel (Hrsg.) Rehabilitierung der praktischen Philosophie. Band I, "Geschichte, Probleme, Aufgabe". Freiburg i./B., Rombach: 1972; Band II, "Rezeption, Argumentation, Diskussion". Freiburg i./B., Rombach: 1974. Estas teorias promovem os problemas de justificação e de prescrição normativa sobre o poder tal como a obra de John Rawls, mais precisamente A Theory of Justice (1971) ao transformar a teoria política em uma teoria da justiça que busca estabelecer os parâmetros ideais de uma sociedade justa. Neste sentido, por conseguinte, o paradigma das teorias da justiça se impôs de tal maneira na filosofia política contemporânea que a proposição de uma reflexão política não normativa como a schmittiana, que se legitima a partir de instâncias não racionalistas, são desqualificadas, prima facie, como uma prática teórico-política que justificaria ações violentas ou extremas em contradição com os cânones da argumentação racional3: torna-se um topos relegado e infame, pois articulado com os eventos de terror e autoritarismo que recentemente experimentou-se na civilização moderna e contemporânea. Entretanto, do outro lado, a responsabilidade também recaiu sobre a forma racionalista iluminista moderna que se mostrou totalitária e dominadora ao identificar, no final das contas, razão e poder e se constituir apenas como um modo mais complexo e sofisticado de Machtpositivismus.

4 WILLMS, B. "Carl Schmitt Jüngsten Klassiker des politischen Denkens?", in H. QUARITSCH (Hrsg.), Complexio oppositorum. Berlin: Duncker & Humblot, 1988, pp. 577 et seq.

5 Sobre a leitura da obra schmittiana a partir da relação entre poder e ordem, cf. SÁ, Alexandre de.

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de Weimar, ele sofre a agonia do pessimismo e, como em toda crise, sua postura não era de todo fora da época6: formação cultural católica e jurídica, mais próximo

de Roma do que de Berlim, ao mesmo tempo revolucionário e conservador, defensor da imediatidade das relações de poder, mas crítico em relação ao positivismo e ao empirismo vulgar; por um lado, teórico da exceção, por outro, da ordem; crítico do racionalismo moderno bem como do niilismo e do irracionalismo. Ao mesmo tempo moderno e antimoderno, Schmitt explora o nexo entre racionalidade e política, forma e conflito, pois, apesar de afirmar a contingência e a exceção como momentos originários da política, ele conserva, perspicazmente, com igual peso, a necessidade da ideia de direito, estruturalmente vinculada ao elemento de imediatidade em que a instância de determinação da forma é concreta, dá-se através da decisão, porém sempre uma decisão sobre a forma jurídica. Partidário de um pensamento antifundacionista ao apresentar a origem não racional da ordem que se configura a partir das determinações concretas, o que está em jogo para Schmitt é a analise da realidade fática, pois na proposta do "existencialismo político" são as configurações do mundo da vida que determinam a ordem. Dessa maneira, ele denuncia através da análise da democracia parlamentar os príncípios fundamentais do liberalismo político, explora a contradição entre democracia e liberalismo, critica o formalismo das abstrações normativistas e do Estado de Direito, inclusive ao denunciar a tentativa de compreender a esfera do político a partir da esfera do jurídico7. Sem

6 Sobre o contexto histórico e intelectual de Carl Schmitt, entre outros, cf. BALAKRISHNAN, Gopal.

The Enemy: An Intelectual Portrait of Carl Schmitt. London: Verso, 2000; BENDERSKY, Joseph.

Carl Schmitt. Teorico del Reich. Bologna: Il Mulino, 1989; NOACK, Paul. Carl Schmitt. Eine Biographie. Frankfurt/M – Berlin: Ullstein, 1996; MÜLLER, Jan-Werner. A Dangerous Mind. Carl Schmitt in Post-war European Thought. New Haven/London: Yale University Press, 2003. MEHRING, Reinhard. Carl Schmitt: Aufstieg und Fall. Eine Biographie. Müchen: Verlag C.H. Beck, 2009. Sobre o movimento dos conservadores revolucionários, cf. A. MOHLER. Carl Schmitt und die Konservative Revolution”. In: QUARITSCH, H. (Hsrg) Complexio Oppositorum. Über Carl Schmitt. Berlin: Duncker & Humblot, 1988, pp. 129-157.O debate acerca da República de Weimar é, na área jurídica, um evento que põe autores importantes tais como Hermann Heller, Rudolf Smend, Hans Kelsen, além, é claro, de Carl Schmitt, entre outros, na discussão sobre o problema do positivismo jurídico e as relações entre Estado e Constituição, norma abstrata e realidade concreta. Sobre o debate acerca da República de Weimar, cf. FRIEDRICH, Manfred, “Der Methoden und Richtungsstreit: Zur Grundlagendiskussion der Weimarer Staatsrechtslehre”, Archiv des öffentlichen Rechts, vol. 102, Tübingen, J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1977, pp. 161-209; de uma perspectiva filosófica, cf. HARTWIG, Matthias. "Die Krise der deutschen Staatslehre und die Rückbesinnung auf Hegel in der Weimarer Zeit", in: JERMANN, Christoph (Hrsg). Anspruch und Leistung von Hegels Rechtsphilosophie. Stuttgart-Bad Cannstatt: frommann-holzboog, 1987, pp. 239-275; além disso, cf. Il pensiero politico nella Republica di Weimar. Napoli: La scuola di Pitagora, 2011.

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dúvidas, Schmitt destaca o caráter polêmico do poder, enfatiza as relações concretas, mas não se arqueia ao crasso realismo anglo-saxão de fatos brutos; da mesma forma, rejeita o idealismo alemão, cuja especulação sofisticada e profunda declina em favor de uma concepção prática da política e do direito. No seu percurso, ao abandonar o normativismo, elabora sua teoria da decisão enquanto mediação concreta, desenvolvendo, logo em seguida, sua teoria da exceção e da soberania para, posteriormente, após a proposta de um existencialismo político, apostar em uma perspectiva pragmática e histórica mediante sua teoria do nomos. Nem transcendental nem empirista, um hegeliano às aversas8, na tensão entre realidade concreta e abstração das normas, entre uma instância decisória e uma substância formal. Destarte, recusando tanto o normativismo quanto o positivismo, Schmitt não postula apenas um pensamento da efetiva realidade e do Macht, mas também uma perspectiva política que abrange ainda a instância de representação, de justificação e da validade de normas até a superação original de ambos paradigmas, aliás, tese que se busca demonstrar nesta pesquisa.

A aparente tensão no pensamento schmittiano revela, na verdade, um ponto fundamental da sua estrutura teórica jurídico-política: a inadequação dos argumentos do autor ao quadro referencial moderno. Não obstante, ainda sem analisar o mérito da questão, para Schmitt, os conceitos de direito e de ordem também constituem elementos fundamentais, por exemplo, na sua teoria da exceção que, mesmo afirmando o primado das relações imediatas na estrutura da decisão soberana ao constituir na realidade concreta uma ordem normativa e, dessa constitucionais exercido por uma Corte Constitucional porque a Verfassung é a decisão de uma unidade política concreta que define a forma e o modo da existência, pois, nas palavras do autor (VL, p. 87), a constituição – enquanto constituição prática ou histórica, ou seja, a partir da configuração do modo de ser de um povo concreto e histórico que se dá diante da necessidade de articulação entre a exceção originária e a forma jurídica – "bedarf keiner Rechtfertigung an einer ethischen oder juristischen Norm, sondern hat ihren Sinn in der politischen Existenz (...) Die besondere Art politischer Existenz braucht und kann sich nicht legitimieren" e, portanto, o reconhecimento de uma Corte Constitucional provocaria um desequilíbrio entre a jurisdição constitucional, necessariamente política, exercida pelo presidente do Reich, a divisão de poderes e as estruturas democráticas. HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskurstheorie des Rechtes und des demokratischen Rechtsstaats. 5ª ed. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997, p. 292) assimila a discussão sobre os limites da jurisdição constitucional e a relação entre a jurisdição constitucional e a governabilidade política, ou entre Justiz e

Gesetzgebung, além de investigar o problema, sobretudo, a partir da perspectiva da legitimidade da jurisdição constitucional na questão sobre "wie eine derart konstruktiv verfahrende Auslegungspraxis innerhalb der Grenzen der rechtsstaatlichen Gewaltenteilung operieren kann, ohne daß die Justiz auf gesetzgeberische Konpetenzen übergreift (und damit auch die strikte Gesetzesbindung der Verwaltung untergräbt)".

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maneira, estabelecer relação entre o particular e o geral a partir da categoria da decisão como medium concreto, não abandona critérios de validade de normas nem a noção tradicional de legitimidade visto que rejeita a opção entre uma pura racionalidade normativa e uma mera efetividade das relações de poder. Assim, o problema teórico subjacente às reflexões do autor é, segundo a leitura que se realiza nesta dissertação, a reconstrução de uma relação entre a ideia de direito e existência concreta, entre mediatidade e imediatidade, ao nível da discussão sobre legitimidade e validade de uma ordem jurídico-política, pois tanto o jusnaturalismo quanto o juspositivismo, bem como normativismo e realismo, em referência aos problemas de legitimidade e de validade, terminaram por, unilateralmente, perder de vista a realidade histórica e fixaram-se em posturas abstratas racionalistas ou então esquecendo-se da forma de direito diante de uma pura imediatidade da experiência empírica ao efetuar a separação entre legalidade e legitimidade e transformar em técnica procedimental a racionalidade jurídica9.

II. Hipótese de trabalho

A hipótese de trabalho desta dissertação é que Schmitt analisa as ambiguidades e inadequações dos paradigmas da filosofia política moderna –

normativismo e realismo – como consequência da relação entre imediatidade e mediatidade da forma política10. Nesse sentido, o problema do ser/dever-ser é tomado aqui como o fio condutor do Opus schmittiano e como princípio heurístico das transformações dos modos de tratamento dessa relação. Nesta tentativa, empreendeu-se uma reconstrução do problema nas três maneiras que o autor trata o tema que constam, respectivamente, nos capítulos da Dissertação: (1) a teoria da

9 No positivismo, segundo Schmitt (VL, p. 9), "gelten nur positive Normen, d.h. solche, welche wirklich gelten; sie gelten nicht, weil sie richtigerweise gelten sollen, sondern ohne Rücksicht auf Qualitäten wie Vernünftigkeit, Gerechtigkeit usw. nur deshalb, weil sie positiv sind. Hier hört plötzlich das Sollen auf und bricht die Normativität ab; statt ihrer erscheint die Tautologie einer rohen Tatsächlichkeit: etwas gilt, wenn es gilt und weil es gilt. Das ist Positivismus".

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Em sede de teoria da democracia, Schmitt propõe uma democracia sem mediações (unmittelbare

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mediação racionalista nos escritos pré-weimarianos; (2) a teoria do existencialismo político e a guinada pragmática na década de 1920 e (3) no período tardo-weimariano e, principalmente, após a II Guerra Mundial, a teoria do nomos e a tentativa da dissolução do problema moderno.

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De forma inicial, trata-se a teoria da mediação racionalista do texto Der Wert des Staates und die Bedeutung des Einzelnen (O valor do Estado e o significado do indivíduo) de 1914, onde o autor elabora a problemática da Rechtsverwirklichung, ou seja, a realização da ideia de direito na realidade concreta visto que, conforme Schmitt, há uma descontinuidade insolúvel entre norma e fato. A partir disso, o autor articula a noção de Entscheidung (decisão) como o medium fático entre ideia e realidade ou o ato de poder entre Recht e Rechtsverwirklichung que não realiza a ideia de direito na realidade concreta, mas apenas representa o Sollen no Sein, legitimando o poder e a validade da ordem através desse fundamento ideal que o Estado instancia. Nesse sentido, embora prossiga o dualismo insuperável entre norma e realidade, Schmitt propõe a legitimidade do Estado através da ideia de direito ao exigir uma ação de mediação (Mittelbarkeit): é a de-cisão que constitui uma forma concreta, ou seja, dá-se forma à faktischer Realität que efetiva a ideia de direito, representa-a e dela toma sua legitimidade, pois a autoridade do Estado –

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rationalistische Mittelbarkeit que Schmitt assume no início das suas considerações inclui a decisão como único vínculo possível de realização do direito na realidade, pois pressupõe a transcendência do direito, sua autonomia e superioridade diante da facticidade. Tal postura caracteriza uma forma de normativismo e a cesura radical entre ser e dever-ser que, segundo a hipótese desta pesquisa, vai dar lugar cada vez mais para o momento da imediatidade fática. Assim, nesse contexto, desenvolve-se em Die Diktatur (A Ditadura) de 1921 e na Politische Theologie (Teologia Política) de 1922 a teoria schmittiana da Ausnahmenzustand que busca solucionar o problema da mediação (Mittelbarkeit) entre quaestio facti e quaestio iuris, entre determinação concreta da ordem e teoria normativa do poder através da justificação de uma ordem pela noção de Souveränität (soberania). Atravessada de ponta a ponta por um realismo, a teoria da exceção adquire pleno significado e relevância na introdução do conceito de Entscheidung (decisão) no interior da ordem jurídica vinculada à soberania do Estado como Vermittler (mediador) entre Ideal e Real, normativo e fático ao desempenhar a função de mediação originária não normativa, mas jurídica da ordem de direito. Entretanto, ao propor um nexo constitutivo originário entre forma jurídica e realidade concreta (konkreten Wirklichkeit), a teoria schmittiana da exceção revela o conceito de Entscheidung como algo que estabelece a ordem jurídica no interior do direito, porém fora da história, por isso, caracterizando um decisionismo fraco. Embora não se configure como um fundamento normativo-abstrato – pois a exceção significa uma situação fática de indistinção entre situação de fato e situação de direito a partir da qual requer-se a decisão e através da qual se dá a legitimidade (justificação da validade da ordem) – esta se mostra exterior à imanência da constituição e da experiência histórico-política, pois apesar de surgir de um nada normativo concreto refere-se, em última instância, à Ideia de direito como sentido e fundamento.

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história, pois vinculado ao Recht universal e abstrato, a fase tardo-weimariana de Schmitt dá à sua teoria política e juspublicista uma conotação cada vez mais concreta e existencial. Nesta fase, caracteriza-se analiticamente a teoria jurídico-política schmittiana e expõe-se a estrutura fundamental de seu realismo agora dotado de um decisionismo forte, pois referente às questões da realidade histórica. A via de acesso ao pensamento político do autor, especificamente, à teoria schmittiana do poder é a sua tese sobre conceito do político elaborada em Der Begriff des Politischen (O Conceito do político) de 1927 com algumas alterações até o texto definitivo de 1932. O jurista tedesco investiga os pressupostos elementares de uma estrutura de pensamento caracterizado, em traços gerais, por uma perspectiva concreta do direito e da política que se define como realismo político e pode ser exposto em cinco proposições centrais, quais sejam: primeiro, a categoria do polémos através do par conceitual amigo-inimigo; segundo, a relação entre politisch (político) e staatlich (estatal); terceiro, a concepção de autonomia do político; quarto, a concepção ontológico-existencial do político e, por fim, quinto, uma antropologia política ou uma “antropolemiologia”. De modo geral, o argumento sobre o estatuto da relação entre poder e normas mostra o quanto no realismo político schmittiano não mais o Sollen, mas sim a situação fática, cuja estrutura originária se configura como a oposição e a heterogeneidade existenciais, é a principal referência de constituição da norma, tornando-se uma espécie de condição de possibilidade para qualquer normatividade – por isso, essa fase é conhecida de existencialismo político. Assim, a análise das relações concretas seria a principal tarefa da reflexão sobre o político, cujo primado é expresso na forma da concretude e autonomia da fórmula Freund-Feind em Schmitt11.

No entanto, esta ainda não seria a forma adequada para tratar as questões pressupostas pelo autor, pois, no fundo, embora a proposta da teoria do político seja coerente ao acolher um decisionismo forte e afastar a tarefa da realização ideal do direito, termina por incorrer no engodo das teorias realistas ao afirmar a dimensão pura da facticidade como válida a partir apenas de determinações concretas. De um

11 De acordo com a tese afirmada, entre outros, por Böckenförde, que afirma ser o Der Begriff des

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modo ou de outro, segundo interpretações correntes, nestas fases iniciais o jurista tedesco ainda não conseguira escapar do paradigma da cisão moderna presente na sua “de-cisão”, ou seja, o hiato entre ser e dever-ser prosseguia incólume seja no normativismo de juventude, na releitura através da teoria da exceção ou na teoria do político onde ele, efetivamente, percebe o problema e realiza a derradeira reviravolta no seu pensamento.

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Nesse sentido, o jurista de Plettenberg desenvolveu posteriormente seu konkretes Ordnungsdenken e propôs sob este novo paradigma a superação para o abismo entre Sein e Sollen. A partir disso, analisa-se a elaboração da teoria do nomos como uma nova estratégia na solução da problemática moderna. Schmitt não parte mais da investigação sobre a estrutura originária e jurídica constitutiva do medium entre ser e dever-ser e, por conseguinte, da justificação básica de uma ordem (legitimidade) através de alguma instância normativa (Sollen) ou da staatlichen Entscheidung como Vermittler, mas trata-se, doravante, de demonstrar que não há um modus intermediário entre norma e fato, nem passagem válida entre ambas instâncias. Elas são co-originárias e, enquanto tal, a pergunta por uma mediação tratada unilateralmente tanto pelo racionalismo quanto pelo realismo é ultrapassada em relação à consideração sobre a constituição histórica da ordem.

Na elaboração de um pensamento da ordem concreta, Schmitt inaugura o caminho para uma concepção de direito e de política articulados a partir de uma origem da ordem que não necessita uma teoria normativa da justificação (legitimidade). O momento da constituição não é mais subordinado ao momento da de-cisão (como no decisionismo autêntico que marca o realismo forte) nem imprime uma exigência de forma – nem anterior, conforme a tese do normativismo racionalista; nem historicamente posterior, conforme a tese da co-originalidade entre excesso e exceção (realismo fraco). Para Schmitt, o Sein é já, antes de qualquer coisa, realidade social mediada e constituída juridicamente e a legitimidade é concebida em termos de legitimidade a partir de um ato, por conseguinte, uma legitimidade fática.

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política que, por um lado, não se reduz ao meramente factual ou empírico, pois a concretude da decisão radical exige a constituição da forma; e, por outro, não se estabelece de maneira formalista ou abstrata, uma vez que a origem sempre evidente da ordem reside na imediatidade das relações históricas. Por isso, a mediatidade e a imediatidade teriam um papel fundamental na estrutura do seu realismo que busca, neste momento inicial, ainda no interior da modernidade, elementos para superar a crise da mediação racionalista através de uma perspectiva pragmática ao estabelecer uma relação entre ser real concreto – e não ideal – e dever-ser abstrato através da exceção. Na medida em que Schmitt dá-se conta dos paradoxos da teoria da exceção e da decisão, ele elabora sua teoria do político –

quer interpretado com uma teoria existencial do político quer como uma teoria do grau de intensidade do político12 – que representa, simultaneamente, síntese e transformação em relação à fase precedente. Entretanto, após 1933, ao inserir o pensamento institucionalista no seu quadro teórico, Schmitt abandona tanto sua teoria da exceção quanto sua teoria do político e, numa radicalização da historicidade da constituição da ordem, desenvolve sua teoria do nomos para designar o ato originário fundante, ou seja, o momento histórico concreto como constituição da ordem política e jurídica. Nesse sentido, a relação fundante do nomos, enquanto força real que atua concretamente, entre espaço e ordem concreta, e não qualquer regulação ou ordem normativa, ou seja, lei (Gesetz), deixa de ser configurada a partir da decisão como relação entre medida ideal e exceção concreta ou ainda como configuração existencial marcada pela heterogeneidade e oposição conforme a tese agonística ou polemiológica entre amigo/inimigo, para ser tratada como estrutura espacial de uma ordenação histórica e sustentar a relação originária indissolúvel entre ser e dever-ser que, afinal, tem a pretensão de superar a Trennung entre quaestio iuris e quaestio facti13.

Nestes termos, se o jovem Schmitt (principalmente em Der Wert des Staates und die Bedeutung des Einzelnen) admitia a cesura e a incomunicabilidade entre direito e realização do direito, logo após, porém, critica o normativismo e o neokantismo através do pensamento decisionista e, em seguida, através do

12 Cf. MEIER, Heinrich. Lesson of Carl Schmitt. Chicago: University of Chicago, 1998, cap. II.

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existencialismo político, desvencilha-se das contradições do racionalismo e, em sua última fase de maturação teórica, depõe a contradição entre sujeito e objeto, ser e dever-ser, forma e concretude, mediação e imediação, transcendência e imanência, além das unilateralidades do decisionismo weimariano para, na tentativa de superar as oposições modernas, propor um pensamento que articule em outra chave de leitura e em outro léxico jurídico-político os fenômenos do poder e da ordem. Tal cesura entre forma e realidade diante da qual fracassa qualquer tentativa de justificação da ordem através do parâmetro de legitimidade e validade modernos é o problema político-teórico específico que se põe neste trabalho14. Diante de tal gap, Schmitt empreeende uma reflexão sobre a estrutura do quadro conceitual político de sua época e revela a tessitura ambígua do paradigma da política que se configura entre dois extremos bem distintos, mas incapazes de articular satisfatoriamente a relação entre facticidade e validade de normas, entre a efetividade política e jurídica concreta e a ideia de direito haja vista a questão sobre a legitimidade e a origem da ordem15.

A partir disso, a proposta que se apresenta nesta dissertação reconstrói o pensamento schmittiano através da relação entre poder e normas, facticidade e validade, mais precisamente, na tensão entre esses dois elementos inelimináveis da sua estrutura argumentativa inclusive ao esboçar, num segundo nível, a superação entre o direito abstrato e a realidade fática e, dessa maneira, demonstrar a elaboração, avant la lettre, de uma teoria política que se pode conceber como uma superação de realismo e normativismo, denominada de forma mais acertada, como pragmatismo político. Deste novo paradigma é derivado uma nova racionalidade

14 No século XVI, a partir de Jean Bodin, a soberania pode ser definida como a potência absoluta e perpétua de uma República, tornando-se um poder desvinculado de qualquer enquadramento normativo. A soberania, portanto, é o fundamento da norma e, por conseguinte, constitui a ordem jurídica estatal, pois é, em última instância, expressão do poder constituinte do Estado. Entretanto, nestes termos, a soberania seria estruturalmente anterior à ordem estatal, pois a fundaria, e permaneceria fora do âmbito dessa ordem como uma força extrínseca e desconexa ao vínculo da lei, ou seja, a soberania seria fora-da-lei, normativamente desvinculada e estruturalmente configuraria um estado de exceção. Dessa forma, de summa potestas soberana tornou-se também

summa auctoritas e, não sem propósito, Hobbes assevera que "auctoritas, non veritas, facit legem" produzindo assim, a partir da absoluta desvinculação normativa, o critério decisionista da validade das normas e da ordem, porém, da mesma forma o início do positivismo. A partir desse problema da facticidade e da validade da ordem e do direito põe-se imediatamente a questão da legitimidade, a qual, entretanto, não constitui o objeto principal das investigações nesta pesquisa. 15 Sobre esse tema embora de outra perspectiva, cf. HABERMAS, 1997; cf. ainda, BARCELLONA,

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prática que se afasta do normativismo racionalista moderno e do realismo crasso unilateral ao estabelecer uma reflexão cifrada seja como Macht seja como Recht na intermediação entre facticidade e validade de forma que, afinal, ser e dever-ser tornam-se, no momento originário, indistinguíveis.

O objetivo deste estudo, afinal, é a investigação de que, por um lado, (I) se a teoria política de Schmitt se configura em contraposição ao modelo normativista, por outro, não se adequa ao paradigma do realismo político comum, representando uma proposta teórica alternativa diante do problema da mediação racionalista; assim, (II) torna-se necessário analisar quais as características do projeto schmittiano de reestruturação do paradigma da teoria política desenvolvido, de forma geral, em três momentos distintos na sua reflexão: o primeiro articulado através da noção de Entscheidung e, posteriormente, trabalhado no âmbito de uma teoria da exceção exposto, de forma geral, nos textos Der Wert des Staat und die Bedeutung des Einzelnen de 1914, Die Diktatur de 1919 e Politische Theologie de 1922; o segundo momento denominado de existencialismo político onde a teoria do político é representada pela obra Der Begriff des Politischen de 1927/1932; e o terceiro momento, expresso pela teoria do nomos elaborada, principalmente, no texto Der Nomos der Erde im Völkerrecht des Jus Publicum Europauem de 1950.

Os resultados principais desta dissertação são a demonstração de que Schmitt empreendeu uma tentativa de reestruturação dos paradigmas políticos da modernidade – normativismo e realismo – diante do problema da mediação e da cesura entre ser e dever-ser e, enfim, a indicação de que o autor desenvolveu uma teoria da decisão e da exceção soberana, ainda influenciado pelas categorias modernas, em busca de uma solução que não reduzisse a ordem jurídica seja ao puro fato seja à pura norma, como critério de validade de uma ordem política concreta, cujo mecanismo de mediação da forma política, a Entscheidung, dar-se-ia a partir de uma relação interna entre excesso e exceção que provoca, afinal, a indistinção entre quaestio iuris e quaestio facti; após, no entanto, reformula a teoria da exceção em prol de uma teoria do político até, posteriormente, reformar sua obra e desenvolver suas reflexões através de uma teoria do nomos ao investigar não uma mediação, mas a "imediatidade de uma força jurídica não mediada por leis"16, um

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ato (Akt) concreto e ordenativo entre o universal e o particular, elaborando um pensamento que, alargado em relação ao paradigma decisionístico, assume a historicidade das práticas sociais como fundamento concreto de uma ordem, desvencilhando-se das armadilhas do paradoxo mediação/imediação17.

III. Considerações sobre o método e percurso da pesquisa

Neste momento, tornam-se necessários alguns esclarecimentos acerca do método utilizado por Schmitt. Se, por um lado, entre o pensamento do jurista tedesco e a tradição de pensamento da filosofia prática há uma arrimada oposição inevitável, tornando-se prioritariamente contra a reflexão da dimensão normativa da política, da investigação da legitimidade ou do fundamento da obediência, a investigação das normas fundamentais que orientam a ação dos homens ou, de forma ainda mais determinada, a fundamentação normativa do poder; por outro lado, a rigor, o tratamento politológico também não é apropriado à reflexão schmittiana uma vez que a determinação semântica tanto do conceito de Ausnahmen quanto dos conceitos de politisch ou de nomos são, na verdade, para o autor, um unermessliches Problem, ou seja, um problema incomensurável, portanto alheio ao tratamento na forma de objeto, de medida e de tratamento prático-técnico, pois relegado à condição de mera questio facti alheio às formas de enquadramento normativos e, por conseguinte, fugidio ao tratamento jurídico ou ético, bem como às classificações metodológicas. Portanto, embora com algum desconforto, Schmitt poderia ser arrolado dentre os filósofos políticos mesmo advogando por uma teoria que experimenta a ausência do próprio objeto, enquanto substância, bem como mediante o esforço de retorno à origem e à cesura, a própria impossibilidade de fundamentação racional. Entretanto, a partir de outra perspectiva, as características fundamentais da teoria schmittiana

Ereignis, ein Akt der Legitimität, der die Legalität des bloß en Gesetzes überhaupt erst sinnvoll macht" NE, p. 42.

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da política torna-o mais próximo de um teórico da ciência politica do que propriamente filósofo, no sentido tradicional, pois retira da reflexão sobre o político qualquer generalização essencialística (filosófica), privilegiando a generalização categorial (politológica)18, além de investigar uma regularidade epocal da política mais do que uma essência ou fundamento último como argumenta-se na exposição da sua teoria do nomos. Em suma, antecipando-se às discussões metodológicas, o próprio autor intitulara-se, certamente de forma polêmica, nem como filósofo, nem como politólogo, nem como teólogo, mas apenas como um jurista e, acima de tudo, como um publicista político. Por este motivo, seguir-se-á a orientação schmittiana na reconstrução argumentativa de sua obra e adotar-se-á um modelo interpretativo com ênfase numa exegese político-juspublicista entre filosofia política e direito público19.

Em relação à obra schmittiana, o método por ele utilizado pode ser considerado ora como um método empírico, ora como um método analítico, pois não se constitui apenas como análise conceitual, mas também empírica e histórica, abordando todo o horizonte da experiência política, configurando uma filosofia do político voltada aos fatos, sendo possível afirmar, por conseguinte, que Schmitt possui um estilo analítico sem descuidar da abordagem contextualista. De qualquer modo, o autor pode ser considerado seja como politólogo seja como filósofo da política ou ainda como filósofo do direito público e jurista constitucional diante da crise da política moderna e da impossibilidade de dedução da política do direito natural ou de qualquer outro fundamento último e racionalista.

Além do problema proposto nesta dissertação, da justificação e reconstrução do estado da arte, das hipóteses de leituras e da tese levantadas nesta pesquisa, é necessário esclarecer um pressuposto metodológico: o problema de uma interpretação sistemática de Schmitt. A Schmitt-Renaiscence que ocorreu nas últimas duas décadas revela a potente capacidade de articulação dos problemas políticos e jurídicos que o pensamento do jurista ainda possui. Entretanto, é notória a dificuldade de acesso – e de saídas – que os intérpretes enfrentam ao deparar-se com o labirinto schmittiano, pois, pode-se ressaltar que seu caráter peculiarmente

18 Sobre o estatuto do pensamento de Schmitt entre a filosofia e a politologia, cf. GALLI, 2010, p. 747 e ss.; sobre Schmitt e a filosofia prática, ibid, p. 813.

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fragmentado constitui um desafio para o teórico interessado na investigação do seu pensamento político-jurídico. Assim, a tese metodológica presente nesta pesquisa é que, embora implícita, existe uma sistematicidade – e não um sistema – no pensamento de Schmitt que, apesar de fragmentado e dissolvido em várias fases muitas vezes contraditórias, é possível a realização de uma reconstrução dos argumentos e conceitos do autor sob a chave de leitura que consiste, na realidade, em um problema que permeia toda sua obra, qual seja, a crise do racionalismo político moderno e o mecanismo de mediação entre norma e realidade20.

Dessa forma, o método desta pesquisa é a reconstrução

argumentativo-conceitual do quadro referencial teórico schmittiano com especial atenção no desenvolvimento diacrônico de seus diversos momentos e fases que constituem, a rigor, variações sobre um tema. O presente trabalho desenvolve a hipótese de que há uma continuidade em toda obra de Schmitt ao menos no que se refere ao problema perseguido pelo jurista por longos anos em torno do diagnóstico da

20 Compartilhamos da tese de GALLI, 2010, p. XIV, quando afirma que, além da pesquisa pela origem da política, o "problema che conferisce significato e sistematicità alle contraddizioni del pensiero di Schmitt, la chiave che spiega i principali concetti politici schmittiani, la loro genesi e il loro scopo, è la crisi del razionalismo politico moderno". Para HOFMANN, 2002, p.11, por outro lado, ao realizar uma interpretação histórico-evolutiva da obra de Schmitt, a cifra que concede sistematicidade ao pensamento do autor é o problema da legitimação do poder público, assim, "Und doch muß das ganze Werk vor dem Hintergrund dieser Fragestellung gesehen, muß die Frage nach der Rechtfertigung staatlicher Gewalt als agens der Entwicklung begriffen werden.

Stets sind die Grundbegriffe und Grundpositionen Schmitts in den einzelnen

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questão da dualidade entre ser e dever-ser e sua superação em teoria política. Em tal sentido, as críticas e interpretações aferidas na pesquisa referem-se, rigorosamente, à estrutura e abordagem analítica do Opus schmittiano de maneira imanente sem considerar o embrólio criado sobre o "caso" Schmitt acerca do nacional-socialismo, que constitui uma verdadeira damnatio memoriae. Assim, verifica-se o enquadramento teórico a partir do qual o autor analisa os problemas propostos e ressignifica a tradição de pensamento político-jurídico da modernidade, verificando os conceitos, pressupostos, consistência dos argumentos e consequências teóricas e práticas. Dá-se ênfase à reconstrução interna da lógica da argumentação, contextualização externa e interpretação de especialistas de modo a ressaltar o valor analítico do desenvolvimento schmittiano dos conceitos, entre outros, de Ausnahmen e de nomos que podem ser utilizados em prol de uma teoria política pragmática como proposta nesta pesquisa.

De resto, cabe salientar que a leitura realizada sobre o pensamento de Schmitt não se constitui numa interpretação apologética, mas, ao contrário, entremeado na exposição dos seus conceitos e categorias indicam-se limites, falhas estruturais e déficits teóricos que, por conseguinte, são levados em consideração e averiguados na medida em que se torna esclarecedor para a temática em questão.

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questão proposta, mas superá-la.

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Por derradeiro, a expressão que intitula este trabalho “Pragmatismo contra Racionalismo” justifica-se coerentemente, apesar do caráter aparentemente simplista e dual à primeira vista, pois desde o início das suas considerações até seus últimos escritos Schmitt trata da questão em tela entre estas duas perspectivas:

o apelo schmittiano em Legalität und Legitimität, onde o autor traz uma série de

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CAPÍTULO 1. A TEORIA DA MEDIAÇÃO RACIONALISTA

1.1 O Problema da mediação na modernidade

Para Apel21, a filosofia ocidental pode ser exposta por meio de três grandes paradigmas: o paradigma do ser (Sein) que investiga a estrutura fundamental da realidade, ou seja, elabora a forma de reflexão denominada tradicionalmente como ontologia; o paradigma da consciência (Bewußtsein), que analisa reflexivamente como as estruturas do conhecimento são dadas no sujeito; e o paradigma da linguagem (Sprache) que, no quadro interpretativo do autor, compreende a releitura contemporânea da questão transcendental como uma reformulação dos problemas modernos em termos linguísticos. Enquanto a virada reflexiva transformou a perspectiva tradicional da constituição dos objetos do mundo e tornou a investigação sobre as condições de possibilidade de conhecimento e da ação do homem a tarefa prioritária da reflexão filosófica, a virada linguística, seja qual for a tonalidade que se lhe dê – sintático-semântica ou pragmática –, pôs a linguagem como instância

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através da qual o mundo se expressa, ou melhor, a própria enunciação do mundo, pois não haveria consciência sem linguagem. A despeito da análise do mérito da distinção, admite-se esta proposta como a mais apropriada para mostrar o desenvolvimento do problema, especificamente em relação ao pragmatismo, e o estado da arte da temática em sede de teoria política de que se trata a exposição a seguir, haja vista que está em jogo, na verdade, o papel que a articulação entre realidade e norma desempenha na reflexão jurídico-política e o problema do dualismo metodológico entre ser e dever-ser, além de algum possível medium existente entre essas duas esferas.

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(I)

A partir da teoria do cogito cartesiano, a metafísica moderna se articulou enquanto instância universal do conhecimento do mundo através do pensamento, ou seja, através da categoria da consciência. Tal pressuposto fundamental para a metafísica racionalista foi adquirido por meio da tese clássica da apreensão verdadeira da realidade através de conceitos que possuia a pretensão de captar a realidade como ela é em si mesma, pois o real, segundo a metafísica clássica, é estruturado de maneira racional e, portanto, o pensamento expressaria o mundo no interior de um sistema de natureza axiomático-dedutiva regido pelos princípios de causalidade e de razão suficiente a partir dos quais possibilitaria o conhecimento apriórico sobre os entes22. Neste sentido, de modo distinto da metafísica clássica, porém ainda sob sua influência, o racionalismo moderno assimila esse pressuposto e articula de maneira necessária a realidade à estrutura do pensamento, ou seja, o ser é conhecido no pensamento e, dessa maneira, a representação da realidade se dá através de um discurso racional com validade objetiva universal que não depende de estruturas subjetivas empíricas, mas sim da organização imanente da realidade mediada pela consciência como expressa pelo idealismo objetivo desde o Timeu de Platão até a dissolução da metafísica racionalista por obra de Kant e Fichte23. Além

disso, a metafísica moderna partilha a tese do pensamento clássico da identidade entre ser e pensar e, por conseguinte, estabelece o argumento ontológico como o fundamento último de qualquer discurso racional sobre o ser a partir da representação da consciência que teria a pretensão de captar o modo de ser das

22 A tese do realismo conceitual significa a identidade entre ser e pensamento que possibilita o discurso racional sobre o mundo. Cf. OLIVEIRA, Manfredo. “Filosofia: lógica e metafísica”, in: ALMEIDA, Custódio; IMAGUIRE, Guido; OLIVEIRA, Manfredo (org.); Metafísica Contemporânea, 2007, p. 162 et. seq.; cf. ainda sobre o tema, VAZ, Henrique. Escritos de Filosofia III: Filosofia e Cultura. São Paulo: Loyola, 1997, pp. 343-367 e HEIDEGGER, Martin. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979, pp. 180-181 et seq; cf. ainda PUTNAM, Hilary. Reason, Truth and History. Cambridge: Cambridge University Press, 1982.

23 Sobre a distinção entre metafísica clássica e metafísica moderna, cf. VAZ, 1997, p. 350 "a

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coisas. Logo, a conceitualização se confundiria com a própria realidade, pois relações conceituais expessariam, em última instância, relações ontológicas a partir da tese da identidade entre conceito e realidade24.

No entanto, através do argumento desenvolvido pelo ceticismo sobre a possibilidade de que o pensamento possa ser inadequado à estrutura essencial da realidade e das consequências do solipsismo moderno, ou seja, a dúvida sobre um discurso verdadeiro sobre o mundo e, por conseguinte, a hipótese da inadequação entre estrutura do pensamento e estrutura do mundo, Kant elabora uma teoria que apresenta as condições de possibilidade e de validade do conhecimento legítimo capaz de interpretar a experiência e estruturar conceitualmente os dados da percepção, isto é, trata-se de uma teoria da legitimação dos pressupostos cognitivos e das estruturas do sujeito que, enquanto tal, possibilitaria extrair conhecimentos válidos dos fenômenos empíricos. De tal modo, estimulado pelo empirismo moderno, de forma especial por Hume, Kant questiona os pressupostos da metafísica racionalista, cuja tese afirma que os conceitos estão em relação direta com a experiência sensível que, por conseguinte, tornar-se-ia a matriz de qualquer conhecimento, pois não haveria concepções dotadas de sentido se não fossem derivadas da experiência. Dessa forma, ao abandonar a pretensão metafísica de enunciação do essencial e do absoluto, a virada reflexiva kantiana investiga a estrutura do aparelho cognitivo humano a fim de descobrir, ao invés da constitucionalidade dos entes, a solução do problema de como são constituídos os objetos do conhecimento, concedendo primazia da representação sobre o ser, visto que o erro da metafísica racionalista fora, precisamente, transformar os instrumentos do aparato conceitual humano em estruturas ontológicas e pressupor o acesso à realidade para além da experiência sensível25.

24 As consequências, por exemplo, em sede de teoria da verdade, estabelece que veritas est adequatio rei et intellectus”, ou seja, sustenta a tese da verdade como adequação da coisa com o conhecimento, ou melhor, o enunciado verdadeiro é aquele que corretamente se conforma ou corresponde à coisa. Sobre isso, entre outros, cf. HEIDEGGER, 1979, p. 133 et seq.

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Ademais, a relação entre subjetividade e mediação realiza em Kant o papel fundamental na constituição da realidade: o desenvolvimento radical desta forma de reflexão complementou o longo processo de antropologização do pensamento que se dera desde o nominalismo medieval e, após Descartes, Hobbes, Spinoza e Leibniz, momento no qual houve a substituição da ontologia enquanto reflexão sobre o ente enquanto ente, pela filosofia transcendental que, de uma perspectiva epistemológica, instaura o sujeito transcendental ou reflexivo, distinto dos sujeitos empíricos, como instância de objetificação mediadora entre realidade natural e mundo humano. Segundo Kant, o real é cognoscível apenas através das formas da intuição, quais sejam, espaço e tempo, e do pensamento, as categorias; porém, tais formas só existem em relação ao sujeito cognoscente, pois o objeto existe na medida em que é constituído através do sujeito e nunca em si mesmo. Isso tem como consequência a tese de que não é possível qualquer espécie de conhecimento válido independente da intuição e da experiência do sujeito, portanto da sua mediação, uma vez que não é possível descrever o objeto em si mesmo, mas apenas pressupô-lo. Como estes surgem a partir das categorias:

os objetos em si de modo algum nos são conhecidos e que os por nós denominados objetos externos não passam de meras representações de nossa sensibilidade, cuja forma é o espaço e cujo verdadeiro correlatum, contudo, isto é, a coisa em si mesma, não é nem pode ser conhecida com a mesma e pela qual também jamais se pergunta pela experiência26.

Isso significa que a natureza racional e a constituição antropológica são o limite do pensamento humano diante das coisas imediatas, pois se dá através da mediação das categorias universais e necessárias entre a experiência fático-causal e um conhecimento válido. Segundo Kant, as afecções do mundo são captadas pela sensibilidade e pelas categorias do entendimento e ao serem estruturadas pela consciência tornam-se objetos transcendentalmente constituídos, por conseguinte,

partir da 'mediação categorial'”; cf. ainda, em relação à passagem da metafísica clássica do ser para a metafísica moderna da subjetividade, bem como o paradigma da linguagem contemporâneo, VAZ, ibid, pp. 121-190; sobre a dissolução da metafísica clássica pela teoria kantiana, cf. ainda sobre o tema, LEBRUN, Gerard. Kant e o fim da metafísica. São Paulo: Martins Fontes: 1993, pp. 19-57.

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afirma a tese de que não existe um princípio imanente de organização da realidade, mas apenas a estrutura transcendental que produz os objetos. Nestes termos, sustenta-se a tese de que a realidade mundana é criada a partir da experiência do sujeito cognoscente e a relação entre pensamento e realidade é tratada a partir de considerações epistemológicas, ou seja, elabora-se uma Erkentnisstheorie como uma teoria do aparato cognitivo humano, onde a experiência é estruturada, organizada e constituída como objeto através da mediação categorial, tornando-se a filosofia uma teoria da legitimação dos objetos da experiência humana que representa a transformação radical da ontologia da metafísica pré-crítica em uma teoria do conhecimento adquirindo a configuração de uma objetologia27.

Entretanto, as teses de Kant enfrentam críticas relevantes uma vez que possuem como consequência necessária da teoria da mediação racionalista a perda da realidade, pois inalcançável já que não é possível falar das coisas em si, mas apenas de coisas para o sujeito, visto que a coisa em si, o mundo noumenal é incognoscível: carece da ação mediadora do sujeito, por isso deve-se pressupor, porém, sem determiná-lo essencialmente como na metafísica racionalista na qual os conhecimentos dos objetos são imediatos ou ainda no empirismo, segundo o qual o conhecimento da realidade é intuitivo. De tal forma, esta reflexão transcendental provoca a questão do gap entre pensamento e realidade, criando uma dualidade insolúvel entre forma e matéria, universal e particular que repercute de diversas formas no pensamento contemporâneo28. Nesse sentido, o idealismo transcendental

27 Sobre a filosofia e, em especial, a filosofia do direito de Kant cf. HÖFFE, O. Democracia no mundo

do hoje. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp.187-267 e DREIER, R. Recht-Moral-Ideologie. Frankfurt: Suhrkamp, 1981, pp. 286-315. Kant elaborou na sua Metaphysik der Sitten (1797) as matrizes elementares para uma filosofia do direito, porém de certo modo acrítico – neokantianos como Karl Bergbohm e Hans Kelsen acertaram quanto ao fato de que Kant não fora kantiano – uma vez que há neste texto a defesa de uma teoria jusnaturalista. Entretanto, na Kritik der reinen Vernunft (1781), em contraposição ao racionalismo do direito natural, concebido como produto da razão, do pensamento – portanto, co-natural à natureza empírica do homem – onde trata o processo de determinação do direito como uma conclusão lógico-formal, Kant opõe a impossibilidade de um direito natural racionalmente reconhecível, válido universal e eternamente, isto é, um direito racionalista puro. A principal crítica ao quadro conceitual kantiano é, sobretudo, o esquecimento do momento da historicidade do direito, cf. KAUFMANN, Arthur e HASSEMER, W. (org.) Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Trad. Marcos Keel e Manuel Seca de Oliveira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, cap. 2, pp. 57-209. 28 Cf. OLIVEIRA, 2007, p. 165: “Daí porque a pretensão de validade objetiva do conhecimento para

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