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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA CLÍNICA NÚCLEO DE ESTUDOS JUNGUIANOS

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA CLÍNICA NÚCLEO DE ESTUDOS JUNGUIANOS

Caio Vinicius Martins

A concepção de religiosidade no pensamento junguiano:

questões e perspectivas

MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

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Caio Vinicius Martins

A concepção de religiosidade no pensamento junguiano:

questões e perspectivas

MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia Clínica, sob orientação do Prof. Dr. Durval Luiz de Faria.

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Ficha Catalográfica

MARTINS, Caio Vinicius. A concepção de religiosidade no pensamento junguiano: questões e perspectivas.

São Paulo: 2014, 104 f.

Dissertação (Mestrado) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Área de concentração: Pós-Graduação em Psicologia Clínica

Orientadora: Professor Doutor Durval Luiz de Faria

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BANCA EXAMINADORA

_____________________________________

_____________________________________

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AUTORIZAÇÃO

Autorizo, para fins acadêmicos ou científicos, a reprodução parcial ou total desta dissertação por processos fotocopiadores ou eletrônicos, desde que citada a fonte.

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Dedico este trabalho ao Deus em cada ser,

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à Divina Presença Inefável, manifesta no coração do homem sincero e expressa em cada ação. Dando sentido às coisas do mundo, guiou também este humilde trabalho.

Este estudo só pôde ser realizado graças à bolsa concedida pela CAPES, por isso agradeço esta oportunidade a mim confiada.

É difícil expressar a grandeza de minha gratidão ao professor Durval Luiz de Faria, pela orientação e diálogos enriquecedores. Ao longo de toda esta jornada, tornou-se não só um exemplo acadêmico como pessoal.

Agradecimentos às professoras Denise Gimenez Ramos e Liliana Liviano Whaba, pelo imenso aprendizado obtido durante aulas, orientações, eventos e demais atividades acadêmicas.

À professora avaliadora Marion Rauscher Gallbach, pela atenção, disponibilidade, ótimas aulas e importantes contribuições ao estudo.

À professora avaliadora Noely Montes Moraes, pela disponibilidade, atenção e relevantes contribuições ao estudo.

À professora avaliadora suplente Marília Ancona-Lopes, pelas aulas estimulantes, atenção e auxílio que foram de grande importância para a realização deste trabalho.

À professora avaliadora suplente Laura Villares de Freitas, pelas aulas enriquecedoras, pela atenção e disponibilidade.

À professora Eloisa Marques Damasco Penna, pela disponibilidade em participar da qualificação, pelas contribuições que tanto enriqueceram este trabalho e por seus estudos sobre método de pesquisa em psicologia analítica que nos auxiliaram durante o estudo.

Aos demais professores do programa de pós-graduados da PUC-SP que colaboraram neste trabalho, em especial a professora Ida Kublikowski e o professor Renato Mezan.

Àqueles que estiveram ao meu lado desde o início da jornada, Adriana Ancona Lopes e Alexandre Felipe Pacini, pelos estudos, incursões ao inconsciente, incentivo e enriquecedores diálogos.

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À minha querida Marisa Vicente Catta-Preta, pelo apoio desde o início desta minha jornada.

À minha família, que me apoiou emocional e materialmente, incentivando-me e acreditando nos meus sonhos – a eles devoto o meu amor.

Aos meus pais, Milton e Nelci Teresa, primeiramente pela minha vida, e por me ampararem em todos os sentidos com dedicação e carinho, transmitindo-me os valores da vida e inspirando-me através de seus exemplos.

À minha irmã Larissa Paola Martins, por todo o seu apoio, carinho e parceria, e por ser minha fiel confidente.

Ao amigo Nasser Jamil Saheli, por todos os caminhos que trilhamos juntos, pelo auxílio, atenciosas revisões e diálogos estimulantes.

Aos amigos Thiago Bachini Bornioti e Ronaldo Adriano Alves dos Santos, pela jornada trilhada ao meu lado, pelo carinho, companheirismo e boas discussões.

Aos amigos Tony Masakazu Otani, Matheus Virgilio Patreze e Yujie Zhou, pelo tempo que passamos juntos, pelas risadas e companheirismo.

Às amigas Deise Barp e Tatiana Lazzareschi, pela amizade, apoio, cafés e conversas.

Aos meus irmãos de fé Wagner Roberto Fadini, Ricardo Romeo, Marisa Romeo e todos os membros da Igreja Gnóstica do Brasil, pela amizade, palavras de carinho e orientação, além de suporte emocional e espiritual.

Às amigas Jane Zottis Scholz e Graciela Bombardelli Biazi, pela amizade, apoio, chimarrão e conversas, e por participarem de minha caminhada na Psicologia desde tão cedo.

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MARTINS, Caio Vinicius. A concepção de religiosidade no pensamento junguiano: questões e perspectivas. Dissertação de Mestrado em Pós-Graduação em Psicologia Clínica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. São Paulo – SP, 2014.

RESUMO

Já em seu tempo Jung apontava para a falta de abertura por parte da ciência e do pensamento da época para contemplar a religiosidade em suas reflexões e, consequentemente, considerá-la em suas práticas. Assim, o psiquiatra suíço indicava uma dicotomia na psique do homem moderno que se desenvolvia dentro de uma dinâmica conflituosa, onde o pensamento científico, materialista e crítico se sobrepunha à religião e, consequentemente, à natural função religiosa da psique. Evidenciava-se, desse modo, um embate entre ciência e religião, tendo a primeira sido dominada e submetida à segunda nos séculos precedentes, mas que agora impunha o seu domínio e rejeitava prestar reconhecimento à segunda com o mesmo afinco. Pesquisas recentes também vêm identificando este mesmo conflito, que afeta pacientes e terapeutas; contudo, superá-lo é uma tarefa ainda mais difícil do que se imaginaria ou se desejaria. Essa interseção entre psicologia e religiosidade mostra-se um campo extremamente delicado. São saberes e práticas bastante distintos, que demandam do profissional muita cautela e respeito. Correntes de pensamento científico emergentes têm demonstrado esse reconhecimento à dimensão religiosa, acolhendo-a enquanto campo disciplinar equiparado, sem buscar reduzi-la a uma teoria científica. Acreditamos que a psicologia de Carl Gustav Jung tem muito a contribuir na construção desse canal de diálogo e compreensão entre os dois campos. Entre Deus e a razão encontraremos a alma humana, outrora abandonada por cientistas e religiosos e que finalmente encontrou voz no psiquiatra suíço. Aliás, há quem considere a psicologia de Jung como uma psicologia religiosa, e veja em sua psicoterapia uma essencial atitude religiosa. Com este entendimento, vamos identificando uma ponte entre esses dois modelos de pensamento, isto é, ciência e religião, que em outra oportunidade julgaríamos irreconciliáveis. O pensamento de Jung, sua visão de religiosidade e do sagrado, sua compreensão do desencantamento do homem moderno e seu método terapêutico oferecem uma importante contribuição para lidar com este conflito. O estudo assinala uma necessidade de abertura para a abordagem da religiosidade em clínica, o que nem sempre é fácil ou simples por se tratar de um delicado campo interdisciplinar. Aponta, ainda, para um novo momento, um momento pós-secular, que demanda um novo modelo religioso que se adeque ao espírito crítico do homem atual, onde a psicologia analítica tem muito a oferecer, abordando e cuidando da alma humana, canal entre psicologia e religião, via de trabalho do psicoterapeuta.

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MARTINS, Caio Vinicius. A concepção de religiosidade no pensamento junguiano: questões e perspectivas. Dissertação de Mestrado em Pós-Graduação em Psicologia Clínica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. São Paulo – SP, 2014.

ABSTRACT

Already in his time Jung pointed at the lack of openness by science and the spirit of that period for contemplating religiosity in their reflections and, consequently, considering it in their practices. Thus, the Swiss psychiatrist indicated a dichotomy in

the modern man‟s psyche that was being developed within a conflictual dynamics, where scientific, materialistic and critical thought overlapped religion and, consequently, the natural religious function of psyche. It was thereby evidenced a clash between science and religion, the first having been dominated and subjected to the second in preceding centuries, but now having imposed its domain and rejected recognition to the second with the same tenacity. Recent research has also identified this same conflict that affects patients and therapists; however, overcoming it is an even more difficult task than one could imagine or wish. This intersection between psychology and religion proves to be an extremely sensitive area. Those are knowledges and practices quite distinct, that require extreme caution and respect from the practitioner. Emergent scientific streams of thought have shown this acknowledgement to religious dimension while welcoming the equivalent disciplinary field without seeking to reduce it to a scientific theory. We believe that the psychology of Carl Gustav Jung has much to contribute in the construction of a channel for dialogue and understanding between the two fields. Between God and reason we will find the human soul, once abandoned by scientists and religious men, having finally found a voice in the Swiss psychiatrist. Moreover, some consider Jung's psychology as a religious psychology, considering his psychotherapy as an essentially religious attitude. With this understanding, we identify a bridge between these two thinking models, namely, science and religion, which in another time would be seen as irreconcilable. Jung‟s thinking, his view of religion and the sacred, his comprehension of modern man‟s disenchantment as well as his therapeutic method provide us with a

substantial contribution to dealing with this conflict. The study indicates a need for openness to approach religiosity in therapeutic setting, which is not usually easy or simple due to its sensitive interdisciplinary field. It also points at a new time, a post-secular time, which demands a new religious paradigm that suits the critical spirit of modern man, where Analytical Psychology has much to offer, addressing and attending to the human soul, a channel between psychology and religion, a working path for the psychotherapist.

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LISTA DE FIGURAS

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 12

1 OBJETIVO E MÉTODO ... 18

2 O CONCEITO DE RELIGIOSIDADE EM C. G. JUNG ... 20

2.1 O dilema religioso-científico ... 25

2.2 Religiosidade ... 34

2.3 O Deus interior ... 38

2.4 A semântica junguiana ... 41

2.5 O desencantamento e a sociedade moderna ... 45

3 APROXIMAÇÕES ENTRE O PENSAMENTO E A PRÁTICA JUNGUIANA E A RELIGIOSIDADE NA CONTEMPORANEIDADE ... 51

3.1 Entre práticas seculares e espirituais ... 56

3.2 Psicoterapia junguiana e atitude religiosa ... 62

3.3 Psicologia analítica: uma religião? ... 67

3.4 Religiosidade e prática clínica ... 69

3.5 Apontamentos para uma nova religiosidade ... 74

4 DISCUSSÃO ... 85

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 97

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INTRODUÇÃO

O tempo da sessão avançava até que a paciente, que dizia ver e ouvir espíritos, de repente olha para um canto vago da sala e exclama: “Ele está aqui

neste momento!”. O terapeuta então lhe responde: “Então faça o favor de pedir que ele saia, pois nossa sessão é individual” (sic).

Apesar de aparentar-se a uma piada, esta história me chegou através de um dos mestres da graduação; tratava-se, segundo ele, de uma experiência clínica pessoal.

Quando ouvi este relato, tive a sensação de que a exclusão do espírito soava como uma exclusão da religiosidade da paciente em sua terapia. Certamente, seria necessário apropriar-se melhor do contexto clínico desse sujeito para que pudéssemos avaliar tal intervenção; contudo, aquele momento levou-me a refletir sobre a posição da religiosidade em nossa formação, na maioria dos casos pouco aprofundada ou nem mesmo contemplada nas reflexões apresentadas no programa de ensino, sendo a religiosidade excluída assim como parece ter ocorrido com o fantasma da paciente dessa história.

Ao deixar a graduação acabei levando comigo alguns questionamentos sobre o assunto: não deveria a religião ou a religiosidade receber atenção maior do que a recebida? Sua marginalização acusaria a perda de sua utilidade para o homem contemporâneo ou estaria apontando para um conflito cultural?

É natural que o homem projete seus conflitos no mundo ao seu redor. Eu tinha consciência de que não fugia à regra, de tal modo que passei a analisar essa questão dentro de minha história pessoal. O assunto tomou tamanha importância que decidi abordá-lo na pesquisa de mestrado. Não há, certamente, como me qualificar como sujeito neutro, por vez que elegi a temática para tamanho investimento, porém questionava se essa questão teria um valor estritamente pessoal, ou seja, se decorreria de uma deturpação decorrente de mecanismos inconscientes ou de uma efetiva tomada de consciência.

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pesquisadores, que têm apontado que os cursos de formação de psicoterapeutas atualmente têm negligenciado ou tratado deste assunto de maneira insuficiente (ELKONIN; BROWN; NAICKER, 2012; PERES; SIMÃO; NASELLO, 2012; LUCZINSKI, 2005).

Motivado por esta temática, ingressei no programa de mestrado em psicologia clínica da PUC-SP, quando pude observar as mais distintas reações da academia quando afirmava meu interesse em pesquisar o campo entre a psicoterapia e a religiosidade. Ficou clara a oscilação entre olhares opostos, que ora manifestavam grande interesse ao avaliarem o trabalho como uma importante e indispensável contribuição, ora julgavam-no irrelevante, vindo mesmo a causar alvoroço, confusão ou desconforto – e não foram poucas as ocasiões em que isto ocorreu. No meu entender, essas polaridades de comportamento, ou mesmo cisão, assemelhavam-se à expressão sintomática de uma neurose que possivelmente atravessa toda uma cultura.

Entretanto, esse conflito poderia existir há mais tempo do que imaginei em um primeiro momento. Já nas primeiras décadas do século passado Jung tecia alguns comentários sobre a falta de abertura por parte da ciência e do pensamento da época para contemplar a religiosidade em suas reflexões e, consequentemente, considerá-la em suas práticas. Em um de seus trabalhos, datado de 1928, em que discute a prática com os sonhos, ele destaca a importância de atentar ao tema religioso nesses fenômenos oníricos, os quais surgiriam com maior frequência como decorrência de uma compensação em relação ao pensamento materialista predominante em seu tempo (JUNG [1928] 2009, OC VIII/2). Em outra obra ([1921] 2009, OC VI, §455, p. 235), Jung fala sobre “a possibilidade de libertar a função

religiosa dos limites opressores da crítica intelectual”.

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Por outro lado, alguns pensadores poderiam fazer uma interpretação diferente do que Jung deixa transparecer em suas asserções. Enquanto o psiquiatra suíço dá um tom negativo à sobreposição do materialismo e da crítica intelectual em relação à religiosidade, outros poderiam encará-la como uma grande vitória do homem moderno.

Em diferentes civilizações o homem desenvolveu meios para tentar explicar o que acontecia ao seu redor, e mesmo dentro de si, seja com base em forças divinas ou outros seres sobrenaturais, seja fundamentado em explicações filosóficas ou científicas. O espírito humano sempre se manifestou através de mitos, contos, tratados religiosos e intelectuais, cada qual apoiado em suas próprias premissas e conjunto de crenças. Tratava-se da tentativa humana de melhor lidar com um fenômeno ainda não entendido e muito menos dominado. À medida que tomava conhecimento da natureza desses eventos, o homem buscava melhor relacionar-se com o mundo ao seu redor de forma mais consciente, segura e resolutiva.

Desse modo, ao longo da história vimos surgir sistemas religiosos, cada qual apoiado em seus deuses e postulados metafísicos, buscando dar resposta aos enigmas com que se defrontava. Muitos deles já perderam a condição de mistério, com base em explicações compatíveis com o espírito crítico do nosso tempo; no entanto, alguns enigmas permanecem ainda incompreensíveis ao homem contemporâneo.

Por outro lado, a ciência nos propõe um caminho diferente, um outro modo de construção de conhecimento com bases críticas e racionais que se distanciam do metafísico, dando origem – dentre outras ciências – à psicologia como a temos atualmente.

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Apesar disso, ao longo da história observam-se mais divergências e conflitos do que diálogos e consensos entre ciência e religião. E este embate não se dá somente entre religiosos e cientistas; ele está no silêncio de cada ser humano, em seu íntimo. Muitos questionam aquilo que tomam por verdade, ou ainda admitem a convivência interna de pontos de vista distintos. Por exemplo, tive a oportunidade de conhecer profissionais, da psicologia e de outras áreas, que ao mesmo tempo que admitem pressupostos científicos pautados no materialismo, na crença da inexistência de aspectos metafísicos, afirmam também acreditar na existência desses mesmos postulados sagrados, ou ainda possuem uma confissão religiosa.

Pude também conhecer psicoterapeutas que adotavam uma abordagem de base materialista enquanto se declaravam espíritas. Fiquei bastante intrigado ao pensar como seria abrigar dentro de si teorias e modos de pensar tão distintos. Questiono-me se prevalecem os pressupostos da abordagem científica no setting terapêutico, ao passo que do lado de fora o que predomina é o aspecto religioso; se é fácil fazer essa separação, e se é saudável a convivência com ela; ademais, pergunto-me se tais conflitos poderiam representar não só um fardo para o terapeuta, mas até mesmo acabar comprometendo o seu trabalho junto ao paciente.

Luczinski (2005) mostra que a negligência em relação a esse tema na formação de psicoterapeutas resulta em dificuldades no seu trabalho clínico, levando-os a se relacionar de forma problemática com material dessa natureza, e até mesmo considerando o tema como tabu.

Para Peres, Simão e Nasello (2007), apenas um número limitado de profissionais no Brasil contemplam essa interface entre psicoterapia e religiosidade; na mesma direção, um número reduzido de abordagens psicoterapêuticas apresentam visão similar. No entender desses autores, um trabalho que abrangesse esses dois campos de estudo poderia proporcionar melhores resultados clínicos.

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evitando reduzi-lo a uma teoria científica e exigindo que lhe seja dispensado respeito similar.

O cruzamento dessas duas esferas pode constituir-se em um diálogo enriquecedor para ambas as partes, desde que haja abertura e se superem os ressentimentos oriundos de épocas de submissão e hegemonia, seja por parte da religião ou da ciência.

Acredito que a psicologia de Carl Gustav Jung tem muito a contribuir na construção de um canal de diálogo e compreensão entre esses dois campos, pois a alma humana, situada entre Deus e a razão, e que outrora era posta de lado por cientistas e religiosos, pôde encontrar sua voz através da obra do psiquiatra suíço.

Aliás, há quem conceba a psicologia de Jung como uma psicologia religiosa, e vislumbre em sua psicoterapia uma essencial atitude religiosa. Sob este entendimento, pode-se identificar uma ponte entre esses dois modelos de pensamento – ciência e religião –, que em outra oportunidade julgaríamos irreconciliáveis.

Considerando que a psicologia analítica vem oferecer importantes contribuições para uma melhor compreensão desta nebulosa área entre psicologia e religião, sem perder de vista, porém, que ainda persiste uma série de questões e entraves acerca do entendimento e da prática neste campo de interseção, propus-me a realizar o presente estudo. Para tanto, no pripropus-meiro capítulo apresento o objetivo e o método adotados neste trabalho.

No segundo capítulo dedicar-me-ei ao estudo do conceito de religiosidade transmitido por Carl Jung, bem como a algumas questões tangentes a esse conceito, tais como: os limites entre ciência e religião, a concepção de Deus para a psicologia analítica, apontamentos sobre o conflito religioso e o desencantamento no mundo moderno.

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No quarto capítulo proponho-me a desenvolver uma discussão sobre a temática religiosa do nosso tempo, retomando alguns pontos nebulosos que foram identificados ao longo deste estudo, tais como: as dificuldades acadêmicas para lidar com o tema; possíveis entraves na terminologia junguiana; questões práticas relativas ao complexo campo interdisciplinar que envolve psicologia e religiosidade; e a análise deste conflito religioso em curso para uma transformação dentro do espírito da nossa época.

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1 OBJETIVO E MÉTODO

Este trabalho tem como objetivo revisar o conceito de religiosidade, assim como refletir sobre a religiosidade na prática clínica com base no pensamento de Carl Gustav Jung e outros autores que revisaram ou ampliaram suas ideias. Para alcançar este intento propus-me a pesquisar esta questão nas obras do psiquiatra suíço e de outros autores junguianos que se dedicaram ao estudo desse campo.

Como consta na introdução, apesar de alguns profissionais e pesquisadores julgarem tratar-se de uma temática já suficientemente discutida e bem assimilada em suas práticas, têm sido identificados alguns entraves na prática do profissional de psicologia em relação ao assunto. Desta forma, o presente estudo busca oferecer reflexões nesse campo a fim de superar os conflitos que possam existir.

Para tanto, empreendi uma pesquisa qualitativa por meio de análise textual sobre o tema proposto. Segundo Penna (2004, p. 80),

A pesquisa qualitativa caracteriza-se como uma abordagem interpretativa e compreensiva dos fenômenos, buscando seus significados e finalidades. Essa metodologia baseia-se numa perspectiva epistemológica em que o conhecimento resulta de processos dinâmicos que fluem dialeticamente.

Desse modo, proponho-me a compreender o fenômeno em questão a partir das publicações relacionadas ao religioso e à clínica dentro da perspectiva da psicologia analítica, em especial seu criador Carl Gustav Jung, recorrendo também a autores que deram sequência aos seus estudos em coerência com sua linha de pensamento, como veremos a seguir.

Inicialmente realizei uma pesquisa bibliográfica sobre a concepção de religiosidade dentro da perspectiva de Jung, buscando igualmente identificar os pressupostos para lidar com tal fenômeno na clínica. Para tanto, recorri às Obras Completas de Jung, em especial as Terry Lectures, dedicadas ao estudo da interface psicologia e religião; vali-me também de outras obras não catalogadas em suas Obras Completas, como Memórias, sonhos, reflexões (2006) e Livro vermelho (2010).

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autor, “elas não só resumem seu pensamento sobre o tema até aquele momento, mas também mostram uma visão de como ele desenvolveria isto em seus trabalhos subsequentes” (p. 302). Igualmente, Oliveira (2012) avalia que as Terry Lectures, em conjunto com Resposta a Jó, condensariam da melhor forma o pensamento mais maduro de Jung em relação à experiência religiosa, além de considerá-las contribuições valiosas para a psicologia da religião.

Busquei também publicações de especialistas sobre psicoterapia e religiosidade, como por exemplo Kenneth I. Pargament, além de obras relevantes de junguianos dentro da mesma temática, como C. Michael Smith e David Tacey, entre outros.

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2 O CONCEITO DE RELIGIOSIDADE EM C. G. JUNG

Por isto, se me perguntassem qual é a coisa mais essencial que a Psicologia analítica poderia acrescentar à nossa cosmovisão, eu responderia que é o reconhecimento de que existem conteúdos inconscientes que fazem exigências inegáveis ou irradiam influências com as quais a consciência terá de se defrontar, quer queira quer não. (JUNG, [1927] 2009, OC VIII/2, §713, p. 317).

Ao longo deste capítulo, buscarei compreender o conceito de religiosidade em Jung e sua visão frente ao fenômeno religioso. Para isso, abordarei alguns aspectos que motivaram e influenciaram seus estudos nessa área e que levaram à formação de sua visão acerca do homem e sua relação com o religioso. Como será visto mais adiante, o campo entre psicologia e religiosidade configura-se conflitante para o homem contemporâneo. Em vista disso, procurarei identificar os fatos envolvidos na constituição desse problema e de que forma o pensamento junguiano o interpreta.

O presente trabalho poderia ser iniciado pela afirmação de que a religiosidade é um dos pilares do pensamento de Jung. Talvez, porém, o leitor se surpreendesse, pois tal asserção poderia não figurar entre as que constituem a base da teoria criada pelo psiquiatra suíço. Concepções como o arquétipo, por exemplo, poderiam soar mais familiares na defesa ao posto de pilar da construção da psicologia analítica, sendo mesmo possível nomear a psicologia junguiana como psicologia arquetípica, como alguns pensam. Veremos adiante que estes conceitos estão muito próximos.

O conceito de religiosidade esteve presente ao longo da obra de Carl Gustav Jung e pode, sim, ser considerado como um dos pontos principais na construção de sua teoria. Chegou mesmo a ser apontado por ele como finalidade última da psicoterapia, assumindo assim importância capital para estudiosos e terapeutas. Jung destacou, ainda, a importância de que o terapeuta se apropriasse deste assunto, não só pelo potencial transformador dessa função psíquica, mas também pela notória participação da religião ao longo da história humana.

Segundo Main (2006, p. 297), “escritos especificamente sobre religião

ocupam uma grande parte da produção de Jung”1, com influência em diversas áreas

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seja na academia ou fora dela, constituem-se em relevante contribuição ao homem contemporâneo. O autor acrescenta que

Religião é um tópico de importância central para o entendimento não só do desenvolvimento pessoal e profissional de Carl Gustav Jung, mas também a história da psicologia analítica e seu status contemporâneo em relação à psicanálise, à academia e cultural em geral. (MAIN, 2006, p. 296)

Já na abertura das Terry Lectures, das primeiras linhas do prefácio da edição alemã consta a seguinte informação: “A problemática religiosa ocupa um lugar central na obra de C. C. Jung. Quase todos os seus escritos, especialmente dos últimos anos, tratam do fenômeno religioso”2 (JUNG, [1938] 2008, OC XI/1, p. VII). Tais palavras incitam-me ainda mais a refletir sobre a posição desse conceito dentro da obra do psiquiatra suíço.

Shamdasani (2005) lembra que Jung apontava que as teorias se constituíam a partir da história de cada sujeito, tomando emprestada a ideia de equação pessoal, elaborada por William James, pela qual cada teoria portava tanto a cosmovisão deste teórico como alguns de seus fatores pessoais que modelariam a sua obra.

Desse modo, a presente proposta incorreria em falha se ignorasse alguns aspectos da vida de Jung como, por exemplo, que ele era filho de um pastor protestante, e que cresceria com uma série de questionamentos em relação ao próprio pai e à religiosidade, o que talvez o levasse mais tarde ao trabalho de pontifex3 entre a religião e a ciência.

Ao ressaltar o potencial criativo de Jung, Jaffé (1989) observa que nele residia um daemon criativo que já se manifestara em um sonho de infância, o primeiro de que ele se recordara4. Neste daemon fálico residiria o poder, a majestade, e a numinosidade; seria o Deus subterrâneo referido por Jung, e que o levou à iniciação no reino das trevas.

Jaffé ainda acrescenta que, após um longo período durante o qual o portal do mundo subterrâneo havia se fechado, Jung publicaria seu trabalho de doutoramento

2 O autor do prefácio não é identificado.

3 Termo do latim que originalmente corresponderia a criador de pontes.

4 Nesse sonho Jung encontra uma cova e desce as escadas; curioso, adentra o local e encontra um

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intitulado “Sobre a psicologia e psicopatologia dos fenômenos ditos ocultos” (1902), iniciando em seguida o seu primeiro período criativo, quando passaria a demonstrar grande interesse por estudos voltados aos aspectos mais sombrios da psique, como o ocultismo, os complexos e a psicose (JAFFÉ, 1989).

No entanto, que trevas seriam essas?

Em 2011, a Associação Junguiana do Brasil (AJB) organizou um congresso de psicologia analítica na cidade de Gramado (RS), sob o título “O lado mal dito de Jung”. Creio ter sido intencional a dubiedade entre os termos “mal dito” – ou mal falado – e “maldito”.

Nesse congresso, Shamdasani apresentou uma palestra intitulada

Descensus ad infernus: a jornada de Jung aos infernos”. Sua principal referência foi o Livro Vermelho (JUNG, 2010), fruto de uma série de práticas de imaginação ativa de Carl Gustav, ou uma incursão consciente aos planos inferiores de sua psique, defrontando-se novamente com aqueles fatores psíquicos com que se havia deparado na infância. Desse modo, e não por acaso, pode-se vislumbrar alguns paralelos entre estas duas experiências.

Na visão de Shamdasani, na introdução do Livro Vermelho (JUNG, 2010, p.

207), “o Liber novus apresenta o protótipo da concepção junguiana do processo de individuação, que ele considerava a forma universal do desenvolvimento psicológico

individual”. Assim como o Septem sermones ad mortuos (1916), considerado por Main (2006) como detentor de todo o autêntico entendimento psicológico de Jung, e concebido pelo psiquiatra suíço em condições não menos sombrias, o conteúdo do Livro Vermelho viria influenciar a vida e a obra de Jung, como o próprio psiquiatra

suíço reconhece na epígrafe desta última obra: “Toda minha atividade ulterior

consistiu em elaborar o que jorrava do inconsciente naqueles anos e que

inicialmente me inundara: era a matéria prima para a obra de uma vida inteira”

(JUNG, 2010).

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meio a estas sombras Jung também havia identificado algo mais, algo que transcendia sua limitada experiência pessoal, algo que em termos psíquicos se igualaria aos deuses e a outros seres divinos; algo de tamanho valor que o levaria a buscar predicados e definições emprestadas do vocabulário teológico.

Jung tinha consciência de que esse fenômeno não lhe era reservado, isto é, não era uma experiência unicamente pessoal; aliás, essa poderosa e inegável experiência religiosa era verificada empírica e historicamente na humanidade, independente da cultura ou época. Contudo, vale questionar se haveria algo mais envolvendo a história de Jung que o teria motivado a sondar esta delicada barreira.

Main (2006) aponta para uma série de acontecimentos que marcaram a infância de Jung e que estiveram relacionados ao religioso, desde eventos externos a internos, como no caso dos sonhos, o que – segundo esse autor – viria mais tarde influenciar o seu interesse pela área. Main lembra ainda que naquele período a Europa atravessava séria crise religiosa, fruto da ascensão científica e secular.

Para Boechat (2005), o mito vivido por Jung, que contou com um pai que pregava uma fé na qual não acreditava, além de recorrentes questionamentos a uma religião institucional, culminou na

[...] conceituação de uma teoria psicológica que unisse ciência e religião. [Jung] Veio dedicar sua vida à criação da psicologia analítica, que, dentro do novo paradigma das ciências, não se insere propriamente dentro do ramo das ciências naturais como física, química e biologia, mas seria mais um novo saber de conhecimento da alma humana, entre os novos saberes do novo paradigma. (p. 240)

Oliveira (2012) analisa a relação da posição religiosa de Jung, como cristão protestante, com a constituição de sua obra científica. É essencial ponderarmos sobre a crença de Jung e como esta influenciou a construção de sua teoria. O mesmo autor afirma que, apesar de Jung crer em uma divindade (não obstante tenha sido acometido por crises de dúvidas), sua abordagem científica se destacou por não conceber a divindade em seu caráter sui generis, mas sua representação psíquica enquanto arquétipos, evocada em conjunto com a experiência numinosa.

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[…] me parece que Jung transformou-se não de protestante para ateu ou agnóstico, mas de protestantismo reformador para misticismo católico medieval, com ênfase na experiência interna com o divino, em oposição às ideias protestantes de uma suficiência da fé, de crer em um externo e conceitual Deus baseado na bíblia. (p. 567)

Main (2006) sustenta que Jung já demonstraria interesse pela questão religiosa nos anos de estudante (1895-1900), o que se pode verificar em suas publicações durante essa fase, e que viria deixar de lado durante o tempo em que conviveu com Freud. Para Jaffé (1989), o período em que Jung esteve com Freud não foi dos mais produtivos, com sua energia voltada em maior grau para assuntos mundanos5; foi, porém, “um período de aprendizado e assimilação, por um lado, e desenvolvimento da extroversão, por outro” (p. 162).

Entretanto, em 1909 Jung retomaria seus estudos sobre mitologia e história da religião, seguindo mais uma vez seu daemon criativo, e que o levaria ao rompimento com Freud e à criação de sua psicologia (JAFFÉ, 1989). Main (2006) acrescenta que a obra Símbolos da Transformação (JUNG, [1912] 2008, OC V), marco desse rompimento, constituir-se-ia na primeira grande obra de Jung sobre psicologia e religião.

Segundo Shandasani (1999), as influências de William James e Théodore Flournoy mostraram-se muito mais próximas daquilo que seria a psicologia analítica do que a psicanálise freudiana. Estes dois pesquisadores, James e Flournoy, dedicaram grande espaço de sua psicologia na consideração do fenômeno religioso.

Dada à significância da religião na vida das pessoas, disto resulta que uma psicologia que falhe em considerar o fenômeno religioso não merece ser chamada de psicologia. Assim, a psicologia da religião não foi simplesmente um domínio regional ou periférico, mas foi essencial para a possibilitar uma psicologia geral. Deste modo, Jung não se aproximou do tópico da religião com uma definição pré-estabelecida de psicologia. Mais que isto, o estudo do fenômeno religioso foi uma das questões cruciais que auxiliou a definir o conceito de psicologia de Jung. (SHANDASANI, 1999, p. 540)

Shandasani (1999) faz mais algumas aproximações entre os princípios da psicologia da religião estabelecidos por James e Flournoy e os da psicologia de Jung. Assim como estes pesquisadores,

5 Jaffé (1989) refere-se aqui aos congressos em que Jung participava, aos jornais que editava e à

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Ele [Jung] afirmou a natureza científica da psicologia da religião, a exclusão do princípio da transcendência, privilegiou a experiência interna e a nomeação do inconsciente como a fonte da experiência religiosa. O passo adicional que Jung deu foi relacionar essas questões à prática da psicoterapia. (SHANDASANI, 1999, p. 541)

Desse modo, Jung seguiria seu daemon subterrâneo, que o levaria a uma jornada sombria que não só o convidava a atravessar as sombras de sua psique, mas também a adentrar as sombras do homem ocidental. Estaria, portanto, fadado a responder a uma questão localizada no cerne de uma neurose cultural, de uma sociedade que, embriagada pelo materialismo e pela racionalidade, relegara mitos e religiões à sombra, desencantara-se. Jung ousaria lidar com esta questão não menos que na academia, não menos que no papel de cientista; à sua frente, um duro dilema o aguardava.

2.1 O dilema religioso-científico

Jung ([1938] 2008, OC XI/1) inicia seu trabalho das Terry Lectures, dedicado ao estudo sobre psicologia e religião, explicitando um discreto porém importante ponto para a compreensão de seu pensamento, e em última análise sobre o que ele nomeia como problema religioso. Afirmando considerar-se um empirista, ao conferir à experiência papel determinante para a construção do saber, acrescenta contudo que não seria papel do cientista ater-se tão somente aos fatos, limitando-se apenas a classificá-los; para ele, o pesquisador deve ir além, realizando as devidas reflexões. O que me leva a questionar: se o cientista extrapola assim os fatos, quais seriam os limites para tais extrapolações?

Segundo Tacey (2013, p. 1), “alguns estudiosos têm endurecido sua

resistência, e veem o pensamento de Jung como fora dos limites de uma psicologia

científica”. Cabe lembrar que, ao longo de sua carreira, foi-lhe conferida uma série de títulos como ocultista, místico, profeta, entre tantos outros. Aparentemente, essas fronteiras que delimitam o campo científico podem talvez não ser tão claras quanto alguns reclamam, tão rígidas quanto alguns desejam e tão amplas quanto alguns presunçosamente assinalam.

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ressalta ainda: “Não nego a validade de outras abordagens, mas não posso pretender a uma correta aplicação destes critérios” (JUNG, [1938] 2008, OC XI/1, §2, p. 8), referindo-se neste caso às abordagens religiosas ou de caráter metafísico às quais não se submetem aos critérios acadêmicos por ele empregados.

Historicamente, a religião utiliza métodos diferentes dos adotados pela ciência para a construção do seu saber, além de possuir alguns princípios fundamentais que a diferenciam, por exemplo, da crença em forças divinas.

Jung, como um assumido empirista, buscava erigir um saber a partir de sua experiência, mas permitia-se ousar contrariando alguns dos pressupostos compartilhados pelo pensamento científico de seu contexto, ainda que trouxesse à tona conceitos ou ideias que se assemelhassem àquelas forças supra-humanas defendidas pelos religiosos.

Quando chegava a estes pontos cruciais, Jung até mesmo recorria a associações com a literatura religiosa a título de ampliação simbólica, mas em seguida retomava uma posição mais alinhada ao pensamento científico de seu tempo. Isto não quer dizer que o psiquiatra suíço corroborava o pensamento fortemente materialista que era a marca notável de sua época, conforme relatava com frequência em seus textos; nele predominava, antes de tudo, uma postura de não saber frente a essas questões.

Esta atitude, a do não saber, poderia ser encarada como humilde e mesmo sábia, por vez que admitia seus limites e evitava incorrer em qualquer erro; ou ainda, poderia ser interpretada com uma espécie de hesitação ou indecisão, taxando-o como pusilânime. Porém, retornando à questão acima: qual seria o limite para se teorizar a partir de uma certa experiência? Qual seria a medida entre a pusilanimidade e a temeridade no engendramento das ideias e conceitos das coisas?

Bower (1999) reflete sobre a construção epistêmica de Jung, enquanto um dito empirista: seria o pensamento do psiquiatra suíço de natureza subjetiva ou objetiva?

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a se tornar nebulosas. Além disto, o empirismo de Jung é baseado na experiência psicológica, qual deve inevitavelmente ser ao menos parcialmente subjetiva, como Jung reconheceu, porque o observador não pode ficar fora da experiência para observá-la [...]. (p. 565)

Conta-se uma história sobre dois grandes intelectuais que viajavam em um trem; enquanto discutiam sobre a teorização dos fatos, iam passando por um campo onde ovelhas pastavam. Um deles então aponta para uma ovelha e pergunta: − O que você me diz disto? Ao que o outro responde: − Que existem ovelhas pretas

nesse campo! O primeiro então torna a dizer: − Não, o que você pode dizer é que existe uma ovelha, e que pelo menos um dos lados dela é preto!

Em última instância, tal qual as confissões religiosas as ciências têm suas crenças, cada qual a seu modo próprio e com base em sua visão de mundo, definindo lentes que determinam o modo como devem enxergar ou se relacionar com o mundo.

Paralelamente, Jung ([1931]2009, OC VIII/2) nos lembra que se deve considerar a influência do espírito da época6 sobre esse sistema: tempora mutantur, nos et mutamur in illis7. Pode-se criar argumentos para sustentar a existência, predominância e funcionamento da dimensão espiritual ou material, e tanto uma teoria quanto a outra podem satisfazer lógica e epistemicamente; contudo, será a crença ou a aceitação dos postulados que sustentarão espírito ou matéria que os elegerá verdadeiros ou não. Nessa escolha, os olhos se voltarão para o espírito da época e verificarão sua poderosa influência sobre as massas.

O fato de a metafísica do espírito ter sido suplantada no curso do século XIX por uma metafísica da matéria8 é, intelectualmente falando, uma mera prestidigitação, mas, do ponto de vista psicológico, é uma revolução inaudita da visão do mundo. (JUNG, [1931]2009, OC VIII/2, §651, p. 286)

Embora tenham a ingênua pretensão de realizar um trabalho puramente racional e impessoal, característico do pensamento de base materialista, aliada a uma certa arrogância em ditar a verdade última (mais por uma questão de tempo do

6

“O espírito da época não se enquadra nas categorias da razão humana. É uma propensão, uma tendência sentimental, que, por motivos inconscientes, age com soberana força de sugestão sobre todos os espíritos mais fracos de nossa época e os arrasta atrás de si” (JUNG, [1931] 2009, OC VIII/2, §653, p. 287).

7

“O tempo muda, e nós mudamos com ele”.

8 Jung refere-se a uma visão de mundo materialista, uma filosofia que tem por base a matéria como

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que de qualidade), os sujeitos imersos nesse espírito não se dão conta de que há mais fatores irracionais que racionais na eleição da verdade; o problema não está no objeto e sim na lente que observa, e aparentemente a escolha dessa lente não segue lógica ou razão.

Não se deve brincar com o espírito da época, porque ele é uma religião, ou, melhor ainda, é uma crença ou credo cuja irracionalidade nada deixa a desejar, e que, ainda por cima, possui a desagradável qualidade de querer que o considerem o critério supremo de toda a verdade e tem a pretensão de ser o detentor único da racionalidade. (JUNG, [1931]2009, OC VIII/2, §652, p. 287)

Se outrora o pensamento crítico e científico, tal como o concebemos hoje, sofreu sob o domínio da igreja que presunçosamente ditava uma verdade καθολική9, o mesmo ainda acontece em nosso tempo, com a diferença de que atualmente a ciência deixa o papel de vítima para ocupar o mesmo posto de seu velho algoz.

Mas nossa consciência mediana ainda não descobriu que é tão presunçoso admitir que a matéria produz a alma; que os macacos geraram o homem; que foi de uma mistura harmoniosa de fome, de amor e de poder que nasceu a Crítica da Razão Pura [...] de Kant; que as células cerebrais fabricam pensamento, e que tudo isto não pode ser de outro modo. (JUNG, [1931]2009, OC VIII/2, §653, p. 288)

Jung ([1931] 2009, OC VIII/2) entende que essa poderosa ligação do homem moderno com a matéria na construção de sua visão de mundo se deve à compensação de um espírito de época precedente, este pautado demasiadamente no espiritual para a explicação da natureza das coisas. O psiquiatra suíço

acrescenta que “se tivéssemos consciência do espírito da época, reconheceríamos

nossa tendência a buscar explicações de preferência no âmbito físico, pela razão de que no passado recorreu-se abusivamente ao espírito como fonte de explicação”

(§657, p. 288).

Entretanto, há paradigmas científicos emergentes que buscam romper com esse sistema dualista e arrogante entre ciência e religião, buscando dar espaço para cada um dos saberes, de modo a criar o respeito mútuo e ao mesmo tempo aproveitar, em toda a sua extensão, as contribuições que cada área tenha a oferecer.

9 Do grego katolikí, ou universal, que deu origem à identificação da confissão Católica Apostólica

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Segundo Tacey (2013), estaríamos vivendo em um tempo de transição, no qual o pensamento moderno, associado à lógica secular, ainda é dominante. Todavia, pouco a pouco a religião vai conquistando maior credibilidade, à medida que o seu discurso segue ganhando um respeito equivalente ao dispensado a outras áreas como filosofia, biologia, psicologia etc., mesmo no espaço acadêmico.

O próximo estágio da civilização parece ser aquele em que a religião e a ciência, há tanto separadas pelo iluminismo, vêm juntas em uma reunião pós-iluminista. Nesta nova disposição o trabalho de Jung irá descobrir sua verdadeira importância histórica. (TACEY, 2013, p. 132)

O respeito ao saber de cada área deve perpassar o trabalho de pesquisa na interface da psicologia e da religião. Nessa direção, Ancona-Lopez (2002, p. 79)

salienta que se deve “manter „um pé em cada campo‟, buscando o equilíbrio entre as duas áreas e evitando aproximações redutivas, é o desafio que o pesquisador

enfrenta” (p. 79). Tal visão traz uma proposta de interdisciplinaridade, pela qual se considera respeitosamente o saber de cada campo.

Entre essas duas posições extremadas, que inevitavelmente levam a uma distorção do objeto de estudo por ignorar suas múltiplas dimensões, a visão interdisciplinar procura caminhos que permitam construir pontes entre as áreas sem negar as diferenças entre elas. (ANCONA-LOPEZ, 2002, p. 79)

Segal (1999) propõe três modelos de relacionamento entre o homem contemporâneo e a religiosidade. No primeiro, por ele denominado fundamentalista, há o embate entre religião e modernidade10, devendo o primeiro prevalecer sobre o segundo, sendo este último até mesmo condenável. Na sequência há a visão racionalista, diferindo da anterior somente no polo que deve se sobressair, isto é, a modernidade juntamente com as ciências naturais e sociais, sendo a religião incompatível com estas verdades estabelecidas através de análise sistemática física e comportamental. Por último há a via romântica, que – diferentemente das anteriores – não propõe um embate ou escolha entre um dos dois modelos; ao contrário, busca conciliá-los, pois “a chave para testar cada um é se religião pode

coexistir com ciência. Se sim, então é romântico, caso não possa é racionalista” (p.

549), ou mesmo fundamentalista.

10 O autor relaciona o paradigma da modernidade ao materialismo e à secularização, em um modelo

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Com base nos modelos descritos por Segal (1999), Jung seria enquadrado na classe romântica. Seguindo a mesma linha de pensamento, poder-se-ia conceber o psiquiatra suíço trabalhando dentro da proposta de interdisciplinaridade preconizada por Ancona-Lopez (2002).

Essa via romântica se constitui com Jung com base na concepção de realidade psíquica. Nem espírito nem matéria são aqui prerrogativas para a concepção de realidade, e sim o nosso mais íntimo e verdadeiro material, o psíquico, que não se limita somente a dar interpretação e tonalidade a todo o material que lhe chega através dos sentidos, mas também imprime sua particularidade em tudo o que expressa.

Em sua breve introdução preparatória para Resposta a Jó, Jung ([1952] 2012, OC XI/4) faz uma reflexão crítica sobre a verdade. Para ele o pensamento científico, que rege o espírito de nossa época, foi edificado sobre o pilar da crença materialista, onde só é real, verdadeiro ou digno aquilo que é tangível ou palpável. Contudo, Jung adverte quanto a esse risco, e sustenta que a realidade psíquica é tão verdadeira ou importante quanto à física, acrescentando que “não se pode duvidar e que também

não precisa ser demonstrada” (JUNG, [1952] 2012, OC XI/4, §553, p. 11). Neste caso, deuses, demônios, emoções e fantasias são tão reais ou verdadeiros quanto a matéria ou qualquer objeto palpável.

Dessa forma, a religiosidade possuiria uma existência concreta, assim como qualquer outra ideia ou fenômeno psíquico, algo tão ou mais real quanto qualquer outro fenômeno exterior à psique, seja de caráter material ou metafísico. Paralelamente, Jung atribui um caráter objetivo à religião, porém deve-se observar que, se a manifestação se dá no âmbito coletivo, mediante um consensus gentium11, isto efetivamente evidenciaria um conteúdo do inconsciente objetivo (JUNG, [1938] 2008, OC XI/1).

Neste mesmo sentido, Segal (1999) afirma que Jung tenta separar o mito do restante do material religioso, oferecendo-o como um fenômeno psicológico e não mais como uma explicação sobre o mundo. Com isso o psiquiatra suíço mostra respeito à ciência, enquanto cabe a esta a competência para explicar o mundo, esquivando-se de discussões metafísicas e aproveitando o material religioso

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segundo suas propriedades terapêuticas e regulatórias; mais que isso, enquanto autêntica e natural manifestação da alma humana.

Há de se atentar, contudo, para que não se incorra em reducionismo. Jung ([1938] 2008, OC XI/1) adverte para o risco da psicologização do fenômeno religioso, a exemplo do que fizeram outros autores e de tantos homens da ciência de seu tempo, que presunçosamente tentavam enquadrar todos os fenômenos dentro de seus sistemas de explicação. Segal (1999, p. 557) assinala a impossibilidade dessa redução:

Por que a única função da religião é psicológica? Mesmo se alguém pudesse mostrar que todas as outras funções convencionais da religião não são importantes, ou possam elas mesmas serem psicologizadas, lá ainda estaria faltando os elementos da comunidade, de Deus e da adoração.

Jung ([1938] 2008, OC XI/1) indica o risco de um revide científico, que incorreria no mesmo erro anteriormente praticado pelas confissões religiosas:

O psicólogo, que se coloca numa posição puramente científica, não deve considerar a pretensão de credo religioso: a de ser o possuidor da verdade exclusiva e eterna. Uma vez que trata da experiência religiosa primordial, deve concentrar sua atenção no aspecto humano do problema religioso, abstraindo o que as confissões religiosas fizeram com ele. (p. 11)

Hillman (1984) também aponta para os riscos de psicologização ou reducionismo. Para o autor, a alma humana seria o espaço de interseção do divino com o homem, e cada vez mais este espaço interno estaria sendo reduzido à psicologia ou fisiologia:

Há muitas décadas, a partir do momento em que Nietzsche declarou que Deus estava morto, e que Freud achou que a religião é uma questão ilusória, a psicologia vem cada vez mais estendendo os seus domínios em detrimento da teologia, reclamando mais e mais partes da alma como pertencentes aos seus territórios. (HILLMAN, 1984, p. 44)

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força e oferecendo um universo de perspectivas, possibilitando-nos conceber o homem e o mundo em maior extensão e complexidade.

Neste cenário a teologia começa a ser novamente ouvida, embora a religião venha reestabelecer a relação com um novo homem. Para tanto, são necessárias paciência e cautela na criação de um diálogo e na adequação de uma crítica racional moderna com o pensamento religioso. Se por um lado há uma necessidade de aproximação e abertura por parte da ciência, deve ela também estar atenta a distanciamentos e limites.

Segundo Barreto (2007), sendo a experiência insuficiente para legitimar cientificamente o divino12, e tendo Jung adotado um ceticismo epistêmico que também impossibilitou essa legitimação de forma racional – sem perder de vista que ele tampouco tinha a intenção de refutar o metafísico –, Jung acabaria por se tornar uma espécie de agnóstico13. Barreto julga haver grande fragilidade epistêmica nesse posicionamento do psiquiatra suíço, todavia entendo ter sido justamente este o grande trunfo de Jung para fugir à fragilidade do materialismo e do ateísmo14 de seu tempo.

Como já dito, em seu posicionamento Jung não afirmava nem negava a existência dessas realidades metafísicas; sua posição, conforme sugere o termo utilizado por Barreto (2007), era a de um não saber. Isto é interessante porque parece haver um contraste entre o seu posicionamento extra-acadêmico, que poderia ser considerado como gnóstico, não necessariamente em termos confessionais haja vista ter ele se declarado protestante; destaco, porém, uma das célebres citações de Jung, de alto teor gnóstico, proferida em entrevista à BBC em 1959: quando questionado sobre se acreditava em Deus, Jung respondeu: “Eu não preciso acreditar, eu sei” (sic). Além disso, obras como Septem sermones ad mortuos (JUNG, 2006) – escrito em 1916 – e Livro Vermelho (JUNG, 2010) também evidenciam o interesse de Jung pelo gnosticismo, além de inúmeras referências diretas e indiretas presentes em sua obra. A concepção de psique de Jung

12 Neste caso o autor se refere a termos metafísicos. 13 O termo agnóstico deriva da palavra grega gnosis (

Γνωσις) ou conhecimento, precedido pelo

prefixo a-, que indica negação ou privação; em outros termos, aquele que não sabe.

14 Jung ([1938]2008) discorre sobre o risco e a fragilidade do materialismo e do ateísmo, como será

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igualmente encontrava ressonância nas ideias gnósticas acerca da alma humana, em especial na experiência com o divino como via de transcendência, seja espiritual ou psíquica. É nesse mesmo sentido que Tacey (2013, p. 63) afirma:

A cristandade de Jung é uma forma de gnosticismo, e talvez tenham mais a ver gnosticismo que com a face oficial da cristandade. O gnosticismo foi banido pela igreja cristã, mas está retornando hoje, conforme a autoridade da igreja enfraquece. Não se busca acreditar em algo, mas conhecer.

Apesar desta aparente contradição – gnóstico ou agnóstico, mera ilusão gramatical –, o posicionamento de Jung de não saber pode oferecer uma via de conciliação entre ciência e religião. Tendo a ele servido para acomodar coerentemente suas ideias, pode vir também auxiliar a sociedade contemporânea a transcender sua neurose materialista, como será visto mais adiante.

A questão levantada por Barreto (2007) também poderia ser interpretada de outra forma. Poder-se-ia conceber que a posição de Jung seria mais a-epistêmica que agnóstica, isto é, maior que a dificuldade de conhecer através da experiência (gnosis) seria transmiti-la através do conhecimento científico (episteme)15. Certos conteúdos poderiam estar além da apreensão cognitiva humana, tal como apontado por Kant, e aqui se poderia até considerar os arquétipos, inacessíveis ao homem per se, além de especulações metafísicas e teológicas. No entanto, deve-se também levar em conta a própria experiência humana, a realidade psíquica, incapaz de ser formatada ou reduzida em termos epistêmicos. Embora as pessoas possam alcançar a experiência com o Divino, a episteme é insuficiente para abarcar a grandeza desse fenômeno. Aliás, essa vivência é inundada por uma substância adversa à conscienciosa episteme. Como veremos adiante, o conteúdo da experiência religiosa jorra das profundezas da psique; a alma humana, a religião e a mitologia vão oferecer uma melhor base para compreender esse material, enquanto a psicologia analítica constitui-se em uma das vias mais adequadas para a abordagem do material religioso.

Conforme citação atribuída a Jesus Cristo, presente na Bíblia (Mt 22:21): “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”, tão essencial quanto a aproximação entre as áreas e o respeito mútuo de saberes e práticas é a

15 Neste sentido o vocabulário grego leva vantagem em relação ao nosso, com termos diferentes para

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identificação de seus próprios limites pelas diferentes áreas, o que possibilitará a implementação de diálogos e contribuições em prol de um saber maior. Nesse sentido, Zacharias (2010) assinala a importância dos saberes e práticas religiosas e sua relevância para a alma humana, apesar de terem sido exorcizadas pelo movimento científico que predomina em nossa sociedade atual; contudo, nem religião nem ciência nos proporcionaram unicamente bem-estar, pois cada uma pode também manifestar o seu lado sombrio.

Não pretendemos negar o conhecimento científico e tecnológico e tão pouco sua importância no desenvolvimento humano, mas gostaria de afirmar minha posição de que a ciência não é a única verdade pela qual deva se pautar a vida humana e a sociedade. Nem afirmar que a religião tem a habilidade de resolver os problemas do mundo. Aliás, muitas guerras foram e são provocadas por questões religiosas, mas nem por isto a religião deve ser um campo menosprezado [...]. (ZACHARIAS, 2010, p. 174-175)

Para Zacharias (2010), há um quaternário que resumiria os campos do saber humano e que é passível de diálogo entre eles: as ciências, as artes, as filosofias e as religiões. Segundo o autor, não é exclusividade da ciência a construção de um legítimo saber que se baseia na nossa experiência e pode colaborar com importantes contribuições – “assim, os pressupostos da física, da biologia ou da psicologia são tão válidos quanto o é a obra de J. S. Bach, a filosofia de Kant ou os

milagres de Lourdes” (ZACHARIAS, 2010, p. 175).

Considerando a importância de cada uma dessas áreas de igual forma, Zacharias (2010) propõe então a questão do olhar, pela qual há um único fenômeno que pode ser analisado a partir dos mais diferentes ângulos ou saberes: “A

possibilidade do diálogo entre os diversos olhares possibilita maior compreensão do fenômeno observado, com suas múltiplas implicações sem, contudo, abarcar toda a

sua fenomenologia” (p. 176).

2.2 A religiosidade

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que mais se pode observar sobre religiosidade? O que isso de fato quer dizer e qual sua importância para o entendimento da psique humana?

Primeiramente, creio ser importante destacar a afirmação de Xavier (2006) quanto à falta de concordância entre os estudiosos frente ao termo religiosidade, que assume diferentes significados dependendo da área e do período em que se localize. Da mesma forma, o fenômeno religioso é rodeado por uma série de termos divergentes. No entanto, independente dos diferentes vocábulos que circundam este fenômeno, Jung se valeu especialmente de um deles: religiosidade16.

Refletindo sobre o termo religião, Jung ([1938] 2008, OC XI/1) afirma que

“como diz o vocábulo latino religere – [é] uma acurada e conscienciosa observação

daquilo que Rudolf Otto acertadamente chamou de „numinoso‟” (§6, p. 9). Mais adiante, o mesmo texto inclui uma proposição bastante semelhante, em que o termo numinoso é substituído por “certos fatores dinâmicos concebidos como „potências‟”17 (§8, p. 10), exemplificando-as como deuses, demônios, espíritos e ideias18.

O contato com tais potências não se daria de outra forma que não por intermédio de símbolos, expressos por um colorido próprio obtido dentro do contexto histórico e cultural em que esses sujeitos estão inseridos, representações que podem estar a serviço da humanidade como via para experienciar o potencial transformador da experiência religiosa.

Em outra passagem, Jung ([1938] 2008, OC XI/1) se dedica a conceituar a religião:

A religião é uma relação com o valor supremo ou mais poderoso, seja ele positivo ou negativo, relação esta que pode ser voluntária ou involuntária; isto significa que alguém pode estar possuído inconscientemente por um “valor”, ou seja, por um fator psíquico cheio de energia, ou pode adotá-lo conscientemente. O fator psicológico que, dentro do homem, possui um poder supremo, age como “Deus”, porque é sempre ao valor psíquico avassalador que se dá o nome de Deus. Logo que um deus deixa de ser um fator avassalador, converte-se num simples nome. (§137, p. 85)

16 Considerando suas variáveis religião e religio.

17 É curioso ver como Jung utiliza repetidas vezes o uso de aspas ao citar termos relacionados ao

fenômeno religioso ou material arquetípico, como: “numinoso”, “potências”, “fatores” etc. Acredito

que sua intenção era dar um ar reticencioso aos termos, que não eram capazes de abarcar a grandeza do fenômeno.

18 É importante destacar a citação do termo ideias, havendo Jung ampliado a concepção do religioso,

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O Divino estaria, assim, carregado de uma poderosa força, que domina o homem voluntária ou involuntariamente, e que pode ser de valor positivo ou negativo. Contudo, nem sempre essas forças avassaladoras são identificadas dentro de uma simbologia religiosa à qual, em nosso entender, deveria habitualmente pertencer, podendo aparecer sob vestes nem tão familiares à teologia.

Segundo Zacharias (2010), a religiosidade pode ir além daquilo que habitualmente tomamos como transcendente ou divino. O autor cita o exemplo do capital e do estado, por vezes tomados como divindades, e acrescenta que “o

comportamento religioso e místico é observado em todas as culturas e épocas, mesmo quando a Razão foi elevada à condição de deusa e consagrada na Catedral

de Notre Dame durante o Iluminismo” (p. 173).

Se em geral se concebe religião como um corpo doutrinário e de saber sobre a divindade, em se tratando de seus rituais e dogmas Jung ([1938] 2008, OC XI/1) relega esta ideia ao conceito de confissão religiosa; por outro lado, a religião ou religio estaria relacionada a uma atitude do espírito humano. Ainda assim, as duas ideias mantêm uma relação bastante estreita, visto que a confissão deve fundar-se originalmente na experiência com o numinoso.

Jung distingue a confissão, ou profissão de fé, da religiosidade como experiência primordial e individual. Na forma confessional, a experiência não é direta, mas mediada pelo sistema simbólico de uma determinada religião, que fornece significados coletivos e relativamente fixos para a vivência do numinoso; a mediação pressupõe a crença, ou fé, pois que se dá através do estabelecimento de dogmas. Na forma de religio, Jung descreve a experiência primordial individual de uma relação direta com o sagrado, um sentimento e consideração do numinoso, que não exige uma crença anterior (e muitas vezes se contrapõe a ela), pois provém da base arquetípica da psique; é o sentimento avassalador da totalidade da alma. (XAVIER, 2006, p. 184).

Nesse mesmo sentido Hillman (1984) diferencia o interesse confessional e religioso: enquanto o primeiro se dá pela via de dogmas, coletivamente estabelecidos e fixados, o último ocorre através de símbolos espontâneos criados pela alma, a qual encontrará correlações nas confissões religiosas que conhecemos. Desta forma, ao se dispensar atenção à alma humana há de surgir o interesse religioso; “em outras palavras, a preocupação religiosa torna-se uma manifestação espontânea de cada um de nós, quando a alma é reencontrada” (HILLMAN, 1984, p.

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Jung ([1938] 2008, OC XI/1) aponta o caminho que liga religiosidade e confissão religiosa. Para ele, a experiência vivenciada com o numinoso é sempre transformadora, e a partir dessas experiências religiosas originárias

[...] os conteúdos da experiência foram sacralizados e, via de regra, enrijeceram dentro de uma construção mental inflexível e, frequentemente, complexa. O exercício e a repetição da experiência original transformaram-se em rito e em instituição imutável. Isto não significa necessariamente que se trata de uma petrificação sem vida. (§10, p. 10)

Se a experiência religiosa exerce tanto poder e fascínio no ser humano, não haveria dificuldade em avaliar sua relevância na constituição psíquica do homem, assim como é evidente a notabilidade que o fenômeno religioso possui em nível social quando lançamos o olhar na história da humanidade. Ao avaliar “a psicologia

do homo religiosus, do homem que considera e observa cuidadosamente certos

fatores que agem sobre ele e sobre seu estado geral”, Jung ([1938] 2008, OC XI/1, §11, p. 11) aponta para a concepção de um homem que, respeitando sua natureza, não deveria traçar sua jornada distante do potencial numinoso, qualquer que fosse sua expressão.

Jung ([1938] 2008, OC XI/1) oferece maiores detalhes sobre a distinção entre a experiência religiosa mediata ou imediata. A religião, que estabelece uma relação com o numinoso pela via imediata, por meio da experiência direta, difere da confissão em que os dogmas e rituais são postos em primeiro plano, oferecendo uma experiência mediata às potências que jazem no inconsciente. A confissão funcionaria como um método de higiene, visto que a experiência imediata carrega consigo uma série de riscos. Ademais, a instituição religiosa a que o indivíduo está ligado poderia legitimar ou julgar a natureza benéfica ou maléfica de uma experiência imediata, caso ela irrompesse.

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Vale lembrar ainda que, mediado ou não, o fenômeno religioso está ligado a uma função natural da psique humana. Já em 1921, Jung ([1921] 2009, OC VI) atribuía à religiosidade o caráter de função, como mostra uma de suas passagens:

“Aprendemos da psicologia do primitivo que a função religiosa simplesmente faz parte da psique e está presente sempre e em toda parte, por mais indiferenciada

que seja” (§593, p. 302).

2.3 O Deus interior

Assim como cada cultura expressa distintos e variados matizes nos campos estético, linguístico etc., pode-se também observar singularidades nas expressões do divino. Segundo Jung ([1938] 2008, OC XI/1), “toda religião que se enraíza na história de um povo é uma manifestação de sua psicologia” (§137, p. 85). Em outros

termos, essas expressões religiosas dependem do aspecto histórico, cultural e psicológico de um dado povo naquele espaço-tempo em questão.

Isto talvez possa soar como um Deus criado, como uma mera história fabricada e bem sucedida a favor do entretenimento das massas, ou mesmo uma ilusão que empresta favores morais, como outros pensadores já propuseram.

Entretanto, Jung ([1938] 2008, OC XI/1) ressalta que essa força religiosa não é passível de ser fabricada ou possuída; somos por ela possuídos ou forjados. Essa força não está sob o nosso domínio; ao contrário, somos nós que transitamos sob seus domínios, regulando em maior ou menor grau o influxo a que nos deixaremos arrebatar. Podemos nos amparar em rituais e outras ferramentas para nos manter mais próximos deste ou daquele aspecto divino, ou mesmo reduzir alguns riscos na relação com ele:

A única tarefa que nos cabe é escolher o „senhor‟ a quem desejamos servir, para que esse serviço nos proteja contra o domínio dos „outros‟, que não

escolhemos. „Deus‟ não é criado, mas escolhido. (JUNG, [1938] 2008, OC

XI/1, §143, p. 92).

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Figura 1  –  Relação entre os campos ou disciplinas
Figura 2  –  Relação entre campos ou disciplinas e o espírito da época.

Referências

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