• Nenhum resultado encontrado

José Alexandrino de Souza Filho

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2023

Share "José Alexandrino de Souza Filho "

Copied!
21
0
0

Texto

(1)

Montaigne e o "mito do bom selvagem"

José Alexandrino de Souza Filho

José Alexandrino de Souza Filho é professor de língua e literatura francesas da Universidade Federal da Paraíba. É doutor em literatura francesa pela Université Michel de Montaigne (Bordeaux 3), onde defendeu a tese "Civilisation et Barbarie en France au temps de Montaigne", sob orientação de Prof. Claude-Gilbert Dubois.

(2)

i Étienme Jodelle (1532?-1573) escreveu uma . Ode >, em homenagem a André Thevet, o autor das Singularidades da França Antartica (1557), onde exalta a figura o selvagem livre e nu em oposição ao civilizado hipócrita, em versos como esses: "Ces barbares marchent tout nus, Et nous, nous marchons inconnus, Fardés, masqués". Ver THEVET, André. Op. cit. Edition intégrale, établie, présentée &

annotée par Frank Lestringant.

Paris, Editions Chandeigne, 1997. pp. 311-313.

2 Pierre de Ronsard (1524- 1585) fez o elogio da vida simples do indígena brasileiro em seu DIscours contre fortune (1560), em termos

semelhantes aos de Jodelle:

"(...) le peuple inconnu, Erre innocemment tout farouche et tout nu, D'habits tout aussi nu qu'il est nu de malice". Ver RONSARD, P. de. auvres complètes. Edition établie, présentée et annotée par Jean Céard, Daniel Ménager et Michel Simonin. Tome II, pp.

777-779.

3 Ver reprodução em MELO FRANCO, Afonso Arinos de.

O Índio brasileiro e a Revolução francesa. As origens brasileiras

da teoria da bondade natural.

Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1976.

Este artigo é dedicado, num primeiro momento, à análise e discussão do episódio da visita dos índios canibais brasileiros à França, tal como o escritor e filósofo Michel de Montaigne o descreve no ensaio "Dos Canibais". Nosso objetivo é demonstrar que ele foi inventado a partir de determinados fatos históricos, os quais o ensaísta alterou em prol dos seus objetivos literários, intelectuais e políticos.

Historicamente falando, a visita e, sobretudo, a "conversação" com os indígenas é um blefe; literariamente, é uma pequena obra-prima de sagacidade e imaginação criadora. Num segundo momento, propomo-nos trazer à luz, com base em documentos, as verdadeiras circunstâncias históricas que serviram de inspiração ao ensaísta francês, qual o suporte bibliográfico de que se serviu e como esses elementos aparecem no texto.

Montaigne não foi o primeiro francês a elogiar a vida natural e despreocupada dos índios brasileiros. Os poetas Jodelle' e Ronsard 2, expoentes de um movimento cultural de valorização da língua e literatura francesas, a Plêiade, o precederam nesta seara. Em 1580, Montaigne publicou, no livro I dos Ensaios, um capítulo inteiramente consagrado a descrever a vida, os costumes e os valores dos povos

"primitivos" do Brasil. Montaigne escreve o ensaio propondo ao seu leitor um exercício de reflexão que começa pela relativização do conceito de "bárbaro" e "selvagem", ilustrado por uma anedota (no sentido de "relato sucinto de um fato curioso"), passa pela descrição do meio-ambiente local, o tipo de moradia, a alimentação, as crenças, o modo de vida e os valores da sociedade indígena, e se encerra com a descrição da visita de um grupo de indígenas brasileiros à cidade francesa de Rouen. Este episódio contribuiu grandemente para a fortuna literária do ensaio e Montaigne entrou para a história como um dos precursores de idéias de caráter "socialista" e revolucionário, na medida em que denunciou, pela voz dos canibais, a injustiça social.

Um exemplo disto é o quadro pintado por Moreau le Jeune, no século da Revolução Francesa, representando a chegada de Jean-Jacques Rousseau aos Campos Elíseos, o paraíso da sociedade perfeita e da felicidade coletiva, onde é recebido, com um aperto de mão, por Platão, o ideólogo da República, tendo a seu lado Montaigne 3.

Montaigne escreveu, oito anos depois, quando do lançamento do livro III, outro ensaio chamado "Dos coches" (III, 6), em que trata da colonização do Novo Mundo. Neste, embora o escritor se detenha no trágico fim das civilizações do México e do Peru, aniquilados pela barbárie espanhola, Montaigne retoma a mesma idéia exposta no ensaio sobre os índios brasileiros: esses povos são ingênuos e puros como as crianças, pois ainda não haviam sido corrompidos por nós e nossa civilização. Uma das chaves interpretativas utilizadas pelos

(3)

humanistas consistia em associar os ameríndios aos homens da idade do ouro de que falava o mito pagão celebrado por Hesíodo, Platão e os poetas latinos Catulo, Ovídio e Virgílio, em razão da semelhança imaginada entre as condições de vida daqueles povos (simplicidade, abundância de recursos naturais, suposta longevidade, sociedade igualitária etc.) e o tempo, na narrativa mitológica grega, em que os homens viviam numa espécie de paraíso, em harmonia e bem-estar coletivos. Os "selvagens" do Novo Mundo foram também comparados aos cristãos primitivos, por terem supostamente a alma pura e serem receptivos à doutrina cristã.

No contexto intelectual da época, os ensaios "americanos" de Montaigne pretendem se contrapor àqueles que diziam serem os índios intelectualmente e moralmente inferiores aos europeus, o que poderia justificar sua eliminação física ou escravidão. Nesse sentido, ele apresenta provas da "suficiência" intelectual dos índios, citando duas

((canções" que, segundo ele, nada têm de "bárbaro", pois revelariam, ao contrário, uma rica imaginação e dotes "literários" que nada ficariam a dever às européias.

Quando geralmente se faz alusão ao ensaio de Montaigne, costuma-se citar o episódio da "conversação" com os índios como sendo um fato verídico, um exemplo do choque de culturas advindo da descoberta da América. Alguns especialistas, porém, já observaram, há muito, que o conteúdo da conversação foi inventado pelo escritor, o qual teria posto na boca dos canibais brasileiros palavras que ele próprio gostaria de proferir. Um caso clássico de "engenharia literária", de criação de um artifício retórico para, pela voz de outrem, fazer passar suas próprias idéias, como Montesquieu faria depois com Usbek, seu porta-voz nas Cartas Persas.4 Essa interpretação, que pressupõe um olhar crítico "não ingênuo", não apresentava, porém, elementos de provas ou indícios objetivos que fundamentassem um julgamento circunstanciado. A explicação se deve talvez ao fato de Montaigne ser muito persuasivo, como aliás já observara Afonso Arinos, um crítico atento às "armadilhas" do charme literário do escritor :

Se nos libertarmos da influência feiticeira que este mago das idéias exerce sobre quem o lê, se nos defendermos contra o prodigioso encantamento que das suas páginas imortais se desprende, que encontramos em Michel de Montaigne ? Um cerebral, que olhava a natureza como se ela fosse um sistema, cuja chave reveladora fosse o raciocínio, e que via no

Cf. ATKINSON, Geoffrey.

homem apenas o instrumento dócil desse sistema superior. Les Nouveaux Horizons dela

Um revolucionário para quem a ereção da natureza em Renaissance Française. Paris, Librairie Droz, 1935, pp.

sistema lógico equivalia à elaboração de uma teoria subversiva

355-356.

(4)

e vitoriosa, porque inevitável e fatal. Artifício semelhante serviria, depois, aos marxistas hegelianoss .

A partir do momento em que são investigadas as circunstâncias históricas relativas aos fatos narrados no ensaio, começa-se a perceber que há elementos contraditórios, os quais criam certo embaraço crítico, mas estimulam a pesquisa. Comecemos por apontar as inverossimilhanças históricas do texto.

O embaraço crítico

Antes de submeter o texto montaigniano à análise histórica, é oportuno transcrever aqui o episódio de que vamos tratar. Ao final do ensaio, Montaigne conta como se deu a "visita" dos índios canibais, segundo seu próprio testemunho:

[A] Trois d'entre eux, ignorans combien coutcra um jour à leur repos et à leur bon heur ia connoissance des corruptions de deça, et que de ce commerce naistra leur ruyne, comme je presuppose qu'elle soit desjà avancée, bien miserables de

s'estre laissez piper au desir de la nouvelleté, et avoir quitté la douceur de leur ciel pour venir voir le nostre, furent à Roüan, du temps que le feu Roy Charles neufiesme y estoit. Le Roy parla à eux long temps; on leur fit voir nostre façon, nostre pompe, la forme d'une belle ville. Apres cela quelqu'un en demanda leur advis, et voulut sçavoir d'eux ce qu'ils y avoient trouvé de plus admirable: ils respondirent trois choses, d'ou j'ay perdu la troisiesme, et en suis bien marry; mais j'en ay encore deux en memoire. Ils dirent qu'ils trouvoient en premier lieu fort estrange que tant de grands hommes, portans barbe, forts et armez, qui estoient autour du Roy (il est vray-semblable que ils parloient des Suisses de sa garde), se soubsmissent à obeyr à un enfant, et qu'on ne choisissoit plus tost quelqu'un d'entr'eux pour commander; secondement (lls ont une façon de leur langage telle, qu'ils nomment les homrnes moitié les uns des autres) qu'ils avoyent aperçeu qu'il y avoit parmy nous des hommes pleins et gorgez de toutes sortes de commoditez, et que leurs moitiez estoient mendians à leurs portes, décharnez de faim et de pauvreté; et trouvoient estrange comme ces moitiez icy necessiteuses pouvoient souffrir une telle injustice, qu'ils ne prinsent les autres à la gorge, ou missent le feu à leurs maisons. 6

'MELO FRANCO, A. A. de.

Op. cit., pp. 121-122.

MONTAIGNE, Michel de. Les Essais. Edition de Pierre Villey. Paris, Presses Universitaires de France, 1999, pp. 213-214. As diferentes camadas do texto montaigniano são indicadas, respectivamente, pelas letras:

[A], correspondente à primeira edição dos Ensaios, de 1580, [B], referente à segunda edição, de 1588, e [C], que remete aos numerosos acréscimos manuscritos feitos pelo autor em seu exemplar pessoal (hoje conhecido com "Exemplar de Bordeaux", conservado na Biblioteca Municipal da cidade) e incorporados às edições posteriores.

(5)

Existem dois tipos de dificuldade para dar credibilidade histórica ao relato, tal qual Montaigne o apresenta no ensaio "Dos Canibais" (I, 31). O primeiro deles se refere às circunstâncias em que os eventos teriam acontecido. Os especialistas e biógrafos de Montaigne que detiveram-se nos detalhes desse episódio se confrontaram com o problema de validá-lo historicamente, uma vez que o escritor situa na cidade de Rouen o encontro dos índios brasileiros com o rei francês Carlos IX. Do nosso conhecimento, apenas três estudiosos investigaram a questão. Após minuciosa pesquisa, Alphonse Grün concluiu: o Maintenant, comment expliquer le passage des Essais, la presence simultanée à Rouen de Charles IX, de Montaigne et des sauvages ? Je ne sais; dans l'impossibilite de concilier les faits, je ne puis que risquer des conjectures 0 7. Marcel Françon, em artigo publicado no Bulletin de la Société des Anis de Montaigne, examinou a questão, mas deixou perguntar no ar: "Il y eut bien des sauvages, à l'entrée de Charles IX, à Troyes, le 23 mars 1564, et à Bordeaux, le 9 avril 1565 ; mais je n'en ai pas vu de mentions eu 1562, ai à Rouen.

Montaigne a-t-il confondu ces différentes « entrées royales » (en 1550, 1564 et 1565) ? A-t-il utilisé des descriptions de sauvages, plus qu'il n'ait vu lui-même des Brésiliens ? »8. Finalmente, Michel Simonin, especialista em Montaigne e biógrafo de Charles IX, se confrontou com os mesmos problemas que seus predecessores: "Quand cette entrevue, à laquelle Montaigne dit avoir assiste et même participé puisqu'il nous apprend un plus loin qu'il s'est lui-même entretenu avec leur truchement, c'est-à-dire leur interprete, a-t-elle réellement eu lieu? Ii ne sernble pas qu'elle ait été à ce jour rnise en doute. Mais oi la placer? II est difficile de la fixer aux jours suivants la chute de la ville en 1562, mais tout aussi onéreux de l'imaginer l'année suivante, comme nous le verrons. L'auteur des Essais a-t-il commis ici une confusion et devons-nous lire « Bordeaux » plutôt que « Rouen », lorsque Charles IX fit étape dans cette ville au cours de son grand tour et ou des Indiens lui furent presentes ? » 9. Não há nenhum outro registro, à parte o de Montaigne, dando ciência da presença de índios brasileiros no ano de 1562, durante parte do qual a cidade de Rouen esteve sitiada. Além disso, o contexto em que o escritor situa o encontro parece não corresponder à descrição feita pelo mesmo. Uma das inverossimilhanças históricas do texto montaigniano, admitindo- se por um instante a implausível possibilidade que nenhum outro testemunho desses fatos tenha chegado até nós, posto que o rei se fazia acompanhar de expressivo número de nobres e cortesãos letrados, deve-se ao fato dele ter situado o encontro em uma "bela cidade". Não que a capital da Normandia e epicentro do comércio do pau-brasil não fosse uma bela cidade. Era sim, e mais: Rouen era a segunda mais

GRÜN, Alphonse. La vie publique de Michel de Montai gne. Etude biographigue.

Geneye, Slatkine Reprints, 1970, pp. 143-144. Primeira edição: 1855.

FRANCON, Marcel.

Montaigne et les Brésiliens.

Notes sur les Chansons bresiliennes BSAM, série, n° 16, oct-dée 1975, pp.

73-75. A citação encontra-se à p. 74.

SIMONIN, Michel. Charles IX Paris, Fayard, 1995, pp.

105-106. Grifo nosso

(6)

importante, mais populosa e próspera cidade francesa do século XVI, depois de Paris". Mas o cenário de uma cidade semi-destruída, após mais de seis meses de violentos confrontos armados entre o exército católico francês e as milícias de insurgentes protestantes, parece não se adequar, naquele momento, à descrição que dela se dá. Montaigne fala também de "nossa pompa" e "nossas maneiras", o que sugere uma ambientação de luxo e uma atmosfera solene. Ora, essas informações remetem a um acontecimento típico da época: as entradas reais.

O segundo tipo de inverossimilhança aparece no próprio ensaio, quando confrontamos alguns elementos da narrativa com os - conhecimentos históricos de que se dispõe sobre as entradas reais.

Montaigne conta que os índios brasileiros se escandalizaram diante do espetáculo da desigualdade social na França, em que os pobres mendigavam à porta dos ricos. As entradas reais eram espetáculos grandiosos, minuciosamente preparados com antecedência, e um dos procedimentos consistia em evacuar os mendigos para fora dos muros da cidade antes da chegada do rei. Ora, como poderia ser possível que os índios brasileiros pudessem ter notado desigualdades sociais na França se essas haviam sido temporariamente abolidas? Como poderiam ter visto mendigos se eles não estavam lá? Investiguemos primeiramente o que se passou em Rouen "no tempo em que o re;

Carlos IX lá estava", segundo Montaigne.

O sítio de Rouen

" Ver BENEDICT, Philip.

Rouen during lhe Wars of Religion. Cambridge University Press, 1981, pp. 1-45, e MOLLAT, Michel (dir.).

Histoire de Rouco. Toulouse, Edouard Privat Editeur, 1979.

"-Sobre o cerco de Rouen, ver CHERUEL, André. "Siege de Rouen en 1562". Revoe de Rouco et de Normandie.

Dix-huitième année. Rouco, Imprimerie de A. Péron, 1850, pp. 169-179 ; BEAURAIN, Narcisse. La Porte Saint- Hilaire. Episodes d'Histoire Locale. Rouen, Imprimerie Léon Deshays, 1880, pp. 19- 29 ; FLOQUET, A. Histoire du Parlement de Normandie.

Rouen, Edouard Frere Editeur, MDCCCXL, Tome II, pp.

380 ssq. ; MOLLAT, Michel (dir). Op. cit., pp. 179-203.

O cenário em que Montaigne situa os curiosos fatos narrados em seu ensaio era catastrófico. Quando a regente Catarina de Médicis decidiu enviar seu filho, o rei Carlos IX, à época um garoto de 12 anos, a Rouen, havia cerca de seis meses que a cidade fora tomada pelos protestantes, causando uma série de problemas à coroa". Em primeiro lugar, a sedição dos habitantes protestantes da capital da Normandia era uma ameaça à politica de tolerância religiosa que a rainha tentava implantar na França, com a ajuda do Chanceler Michel de L'Hospital;

em segundo lugar, o cerco à cidade custava caro aos cofres reais, pois

tnn número expressivo de soldados e armamentos havia sido enviado para combater os insurgentes, sem sucesso; finalmente, o longo sítio à cidade provocava problemas de abastecimento em Paris, em razão das dificuldades de navegação sobre o rio Sena, o mesmo que passava por Rouen. Após frustradas tentativas de armistício, o exército real investiu violentamente sobre a cidade até conseguir abrir uma brecha no muro, na altura da porta Saint Hilaire, no dia 25 de outubro de 1562. Três dias depois, o rei entra na cidade, simbolizando a retomada do poder político, militar e religioso. Todos os testemunhos oculares

(7)

O sítio de Rouen em 1562. Gravura atribuída a André Thevet. Inverossímel cenário do encontro e "conversação"

entre o rei Carlos IX e os índios canibais brasileiros, segundo conta Montaigne

(8)

da queda de Rouen são unânimes em afirmar que a cidade estava semi-destruída; no dia 1° de novembro, o rei compareceu à missa na imponente catedral da cidade, mas o estado dela era de uma "nudez deplorável"" ; alguns estimaram em 4.000 o número de mortos".

Montaigne fazia parte dos membros da corte que acompanhavam o rei até Rouen. Na época, ele era conselheiro do Parlamento de Bordeaux e havia sido enviado em missão à capital, onde prestou juramento de fé católica no Parlamento de Paris, no dia 12 de junho,

antecipando-se aos seus colegas bordeleses. Se não há indícios que permitam confirmar as informações do ensaio, em contrapartida, o sítio de Rouen parece ter fornecido outros elementos para a composição, pois um dos personagens citados estava presente naquela ocasião. É possível que Montaigne tenha avistado, e talvez mesmo conversado com Nicolas Durand de Villegagnon, durante o cerco à cidade. O ex- comandante da França Antártica participou ativamente das batalhas contra os protestantes locais, mas saiu ferido por um disparo de arma de fogo. Ao seu lado, encontrava-se Antoine de Bourbon, um dos chefes militares da operação e pai do futuro rei Henrique IV, que veio a falecer. Montaigne diz no seu ensaio que colheu as informações sobre os índios brasileiros através de um empregado seu, que teria vivido

"dez ou doze anos" no Brasil e que teria participado da aventura da França Antártica, sob o comando de Villegagnon. Este homem, que ele define como "simples e rude", poderia lhe fornecer, de maneira mais pura e fidedigna, as informações de que precisava, justamente porque era ignorante. Os iletrados, dizia Montaigne, os que não têm pretensões intelectuais, eram mais confiáveis do que os relatos dos viajantes e os livros dos cosmógrafos, pois eles não têm geralmente preconceitos ou interesse em alterar aquilo que efetivamente viram.

Eles não teorizavam, apenas descreviam objetivamente aquilo que viram com seus próprios olhos. Os cosmógrafos, por pretenderem tudo descrever, freqüentemente alteravam as informações ou as deturpavam, segundo suas opiniões pessoais ou preconceitos. Ao tecer esses comentários, Montaigne pensava certamente no cosmógrafo André Thevet, o primeiro historiador do Brasil, autor das Singularidades da França Antártica (1557). Jean de Léry, um dos protestantes enviados por Calvino à pedido de Villegagnon, acusava Thevet, no seu livro Historia de uma viagem feita à terra do Brasil (1578), de ser falsário e de "mentir cosmograficamente". Não é possível afirmar com segurança que este empregado que Montaigne diz ter tido existiu de fato, ou se foi mais uma invenção do escritor para dar credibilidade ao seu discurso. Vários críticos já observaram que a maioria das informações apresentadas por Montaigne estavam disponíveis em livros publicados sobre o Brasil, sobretudo os de Thevet e Léry. Afonso Arinos de Melo

12« Le 1" novembre 1562, jour de la Toussaint, le otite

catholique interrompu depuis le 3 mai, recommence ; on célebre à Notre-Dame une grande messe à laquelle assistait Charles IX et toute sa cour. Nudité déplorable de la cathédrale de Rouen, lors de la cérémonie ”. FLOQUET, A.

Op. cit., p. 468.

"D'AUBIONE, Agrippa.

Histoire universelle. Editée avec une introduction et des notes par André Thierry, Tome II, Livre III, Chapitre X, p. 93.

(9)

Franco, por exemplo, fez um minucioso trabalho de cotejo entre o texto de Montaigne e a florescente literatura "geográfica" sobre o Novo Mundo, mostrando de onde provavelmente o ensaísta colheu essa ou aquela informação". A presença de Villegagnon durante o sítio de Rouen poderia dar margem a especulações extremadas, como pensar que ele se fizesse acompanhar de alguns "selvagens" brasileiros. Sabe- se que o ex-comandante da França Antártica regressou à França, em meados de 1559, acompanhado de um grupo de índios, os quais teriam sido "ofertados" a personalidades da corte, amigos e parentes, como seu irmão Philippe Durand, prefeito de Provins, sua cidade natal".

Embora teoricamente possível, a hipótese carece de fundamentação histórica, em razão, como já dissemos, da inexistência de testemunhos (tanto mais em se tratando de uma presença tão inusitada), e também pelo fato de Villegagnon estar preocupado em limpar sua imagem e recuperar prestígio junto à corte. Ele era objeto de uma campanha de difamação pelos protestantes, que o comparavam ao ciclope Polifermo, em razão da sua personalidade violenta e do tratamento desumano dado aos reformistas no Brasil. Além disso, ele teve que prestar contas ao rei pelo fracasso da colônia. Ainda assim, Villegagnon conseguiu uma indenização do rei de Portugal pelos prejuízos sofridos". É pouco crível que ele se fizesse acompanhar de índios brasileiros, pobres guerreiros armados apenas de arco e flecha para combater numa guerra feita à base de armas de fogo, além de se expor ao ridículo perante o rei e a corte.

As dúvidas levantadas pelas inverossimilhanças do texto montaigniano começam a ser esclarecidas a partir do momento em que sabemos que os personagens envolvidos nessa história — o rei francês, os canibais brasileiros e Montaigne — estiveram realmente presentes em outra ocasião, cerca de três anos depois, na cidade de Bordeaux, onde Montaigne nasceu e morava, durante a entrada real de Carlos IX. Diferentemente do inverossímil encontro em Rouen, o de Bordeaux é fartamente documentado. A análise dessa documentação ajuda a esclarecer passagens obscuras do ensaio ao mesmo tempo em que mostra as reais circunstâncias do encontro, desvelando o blefe.

Existem outras informações relevantes e que parecem confirmar as suspeitas. Montaigne conta, logo após a passagem do encontro dos índios com o rei, a conversa que ele próprio teria tido com os canibais. Segundo o ensaísta, a comunicação não se estabeleceu satisfatoriamente por causa das limitações intelectuais (bestise) do seu intérprete (truchement) francês. Montaigne perguntou aos índios como seu chefe ("roi") era acolhido pelos moradores das aldeias sob seu comando, quando as visitava. Ou seja, como eram as "entradas reais"

no país dos canibais. Esta informação é fornecida en passant, mas se

m MELO FRANCO, Afonso Arinos. op. cit., pp. 113-118.

IS Sobre a participação de Villegagnon no sitio de Rouen, ver o relato do pároco de Provins, Claude HATON. Mémoires. Le récit des événements arco nplis de 1553 à 1582, principalement dans la

Champagne et la Brie. Publiés par M. Félix Bourquelot.

Paris, Imprimerie Impériale, MDCCCLVII, Tome 1, p.

287.

Ver HEULHARD, Arthur.

Villegagnon, roi d'Anzérique.

Un homme de mer au XVI' siècle (1510-1572). Paris, Ernest Laroux, 1897, pp. 241-242.

(10)

revela preciosa para nós, pois tal curiosidade não poderia se explicar se o cenário real do encontro com os canibais não fosse uma entrada real, com tudo o que isso implicava em luxo e cerimonial.

Je parlay à l'un d'eux fort long temps; mais j'avois un truchement qui me suyvoit si mal, et qui estoit si empesché à recevoir rnes imaginations par sa bestise, que je n'en peus tirer guiere de plaisir. Sur ce que je luy demanday quel fruir ii recevoit de la superiorité qu'il avoit parmy les siens (car c'estoit un Capitaine, et nos matelots le nommoient Roy), il me dict que c'estoit marcher le premier à la guerre ; de combien d'hommes II estoit suyvy, il me montra une espace de lieu, pour signifier que c'estoit autant qu'il en pourroit en une telle espace, ce pouvoit estre quatre ou cinq mille hommes ; si, hors la guerre, toute son authorité estou t expirée, ii dict qu'il luy eu restoit cela que, quand ii visitoit les vilages qui dependoient de luy, ou luy dressoit des sentiers au travers des hayes de leurs bois, par ofl ilpeutpasser bien à l'aise"

17 MONTAIGNE, Michel de.

Op. cit., p. 214. Grifo nosso.

" MONTAIGNE, Michel

A entrada de Carlos IX em Bordeaux

de. (Euvres computes. Textes Para contextualizar essa entrada, é necessário lembrar as

établis par Albert Thibaudet et circunstâncias que a motivaram. Elas nos remeterão uma vez mais a

Maurice Rat. Introduction et

notes par Maurice Rat. Paris, Rouen. Depois da retomada em 1562, Catarina de Médicis escolhera

Gallimard, 1962, pp. 1347- essa cidade para que seu filho Carlos IX declarasse sua maioridade.

1360.

A cerimônia se deu no dia 17 de agosto de 1563, no Parlamento

'9 Ver GRAHAM, Victor da Normandia. A esse respeito, é necessário descartar qualquer

E. 8c McALLISTER possibilidade de Montaigne ter estado presente à mesma, já que

JOHNSON, W. The royal tour of France by Charles IX and Catherine de' Médici.

ele vivia nessa época uma dolorosa experiência: a agonia e a morte, acontecida em Germignan, perto de Bordeaux, no dia 18 de agosto

Festivais and Entries. Toronto, Un iversi ty of Toronto Press, 1979; BOUTIER,

de 1563, do seu grande amigo Etienne de La Boétie. Em 1571, ele publicou a carta que enviou ao pai descrevendo as duas angustiantes

Jean, DEWERPE, Alain 8c.

semanas passadas junto ao leito de seu querido amigo'''. Após a

NORDMAN, Daniel. Un tour

de France royal — Le voyage de declaração da maioridade do seu filho, Catarina de Médicis organizou

Charles IX (1564-1560. Paris, uma espécie de "tour de France" real, cujos objetivos eram mostrar aos

Editions Aubier Montaigne,

1984. franceses seu novo rei, resolver problemas políticos, administrativos e

religiosos em diferentes regiões e cidades do país, além de encontrar- 2" JOUAN, Abel. Recuei!

et Discours da voyage da roy se com sua filha Elizabeth, rainha da Espanha, e tratar de questões

Charles IX [etc.]. A Paris, politicas com o duque d'Albe, representante de Felipe II, em Bayonne,

Pour Jean Bonfons Librairie, en la rue neufve nostre Dame, à l'enseigne S. Nicolas.

perto da fronteira espanhola.' 9 A grande viagem durou mais de dois anos (de 24 de janeiro de 1564 a 1° de maio de 1566), durante os quais m.D.Lxvi. Avec privilege o sommelier do rei, Abel Jouan, manteve um diário narrando os fatos

du roy.

acontecidos em cada etapa e as distâncias percorridas 20. Conforme já

(11)

dissemos, dentre os preparativos para a visita do rei, estava a evacuação dos mendigos e desocupados para fora dos muros da cidade. O Parlamento de Bordeaux deliberou, então, "purger la Ville de tous vagabons 8c. mal vivans" 21 . O rei fez sua entrada em Bordeaux no dia 9 de abril de 1565, e os "Registros secretos" do parlamento da cidade atestam a presença, entre seus membros, do conselheiro Michel de Montaigne, que desfilou diante do palanque do rei, juntamente com seus colegas magistrados 22.

Durante o desfile, Montaigne pôde certamente assistir ao encontro dos representantes das "nações estrangeiras" com o rei- adolescente Carlos IX (então com 15 anos). Era costume das entradas reais da época exibir grupos de estrangeiros exóticos, que desfilam na condição de cativos. O costume se explica pelo fato das entradas reais francesas terem sido inspiradas no modelo dos "triunfos"

romanos que eram celebrados por ocasião do retorno dos generais (Julio César, Paulo Emilio etc.) à Roma, depois de terem vencido os bárbaros". Dessas campanhas militares, eles traziam, além das riquezas do butim de guerra, alguns nativos como prova do sucesso.

Durante o Renascimento francês, este costume pagão foi adaptado à cultura cristã, de maneira que se fixou em doze o número de grupos de estrangeiros cativos. O objetivo era criar uma associação entre o rei francês e a figura do Cristo (e seus doze apóstolos) ou do Messias (e as doze tribos de Israel), com base numa ideologia de caráter nacionalista fabricada por humanistas a serviço da monarquia, como justificativa para o projeto francês de expansão geopolítica, em âmbito americano, e de proeminência política, em âmbito europeu 24.

Dentre os grupos de "nações estrangeiras" exibidos em Bordeaux naquela ocasião, havia três formados por índios brasileiros. O encontro se deu da seguinte maneira: o representante de cada um dos doze grupos subiu ao palanque do rei e fez, em sua lingua nativa, uma arenga" ao monarca francês. Esses discursos eram traduzidos por intérpretes franceses. Os testemunhos oculares desse fato não fazem nenhuma alusão ao conteúdo dos discursos e nem mencionam qualquer reação inusitada dos presentes aos mesmos. O primeiro escrivão do Parlamento de Bordeaux, maitreJacques de Pontac, fez uma descrição minuciosa da entrada. Ele registrou, por exemplo, pouco antes do início do desfile do corpo social da cidade, um incidente envolvendo o primeiro presidente do Parlamento de Bordeaux, Jacques Benoist de Lagebaston, e o próprio rei, o adolescente Carlos IX, então com quinze anos. Entediado com o longo e cansativo discurso de boas-vindas que Lagebaston pronunciava, Carlos IX interrompeu-o bruscamente e, levantando-se de sua poltrona, fez uma breve mas incisiva declaração

2' Cf. GODEFROY, Théodore &Denys. Le

Ceremonialfrançois, tomo I, p. 912.

« Registre secret du Parlement de Bordeaux » (cópia Verthamon), tomo 16, pp. 570-574.

Ver CHARTROU, Josephe- Marie. Les Entrées Solennelles et Triomphantes à la Renaissance (1484-1551). Paris, Les Presses Universitaires de France, 1928; GUENÉE, Bernard

&LEHOUX, Françoise. Les entrées royalesfrançaises de 1328 à 1515. Paris, Editions du CNRS, 1968.

24 Uma das mais significativas ilustrações dessa ideologia se deu durante a entrada em Rouen de Henrique H e Catarina de Médicis nos dias 1° e 2 de outubro de 1550, através de alegorias e de espetáculos como uma encenação teatral em escala natural (posteriormente batizada de "festa brasileira"

pela historiografia francesa) e uma naumaquia (simulação de um combate naval). Pela abundância de elementos para analise e pela relevância histórica do acontecimento, considerado por especialistas como a mais espetacular das entradas franceses do século XVI, o assunto merece que se lhe dedique todo um artigo, o que esperamos poder fazer oportunamente.

(12)

sobre a proibição do porte de armas de fogo, uma das medidas adotadas pelo Chanceler Michel de L'Hospital para tentar conter a violência dos conflitos entre católicos e protestantes 25. Maitre De Pontac apenas registra que o representante ("capitaine") dos gregos, uma das "nações estrangeiras", "subiu ao palanque e fez ao rei sua arenga", para acrescentar em seguida que "il faisoit beau voir" o desfile dos povos exóticos. Outros testemunhos da cena (dos quais falaremos adiante), disseram que todos os representantes discursaram diante do rei. Tratava-se provavelmente de discursos formais, previamente

((encomendados" pelo cerimonial com o objetivo de exaltarem a figura do rei. A partir desse cenário inusitado, a imaginação de Montaigne criou uma "conversação" que não existiu de fato, e o escritor pôde, dessa maneira, emprestar voz aos canibais para mostrar a relatividade das culturas e criticar o descaso das autoridades em relação aos mais necessitados.

Por que Montaigne, afinal de contas, trocou o cenário do encontro entre o rei francês e os canibais brasileiros, transferindo para Rouen fatos que aconteceram em Bordeaux? Porque ao fazer a ação se passar na capital da Normandia, Montaigne estava livre para pôr na boca dos canibais suas próprias idéias e sentimentos, o que não poderia se dar no caso de Bordeaux, em que a cena das arengas das doze "nações estrangeiras" foi testemunhada por muitos dos seus concidadãos, alguns dos quais poderiam eventualmente desmenti-lo.

Além do mais, quando ele publica o ensaio, em 1580, Carlos IX já não era vivo.

Documentação impressa

A entrada de Carlos IX em Bordeaux suscitou a publicação de duas obras. A primeira delas, escrita especialmente para a ocasião, é a Antiquité de Bourdeaus, primeira história da cidade, escrita pelo humanista Elie Vinet, diretor do Colégio da Guiana, onde Montaigne estudou'''. No século XVI, floresceu na França, bem como em outros países europeus, um novo gênero literário: as Antiguidades, que eram a reconstituição erudita da história de uma cidade, tendo como base, principalmente, os vestígios arqueológicos e os testemunhos de geógrafos e historiadores gregos e latinos. A obra foi entregue ao rei pelo próprio autor na sexta-feira, dia 13 de abril de 1565, conforme consta do subtítulo da obra, quando da apresentação de "passetemps"

para divertimento do rei, em visita ao Colégito. Esses consistiam em peças de teatro latinas escritas por ex-professores do Colégio, como os humanistas Georges Buchanan e Marc-Antoine Muret, e representadas pelos alunos 27. Como algumas semelhanças textuais

" Messire Jacques Benoist de Lagebaston, premier President, lui a fait une si grande et longue harangue que le Roy s'en fachant lui a coupé propos et sans attendre ce qu'il eut achevé a dit : Je lotie ma justice du bon devoir qu'elle a

fait et si] y a aucun qui tienne encore les armes en la maio, j'en ferai telle justice qu'elle

sera exemplaire aux autres ; ayant dit ceci, s'est leve de son siege ensemble lesdits quatre presidens, moi et le premier huissier et avons demeuré sur ledit echaffaut attendans Ia Compagnie de la ville qui passoient... Registre secret du Parlement de Bordeaux (cópia Verthamon), tomo 16, pp. 908-909.

L'Antiquité de Bourdeaus et de Bourg, presentée au Roi Charle neufiesme, le treziesmejour du mais arAvri hm mille cing cens soixante & cing, a Bourdeaus, &

lhors premierement publiée, mais depuis reveza', & augmentée, &

a reste autres unun.ltion enrichie de plusieurs figures, par son aucteur Elie Vinet. A Bourdeaus, Par Simon Millanges, rtie Saint pres Ia maison de la ville, 1574. A primeira edição, de 1565, foi impressa em Poitiers por Enguilbert de Marneuf, pois Bordeaux ainda não tinha editora.

27 Montaigne conta, no capítulo De l'institution des enfans (I, 26), que representou papéis em algumas dessas peças, quando aluno:

"[B] j'ai soustenu les premiers personnages és tragedies latines de Bucanan, de Guerente et de Muret, qui se representerent en nostre college de Guienne avec digo ité ”. MONTAIGNE, Michel de. Op. cit., p. 176.

(13)

Mapa da cidade de Bordeaux em 1548 à partir do qual Efie Vinet elaborou o seu, apresentado ao rei Carlos IX em abril de 1565.

O desfile do corpo social aconteceu fora dos muros da cidade, em frente ao Convento dos Cartuxos (à direita). Lá Montaigne pôde assistir ao encontro entre o rei francês e os representantes das doze "nações estrangeiras", dentre as quais três grupos de índios brasileiros. Este é o verdadeiro cenário do "conto canibal".

(14)

levam a crer, esta publicação talvez tenha servido de inspiração a Montaigne para acrescentar, na edição de 1588, uma passagem em que fala das areias do Médoc, região costeira a noroeste de Bordeaux, caracterizada pela formação de dunas devido à ação dos ventos e das correntes marítimas. Na sua Antiquité, Vinet reconstituiu também a história do vilarejo galo-romano de Noviomagus, com o qual a antiga Burdigala (futura Bordeaux) disputava a hegemonia comercial da região, na época da ocupação romaria. Este vilarejo foi destruído em conseqüência de um terremoto no século VI e foi, posteriormente, encoberto pelas areias, com exceção de algumas cumeeiras mais elevadas:

[B] En Medoc, le long de la mer, mon frère, sieur d'Arsac, voit une sienne terre ensevelie soubs les sables que la mer vomit devant ele ; le faste d'aucuns bastimens paroist encore ; ses rentes et dornaines se sont eschangez en pasquages bien

" MONTAIGNE, M. de. maigres. Les habitants disent que, depuis quelques temps, la

Op. cit., p. 204. O texto de

Vinet que talvez tenha servido mer se pousse si fort vers eux qu'ils ont perdu quatre lieuês de

de inspiração a Montaigne se encontra no § 38 da Antiquité de Bourdeaus.

terre. Ces sables sont des fourriers : [C] et voyons des grandes montjoies d'arène mouvante qui marchent d'une demi lieue devant elle, et gaignent pais. 25

" a Thomas Richard, au

Lecteur Salut.:Veu que le

debvoir de mon estat requiere A segunda publicação é uma brochura contendo a descrição

de satisfaire en partie à ia grande cupidité de sçavoir, laquelle est en toutes gens

dos acontecimentos de abril de 1565. L'entrée du Roy à Bordeaux foi publicada em Paris pelo impressor Thomas Richard, cerca de dois

qui n'ont point leur naturel corrompo ou detourné par autre vacation repugnante, j'ay bico voulu imprirner quelque

meses depois, a partir de uma carta que um "amigo bordelês" lhe teria enviado descrevendo os fatos relevantes da entrada, segundo conta no prefácio29. Este documento nos é precioso, pois ilumina uma passagem

chose de l'Entrée de Borde= : comme j'ay peu sçavoir 8c entendre par les lettres d'un

do relato de Montaigne em que ele, humoristicamente, diz não lembrar-se de todas as "observações canibais". Além das lembranças

mico amy. (...) Ensemble plusieurs autres choses tant magnificques, qui ont esté tãt aggreables à nostre Roy

pessoais que os acontecimentos testemunhados ocularmente podiam lhe fornecer, a passagem em questão parece ter estimulado a imaginação do escritor no sentido de inventar um discurso e atribuí-lo aos canibais,

Charles neufiesme, que toutes les atures Entrées ne sont à comparer à celle cy. Parquoy il vous plaira avoir mon vouloir

isentando-se assim de qualquer responsabilidade pelas opiniões ou idéias que esse discurso pudesse suscitar. Comparemos os dois textos, o de Thomas Richard e o de Montaigne, respectivamente:

en gré, faict te 3. jour de Juing. 1565... Entrée do Roy

à Bordeaux, avecques lei Carmes J'ay bien voulu imprimer quelque chose de l'Entrée de

Latins qui luy ont esté presentez, Bordeaux : comme j'ay peu sçavoir & entendre par les lettres

& au Cbancelier. A Paris, De l'Imprimerie de Thomas Richard, à la Bible d'or, devant le College de Reims, 1565, fol. Ai (v°).

d'un mien am.y. Et suis bien marry que je n'ay peu recouvrer les harangues que feirent au Roy douze Nations étrangeres chascune en sa langue : laquelle diversité de langage est fort

" Idem, ibidem. Grifo nosso. familiere aux Matelots Bordelois:"

(15)

[A] ils respondirent troischoses, d'oU j'ay perdu la troisiesme, et en suis bien many ; mais j'en ay encore deux en memoire.".

A relação publicada por Richard nomeia as três tribos de índios brasileiros que desfilaram para o rei como sendo formadas por

"Ameriques", "Sauvaiges" e "Bresellans"". O historiador protestante, Lancelot Voisin de La Popelinière, na sua Histoire de France (1581), parece ter se baseado na relação precedente para fazer sua descrição da entrada de Bordeaux, uma vez que ele repete, na mesma ordem, as denominações dadas aos índios brasileiros pelo amigo bordelês do impressor. Outro historiador protestante, Agrippa d'Aubigné, é mais preciso quanto ao nome das tribos. Em sua Histoire universelle (1612), ele dá nome aos três grupos de brasileiros: os "Cannibales", os "Marjagats" e os "Thaupinambous"". Segundo a nomenclatura da época, popularizada em parte graças à publicação do livro de André Thevet sobre o Brasil, os "canibais" correspondiam aos índios potiguara do nordeste brasileiro (assiduamente freqüentado pelos contrabandistas franceses em busca do pau-brasil nordestino, de melhor qualidade e maior cotação), os "marjagás" designavam os tupiniquins, etnia indígena aliada aos portugueses e inimiga dos franceses, e os

"thaupinambous" eram, evidentemente, os tupinambás do sudeste brasileiro, especialmente os do litoral paulista e fluminense.

A mercurial de Michel de L'Hospital

3' MONTA1GNE, Michel de.

Op. cit., p. 213. Grifo nosso.

32 « Oultre ce y avoit le Roy de Ia Bazoche bien en ordre ayant ses gens à cheval &

grande compagnie de gens de pied bien equippés. Lequel suyvoient apres trois c tz hommes bien armez qui menoient douze Nations estrangeres captives devant le Roy : chascune Nation habillée à sa mode. C'est à sçavoir les Grecs à la grecque : Les Tures à Ia turcoise : Les Arabes à la arabesque : fEgyptiens à l'egyptienne : Taprobains à la taprobaine Ameriques à l'amerisque : Indiens à l'indienne : Canariens à la canarique : Les Sauvaiges à la sauvag-ine : Les Bresellans à la bresellane : Les Mores à la moresque : Les Eutopiens à l'eutopienne. Et chascun Capitaine de ces douze Nations captives a faict harengue au Roy eu son langaige : qui estoit interprete par un truchernent. ». L'entrée da Roy Bordeaux, fol. A iii (r").

Os argumentos apresentados até aqui em favor da tese segundo <, 11 n'y a eut rien de

a qual Montaigne blefou ao escrever seu ensaio sobre os canibais brasileiros, especialmente no que se refere ao cenário do encontro dos índios com o monarca francês, encontram confirmação em outro episódio acontecido durante a estadia do rei em Bordeaux. Aos 11 de abril de 1565, dois dias após a entrada propriamente dita, teve lugar, em sessão solene no Parlamento de Bordeaux, uma cerimônia conhecida como "lit de justice". Esta consistia em um encontro entre o rei, autoridade máxima da justiça, e os magistrados locais, encarregados de aplicar as leis e executar as ordenações e decretos reais. A cerimônia foi instituída pelo avô de Carlos IX, Francisco 1, em 1527, e seu nome deriva dos longos bancos ("/its") sobre os quais se sentava a audiência 34.

O rei se colocava acima de todos, sobre um estrado ricamente decorado e sob o pálio que simbolizava suas prerrogativas divinas. A origem da palavra se deve ao fato de que outrora as assembléias das cortes de justiça se reuniam, duas vezes ao ano, numa quarta-feira, quando o presidente fazia a crítica da justiça e dos juízes. A r, alavra francesa

remarquable jusques à Bordeatuc, ois la despence et les inventions surmonterent toutes les atures. Là trois cens chevaux se presenterent au Roi, douze bandes de Grecs, Turcs, Arabes, Egyptiens, Canariens, Mores, Ethiopiens, Indiens, Taprobaniens, Cannibales, Margajats et Thaupinambous ; desquels les chefs firent leur interprete. II y eut d'autres magnificences moina dignes du mestier de l'historien. ». D'AUBIGNÉ, Agrippa. Histoire Universelle [1612-1620]. Tome II, livre quatriesme, chapitre V, p. 227.

34 Ver HANLEY, Sarah. Le Lit de Justice des Reis de France.

Paris, Aubier, 1991.

(16)

" Lagebaston era acusado pelos católicos, que eram maioria na região, de ser indulgente com os protestantes e de não aplicar corretamente as sansões aos reformistas, previstas em certos decretos reais, Infringindo a autoridade do presidente do Parlamento, François de Peruse Descars, grande senechal da Guiana, interrompeu ruidosamente uma assembléia do Parlamento que Lagebaston presidia. Este dissolveu a reunião e conseguiu mandar evacuar o afrontador e seu séquito. Dias depois, a cena se repetiu. Lagebaston acusou então um grupo de parlamentares, que teriam se aliado ao arcebispo da cidade e a algumas lideranças políticas da região, de tramarem sua destituição, entre eles o jovem conselheiro Michel de Montaigne. Chamado para dar explicações, Montaigne recua, não sem antes fazer críticas à gestão de Lagebaston. O incidente é contornado, em parte provavelmente devido aos laços de amizade entre a família de Montaigne (uma das mais tradicionais daquele parlamento) e Lagebaston.

Mas o assunto será relembrado, sem declinação de nomes, por L'Hospital durante sua mercurial, Ver o texto do discurso de L'Hospital no tomo II do Ceremonial françois, publicado por Théodore e Denys Godefroy, em 1674. Sobre a intervenção de Montaigne, ver HAUCHECORNE, F.

"Une intervention ignorée de Montaigne au Parlement de Bordeawc .. Bibliothèque d'Humanisme et Renaissance, tomo IX, pp. 164-168.

Montaigne estava noivo de Françoise de La Chassaigne, com quem iria casar-se pouco tempo depois, no dia 23 de setembro de 1565. L'Hospital estava certamente a par dos projetos matrimoniais das duas famílias de parlamentares bordeleses e faz alusão ao

mercuriak deriva do latim mercurialis, e foi tomada como adjetivo da palavra mer credi (quarta-feira). O "lit de justice" de Carlos IX seguiu a tradição, pois foi realizado numa quarta-feira. Durante a sessão, o rei geralmente cobrava, através do seu porta-voz, o Chanceler, a correta aplicação da justiça, arbitrava processos difíceis e também ouvia as "remonstrances", que eram críticas e sugestões feitas para o aperfeiçoamento das instituições judiciárias. Naqueles anos, a monarquia encontrava dificuldade em fazer o Parlamento de Bordeaux aplicar devidamente os decretos reais, em razão de divergências políticas internas ligadas ao conflito entre católicos e protestantes. A sessão foi aberta com um breve pronunciamento do rei, que passou em seguida a palavra ao Chanceler Michel de L'Hospital, encarregado de admoestar os parlamentares recalcitrantes. Montaigne estava presente

à sessão, enquanto conselheiro, e foi um dos alvos de L'Hospital.

Primeiramente, pelo fato de ter-se envolvido, dois anos antes, numa querela entre o presidente Lagebaston e o lugar-tenente Descars, autoridade militar em serviço na região", em seguida, pelo fato de estar nos preparativos para o casamento com a filha de um dos presidentes do Parlamento, Joseph de La Chassaigne, o que geralmente não era bem-visto pela monarquia, na medida em que os casamentos

"arranjados" entre famílias de burgueses enobrecidos que ocupavam cargos nos parlamentos, como era o caso dos Eyquem de Montaigne e os De La Chassaigne, tendiam a fortalecer a influência política desse segmento social já economicamente importante, em prejuízo dos interesses reais 36. L'Hospital iniciou sua mercurial citando o exemplo de antigos reis gregos, sucessores de Alexandre, os quais teriam mudado de opinião a respeito da suposta "barbárie" dos romanos ao observarem, do alto de um promontório, a inteligente ordenação das fileiras de soldados do exército inimigo. Do mesmo modo, acrescenta L'Hospital, se algum estrangeiro observasse a organização daquela corte de justiça não diria que se tratava de uma corte de bárbaros, como havia antigamente no país, mas de franceses, um povo civilizado.

A metáfora soava irônica aos ouvidos dos parlamentares bordeleses, acusados posteriormente pelo chanceler de serem indisciplinados e inconseqüentes, por quererem se colocar acima da autoridade do rei, da rainha e do seu conselho, criando obstáculos à execução dos decretos e interpretando-os da maneira que lhes convinha, além de protagonizarem cenas que feriam o decoro parlamentar.

Ora, basta iriciar a leitura "Dos Canibais" (I, 31) para se dar conta que essa mesma metáfora foi utilizada por Montaigne para incitar seu leitor a refletir sobre a relatividade dos conceitos de "bárbaro" e

"selvagem". Antes de ir buscar na "Vida de Pyrrhus", biografia do rei grego escrita por Plutarco 37, a metáfora de que precisava para iniciar

(17)

sua defesa dos índios, Montaigne a ouvia primeiramente pela boca de Michel de L'Hospital, no Palácio de l'Ombrière, sede do Parlamento de Bordeaux. O chanceler iniciou assim sua mercurial:

fato dizendo que se alguém quisesse saber dos nomes dos parlamentares presentemente implicados, ele poderia informar : . Il y en a aussi qui sont grandement scandalisez

Et incontinent ledis Chancelier, après avoir salué le Roy de faire des mariages par

et s'être remis en la chaire, a dis qu'aucun qui ons cydevant force, 8c quand on sçait

tenu le lieu qu'il tient ons consommé leurs propos à louer la quelque heretiere, quant &

quant, c'est pour Monsieur

justice, l'institution des Parlemens et l'autorité d'iceux, qui le Conseiller, on passe outre

étoit une chose louable, mais qu'il dirois ce qui lui semblerois nonobstant les inhibitions, je

ne nommeray pas ceux qui en

propre et convenable à celui; et qu'il y avois eu des grands sant chargez à présent, mais si

Roys successeurs d'Alexandre, [à] sçavoir le Roy des Epirotes et le Roy de Massedonien, lesquels ont eu guerre contre les

vous voulez communiquer avec moy je vous les nommeray ..

GODEFROY, Théodore e

Romains, et étant approchés prés le camp desdits Romains, etant avertis par un découvreur qu'ils avoient au camp desdits

Denys. Le Ceremonialfrançoá, tomo II . 582. Grifo nosso. , p

Romains, et iceux Romains marchoient en bataille, ils eurent " PLUTARCO. Les vice des

envie de les voir et à ces fins monterent en un lieu eminent &mames ilustres. Traduction de Jacques Amyot. Edition établie 0111 ils virent marcher les dits Romains en si bon equipage et et annotée par Gérard Walter.

ordre qu'ils dirent incontinent: Voila une armée qui marche non à la Barbare mais à la grecque. Paulemile [Paulo Emílio]

après avoir vaincu les Massedoniens fis un grand banquet lequel ordonna et fit sa place au milieu et disoit que c'étoit vu meshuy d'ordonner une armée comme un festin, à pareille raison s'il y avoit icy quelques Etrangers qui vissens cet ordre ils diroient que ce n'est point une Cour des Barbares, comme ils etoient anciennement en ce pays, mais une Cour des Français.

Paris, Gallimard, 1951, p. 886.

Les Roys predecesseurs ons eté imitateurs des Romains et faits meilleures plusieurs de leurs François de faire."

Montaigne, por sua vez, iniciou seu ensaio com a mesma metáfora :

[A]Quand le Roy Pyrrhus passa en Italie, apres qu'il eut reconneu Fordonnance de l'armée que les Romains luy envoyoient au devant : Je ne sçay, dit-il, quels barbares sont ceux-ci (car les Grecs appeloyent ainsi toutes les nations estrangieres), mais la disposition de cette armée que je voy, n'est aucunement barbare. Autant en dirent les Grecs de celle que Flaminius fit passer en leur pais, [Cl et Philippus, voyant d'un tertre l'ordre et distribution du camp Romain en son royaume, sous Publius Sulpicius Galba. [A] Voylà comment il se faut garder de s'atacher aux opinions vulgaires, et les faut juger par la voye de la raison, non par la voix comrnune."

,8 . Registre secret du Parlement de Bordeaux . (copia Verthamon), Tomo 16, pp. 610-612. Ver também GODEFROY, Th. &D. 0,p.

dr., Tomo II, pp. 580-584

' 9 MONTAIGNE, Michel de.

Les Essa is, I, 31, p. 202.

(18)

4" A carta foi descoberta pelo arquivista Detcheverry e publicada no Courrier de la Gironde de 21 de janeiro de 1856.

Montaigne e a injustiça social

Mesmo já tendo certeza de que as "observações canibais"

são de autoria do próprio Montaigne, assim corno o cenário do encontro, nos parece oportuno fazer algumas considerações a respeito da dificuldade em conciliar a suposta "revolução social" contida no discurso canibal com o conservadorismo político do ensaísta. Já dissemos que esse aspecto foi responsável, em grande parte, por fazer figurar Montaigne na galeria dos ilustres precursores das idéias de caráter "socialista". Trata-se de um mal-entendido, pois não há nada mais estranho ao pensamento de Montaigne do que a idéia de "revolução social". O escritor foi, tanto em política como em religião, um conservador. Ele acreditava que era preferível manter a ordem vigente, ainda que imperfeita, do que aventurar-se em idéias reformistas ou revolucionárias, cuja eficácia era duvidosa. Na disputa religiosa que dividiu a França em dois blocos antagônicos, ele não hesitou e manteve-se fiel ao catolicismo. Politicamente falando, era um monarquista convicto, sem deixar, porém, de ser crítico em relação às obrigações e à responsabilidade do poder real. Montaigne escreveu a segunda "observação canibal" à maneira de um aviso, mas que se transformou em "profecia". Aviso, porque sua intenção era alertar as autoridades do seu país sobre o perigo potencial representado pela existência de uma parcela da população vivendo em condições precárias, sem moradia, alimentação e roupas. Profecia, porque a segunda "observação canibal" antecipou o grande movimento de idéias que marcou profundamente, ao longo dos séculos seguintes, o pensamento político e econômico.

O alerta lançado pelo escritor Montaigne encontra confirmação em uma carta que o prefeito Montaigne enviou ao rei Henrique III, irmão e sucessor de Carlos IX. Por dois mandatos consecutivos (entre 1581 e 1585), Montaigne foi prefeito de Bordeaux, tendo sido indicado para o cargo por nomeação real, pouco tempo depois da publicação dos Ensaios (1580). Em carta datada de 31 de agosto de 1583, Montaigne, juntamente com os membros do conselho municipal da cidade, faz suas "remonstrances" ao rei, com a intenção de assegurar o « repos universel de ce royaume >> e reclama da pesada carga de tributos a que o povo era submetido 40. Ele lembra que as antigas leis partiam do princípio de que « toutes impositions doibvent estre faites esgalement sur toutes personnes, le fort portant le foible » e que era « tres raizonnable que ceulx qui °nu les moiens plus grands, se ressentent de la charge plus que ceulx qui ne vivent qu'avec hazard et de la sueur de leur corps ». As coisas não aconteciam, porém, dessa forma, diz o prefeito-escritor. Ele enumera os impostos pagos pelo

(19)

povo, denuncia os privilégios fiscais dos ricos e se faz porta-voz da insatisfação popular, em tom veemente:

De façon que désormais quand ii conviendra impozer quelque dace ou imposition, II faudra qu'elle soit portée par le moindre et le plus pouvre nombre des habitants des villes, ce qui est du tout impossible. 41

Montaigne lembra ao rei Henrique III o que seu irmão Carlos IX tinha feito em benefício dos mais pobres: a obrigação de cada cidade de alimentá-los e assisti-los. O prefeito ajuda a entender por que o escritor pôs na boca dos índios brasileiros questões que estavam na ordem do dia:

Et de tant que la misere du ternps a este si grande puis le malheur des guerres civilles, que pluzieurs personnes de tous sexes et qualités sont réduicts, à la mendicité, de façon que on ne veoid par les villes et champs, qu'une multitude effrennée de pouvres, ce qui n'adviendroit sy l'édict faict par feu de bonne memoire le Roy Charles, que Dieu absolve, estoit gardé : contenant que chasque paraoisse seroit tenue nourrir ses pauvres, sans qu'il leur feut loysible de vaguer ailleurs. 42

Montaigne não desejava absolutamente uma "revolução" nem tampouco cria que a pobreza, o desequilíbrio econômico e a injustiça social pudessem ser resolvidos colocando fogo nas casas dos ricos (dos quais ele fazia parte). Ele faz um apelo ao bom senso e à inteligência daqueles que estavam no poder, a fim de evitar uma revolta popular.

No "conto canibal", ele ousou elaborar um discurso incendiário, mas este não traduz necessariamente a maneira como ele entendia que o problema deveria ser resolvido. Por detrás da máscara dos canibais, personagens de uma ficção elaborada conscientemente, Montaigne pôde dar livre curso à sua indignação civil. Quando comparamos a carta a Henrique III com a segunda "observação canibal", fica evidente que ambas traduzem a mesma aspiração do escritor-prefeito por uma sociedade justa e fraterna. Ele defende a causa dos pobres de Bordeaux, não porque sonhe com uma sociedade igualitária ou utópica, mas antes porque se preocupa em evitar a desordem e a ruína das instituições.

Montaigne não questiona absolutamente a organização social e as diferenças de classe entre as pessoas, mas reclama uma assistência

" MONTAIGNE, Michel de.

digna aos mais necessitados, afim de que não se revoltem contra o CEuvres complètes, p. 1374.

Estado e instaurem o caos na sociedade.

42 Idem, p. 1377.

(20)

43COCCHIARA, Guiseppe.

//mito dei lnion selvaggio Introduzione alla storia de//e teorie etnologicbe. Messina, Casa Editrice G. d'Anna, 1948, p. 7.

Conclusão

Ao cabo do nosso percurso através dos artifícios utilizados pelo escritor para fazer sua defesa da humanidade dos índios, constamos que a entrada e a estadia de Carlos IX em Bordeaux forneceram os elementos a partir dos quais Montaigne escreveu seu ensaio.

Por um lado, a entrada ofereceu o cenário para a criação daquilo que poderíamos chamar de "conto canibal", ou seja, o episódio da

[(conversação" do rei francês com os canibais brasileiros, por outro, a estadia forneceu, através da mercurial pronunciada por Michel de L'Hospital, a metáfora com a qual Montaigne inicia seu ensaio. A entrada forneceu ainda a documentação que serviu, por um lado, como estímulo à imaginação criadora do escritor, através da passagem citada da relação impressa por Thomas Richard, e, por outro, talvez como inspiração para a passagem sobre as areias do Medoc, através da Antiquité de Bourdeaus de Elie Vinet.

"O dito selvagem, antes de ser descoberto, foi inventado": com essas palavras o historiador italiano Guiseppe Cocchiara sintetizou a maneira como os europeus descreveram, representaram e julgaram os povos ditos primitivos desde o século XVI 43 . O conhecimento de sua existência estimulou a imaginação de certos humanistas renascentistas que projetaram sobre eles idéias ou lhes emprestaram voz e sentimentos, de acordo com suas intenções e engajamentos.

Talvez melhor do que seus colegas humanistas renascentistas ou filósofos iluministas, Montaigne mereça ser chamado de "inventor"

do "bom selvagem". Vimos como ele habilidosamente construiu seu ensaio, alterando datas, lugares e fatos, mesclando lembranças pessoais e sugestões livrescas, para protestar e alertar pela voz dos canibais. O blefe enaltece a figura do escritor, confirma sua arte, ao mesmo tempo em que ilumina os "bastidores" de sua criação literária.

Num ensaio significativamente chamado "Da força da imaginação" (I, 21), ele explica o uso que fazia de histórias fabulosas ou inventadas. O que importava, dizia, não era se o fato tinha ou não acontecido realmente, mas o conteúdo de verdade que ele pudesse transmitir. As histórias fabulosas, desde quando teoricamente possíveis, podiam ser tão edificantes quantos os exemplos fornecidos pelas verdadeiras. O importante, afinal, era o efeito que elas pudessem causar no leitor, em beneficio das ideias que o escritor desejava veicular.

Se atentarmos bem, aquilo que constamos ao longo da análise, já foi dito pelo próprio escritor, que explica assim sua arte do blefe, tão magistralmente exemplificada no ensaio sobre os índios brasileiros:

[C] Aussi en l'estude que je traitte de noz mceurs et

(21)

mouvernens, les tesmoignages fabuleux, pourveu qu'il soient possibles, y servent cornme les vrais. Advenu ou non advenu, à Paris ou à Rome, à Jean ou à Pierre, c'est tousjours un tour de l'humaine capacité, duquel je suis utilement advisé par ce recit. Je le voy et en fay mon profit egalement en umbre qu'en corps. Et aux diverses leçons qu'ont souvent les histoires, je prends à me servir de celle qui est Ia plus rare et memorable.

Ii y a des autheurs, desquels la fim c'est dire les evenemens.

La mienne, si j'y sçavoye advenir, seroit dire sur ce qui peut advenir. (...) [C] Aux exemples que je tire ceans, de ce que j'ay °ui, faict ou dict, je me suis defendu d'oser alterer jusques aux plus legeres et mutiles circonstances. Ma conscience ne falsifie pas un jota, ma science je ne sçay."

44 MONTAIGNE, M ..chel de.

Les Essais, I, 21, p. 106.

Referências

Documentos relacionados

Conclui-se a partir da analise dos documentos que a DTM pode causar alterações no sistema auditivo e vestibular e que embora se discuta muito sobre o assunto em um

No capítulo 1 são clarificados conceitos-chave essenciais à contextualização do estudo efectuado, destacando autores como Conceição Lopes, John Thompson, Mcluhan, Sara Pereira e

Conforme assinala Janaína Amado (1995), boa parte da literatura regionalista privilegia o sertão como locus, ou seja, elegendo-o como espaço para o cenário das obras ou

1.1.2 Objetivos específicos I Modelar a prática docente através da categorização dos dados colhidos das interações dos docentes com a REDU nas atividades de planejamento, ensino

For journal articles the following information should be included: a all author names surnames followed by initials up to six for more than six, give first three names followed by

A chuva de sementes apresenta elevada riqueza de espécies, com aumento na deposição de sementes entre os meses de setembro a novembro, presença do assincronismo entre a produção

Houve um enriquecimento de cálcio e bicarbonato nas amostras do Sistema Aquífero Barreiras BCAS-03, BCAS-04 e BSMP-06 durante o período chuvoso, sendo este fato