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o pobre como grande outro. Marcela de Castro Reis

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XXIV CONGRESSO NACIONAL DO

CONPEDI - UFMG/FUMEC/DOM

HELDER CÂMARA

CRIMINOLOGIAS E POLÍTICA CRIMINAL

GUSTAVO NORONHA DE AVILA

MARILIA MONTENEGRO PESSOA DE MELLO

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Copyright © 2015 Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito

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C929

Criminologias e política criminal [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI/UFMG/ FUMEC/Dom Helder Câmara;

coordenadores: Gustavo Noronha de Avila, Marilia Montenegro Pessoa De Mello, Tulio Lima Vianna – Florianópolis: CONPEDI, 2015.

Inclui bibliografia

ISBN: 978-85-5505-080-0

Modo de acesso: www.conpedi.org.br em publicações

Tema: DIREITO E POLÍTICA: da vulnerabilidade à sustentabilidade

1. Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Brasil – Encontros. 2. Criminologia. I. Congresso Nacional do CONPEDI - UFMG/FUMEC/Dom Helder Câmara (25. : 2015 : Belo Horizonte, MG).

CDU: 34

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XXIV CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI - UFMG/FUMEC

/DOM HELDER CÂMARA

CRIMINOLOGIAS E POLÍTICA CRIMINAL

Apresentação

APRESENTAÇÃO

É com grande alegria e satisfação que apresentamos a coletânea de artigos discutidos no Grupo de Trabalho "Criminologias e Política Criminal", realizado durante o XXIV Congresso do CONPEDI, em Belo Horizonte.

Depois de dois anos de início de nossos trabalhos, podemos dizer que as discussões criminológicas têm ganhado cada vez mais espaço. Discutir as relações do crime com as liberdades, especialmente no que diz respeito às interdições realizadas pelo sistema penal, é agenda fundamental em uma sociedade cada vez mais marcada por controles.

Temos aqui um conjunto heterogêneo, mas bastante significativo, da produção criminológica nacional. Desde artigos vinculados às rearticulações dos realismo de esquerda com a segurança pública até aproximações com as perspectivas radicais/libertárias.

Em um espaço de discussão privilegiado e democrático, como é o CONPEDI, cremos ser fundamental o aprofundamento e a continuidade dessas discussões. Não seria possível alcançar esse objetivo sem a colaboração do Professor Nestor Eduardo Araruna Santiago e, especialmente, na edição ora apresentada, do Professor Álvaro Oxley da Rocha que, com maestria, auxiliou na coordenação dos trabalhos.

É com esse espírito efetivamente democrático, marcado pela solidariedade e pela seriedade acadêmica, que seguiremos em frente. Desejamos a todos ótima leitura.

Gustavo Noronha de Ávila

Marília Montenegro Pessoa de Mello

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O RECRUDESCIMENTO PENAL SELETIVO NO BRASIL: O POBRE COMO GRANDE OUTRO.

THE SELECTIVENESS OF THE PENAL RECRUDESCENCE IN BRAZIL: THE POOR AS AN OTHER.

Marcela de Castro Reis Resumo

O presente trabalho tem por escopo tratar da seletividade do recrudescimento da legislação e política penal, que, segundo se pretende demonstrar, atinge mais intensamente o pobre. Nesta medida, o direcionamento do sistema penal para a persecução do despossuído econômico é trabalhado pelos referenciais teóricos como produto da virada econômica havida com o fim do Welfare State. Malgrado não tenha o Brasil experimentado o Estado de Bem Estar Social em sua plenitude, as reverberações da política criminal e posições criminológicas estadunidenses e europeias foram sentidas e introduzidas no país. Nessa medida, as novas e duras posições teóricas a respeito do crime e criminoso e de seu enfrentamento, engendradas principalmente entre as décadas de 1970 a 1990, tiveram sensível acolhida no sistema penal pátrio, coadunando-se, sobremaneira, à histórica invisibilidade do grande outro de nossa sociedade: o pobre. Nesta perspectiva, tem grande importância para o estudo do processo de endurecimento penal seletivo o conceito de refugo do jogo de Zygmunt Bauman e as elucubrações de Giogio Agamben no que respeita ao Homo Sacer. O estudo da realidade brasileira se realiza por meio de análise de dados relativos às proposições legislativas no campo penal e processual penal no ano de 2015, bem como se consolida a partir da perquirição dos dados atinentes aos últimos informativos lançados pelo INFOPEN.

Palavras-chave: Recrudescimento seletivo, Política criminal, Criminologia, Pobreza, Homo

sacer, Refugo do jogo

Abstract/Resumen/Résumé

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Brazilian reality takes place through analysis of data relating to legislative proposals in the fields of criminal and criminal procedural in 2015 and through the analysis of data pertaining to the last information released by INFOPEN.

Keywords/Palabras-claves/Mots-clés: Selectiveness of recrudescence, Criminal policy,

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1. Introdução

É possível identificar, nas mais diversas sociedades contemporâneas (cada vez menos diversas, diga-se de passagem) um avanço e um recuo do Direito Penal, a assimetria das políticas penais1 pendulares, ora excessivas, ora abrandadas, é definida pelos usos simbólicos que delas se fazem, pondera David Garland (2008). Soma-se a isso, a constatação de que o punitivismo hiperbólico não é genérico quanto aos seus destinatários, mas rigorosamente voltado à determinada classe de pessoas – os outros. Ao passo que o abrandamento

identificado por Garland é endereçado a categoria acendrada do nós.

A perseguição do outro, categoria que pode ser preenchida por “tipos” diversos não é nova, pode-se dizer, inclusive, que é atávica a qualquer grupo social, que precisa do contraste a um estranho para que possa ganhar coesão, tornar-se nós. Complementando o célebre

axioma de Ulpiano – ubi homo ibi societas, ubi societas ibi jus –, é preciso admitir a ideia de

que havendo homem, sociedade e direito, há de existir também o outro, o estrangeiro, o

forasteiro, o estranho. A intertemporalidade da categoria revela a necessidade que temos de reconhecer o mal fora de nós, de dar a ele um nome, uma cara e classe, como que para não revelar que o mal não é exclusividade de alguns, reside em todos os nós.

A eleição de inimigo comum permite a expiação dos desejos internos interditados, segundo Sigmund Freud (2011), trata-se de emprego da pulsão de morte – que não deve mesmo se acumular, mas ser continuamente escoada – a qual ao ser dirigida a um grupo de “estranhos” imanta os elos do grupo, que está junto contra “um outro”. Esta perspectiva ao ser trazida para a ambiência política permite divisar que o ódio ao outro faz, sobretudo e imperceptivelmente, reforçar a combalida legitimidade estatal.

Com a ajuda de Loïc Wacquant (2007) é possível definir quem são os outsiders da

vez, posto não ser de modo algum nova a categoria dos outros, renova-se por vezes apenas o grupo que a integra, e, atualmente, é possível dizer claramente que se tratam dos pobres. Também não é nova tal constatação, os estratos sociais economicamente inferiores sempre serviram à encarnação do mal, do abjeto e ignóbil e, por isso mesmo, não foram de pronto incorporados pelo conceito de cidadãos, tampouco foram abarcados pelo conceito de dignidade desde o início de seu desenvolvimento. Quando, enfim, foram admitidos a entrar no bando como cidadãos, portadores de direitos, o foram somente na medida mesma de sua

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exclusão, como signo da possibilidade de suspensão destes direitos pelo soberano, tratando Agamben (2010) de tal suspensão como marca da soberania do Estado.

Não sendo novas as constatações, pode-se indagar qual o motivo da abordagem do assunto por ora, quando tantas novidades assomam neste admirável mundo novo. Ocorre, porém, que as últimas alterações econômico-sociais determinaram, de acordo com Garland e Wacquant – adotados como referencial teórico para o presente trabalho – a agudização do endurecimento penal com relação ao marginalizados econômicos ou, ao menos, determinou a espetaculização dos rigores penais seletivos, revestindo-os de visibilidade. Ou, ainda, é possível que apenas agora tenhamos condições de perceber tal fenômeno antigo e nomeá-lo como tal, porque agora existem teorias e discursos que o preenchem de significados, que permitem seu diagnóstico e consequentes prognósticos.

Assim, dúvidas já não restam, de que a marginalização é tanto causa como efeito dos avanços punitivos, e, que na determinação de “um outro”, é a figura do pobre a mais invocada. É então sobre a eleição dessa classe como expiatória de toda a culpa social, desdobrando-se sobre o recrudescimento seletivo do Direito Penal, que se circunscreve este trabalho.

Nesta medida, o artigo intenta demonstrar a existência do aludido endurecimento penal apontados por Garland e Wacquant, cujo pensamento encontra interessantes ressonâncias e imbricações nas teorias interpenetrantes de Zigmunt Bauman e Giorgio Agamben acerca dos discursos e olhares sociais sobre o crime e criminoso, fomentados em larga escala pela mídia, e também dela determinantes.

Para tanto, também se procederá a breve cotejo da profusão de projetos legislativos no campo penal, no intento de perquirir o que esta opulência legislativa revela sobre a eleição de outros e se há, de fato, uma tendência de recrudescimento da disciplina penal no país. A

análise da seletividade penal também se estenderá ao exame dos dados coligidos pelo INFOPEN, acerca dos encarcerados no país.

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2. Do Estado Social ao Penal

2.1.Características do controle criminal no Estado Social

Primeiramente, cumpre observar que o controle criminal desenvolvido no Estado Social é conjunto de práticas, imbuídas de teorias e olhares sociais, que são produtos do tempo em que se inserem.

O controle criminal do período, em linhas gerais, pode ser descrito como eminentemente correcional, pautado na ideia de reabilitação do criminoso, de “tratamento” do delinquente para que fosse reconduzido à sociedade, da qual é partícipe como sujeito de direitos.

Esta percepção é fundada na ideia responsabilidade social pelo delito, é dizer, em detrimento da responsabilidade individual do delinquente, emerge o entendimento de que toda a sociedade tem participação no delito cometido por um indivíduo. Tendo em vista que se começa a assumir o fato de que o infrator está contido na sociedade, é seu produto, entendimento encontra espeque na compreensão de que as causas do crime superam o maniqueísmo da responsabilidade individual do sujeito infrator.

O problema da criminalidade é encarado como problema social, e o otimismo do período faz crer que o crime não passa de “relíquia renitente de privações passadas”, o crime

perde sua faceta de ameaça à ordem social (GARLAND, 2008, p. 123). Desta feita, o crime

não passaria de fenômeno a revelar a socialização incompleta, a demonstrar que a extensão das prósperas condições econômicas deviam ser ainda mais elastecidas – a incumbência do Estado concernia a fazer estender seu braço assistencialista e abarcar a todos.

Não é despiciendo notar, por outro lado, que esta perspectiva acerca do reconhecimento e inclusão do criminoso na ordem social como sujeito de direitos, é desdobramento natural do período em questão. No pós 2ª Guerra Mundial a universalidade dos Direitos Humanos e inerência a todo ser humano é proclamada como postulado dos novos tempos, neste contexto, a inserção dos criminosos ao núcleo duro de direitos fundamentais do homem, a eles aderidos os ditos direitos de segunda dimensão consentâneos ao Estado de Bem-Estar, é sobretudo lógica.

Logo, diante desta nova lógica inclusiva, o infrator, o outsider que se põe à margem,

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que deu aos infratores a figura de cidadãos em falho processo de integração econômica e social, permitindo que fossem eles tidos a conta de desiguais em “processo de igualização”.

Outrossim, o Estado Social é gerido especialistas e burocratas, os estudiosos são aclamados e consagrados como os legitimados para dar consecução aos planos estatais, inclusas a prevenção e repressão do crime. É certo, então, que no Welfare State surgiu um

novo tipo de autoridade social: os especialistas sociais, a quem se atribuía o papel de procedimentalização do controle criminal. Muitas ciências se debruçaram então sobre o crime enquanto fenômeno e problema social, inaugurando nova penalogia, de natureza correcionalista e hostil à abordagem retributivista. Isso permitiu o desenvolvimento de políticas penais voltadas para o paradigma da reabilitação do delinquente e reinserção do apenado na cadeia produtiva, sendo seu retorno à sociedade intermediado por sua absorção econômica (GARLAND, 2008).

De acordo com Garland, o fato de o programa correcionalista estar em permanente processo de realização garantia sobremaneira sua estabilidade, pois a crença nos especialistas somada à ideia de que o programa, muito embora sempre incompleto em sua implementação, estaria em vias de ser completamente efetivado, apascentava a opinião pública (2008, p. 94).

No tocante a opinião social sobre a ótica previdenciária aplicada à prevenção delitiva, o sociólogo chama atenção para o consenso que então existia em torno dos métodos welfaristas, a família e as comunidades se alinhavam à perspectiva correcionalista, que era também aplicada nos lares, vizinhanças, bairros, como extensão informal do controle (2008). É interessante observar que, neste contexto, mesmo as classes abastadas, as elites liberais e a classe média, introjetaram o ethos welfaristas, acreditando que este era o melhor caminho para

que não perdessem o que já possuíam e mantivessem inatacado seu status quo.

Como as taxas de cometimento de delito mantinham-se baixas, as práticas welfaristas no campo penal eram convalidadas, de modo que a validade e eficácia das instituições penais-previdenciárias eram diuturnamente corroboradas e tomavam-se por positivos os efeitos das políticas penais adotadas. O crime era então um problema social controlado.

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Essa harmonia social, esse amplo consenso que é emblemático do período, tem explicações, conforme bem demonstra Garland (2008), no fato de que o Estado Social, na medida em que promoveu uma sensível mitigação da desigualdade econômica, fazendo aproximar os extremos opostos da hierarquizada e piramidal estrutura social, acabou por reduzir o conflito de classes e os antagonismos que as opunham. Neste novo paradigma político-econômico novas formas de gerenciamento da população, a par dos controles criminais, pautadas nos postulados do keynesianismo, foram idealizadas e implementadas, permitindo certo acorde entre as camadas economicamente estratificadas da sociedade.

Na seara econômica os riscos do capitalismo de mercado foram submetidos ao controle de um Estado intervencionista, e, pari passu à regulação das forças econômicas,

medidas previdenciárias foram promovidas, o que implicou em redistribuição de recursos e uma maior seguridade social. Nesse sentido, também, foram estabelecidos os sistemas de tributação progressiva, complementados por um gerenciamento dos recursos públicos que privilegiava a assistência social.

A sensação de segurança econômica e o sentimento de pertencimento do indivíduo ao todo social, a noção forte de comunidade alicerçada na percepção otimista do homem como ser eminentemente bom e sempre recuperável de seus vícios, influiu determinantemente não só na relação travada com o crime, como no medo que cerca tal fenômeno social.

Assim, de acordo com estudos de Philippe Robert o medo do crime decaiu sensivelmente no Estado Social (apud BAUMAN, 2004, p. 72), essa sensação de segurança encontrava eco nos índices baixos de delito, tudo levando a crer que o crime era problema controlado, o que endossava o tratamento assistencial dos apenados e daqueles que se criam em risco de cometimento de delitos em virtude de não integração econômica.

O Estado Social estava inclinado a combater e neutralizar os perigos socialmente produzidos à existência individual e tinha, além disso, a intenção de socializar os riscos individuais e fazer de sua redução uma tarefa estatal. Deste modo a legitimação do Estado provinha justamente de seu cariz assistencialista, a política de proteção a calamidades e desgraças individuais de todos os membros da sociedade (BAUMAN, 2004, p. 67).

Para além da socialização dos riscos individuais, e também como nota emblemática do Estado Social está a narrativa cívica de inclusão. Consoante expõe Garland (2008), tal narrativa revela o escopo do Estado de incorporação de todos os indivíduos em cidadania social plena, que impendia gestão solidária dos ganhos econômicos e recursos públicos.

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integração social, caracterizadoras das políticas sociais da época dão azo a uma perspectiva “sem culpa” do crime defendida pelas instituições correcionalistas.

Em suma, o previdenciarismo penal deve ser entendido como um dos desdobramentos do Estado Social, haja vista que suas características marcantes se confundem com aquelas imanentes ao paradigma estatal em questão, em virtude da continência dos caracteres da política penal no estágio de desenvolvimento social, político, cultural e econômico do Estado. Cumpre considerar que o welfarismo penal se aperfeiçoou em momento político de inclusão cívica ampla, além de representar a conjunção do humanismo às motivações utilitárias - característica da democracia de massa (GARLAND, 2008, p. 125).

Não causa surpresa, portanto, que o fim das conjunturas que compunham verdadeiro sustentáculo para o pensamento previdenciário-penal tenha determinado o abandono das teorias e práticas que nele se embasavam. Assim, tendo sobrevindo a crise econômica de 1970, tornou-se o previndenciarismo obsoleto – não dava mais conta da nova realidade e nela não poderia subsistir. Os problemas econômicos e sociais decorrentes das crises foram margeados pela tensa Guerra Fria que impendia, também, remodelamento político nos EUA, implicando em mudanças políticas, econômicas, sociais, que foram seguidas pelos demais países centrais, e também pelos periféricos.

Como sabido, as crises econômicas da década de 19702 desvelaram o fenômeno da

transnacionalidade, pois em uma economia mundialmente unificada, a queda de um é a queda de todos, e os impactos dos problemas econômicos vivenciados especialmente pelos EUA foram sentidos em diferentes partes do mundo – uma global implosão econômica.

A princípio, como pontua Hobsbawn (2003), acreditou-se que a crise fosse problema passageiro, várias e vãs soluções foram buscadas. Até que “os teólogos seculares do liberalismo econômico”, como os nomina o historiador, foram ouvidos e o laissez-faire et

laissez-passer, sob nova roupagem e apresentação, retornou triunfante á ordem do dia. Para

debelar a crise as políticas welfaristas foram abandonadas, dentre elas a política criminal.

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Os escombros do passado foram desalojados e novos institutos e políticas eram requisitados, ainda que estas novas estruturas trouxessem reconfigurados alguns dos caracteres pretéritos do liberalismo. A supranacionalidade, os reclames de minorias até então subjugadas, a volatilidade do capital, o colapso das instituições previdenciárias combinados à precarização e terceirização do trabalho foram as causas e efeitos das crises econômicas que irromperam na década de 1970, agudizados na atribulada década de 1980, e sentidos até década de 19903, como nota Hobsbawn (2003).

Portanto, muito embora as mudanças no controle do crime rompam com ideário até então muito bem cimentado, são elas de outro lado coerentes com as alterações no panorama político, econômico e social, como bem coloca Garland (2008). O colapso das ideias atávicas ao previdenciarismo penal dá-se conjuntamente ao colapso do welfarismo em sua perspectiva

econômica e política, ao desmonte da dita “Era de Ouro”, consoante Hobsbawn (2003). Sem embargos, as mudanças econômicas reverberam fortemente nos modos de enxergar o crime e, mais, no modo de enquadrar o criminoso, antes um ser premido por circunstâncias sociais desfavoráveis, passível de plena reabilitação, agora um descartável sem maior valia econômica, que deve ser largado nos depósitos de gente refugada, a prisão e a periferia.

2.2. Características do controle criminal no Estado Neoliberal

É certo dizer que o desmantelamento do Estado Social cava um buraco fundo na legitimidade da autoridade estatal, e torna, com isso, premente seu preenchimento, pois o vácuo de poder jamais é duradouro.

Soma-se a isso a nova demanda popular por um poder de Estado vigoroso, capaz de conter os marginais - os outros -, que tanto escamoteiam a segurança pessoal dos cidadãos, então muito vulneráveis, haja vista a retirada de todo aparato previdenciarista da estrutura estatal. Neste contexto, que se protraí no tempo até a atualidade, a proteção individual universalmente exercida pelo Estado é definitivamente superada pela precariedade da proteção social (BAUMAN, 2005).

Destarte, a promessa a ser garantida pelo Estado é alterada. A significativa mudança pertine propriamente às próprias funções estatais, assinalando um desvio importante nas políticas públicas e uma crescente judicialização dos problemas sociais estruturais. A

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criminalização, por seu turno, encobre as muitas mazelas deixadas pela desregulamentação da economia.

Nessa medida, a promessa de proteção social, contra as incertezas econômicas, precipuamente contra o temor do desemprego, é sobreposta pela promessa de segurança individual – esta que vem combater um medo do outro, muitas vezes irrefletido e

desencadeado pelo próprio Estado no afã de reconquistar sua combalida legitimidade.

A fórmula é simples, a população encontra-se acuada ante o propagado aumento das práticas criminais, endossado o medo pela criação de um forasteiro/estrangeiro essencialmente mau e iníquo, sempre à espreita. Então, pela não realização do pressagiado

apocalipse, como o nomeia Bauman (2005), em virtude do alardeado incremento exponencial

das prisões, o Estado assegura seu papel de garante da ordem, demonstra o cumprimento diligente de sua promessa.

No tocante a caracterização desse novo modelo, não só político, econômico e social, mas também de controle criminal do Estado, ressaí como um de seus caracteres preponderantes o ressurgimento da vítima. Sequestrada desde a modernidade, passa a vítima a ser histericamente revalorizada como figura preponderante no processo penal – que deve ser não só protegida como vingada. A figura espectral da vítima, de suas famílias, bem como das vítimas em potencial são invocadas como modo de apoiar as mais rígidas medidas de segregação punitiva, nota Garland (2008)4.

Soma-se a isso a perseguição da população economicamente vulnerável, as práticas policiais mais duras e uma vigilância mais rígida em áreas pobres tidas por sensíveis, recuperando, de certa forma, o pensamento dos autores da criminologia etiológica da Escola de Chicago, bem como uma intolerância com relação a qualquer delito.

A prisão retorna ao centro da justiça penal como discutem Garland (2008) e Wacquant (2007), haja vista o espantoso número de detenções que passa então a ser verificado, tanto nos EUA quanto na Grã-Bretanha, acompanhada também da Europa continental. Por outro lado, há a introjeção da visão de que segurança é problema de todos, assim a divisão de responsabilidade do cidadão com o Estado no que toca ao crime é mote do incremento do setor de segurança privada. Tudo isso encontra espeque na criminalidade que se diz ascendente e em um medo generalizado de que se venha a ser a próxima vítima dos ataques criminosos.

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Em 1983, James Q. Wilson, em seu artigo Crime and Public Policy, que repercutiu

fortemente nas posteriores construções teoréticas fundamentadores do endurecimento penal, identificou duas conflitantes inclinações políticas no que referia ao controle criminal de seu tempo. Consoante o autor, por um lado persistia desde os últimos anos a crença na reabilitação do criminoso, conforme orientação predominante das políticas criminais do Estado Social, por outro e diametralmente oposto lado passava-se a reivindicar um maior rigor na punição das condutas delituosas. Essa contradição apresentada pelo autor demonstra, de modo cabal, o conflito entre as ideias da atualidade e do período a ela antecedente, que marcou sobremaneira o período de intercessão entre o Estado Social e o Estado Penal.

Para melhor entender o atual momento do controle criminal, é necessário dilucidar alguns posicionamentos teóricos que surgem nos EUA no ocaso do previdenciarismo penal como contraposição aos seus postulados já combalidos. O estudo, mesmo que breve, dessas teorias é importante na medida em que são elas informadoras do arcabouço ideológico que perpassa as hodiernas representações sociais do crime. Estas representações habitualmente pugnam por maiores reprimendas, por um vigoroso Estado Penal, como panaceia para suposta criminalidade em ascensão, orientando as políticas criminais para a hipertrofia do sistema penal.

Nesta medida, merece atenção a teoria das janelas quebradas, instrumentalizada pela política de tolerância zero, ambas incorporadas no movimento ideológico conhecido como Lei e Ordem. Estas concepções criminológicas estadunidenses influíram mais intensamente no atual controle criminal – tanto nos países centrais como nos periféricos, dentre eles o Brasil. Isto porque, da mesma forma que parte dos EUA a visão neoliberal globalmente disseminada, ancorada em sua ciência econômica ortodoxa, também desse país provém o discurso supostamente científico que orienta racionalmente, por meio de critérios objetivos de eficiência e eficácia, as ditas neutras e indiscutíveis políticas criminais (WACQUANT, 2007). Com efeito, as teorias que marcam a passagem do previdenciarismo-penal às atuais políticas criminais entendem o crime como risco cotidiano a ser gerido por meio de controle criminal que diuturnamente faça frente a qualquer ofensa à lei – mitigado ou mesmo solapado o princípio da bagatela nesse contexto. No processo de contenção dos delitos, restaria envolvida a sociedade civil, dada a percepção adquirida com o fim do Estado Social de que a

guerra contra o crime5envolve a todos, e não somente os especialistas do governo, como até

então se entendia.

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Para Garland (2008), os ecos desse pensamento dá azo ao que nomina de criminologia do cotidiano, que atribui à percepção de aumento vertiginoso da violência a necessidade de fortificação da segurança privada, dada a insuficiência da proteção promovida pelo Estado. Assim, a reinserção da sociedade civil no controle da criminalidade leva ao desenvolvimento da indústria da segurança privada, movida pelo medo. Medo este que é canalizado ao outro, que informa classe cujos direitos sofrem retirada sub-reptícia de direitos,

dando azo ao que chamou de criminologia do outro Garland (2008).

Ponto inicial de onde espraiam as teorias fundantes do Estado Penal é, sem dúvidas, a teoria econômica do crime, cujas bases preliminares foram lançadas em 1968 por Gary

Becker, em artigo nominado “Crime and Punishment: An Economic Approach”6.O autor, que

enceta a corrente econômica, aborda o crime por meio da ótica de risco, isto é, o crime é visto como evento sistemático e matematicamente previsível, perpetrado pelo criminoso a partir de escolha racional.

Becker, por meio da linguagem econômica, que é o mote de suas elucubrações, descreve como a avaliação de oportunidade é feita pelo delinquente, criando, para tanto, o modelo de escolha racional. De acordo com o modelo, o sujeito infrator avaliaria sempre os benefícios da empreitada delitiva - aos ganhos e vantagens do crime subtrairia a pena a ele cominada, multiplicado o total pela probabilidade de ser punido.

Em sendo assim, a corrente econômica, pela perspectiva da prevenção especial negativa7, entende que o crime, enquanto cálculo racionalmente engendrado pelo infrator, merece pena que lhe seja compatível a fim de desestimular o criminoso. Destarte, para o autor a pena ótima é a multa, posto que com ela seria possível obter a total reparação dos danos causados, e infundir no criminoso o temor necessário para que o ato se torne, segundo a análise econômica, desvantajoso. Para tanto, a pena deveria ser sempre maior do que a simples reparação do gravame com a mera devolução dos valores perdidos pela vítima.

A perspectiva econômica de que a pena de multa deve ser sempre superior à simples reparação monetária do crime, serviu de espeque para posteriores teorias que reivindicam

legitimada sua execução por um direito de exceção compatível com a noção de guerra, quando se mitiga muitas das bases fundantes do Estado Democrático de Direito.

6Disponível em: http://www.ppge.ufrgs.br/giacomo/arquivos/ead/becker-1968.pdf acesso em 25 de abril de 2015.

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maior pena – restritiva de liberdade – para os delitos em geral, uma vez que a reprovabilidade das condutas criminosas se alargou e avultou em intensidade. A ideia defendida é a de que tantos crimes de maior quanto os de menor potencial ofensivo devem ser combatidos com penas duras, uma vez que crimes pequenos encerram em si os maiores, trazem já em sua pequeneza, que muitas vezes beira a insignificância, a potencialidade de incremento lesivo.

A Broken Windows surge da experiência estadunidense de repressão ao crime a partir

de policiamento ostensivo, de acordo com o programa por ela inaugurado a vigilância policial deve se dar precipuamente em bairros pobres, periferias, epicentro da “desordem”. Nesta medida, o interesse primordial era incutir nos moradores tanto uma sensação de proteção e proximidade aos agentes de segurança pública, que realizavam as rondas a pé, como o receio de “ser pego” em caso de pequenos delitos ou comportamentos sociais indesejáveis, como a embriaguez habitual, ou de ser repreendido pela aparência ou figura social “inaceitável”, caso de mendigos e prostitutas.

A ideia fulcral, destarte, era claramente repelir os “estranhos” da comunidade, consistindo este em ponto de maior contato com a experiência brasileira, que também visa enxotar os indesejáveis da visibilidade pública. De acordo com essa visão, tais estranhos estariam mais tendentes ao crime, porque mais afetos a concepção de desordem, que inclusive com eles se identifica visualmente, os “suspeitos” da abordagem policial.

A fundamentação teórica para tais políticas criminais norte-americanas foi desenvolvida a partir de estudo sobre as práticas de controle do delito creditado a James Q. Wilson e George L. Kelling, que em 1982 publicaram o artigo “Brooking Windows: the police

and neighborhood”(SHECAIRA, 2009).

Os quatro principais elementos da teoria são por Shecaira (2009) assim elencados: (i) ao lidar com a desordem banal e os desordeiros de pequena monta a polícia põe-se a par dos crimes mais gravosos; (ii) a alta visibilidade da polícia em “áreas sensíveis” tanto protege os cidadãos como afugenta os delinquentes; (iii) os cidadãos retomam com isso os espaços públicos; (iv) o crime deixa de ser responsabilidade exclusiva da polícia, o enfrentamento do crime passa a ser integradamente trabalhado.

É de se notar, sobretudo, que a perspectiva inaugurada pela Brooken Windows Teory

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Ademais, tem-se que a Teoria das Janelas Quebradas serve de sustentáculo teórico para a famigerada política de tolerância zero posteriormente implantada em Nova York a partir de 1994, que, até hoje repercute fortemente nas políticas criminais brasileiras.

Com efeito, a repressão à pequena delinquência é a base elementar para as medidas intolerantes da política criminal da metrópole, tributada ao prefeito Rodolph Guiliani e ao comissário de polícia, por ele nomeado, Willian Bratton. A política de tolerância zero no enfrentamento do problema criminal determinou um direcionamento do policiamento que em tudo se coadunava a Teoria das Janelas Quebradas, isto é, a polícia esteve ostensivamente presente em áreas pobres, reprimindo pessoas oriundas das mais baixas classes econômicas, e mesmo os menores deslizes comportamentais deram azo á revistas e interrogatórios8.

Nessa toada, um sem número de transgressões aos direitos humanos foram levadas a cabo sob o pretexto de fazer decair os crimes, que haviam chegado a índices elevadíssimos entre as décadas de 1980 e 1990 – principalmente os violentos.

Muito se argumentou a respeito dos estereótipos criados pela ruidosa atuação da polícia nova iorquina, que terminou por identificar totalmente a figura do pobre ao criminoso, aperfeiçoando pragmaticamente a Teoria das Janelas Quebradas, além de agregar á condição econômica o estigma da cor, como elemento identificador dos delinquentes e desordeiros. A cor, elemento preponderante dos marginalizados norte-americanos, é complementada ou substituída na Europa pela origem dos marginalizados, eis que os imigrantes é que são os perseguidos como corja insurreta e criminosa.

Não obstante as muitas e exaustivas análises sobre o assunto, tal política segue sendo aplicada. Nos avanços e recuos do recrudescimento penal, permanece a perseguição à pequena criminalidade, tratando-se os apenados em sua maioria de pessoas pobres. O aclamado sucesso dessa política de intolerância e preconceito é discutível, pois houve, de fato, redução na perpetração de delitos, todavia, não é possível atribuir tal decréscimo unicamente à atuação policial em comento, conforme pontua Wacquant (2007)9.

No tocante à convalidação popular das duras medidas da política de tolerância zero, é preciso ter em conta que, diante da escalada da insegurança subjetiva, instigada por muitos

8Consoante Shecaira (2009), mesmo os lavadores de para-brisa foram acossados, o que também ocorreu com prostitutas e mendigos. No que toca as drogas o tratamento foi também endurecido, a prática do stop and frisk

permitia a abordagem de qualquer suspeito, com o fito de verificar o porte de substância ilícita, mesmo sem mandado ou não tendo este cometido infração maior do que atravessar fora da faixa de pedestres.

(18)

fatores, o Estado encontrou espaço para fazer estender seu poder punitivo, cuja demasia é legitimada pelo furor social de maior rigor no tratamento do problema criminal. Aqui é inegável o poder midiático – que não só incute como estimula os apelos pela expansão do controle criminal.

Como visto, a representação que a partir de então se tem dessas pessoas, marginalizadas pela economia, é a de que são o epicentro criminal, que seus comportamentos desviantes provocam quebras nas janelas sociais, permitindo então a ruína de todo o edifício. Importante notar que as ideias que subjazem o controle do crime no Estado Penal são largamente absorvidas pelas políticas criminais no Brasil.

3. Refugo do jogo

A hipótese com a qual trabalhamos identifica o endurecimento penal nas políticas criminais brasileiras e, sobretudo, no pensar sobre o crime – englobando, com isso, desde

considerações leigas, atinentes ao senso comum, até à produção legislativa e o discurso oficial, tido por aquele expresso pelas agências de repressão penal. Todavia, tal recrudescimento é seletivo, e, segundo os autores com os quais trabalhamos, ele assesta principalmente as classes mais pobres ou, eufemisticamente, as classes economicamente desprovidas – o que Bauman nomina de “refugo do jogo”.

Se o fim do Estado de bem-estar social, ou melhor, sua implantação incompleta no país, acabou por agudizar o problema da miserabilidade da população, culminando no processo de inclusão seletiva, é mister definir quem são esses consumidores falhos, vértice de todo o punitivismo simbólico.

Esses seres humanos supérfluos, redundantes e, portanto, desnecessários, são tratados por Bauman como baixa colateral do progresso econômico. A produção de pessoas

desnecessárias muito embora não seja deliberada, isto é, não provenha de um programa maquiavélico que almeje a exclusão absoluta dessas classes, é inexorável. No atual estágio de desenvolvimento capitalista esses consumidores falhos irão sempre existir, tal qual em toda produção industrial há produção de dejetos – massa não aproveitável da indústria.

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de dar aos dejetos as destinações mais consentâneas à ecologia, à preservação do meio ambiente e das pessoas que nele habitam10.

Igualmente, o refugo humano de que trata Bauman assoma em volume, crescendo sempre, tornando-se um problema cujo encobrimento se faz por meio da criminalização. Esta é manejada por dois braços, um público e outro privado. O primeiro está relacionado às políticas criminais, à criação de tipos penais seletivos e à ação policial de escolha dos processados pela justiça criminal. O segundo atine à também crescente indústria da segurança privada11.

Em verdade, no panorama global o agravamento da marginalização econômica e social dos estratos mais pobres da sociedade é ressonância da obsolescência das políticas assistenciais do Estado de Bem-Estar Social, cumulada à desnecessidade de vários postos de trabalho decorrente dos incessantes avanços tecnológicos. Como hoje o capitalismo se desenvolve por empuxos reprodutores do capital, que prescindem das mediações entre trabalho e as mercadorias, a superfluidade de setores inteiros da sociedade é um traço intrínseco à sua própria progressão, marcada pela acumulação global de recursos financeiros.

Neste contexto de trocas globais, o capital atravessa Estados e determina a relativização de normas jurídicas internas, principalmente as trabalhistas, em forte demanda pela flexibilização da regulação econômica do Estado, impulsionada esta pelos reclames de maior liberdade na competição do mercado. Como consequência deflagrada por este processo, sobrevém a superação do Estado Social, pois que a liberdade econômica não se coaduna às políticas de bem-estar. No Brasil, estas sequer chegam a ser completamente introduzidas.

As disfunções oriundas desta retirada estatal, constitutiva mesma da nova ordem global líquida, são então combatidas pelo direito penal. A criminalização de problemas sociais tomada como recurso para equilibrar a desordem, decorrente da nova ordem, avança sob aqueles que “encarados a partir da nova perspectiva do mercado consumidor, são

redundantes, verdadeiramente objetos fora do lugar” (BAUMAN, 1999, p. 24).

10 Vide a destinação do lixo eletrônico pelos países centrais, os restos decorrentes da “obsolescência programada”, são levados aos países africanos sob a alcunha de “programas de acesso à tecnologia”, recorrentemente denunciados perante a ONU. No Brasil, a situação é alarmante mesmo no que toca ao lixo doméstico, produzido cotidianamente, os aterros sanitários são ainda poucos e os lixões assomam em seu completo descalabro e encenam tragédia do processo produtivo tal qual estruturado – resto de coisas e “restos” de pessoas não aproveitáveis no processo são largados à própria sorte nestes ambientes de completa degradação. 11

(20)

Tanto é assim que, se à época do Estado de Bem-Estar Social o desemprego era encarado como circunstancial, tratada tal mão de obra como exército de reserva, atualmente não há mais promessa de futuro vindouro. O refugo não será reciclado, a partir dessa sentença sua existência é vista com a crueza das teorias da responsabilidade individual12 e sobre tais pessoas recaem a desconfiança, a repugnância e, por fim, a criminalização.

A improdutividade de determinadas classes determina a indiferença moral das demais perante a sua existência ou mesmo seu extermínio, uma vez que, na aquilatação dos valores sociais, ao refugo não se atribui qualquer valia e sua invisibilidade só se suspende quando revelada sua identidade “parasitária”. Isso na medida em que essas pessoas vivem a expensas do governo, e, consequentemente, à custa da sociedade do consumo, que não tolera os economicamente inviáveis.

Esta constatação se confirma pela série de entrevistas levada a cabo por Caldeira (2003), nas quais é recorrente a percepção de que determinada classe de pessoas não deveria sequer existir, que deveriam ser mortos, esterilizados13 ou presos, porque incapazes de prover seu próprio sustento. Na geral representação que se faz dessas pessoas, são elas desinteressadas quanto ao trabalho, mas sempre desejosas dos bens que não podem ter, e que não lhes cabe ter. Nesse sentido:

[...] pô aquele cara tem tudo e eu não tenho nada! Eu vou tirar um pouco do que ele tem, quem sabe não vai me beneficiar? 14

[...] ah e tem o desemprego, mas se procurasse, encontrava, por que que aqueles que procuram, encontram? [...]Agora fica aí na malandragem.”15.

“O bairro tornou-se feio com os cortiços. E pobre é pobre, quando não comprar as coisas que precisa, assalta. (...) O meu marido, você não sabe o que ele fala, ele vê um cortiço, uma favela, fala que uma garrafa de querosene e um fósforo resolveria aquilo num minuto...”16

12 A responsabilidade individual marca o rompimento de liames entre a situação social e o cometimento do crime, deslocando para o indivíduo delinquente a responsabilidade quase que exclusiva pelo delito. Igualmente, no paradigma ultraliberal da economia hodierna a responsabilidade individual visa justificar porque há tantos com tão pouco recursos e um número pequeno de privilegiados que gozam de recursos financeiros vastos. Neste sentido, a lógica do merecimento e vocação para os ganhos advindos do trabalho é fulcral para o desenvolvimento capitalista como tão bem demonstrou Max Weber em “Ética protestante e Espírito do Capitalismo”.

13 É comum a associação de as pessoas pobres não deveriam ter filhos, como se não pudessem ter um projeto de vida, constituir família e viver como os demais. Caldeira analisa a associação das mães solteiras, pobreza e crime no capítulo 2 de sua obra (2003).

14 Trecho extraído de entrevista com “digitadora de computador” em grande Fábrica paulista, 33 anos à época da entrevista (CALDEIRA, 2003, p. 91-92)

15 Trecho extraído da entrevista com dona de casa, cerca de 40 anos à época da entrevista (CALDEIRA, 2003, p. 94).

(21)

A associação destes marginalizados à figura de criminosos natos, faz com que sua existência seja não só supérflua, como extremamente indesejável, conforme se dessume dos recorrentes casos de extermínio da população em situação de rua.

Com efeito, a seletividade do recrudescimento penal é atávica aos tempos que vivemos – a famigerada modernidade líquida –, em que nada chega a se solidificar, dada a

rapidez drástica que nos assaca por todos os lados, compelindo vivências e experiências a uma provisoriedade/precariedade perene. A liquidez moderna, ao afrouxar vínculos sociais, liquefaz instituições sociais em movimentos de desinstituição, que determinam a perda de referências valorativas pelos sujeitos sociais dando azo à violência, principalmente simbólica. A modernidade líquida está calcada na insegurança patológica, deflagrada e determinada por mecanismos e circunstâncias várias, marcada por forte individualismo, este estimulado de toda forma pelo atual modelo econômico.

Dentre as reverberações sociais diversas, determinadas pelas mudanças comentadas por Bauman, destaca-se aquela que nos interessa, qual seja a hipertrofia do sistema penal, sombra do leviatã letárgico que é conclamado a solucionar todos os malogros sociais advindos dessa nova tessitura econômica, principalmente a dar conta da massa inútil de homens refugados pelo capitalismo em seu novo estágio.

Neste panorama, em que a alteridade sofre rupturas incisivas, dentre elas aquela com relação aos indivíduos redundantes, assoma o temor de vir a se tornar um deles, pois as

fronteiras são agora móveis17, qualquer um pode se tornar um consumidor falho. O medo generalizado de ser o outro, de ser vítima do outro, é explorado pelo próprio Estado. É nesta medida que a modernidade líquida é uma civilização do excesso, da superfluidade, do refugo

e de sua remoção (BAUMAN, 2005).

As comunidades que se formam nesse contexto se assentam, então, em bases ideológicas de não reconhecimento daqueles não pertencentes aos seus quadros, constituem-se a partir da diferença que sentem com relação ao outro – o marginalizado, o refugo. O

esvaziamento das instituições democráticas e a privatização da esfera pública são também fenômenos emblemáticos desses tempos em que tudo que é sólido se desmancha no ar.

17 É curioso notar a diferença essencial que marca o distanciamento do sistema de castas atual para aquele clássico, próprio das sociedades estamentais do período feudal, e da mobilidade parcial verificada no período moderno. Agora, qualquer um pode se tornar um refugo, a inexistência de critérios de nascimento, a obsolescência dos títulos nobiliárquicos, e a fluidez do capital podem culminar na drástica passagem social de

consumidor eficaz para inapto ao consumo. Além disso, os outsiders se aproximam cada vez mais no espaço

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Logo, a dicotomia entre nós e outros é necessária para a própria formação da

comunidade, como pontua Bauman (2003) ao retomar Agamben. Toda definição tem por pressuposto de existência o seu antônimo. Com isso, não há luz sem escuridão, não há norma sem exceção, não há nós sem o outro que não participe dessa categoria.

A negação de um conceito, qualquer que seja ele, é necessária a sua existência, isto é, funciona como sua própria condição de validade. Assim, a ordem social necessita desses

“vilões, híbridos que desmascaram categorias supostamente inclusivas/exclusivas”

(BAUMAN, 2005, p. 42). Contudo, a existência dessas figuras fantasmáticas só é necessária para que seja solapada. É preciso haver esses seres redundantes, pois que sua obliteração reforça a ideia de ordem, haja vista que a condenação e o encarceramento conferem invisibilidade ao refugo humano, imagem especular da indesejada desordem.

Cumpre notar que a expectativa de ordem é ponto nodal do convívio humano, é ela o fim, a meta que impele o estabelecimento da sociedade. Para defini-la Bauman recorre a sua etimologia, segundo o Oxford English Dictionary a ordem pode ser entendida como

“condição em que tudo se encontra em seu espaço adequado e executa suas funções

apropriadas” (2005, p. 42). A ordem é desejada porque fornece segurança, no plano social é

dizer que todas as funções adequadas estão sendo desempenhadas por quem deve desempenhá-las, a ordem não admite a redundância, pois que a replicação sem utilidade das partes macula a ordenação do todo.

Justamente porque aspiramos ordem, não apreciamos os detritos advindos de qualquer atividade humana, que provocam asco por sua completa inutilidade. Acabamos por associar as sobras à imundície, os detritos são, em nossa representação, essencialmente sujos18, despidos de sua qualidade anterior, de insumo, ingrediente ou bem.

A definição do verbete “lixo” no dicionário Houaiss é, neste ponto, elucidativa. Senão vejamos:

1. Qualquer objeto sem valor ou utilidade, ou detrito oriundo de trabalhos domésticos, industriais, etc. que se joga fora.

2. Derivação: por metonímia.

Recipiente próprio para acondicionar o lixo.

3. Derivação: por extensão de sentido. Uso: informal. Coisa ordinária, malfeita, feia.

4. Derivação: sentido figurado. Uso: informal, pejorativo. Pessoa sem qualquer dote moral, físico ou intelectual. 5. Derivação: sentido figurado. Uso: informal, pejorativo.

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A camada mais baixa da sociedade, escória, ralé.

Interessante notar que o dicionário, ao descrever os usos informais do termo, revela que no coloquialismo lixo pode significar pessoa ou classe delas. O registro de Houaiss é extremamente esclarecedor, pois reconhece que há seres humanos contabilizados como lixo, como restos ou sobras de um processo industrial, econômico, social. Esse lixo fica amontoado em regiões feias, desorganizadas, inseguras, e por ser lixo deve ser varrido, não à toa que a extirpação desses indivíduos de áreas urbanas visíveis é muitas vezes referida como processos de higienização.

Tratadas como escória da sociedade, essas pessoas (pode-se até discutir se seriam mesmo pessoas no sentido jurídico do termo, dado o tratamento que a elas se destina) são, de

per si, más, ignóbeis, perigosas – assim como o lixo em seu registro formal, que deve ser

evitado, uma vez que contamina, “empesteia”, “enfeia” o ambiente, tornando-o insalubre aos “homens bons”. Com isso, retoma-se a acepção de ordem importada do Oxford English

Dictionay, pela qual se conclui que as pessoas supérfluas são aquilo que não está em seu

lugar adequado e não executa a função apropriada.

Destarte, por contradizerem a ordem, consistem no que Bauman intitula ponto

fronteiriço entre a organização e o caos (2005, p. 39), tornando premente sua erradicação. Os

modos de eliminar a existência perturbadora desses marginalizados sem serventia econômica perpassam pelo reforço de sua exclusão. Desta feita, a ordem é mantida na cidade, enquanto os redundantes são relegados às favelas, às periferias, ou aos bairros decrépitos, que não por acaso são os espaços urbanos mais comumente associados à ideia de desordem.

Bauman reflete sobre o tema ao tratar dos hiperguetos atuais, locais de armazenagem do refugo humano (2005, p. 102). Os atuais espaços de segregação social desenvolvem-se a partir dos guetos que o autor denomina ortodoxos. Os habitantes desse gueto contemporâneo não mais se identificam apenas a uma única classe, casta ou raça de pessoas, ao passo que se compõe de pessoas que comungam uma característica central, a redundância.

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desenvolve o ilegal mercado do tráfico, os ditos “mercados negros” do contrabando, dentre outras ilicitudes que substituem a ordem político-econômica sonegada aos renegados.

Por conseguinte, para isolar as favelas brasileiras, nossos guetos em si tão descomunais quanto os hiperguetos estadunidenses, constrói-se muros de preconceitos velados19. Confinado pelos muros, por vezes físicos, lá dentro da desordem que lhe identifica, está o grande outro que não se quer encarar, invisível na maior parte do tempo, exceto quando

exposto pela mídia na figura do bandido temerário.

Tanto é assim, que as favelas incrustadas nos centros urbanos são a imagem do horror, inspiram o medo – não se entra em uma favela, a menos que por necessidade premente, evita-se passar em seu entorno, e para ela não se olha, como se ela pudesse, além de tudo, raptar o olhar daquele que passa. Das entrevistas realizadas por Caldeira (2003) dessume-se a associação, persistente e dissimulada no inconsciente coletivo, que liga as favelas ao crime20, como se estas fossem o seu berçário, uma grande incubadora de todo o perigo a que estamos expostos.

Assim, o desinteresse do Estado no tocante aos problemas estruturantes da sociedade desencadeia problemas ainda mais agudos, que por sua vez não podem ser resolvidos pelas antigas instituições do Estado Social, porque estas tampouco existem, restando, com isso, a alternativa penal. O punitivismo atende ao clamor público e permite ao Estado a relocação de sua autoridade e legitimidade, que, em virtude disso, se desprende cada vez mais das políticas sociais.

É nesta medida que a suspensão da dignidade e de outros direitos humanos primaciais é levada a cabo, fazendo emergir do refugo humano – rejeitado pela sociedade do consumo, pária econômico – a figura do homo sacer, o homem que não está contido em

jurisdição alguma.

19 Nem sempre os muros são meramente metafóricos, cita-se o lamentável caso dos muros que se pretendeu construir na capital Rio de Janeiro, em 2009, atingindo 19 (dezenove) comunidades cariocas, sob a escusa de proteção do meio-ambiente. Neste sentido, são esclarecedores os dados do Instituto de Pereira Passos (IPP) a respeito das áreas construída acima dos 100m de altitude na cidade, que ocupassem ou ameaçassem ocupar áreas de preservação ambiental, de sua totalidade somente 30% se constituía de favelas, ao passo que 69,7% estava ocupada pela classe média e alta. Em virtude da construção dos muros o Brasil foi publicamente criticado pela ONU, que acusou o país de estar iniciando uma discriminação geográfica.

20 É recorrente na fala dos entrevistados de Caldeira o medo das favelas. Ilustra a questão a entrevista da autora com uma senhora, dona de casa, classe média, que então contava 60 anos de idade e residia no bairro Moóca. A entrevistada é veemente com relação ao medo dos cortiços, revela temor e repulsa em relação a população mais pobre de seu bairro, e atribui aos nordestinos migrantes muitos dos problemas de seu bairro e de São Paulo. Diz ela: “O que estragou muito a Móca foram as favelas. Aquela da Vila Prudente é uma cidade! [...] Tem

também muito cortiço. Tem muito cortiço na Moóca desde que vieram a gente do norte. Tem 300 cortiços, cada um com 50 famílias, só com três privadas [...]. O que tá prejudicando é isso ai, a pobreza. [...] A Moóca teve

muito progresso, mas regride pela população pobre. [...] Eles empestearam tudo, o Governo devia dar casas

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4. Vida nua do refugo humano ou o reflexo especular do homo sacer

A vida nua é o conceito que Giorgio Agamben associa á vida “matável e

insacrificável do homo sacer” (2010, p. 16), esta vida despida de si, totalmente crua,

quebrantável, somente é incluída no ordenamento sob a forma de sua exclusão.

O homo sacer é uma figura que o autor recupera do direito romano antigo, símbolo

da ambivalência máxima, este homem está na área limítrofe do incluso/excluso, do sacro/maldito, é um infrator da lei humana condenado à pena de vida. Isto porque, este homem não podia ser morto em execução capital que, à época do Direito Romano arcaico continha um caráter de ritual de purificação do indivíduo delinquente, uma forma de purificar a impureza do delito. Por outro lado, o assassínio desse homem, porque quem quer que fosse, não seria considerado crime, porque ele não estava protegido pela norma dos homens – a vedação ao homicídio não o abarcava. Com isso, conclui Agamben que este homem fora expulso da jurisdição humana, sem ultrapassar para a divina (2010).

Exposto à dupla exclusão, o homo sacer é duplamente capturado, sua vida nua é

incluída ao bando por sua própria matabilidade, tanto por ser o alvo topológico da violência, como por não ser alcançado pela proteção normativa; igualmente se encontra incluído na ordem divina, por se tratar de ser insacrificável.

Destarte, o homo sacer pode ser identificado ao marginalizado de nosso tempo, que

queda privado da lei positiva e da eficácia dos direitos humanos. A vida digna não alcança o refugo humano, que vaga como um errante de si, homens que não são, estes acabam incluídos

na sociedade de consumo apenas na medida de sua exclusão e imprestabilidade, como sobras. O homem que não é vive em um espaço a ele anômico, decorrente tal anomia da suspensão da

norma – que existe, mas que a ele não se estende.

Assim, se são os direitos humanos que determinam a sacralidade da vida humana e, por conseguinte, sua insacraficialidade21 – são eles suspendidos no que toca ao homo sacer

destes tempos. O estranho está incluído ao bando somente porque é por ele sistematicamente excluído. Ora, se fora dele estivesse, sua contínua expulsão não seria exercida continuamente à exaustão, seria o que não há acontecer22.

Impende ressaltar que tal suspensão seletiva dos direitos humanos é afiançada pelo discurso midiático, por meio dele se determina que o segmento dos refugados não está imerso

21 Os neologismos são necessários para tratar do tema em tela, é preciso fazer estender o léxico para que se possa descrever e conter em palavras o real.

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na proteção jurídica. Como exemplo, cita-se a questão dos presidiários e a noção que flui pelos discursos sociais, de que os detentos não são sujeitos de direitos, tampouco dos direitos humanos, de tal forma que não devem ser alcançados pela dignidade humana, porque não incluídos na categoria de pessoas humanas. Assim, se as celas consistem em espaços insalubres, apinhados, impossíveis no absurdo mesmo de sua existência cruel, não há problema algum, porque impingem sofrimento a aberrações excluídas do bando, que não podem mais ser protegidas das violações físico-psíquicas que porventura lhes atinjam nessa condição.

A vida deste segmento dos refugados, destes outros, é notavelmente insacrificável,

pois malgrado não possa o soberano requisitá-la para si, como forma de compensação pelo crime cometido, manifesta seu total desprezo pela sua mantença, tornando-a matável, mesmo antes da experiência do cárcere. A matabilidade queda expressa na criminalização, na estereotipagem da seleção policial e da vida nua, despida de qualquer valor, a que são relegados vastos grupos sociais.

Exemplo emblemático do exposto diz respeito ao episódio de Pinheirinho, quando se tornou visível a cotidiana suspensão de direitos destinada aos consumidores falhos. A contraditória reintegração de posse levada a cabo a partir de liminar expedida pela juíza Márcia Loureiro, da 6ª Vara Cível da Justiça Estadual de São Paulo, no bairro de Pinheirinho, localizado no município paulista de São José dos Campos, em 22 de janeiro de 2012, deixou mortos, feridos e abandonados23, expondo a vida nua dos moradores e a ausência de direitos que a define em sua crueza.

O terreno de aproximadamente 1,3 milhões de metros quadrados, cuja questionável24 propriedade é atribuída à massa falida da empresa Selecta S/A, começou a ser habitado pelos refugados em 2004, no mesmo ano a massa buscou judicialmente reverter a ocupação. Passados oito anos sem que fosse decretada a reintegração de posse, a comunidade cresceu, abrigando cerca de seis mil pessoas, segundo informações do IBGE.

Neste ínterim, quedaram inertes os governos federal, estadual e municipal – nenhum programa habitacional foi discutido, as famílias seguiram invisíveis na sua completa nudez. A liderança da comunidade e os movimentos sociais que levantaram em seu apoio, somados à

23 As informações oficiais são silentes a respeito da existência de mortos, mas a população do bairro declarou que várias pessoas teriam sido mortas e feridas na violenta ação policial grande número de pessoas. Durante a desapropriação vários vídeos foram filmados, e as cenas revelam a truculência dos milicianos e confirmam o depoimento dos moradores da região, ao passo que desmontam a versão oficial de que a ação contou apenas com alguns pontos conflitivos. Há relatório do Condepe que dá conta de 1.800 violações na ação policial.

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defensoria pública do estado de São Paulo, iniciaram discussão a respeito da possibilidade de desapropriação do terreno, sua transformação em bem social para proveito das famílias ali instaladas. Contudo, inerme se manteve o poder executivo sob a escusa de que o caso deveria ser tratado pela justiça, onde já tramitava processo que visava discuti-lo. O poder judiciário, por sua vez, também não deu ao caso a solução mais consentânea aos preceitos da justiça social.

O caso é complexo, razão porque não nos é dado aqui esgotar as muitas facetas jurídicas que apresenta25. Mas, é certo que retratou, em tristes nuances de uma realidade cruenta, a suspensão de direitos de que fala Agamben, que atingiu o grupo social nominado por Bauman de refugo. A estigmatização social que põe ao largo, à margem entre o eu-tu de Bubber, os muitos redundantes, é corroborada pela fala da juíza responsável pela decisão contraditória, para ela:

[...] das famílias que estavam lá [Pinheirinho] 25% estavam pela necessidade. O resto é oportunista (...) não eram só manobrados politicamente. Eram, mas sabiam o que estavam fazendo. Tinha até uma ex-empregada minha que morava no [bairro] Dom Pedro, em uma casa do CDHU, mas ela resolveu alugar e foi morar no Pinheirinho porque era de graça..26

A juíza revela em seu discurso as entrelinhas de sua decisão, que expressa as representações sociais corriqueiras, para ela os moradores da comunidade eram tipos ladinos, que lucravam com a invasão, o que seria acintoso, pois o refugo, obviamente, está alijado do lucro, qualquer ganho lhe é condenado, e é reprovável qualquer tentativa de ascensão social, esses intocáveis devem seguir como são ou como não são27. E assim sendo, seguem como

clientes do sistema penal, encontrando na prisão morada. Conforme Wacquant, a prisão é mesmo o principal instrumento da política habitacional do Estado para os inúteis da nova economia (2007).

Sem dúvidas, o caso é paradigmático para o presente trabalho porque trata do embate entre o capital e seu refugo. Assim o episódio funciona como simulacro de uma realidade maior, os moradores expulsos são o refugo redundante da ordem econômica vigente, não passam de horda de homo sacer a tomar para si o que não pode lhes pertencer, no caso um

terreno economicamente valoroso.

25 Tanto é assim que se discute até mesmo a respeito da competência da juíza para exarar a decisão de reintegração, isso porquanto agravo de instrumento que pretendia reverter decisão de primeira instância, que negara a reintegração de posse requerida pela massa falida, houvera sido denegado no STJ. Ademais, a massa falida teria acordado, dias antes da decisão, em suspendê-la por quinze dias, para que pudesse a situação habitacional da comunidade ser melhor discutida.

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Como homens desprovidos de valor eles não estão abarcados pelos princípios constitucionais protetores da existência humana digna. Reconhece-se, por conseguinte, que os direitos desses homens matáveis não podem se sobrepor aos direitos dos consumidores ativos, dos produtores de riqueza como o grande especulador financeiro, Naji Nahas, real proprietário do terreno avaliado em quinhentos milhões de reais. O especulador, com a “higienização” levada a cabo, afirmou à época que pretendia construir no local um “bairro lindo” – que apagará a mácula dos homo sacer que o habitaram –, cujo nome será ironicamente Esperança,

segundo ele “esperança de o governo resolver o problema desses coitados [os expulsos de

Pinheirinho] 28”.

Pois bem, o paradoxo decorrente da superposição do direito de propriedade, em sua forma absoluta, solapando os valores constitucionais fundantes que deveriam perpassar todo o ordenamento jurídico, é apenas aparente. Verifica-se, então, a criação jurídica de uma exceção para resguardar o valor máximo da propriedade, confirmando a expansão do modelo econômico capitalista neoliberal e individualista, espécie de afirmação às escâncaras do que normalmente é dissimulado e nem por isso menos real. Além disso, as ideias propagadas sobre o caso, até mesmo pela magistrada como acima registrado, só fazem confirmar as teses de Bauman, Agamben, Garland e Wacquant.

5. A legislação endurecida: dados das proposições legislativas e da população

carcerária brasileira

O recrudescimento penal é um fato inquestionável, o clamor social por mais severidade no trato dos delitos é absorvido pelo Congresso Nacional e a cada delito que choca a opinião pública, sensibilizada pela exploração midiática – muitas vezes sensacionalista –, um projeto de lei é engendrado.

A afirmação é comprovada pela análise dos projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional. Com efeito, breve pesquisa no sítio da Câmara dos Deputados revela que, das 106 (cento e seis) propostas legislativas de cunho penal ou processual penal havidas na Casa Legislativa entre maio e julho de 2015, 76 (setenta e seis), ou seja, 73% (setenta e três porcento) delas, estampam alguma forma de recrudescimento da disciplina do direito material e processual no campo penal. Isto por meio de suspensão de garantias, aumento de pena de delitos já tipificados, tipificação de novos delitos, política criminal mais gravosa quanto a determinados crimes, dentre outras muitas hipóteses de incremento do rigor penal.

Referências

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