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Da República Social à Ditadura Bonapartista: a crítica da política em O 18 de brumário de Luís Bonaparte

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Academic year: 2019

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Felipe Ramos Musetti

Da República Social à Ditadura Bonapartista: a crítica da política em

O 18 de brumário de Luís Bonaparte

MESTRADO EM FILOSOFIA

SÃO PAULO

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Felipe Ramos Musetti

Da República Social à Ditadura Bonapartista: a crítica da política em

O 18 de brumário de Luís Bonaparte

MESTRADO EM FILOSOFIA

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Filosofia, sob a orientação do Prof. Dr. Antonio José Romera Valverde

SÃO PAULO

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BANCA EXAMINADORA

____________________________________________ Professor Orientador

Prof. Dr. Antonio José Romera Valverde Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

____________________________________________ Profa. Dra. Ester Vaisman

Universidade Federal de Minas Gerais

____________________________________________ Prof. Dr. Antonio Rago Filho

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Prof. Dr. Antonio José Romera Valverde, meu orientador, que esteve sempre à disposição, pacientemente, para ajudar a resolver minhas dúvidas, da mesma maneira em que soube cobrar o rigor necessário para elevar a qualidade da pesquisa.

Ao Prof. Dr. Antonio Rago Filho, que gentilmente me permitiu assistir suas aulas no Departamento de História, colocando-se aberto para auxiliar meus estudos sobre política e Marx, além de ter aceitado participar das Bancas de Qualificação e Defesa.

À Profa. Dra. Ester Vaisman, pelas pertinentes observações feitas na Banca de Qualificação, por ter se colocado disponível para a solução de qualquer eventual dúvida que eu pudesse ter acerca de suas colocações e por ter aceitado participar da Banca de Defesa, o que muito me honra.

Ao Prof. Dr. Marcio Pugliesi, que acompanhou minha iniciação em filosofia e soube incitar minha curiosidade pelas virtudes do pensamento marxiano.

Aos Profs. do Departamento de Filosofia da PUC-SP, Dr. Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento, Dra. Jeanne Marie Gagnebin, Dr. Mario Ariel González Porta, Dr. Marcelo Perine e Dr. Márcio Alves da Fonseca, pelos cursos ministrados no Programa de Pós-Graduação, que colaboraram para afinar minha reflexão sobre os principais problemas filosóficos.

A Rodolfo Costa Machado, eterno parceiro de estudos e reflexões sobre a realidade social capitalista, sem o qual este trabalho jamais se concretizaria.

Aos amigos de todas as horas, Felipe Marques Rodella, Pedro Iris Paulin e Daniel Lopez Faggiano, com os quais divido inúmeras conversas sobre a política contemporânea.

A Vinícius Lopes, Vinícius Gueraldo, Rafael Versolato e Thiago Fonseca, companheiros de grupo de estudos na USP, com os quais pude debater, reiteradamente, os principais temas desta dissertação.

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A Patrícia, que acompanhou de perto as angústias surgidas ao longo do processo de pesquisa e soube responder a elas com carinho e afeto.

Às minhas tias Heloisa Vieira da Cunha Ramos e Marta Musetti de Campos, que me auxiliaram no trabalho de revisão.

Aos companheiros e companheiras de luta que acompanharam minha formação na universidade, em especial aos grupos Liberta, Construção Coletiva e Toga da Mironga do Kabuletê.

À turma do Cursinho Popular José Bonifácio, por suportar minha ausência temporária nessa importante luta que travamos por uma educação para além do capital.

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RESUMO

A presente dissertação investiga o modo como Karl Marx desenvolve a relação entre revolução política e revolução social, na obra O 18 de brumário de Luís Bonaparte, procurando destacar a importância do processo de ascensão e decadência da burguesia para a elucidação dos limites da politicidade. Busca apreender os nexos internos do escrito estudado, explicitando a gênese do complexo categorial que integra a fisionomia da reflexão marxiana. Assim, os dois primeiros capítulos da dissertação são dedicados à compreensão analítica do período de formação do pensamento de Marx, a partir do qual se delineia a nova posição ontológica alcançada pelo Autor através de

críticas à política, à filosofia especulativa e à economia política. Destacando os principais traços da análise marxiana do ser social, o terceiro capítulo procura mostrar o modo pelo qual a obra O 18 de brumário de Luís Bonaparte enriquece a crítica de Marx à política, ao abordar a perda das ilusões em torno da república burguesa e o movimento pelo qual o Estado completa o seu processo de constituição ao assumir a forma bonapartista. Mostra-se ainda como o texto investigado explicita, historicamente, o vínculo indissociável entre sociedade civil-burguesa e Estado político, ambos tendo o capital como denominador comum e princípio estruturante. A dissertação, desse modo, atenta para a concepção negativa da política na obra de Marx, procurando observar o papel do Estado moderno no gerenciamento da ordem do capital e na conservação da

ideologia burguesa.

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ABSTRACT

This dissertation investigates the way Karl Marx develops the relationship between political revolution and social revolution, in the 18th Brumaire of Louis Bonaparte, seeking to highlight the importance of historical rise and decadence of the bourgeoisie to the elucidation of the limits of politics. Intends to seize the internal nexus of studied written, explaining the genesis of the categorial complex that integrates the physiognomy of the Marxian reflection. Thus, the first two chapters of the dissertation are dedicated to analytical understanding of the formative period of Marx's thought, which outlines the new ontological position achieved by the author through the critics of politics, speculative philosophy and political economy. Highlighting the main aspects of Marxian analysis of social being, the third chapter seeks to demonstrate the way in which The 18th Brumaire of Louis Bonaparte enriches Marx’s critics of politics, when addressing the loss of illusions around the bourgeois Republic and the movement in which the State completes its process of constitution, assuming the Bonapartist form. It is shown how the investigated text makes explicit the indissoluble link between civil society and political State, both finding in capital the common denominator and structuring principle. The dissertation, therefore, turns to the negative conception Marx’s work, seeking to observe the role of the modern State in managing the order of capital and conserving the bourgeois ideology.

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SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS ... 3

RESUMO ... 5

ABSTRACT ... 6

APRESENTAÇÃO ... 8

CAPÍTULO I - MARX: A NOVA POSIÇÃO ONTOLÓGICA ... 19

1.1. Introdução ... 19

1.2. A crítica ontológica de Feuerbach ... 22

1.3. A nova posição ontológica de Marx ... 28

1.4. A crítica marxiana da política em 1843-1844 ... 43

CAPÍTULO II - MARX: A BUSCA PELA ANATOMIA DA SOCIEDADE CIVIL NO ITINERÁRIO DA CRÍTICA ONTOLÓGICA ... 64

2.1. O complexo categorial da produção da vida humana: atividade sensível e ser genérico . 65 2.2. Trabalho estranhado e emancipação humana: crítica ontológica à economia política e análise genética ... 78

2.3. A concepção marxiana da história e a determinação social do pensamento ... 100

2.4. A historicidade e as contradições da sociedade civil-burguesa: divisão do trabalho, propriedade privada, classes sociais e Estado ... 116

CAPÍTULO III - DA REPÚBLICA AO BONAPARTISMO: O SEGUNDO 18 DE BRUMÁRIO NA GÊNESE DO ESTADO ... 138

3.1. A história feita pelos homens: o problema da gênese em O 18 de brumário de Luís Bonaparte ... 141

3.2. A primeira vez como tragédia: a glorificação da Revolução Francesa pelos heróis da burguesia ... 154

3.3. A repetição como farsa: a revolução do século XIX e a necessidade de superação do Estado moderno ... 164

3.3.1. O prólogo: as ilusões em torno do caráter social da república ... 168

3.3.2. A expressão pura da república e o repúdio ao caráter social ... 183

3.3.3. O apodrecimento da república constitucional: golpe de Estado e bonapartismo ... 214

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 271

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APRESENTAÇÃO

“Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que conduzem a teoria ao misticismo encontram sua solução racional na prática humana

e na compreensão dessa prática”

(MARX, K. 1. Ad Feuerbach) O pensamento contemporâneo, reverberando a concepção de mundo liberal calcada na oposição entre Estado político (vida pública) e sociedade civil (vida privada), acostumou-se a circunscrever o problema da liberdade humana no âmbito da política, entendida como esfera universal responsável por organizar racionalmente a sociedade, garantindo a ordem e o convívio social. Elaborado nestes termos, o problema da liberdade passa a ser pensado nos quadros do Estado democrático, definido a partir de um critério essencialmente formal. Por conseguinte, a reflexão política, de um lado, deixa intocados os pressupostos do Estado liberal, eternizando-o como forma racional universal e a-histórica, e, de outro, restringe o problema da liberdade à ideia de aperfeiçoamento institucional, identificando, contraditoriamente, a realização da liberdade com o aprimoramento do poder. Para a concepção de mundo liberal, a

democracia, concebida como resultado da “vontade livre” de indivíduos abstratamente

iguais, afirma-se como “forma ideal adequada” de Estado, na qual estaria assegurado o império da lei, da razão e da liberdade. Ao lado da crença na democracia (e em seu

suposto “valor universal”), emerge a defesa dos direitos humanos e do estatuto da

cidadania como o caminho legítimo para a promoção da “justiça social”. Em poucas palavras, prevalece o discurso que pressupõe a positividade da política, sua condição de atributo indispensável do ser social, esfera privilegiada na qual estão representados os

interesses universais do homem, a partir da qual se definem os diagnósticos e os remédios para a multiplicidade de problemas, que se constituem no âmbito da sociedade civil.

Nos anos 1843-1844, Karl Marx, sobretudo em sua polêmica com Arnold Ruge1, desenvolveu a crítica da racionalidade política, que, partindo de “universais

abstratos” e uma concepção de social (igualmente abstrata) como soma dos indivíduos formalmente iguais, reduz o problema da liberdade humana à esfera do político, tornando-se, assim, incapaz de abarcar a totalidade das forças sociais em jogo. O filósofo alemão aponta para a unilateralidade do entendimento político, que, em sua

1 Cf. MARX, Karl. Glosas críticas ao artigo “O Rei da Prússia e a reforma social”. De um prussiano.

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autorreferencialidade, à medida que orbita no interior dos limites da própria política, é incapaz de compreender a fonte das mazelas sociais, uma vez que estas se originam fora de seu domínio, no plano das relações sociais do capital, relações estas que, na condição de pressuposto da política moderna, são naturalizadas e blindadas ao questionamento. Segundo Marx, a universalidade da política moderna se afirma tendo como base os interesses particulares dos indivíduos proprietários que atuam na sociedade civil, razão do caráter abstrato e limitado da vida pública, que, subordinada às determinações materiais das relações que a sustentam, permanece sendo apenas um meio para a realização de interesses privados. Ao restringir-se à análise das formas estatais, visando à correção de suas deficiências, o entendimento político se erige como forma de racionalidade que procura apagar os seus pressupostos e se firmar como autônoma, gerando, como consequência, o encobrimento dos nexos fundamentais que atam a universalidade abstrata da política e a natureza antissocial da sociedade civil numa mesma realidade: a sociabilidade do capital.

Para apanhar as formações políticas em conexão com as relações sociais, que lhes servem de sustentação, a crítica de Marx ao entendimentopolítico pressupõe o que é exigência fundamental para o labor científico, a saber, a apreensão do objeto integrado à rede de suas interconexões, de modo a extrair-lhe a malha constitutiva. Ademais, uma vez que, para o pensamento marxiano, a historicidade é determinação primária de qualquer objetividade social, a análise da política e do Estado exige a investigação da gênese ontológica das categorias, que situe as formações políticas no interior do processo pelo qual os homens produzem a sua própria existência, o plano fundamental da sociabilidade. A fundamentação ontológica da crítica à política – considerada como instância específica do universo mais amplo de compreensão do metabolismo social – permite à Marx identificar o caráter problemático da reflexão matrizada pelo liberalismo, que, naturalizando a figura histórica do indivíduo proprietário, reduz o complexo de questões relativas ao Estado à problemática da legalidade. Com efeito, o pensamento formal, próprio ao entendimento político, dá lugar, com Marx, a uma nova cientificidade, que apreende as categorias como determinações de existência, expressões de relações sociais histórico-concretas sem as quais se tornariam abstrações vazias, privadas de conteúdo.

É no âmbito da gênese ontológica das categorias políticas do liberalismo

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de artigos para a revista nova-iorquina Die Revolution. Inserida na fase adulta do pensamento teórico e político de Marx, a obra se apresenta, juntamente com As lutas de classe na França, como importante complemento da crítica marxiana da política. Tendo

a realidade francesa como objeto, a análise d’O 18 de brumário mostra como, em resposta aos desdobramentos históricos resultantes das revoluções de 1848 – que explicitam a luta do proletariado contra o capital –, o Estado moderno completa o seu processo de desenvolvimento ao assumir a forma da ditadura bonapartista, movimento que faz aflorar o caráter de classe ocultado pela aparente universalidade da política moderna. Constituindo-se como exemplo de trabalho em “nível ontológico e

metodológico”2, a argumentação de Marx demonstra como as transformações que sofre

a estrutura política francesa apenas são compreensíveis a partir da dinâmica objetiva da luta de classes, evidenciando a íntima relação existente entre o político e o econômico, bem como o modo pelo qual as diferentes formas de Estado, para além de opções políticas, surgem para atender, de acordo com as necessidades de cada momento histórico, o compromisso do Estado com a propriedade capitalista.

O 18 de brumário contribui para colocar em evidência as categorias do Estado liberal moderno, que se constituem como modos de ser no interior do processo de desenvolvimento e de consolidação do modo de produção burguês. Mais especificamente, expõe-se o modo pelo qual a função social da ideologia liberal se transforma de acordo com o desdobrar histórico da sociedade burguesa, processo que evidencia o contraste entre o momento crítico da filosofia política do período heroico – quando a teoria liberal, na condição de ilusão necessária, integra o caráter revolucionário da burguesia, constituindo um avanço histórico importante no itinerário de autoconstrução do homem – e o momento em que, sob pressão das circunstâncias sociais do século XIX, o pensamento burguês se despoja das ilusões que encobriam sua essência limitada, explicitando historicamente o seu compromisso com a manutenção da propriedade privada e da ordem social do capital. Desse modo, ao acompanhar o desenvolvimento da política moderna em sua imanência histórica, demonstrando ao longo da análise o seu compromisso com propriedade privada, O 18 de brumário reitera a concepção negativa da politicidade desenvolvida por Marx no período de formação de seu pensamento, contribuindo, assim, para expor a debilidade do entendimento político.

2 José Chasin atribui tal exemplaridade aos textos da Nova Gazeta Renana. Acredita-se que o mesmo

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Porque é justamente o rompimento do círculo vicioso do politicismo, responsável pelo encobrimento da relação de reciprocidade entre Estado político e capital, que permite à análise marxiana desvendar a verdadeira natureza do bonapartismo, não como mera forma estatal, mas como expressão de forças sociais originadas no seio da sociedade civil, forças estas que determinam o conteúdo do Estado bonapartista e o definem como domínio político indireto da classe burguesa, como resposta à necessidade de se

reestabelecer a “ordem” no momento em que a dinâmica da luta de classes passa a

constituir uma ameaça, real ou potencial, à propriedade privada. Com efeito, a mudança da forma republicana para a forma bonapartista de Estado, verificada como resultado do processo revolucionário de 1848, é compreendida em função das necessidades históricas do modo de produção capitalista, em França, de modo que, uma vez descartada da análise a sociabilidade do capital como princípio estruturante da relação entre Estado e sociedade civil, queda-se oculto o verdadeiro significado das formas políticas, bem como a subordinação da política moderna ao interesse particular da classe burguesa. Em outros termos, ao violentar os nexos essenciais da relação histórica entre política e economia, a análise liberal não compreende o modo pelo qual as determinações formais do Estado moderno se modificam de acordo com as exigências impostas pelo capital.

Tendo em vista a urgência da superação da matriz liberal de análise política, entende-se a importância de se estudar O 18 de brumário de Luís Bonaparte. Trazendo à luz o contraste entre a tragédia do período heroico da burguesia francesa e a sua repetição farsesca em 1848-1851, o livro evidencia a contribuição da ideologia liberal para o progresso da sociedade humana como pertencente às circunstâncias sociais historicamente superadas. A partir do século XIX, as práticas liberais se tornam entraves para o passo seguinte no processo de realização objetiva da liberdade: a emancipação humana. Expostas as limitações da forma política burguesa, ganha relevo a crítica da

questão democrática, que se revela presa à autorreferencialidade da política e, por conseguinte, reduz o problema da liberdade humana ao aperfeiçoamento da forma de dominação. Com O 18 de brumário, é explicitada a necessidade de apreender a política moderna em sua totalidade histórica e, nesse sentido, como um prolongamento da dominação do capital sobre a reprodução social.

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lógica politicista na segunda metade do século XX – potencializado pela crise nos dois subsistemas do capital –, reafirma a atualidade da análise política de Marx, para além de mera referência historiográfica. Em linhas gerais, de 1848 aos dias atuais, desenha-se uma história do pensamento político de matriz liberal, no qual “o que há 150 anos foi descartado pela afirmação de uma nova crítica prática e teórica – facultada pelo advento no cenário público de uma nova categoria social –, hoje se reapresenta como expressão do resgate de uma resolução definitiva” (CHASIN, 1989, p. 25). Tal resgate dos pressupostos liberais como resolução definitiva – o chamado neoliberalismo, “na diversidade de tons que assume, desde a ponta mais áspera do liberalismo econômico

puro e simples, até o extremo amaciado do liberal-democrático” –, para além de “mera

retomada doutrinária”, surge para atender necessidades específicas originadas das

“vicissitudes do capital destrutivo e do capital estagnado” (idem). Em outras palavras, aponta-se para “a ressurreição liberal” como “ponto culminante de uma reorganização

planetária do capital, movida pela dinâmica imanente do próprio capital” (ibid., p. 26), processo que se desenvolve “em confluência e conexão com o ponto culminante também da desagregação igualmente planetária do movimento crítico (prático e teórico) que tinha por alvo o liberalismo e sua base material” (idem).

A análise d’O 18 de brumário possibilita evidenciar os limites estruturais do liberalismo, explicitando a atualidade dos problemas enfrentados no século XIX para os dias atuais. Conforme advertiu Lukács, ainda na década de 1960, “o desprezo pelo século XIX, /.../ têm em primeiro lugar, precisamente no plano ideológico, a tarefa social de sublinhar o caráter antitético da base econômico-social do presente em relação

àquela do passado” (LUKÁCS, 2008, p. 95). Considera-se, assim, a necessidade de retornar aos Oitocentos:

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movimento social e da história das ciências sociais constituiria uma tarefa muito importante (LUKÁCS, 1969, p. 110).

Com a análise rigorosa dos processos políticos no século XIX – e, nesse sentido, O 18 de brumário de Luís Bonaparte é uma obra fundamental –, pode-se contribuir para o debate político contemporâneo ao trazer à tona o caráter negativo da politicidade, procurando enfatizar a necessidade, posta na agenda histórica global, de uma democratização da perspectiva do trabalho em oposição à continuidade e ao aperfeiçoamento do modelo burguês de democracia formal, o nomeado Estado Democrático de Direito. Caberia recordar a advertência de Lukács ao ressaltar a impossibilidade, teórica e prática, de “avançar um só passo se não se compreende com clareza /.../ que a persistência e a reconstrução da democracia formal significam a ditadura da burguesia, o que corresponde hoje a uma quase restauração gradual do

fascismo” (LUKÁCS, 2009, pp. 56-57).

Destacada a atualidade do pensamento de Marx, bem como a importância de se estudar O 18 de brumário de Luís Bonaparte, convém esclarecer a estrutura desta dissertação, sem se furtar de tecer algumas considerações acerca do procedimento analítico utilizado na análise do texto-objeto, apontando, brevemente, para a relação entre o modo de investigação e o modo de exposição das categorias marxianas.

Reconhecendo que qualquer investigação está, inevitavelmente, envolvida com problemas de ordem “metodológica”3, necessário advertir, não obstante, que a proposta desta dissertação não pode admitir a escolha de um entre vários “métodos” possíveis,

postura que implicaria afirmar a equivalência de diferentes “leituras”. Ao contrário, acredita-se que a adequada compreensão do texto marxiano pressupõe identificar os seus principais nódulos categoriais a partir do procedimento considerando pelo próprio autor como o único capaz de reproduzir adequadamente, como “concreto de pensamento”, as entificações, sejam estas reais ou ideais. A essência de tal

3 A expressão aparece entre aspas pois como se pretende demonstrar ao longo da dissertação , a rigor,

não há problema de método em Marx, razão pela qual é necessário cautela ao tratar dos aspectos

“metodológicos” da obra marxiana. Mais especificamente, esclarece-se que todo e qualquer problema de

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procedimento – adiantando argumentação que será desdobrada ao longo da dissertação

– remete à originalidade da posição ontológica instaurada pelo filósofo alemão a partir da Crítica da filosofia do direito de Hegel (1843), segundo a qual a crítica verdadeiramente filosófica deve apreender o objeto em suas determinações imanentes, sua lógica própria, seu significado específico, esclarecendo sua gênese e sua necessidade. Em outras palavras, “a reprodução ideal das coisas é procedida a partir delas próprias, da malha ou do aglutinado de seus nexos constitutivos, processo analítico pelo qual são desvendadas e determinadas em sua gênese e necessidade

próprias” (CHASIN, 2009, p. 74).

No que se refere à análise texto-objeto, aponta-se que, no desenvolvimento da reflexão marxiana, as críticas ontológicas à filosofia especulativa e à economia política constituem momentos nos quais a investigação de Marx volta-se para determinadas

formações ideais, demonstrando que o estudo rigoroso destas também pressupõe o respeito ao modo de ser do objeto, de modo a reproduzi-lo analiticamente a partir de sua lógica interna. Constata-se que, para Marx, “o caráter heteronômico do pensamento em

relação ao todo das esferas determinantes da sociabilidade não elide sua configuração em entidade específica, seus caracteres e conteúdos próprios, que uma pesquisa rigorosa

deve respeitar e analisar” (ASSUNÇÃO, 2005, p. 43).

Com efeito, a apreensão da obra marxiana a partir do mesmo tratamento dispensado pelo autor na análise de qualquer formação ideal exige o “respeito radical à estrutura e à lógica inerente ao texto examinado”, de modo a “reproduzir pelo interior mesmo da reflexão marxiana o traçado determinativo de seus escritos, ao modo como o

próprio autor os concebeu e o expressou” (CHASIN, 2009, p. 25). Tal exigência remete à necessidade de uma análise imanente, que encara a formação ideal – no caso, o próprio texto marxiano – “em sua consistência autosignificativa”, como complexo de

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A alma de uma proposta de tal vulto é sua propulsão categórica à objetividade, a intentio recta de apreender o texto na forma própria à objetividade de seu discurso enquanto discurso, ou seja, na efetividade de uma entificação peculiar, cuja identidade é resultante da síntese de suas imanentes e múltiplas determinações ideais, que o configuram na qualidade de um corpo de argumentos estável e inconfundível, que independe para ser

discurso – precisamente este, e não qualquer outro discurso – dos olhares, mais ou menos destros, pelos quais os analistas se aproximam dele e o abordam (idem).

Registrada a necessidade de encarar o objeto de estudo, no caso o texto, como algo dotado de lógica própria, específica, independente do sujeito que o defronta, acrescenta-se, ainda, que a única maneira de compreendê-lo adequadamente pressupõe agarrá-lo em seu processo de desenvolvimento, exigência que se impõe uma vez considerada o caráter histórico das entificações. Nesse sentido, a análise da estrutura do texto pressupõe, ao mesmo tempo, uma investigação genética, atenta para a processualidade das categorias como formas de ser. No caso do pensamento marxiano, recorde-se, com Chasin, que “a nova posição formulada por Marx não é uma pura instauração endógena”, mas resultado de um processo histórico mais amplo, razão pela qual a investigação de sua gênese “não é apenas uma questão para a história intelectual ou de mera erudição, mas problema condicionante do acesso ao entendimento efetivo de sua natureza teórica, bem como da qualidade do complexo categorial que integra sua

fisionomia” (ibid., p. 29). Mészáros, a sua maneira, enfatiza que “a lógica interna de qualquer campo particular de estudo aponta para além de sua própria parcialidade e

pede para ser inserida em contextos cada vez maiores”, de modo a alcançar “um ponto onde a série completa das interconexões dialéticas com o todo esteja estabelecida

adequadamente” (MÉSZÁROS, 2008, p. 93).

Entendendo as reflexões de Marx contidas em O 18 de brumário de Luís Bonaparte como momento de uma processualidade histórica mais ampla, torna-se necessária uma investigação prévia da gênese do pensamento marxiano, de modo a acompanhar o desenvolvimento das categorias que estruturam a obra analisada. Como aduz Chasin:

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Consideradas as advertências destacadas, julgou-se necessário analisar, para a

adequada compreensão d’O 18 de brumário, algumas obras pertencentes ao que se denominou período de formação do pensamento de Marx, no qual as principais categorias da política e do ser social são desenvolvidas. Reconhecendo que tais obras apresentam um grau bastante elevado de complexidade e levando em conta a impossibilidade de analisá-las exaustivamente no âmbito de uma dissertação de mestrado, acredita-se, não obstante, que uma leitura estrutural d’O 18 de brumário que passe por alto das principais aquisições teóricas de Marx no período anterior não só pode se tornar um exercício infértil, como também pode levar a graves distorções no que diz respeito ao papel das categorias decisivas.

Importante advertir, entretanto, que, para Marx, a anatomia do homem constitui uma chave para a compreensão da anatomia do macaco, de modo que não se pode perder de vista que é o objeto maturado – no caso, a obra adulta de Marx – que orienta a investigação de sua gênese. Registre-se, as análises das obras correspondentes ao período de formação do pensamento do Marx – ou mesmo a escolha das obras a serem analisadas – foram elaboradas de modo a destacar as categorias que interessam à análise

d’O 18 de brumário. Ademais, seria um erro grave supor que Marx constituiu, nos anos de 1843-1847, algum tipo de armação metodológica a ser “aplicada” nas análises concretas realizadas nos anos 1848-1852. A opção por expor a evolução do pensamento do autor em ordem cronológica serve, ao contrário, para destacar o modo pelo qual as categorias marxianas se desenvolvem à medida que seu objeto – a sociedade civil-burguesa – se desdobra historicamente, explicitando suas determinações. Observar-se-á, nesse sentido, que, ainda que recupere e reitere suas principais conclusões alcançadas

desde 1843, a análise marxiana d’O 18 de brumário está diante de uma realidade social modificada, o que provoca repercussões na (re)articulação das categorias que vinham sendo desenvolvidas nas primeiras análises políticas.

Esclarecendo, enfim, a estrutura da dissertação, aponta-se que o Capítulo I aborda o desenvolvimento da originalidade do pensamento de Marx, tendo em vista o contexto intelectual da Alemanha na época, destacando o papel crucial que desempenharam G. W. F. Hegel e L. Feuerbach nesse complexo itinerário intelectual. Além do breve estudo realizado acerca de algumas obras de Feuerbach4, o Capítulo

4 Optou-se pela ênfase nas obras Necessidade de uma reforma da filosofia, Teses provisórias para uma

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enfatiza a ruptura ontológica, evidenciada na obra Crítica da filosofia do direito de Hegel, que separa o pensamento marxiano da matriz hegeliana, que até então permeava os textos de juventude. Ruptura revelada nas críticas de Marx à filosofia especulativa e ao Estado, sendo esta última de extrema relevância para a compreensão da análise política contida em O 18 de brumário de Luís Bonaparte. O Capítulo analisa ainda os artigos Sobre a questão judaica, Crítica da filosofia do direito de Hegel - Introdução e Glosas críticas marginais ao artigo ‘O Rei da Prússia e a reforma social’. De um

prussiano, de modo a acompanhar o desenvolvimento da crítica de Marx à política, procurando demonstrar as razões pelas quais o filósofo alemão concluiu que as relações jurídicas bem como as formas de Estado não podem ser explicadas por si mesmas, pois se enraízam nas condições materiais de existência, isto é, encontram o seu conteúdo na

sociedade civil.

O Capítulo II destina-se à análise de duas obras de Marx que assinalam a guinada de suas pesquisas para o plano da sociedade civil, cuja anatomia encontra-se, segundo o autor, na Economia Política. Procura-se expor, a partir da leitura dos

Manuscritos econômico-filosóficos e d’A ideologia alemã, o arcabouço categorial da ontologia marxiana, de modo a precisar o tratamento dado por Marx acerca da relação entre sujeito e objeto, bem como destacar sua concepção materialista da história, que Marx e Engels desenvolvem como crítica a Feuerbach e aos neohegelianos. Destaca-se ainda, o papel de algumas categorias decisivas para as análises políticas do filósofo alemão, tais como propriedade privada, classe social e Estado. Ademais, aborda-se também a tematização da emancipação humana como possibilidade posta pelo desenvolvimento objetivo da sociedade burguesa.

Por fim, o Capítulo III dedica-se ao estudo da obra O 18 de brumário de Luís Bonaparte e, por conseguinte, afirma-se como parte substancial da dissertação. Intenta-se, em um primeiro momento, expor a complexidade subjacente aos primeiros parágrafos do texto, dedicados à temática da história feita pelos homens, bem como à questão da repetição histórica, que se apresenta na primeira vez como tragédia e, na segunda, como farsa. Volta-se, em um segundo momento, ao detalhamento da análise de Marx acerca da política francesa, procurando enfatizar três momentos principais, destacados pelo próprio autor: a) o período de fevereiro, que se inicia em 24 de fevereiro de 1848 (dia da deposição de Luís Filipe) e tem seu término em 4 de maio de 1848 (dia da reunião da Assembleia Nacional Constituinte), é designado como prólogo

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Constituinte, que perpassa o intervalo de 4 de maio de 1848 até 28 de maio de 1849, é o período da fundação da república burguesa; c) por fim, o período da república constitucional ou da Assembleia Legislativa, delimitado pelo intervalo de 28 de maio de 1849 até 2 de dezembro de 1851, momento em que Luís Bonaparte desfere seu golpe de Estado.

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CAPÍTULO I

MARX: A NOVA POSIÇÃO ONTOLÓGICA

1.1.INTRODUÇÃO

A originalidade da obra marxiana se constitui a partir de sua relação crítica com a tradição filosófica clássica alemã, no interior da qual se destacavam, para Marx, a filosofia especulativa de Hegel e o materialismo sensualista de Feuerbach. Inserido inicialmente no universo do idealismo ativo– postura filosófica característica dos

neo-hegelianos e marcada por uma “subjetividade racional fundante e operante”, voltada

para “eliminação das irracionalidades do real pela determinação de cada existente pela

essência” (CHASIN, 2009, p. 50)5 –, o pensamento marxiano passa por uma inflexão que, valendo-se de uma apropriação bastante peculiar das proposições feuerbachianas, possibilitou a instauração de uma posição absolutamente nova face aos principais problemas da época, cuja natureza é qualitativamente distinta da tradição do idealismo alemão.

A questão em torno do marco inicial dessa mudança qualitativa nesse complexo itinerário intelectual é, entretanto, bastante controversa. Como salienta José Chasin, “desde os anos 1950, com antecedentes bem mais remotos, sem se indagarem

pela adequação do caráter de suas abordagens ao objeto pesquisado, o mais que fizeram

os intérpretes de Marx foi disputar sobre ‘o estatuto científico’ de seu discurso”

(CHASIN, 2009, p. 27). Nesse contexto, principalmente após os trabalhos de Louis Althusser, que identifica na trajetória de Marx uma ruptura epistemológica que separaria as obras de juventude das obras de maturidade6, criou-se uma imensa polêmica7, de viés marcadamente gnosiológico, em torno do fio de unidade que perpassa as obras de Marx, não faltando intérpretes para localizar o momento de surgimento do “Marx maduro” ou

“científico” nesta ou naquela obra8.

5 Esclarece-se que apenas as referências correspondentes às citações diretas serão expostas no corpo do

texto. As restantes serão apresentadas em nota de rodapé.

6 Cf. ALTHUSSER, 1979. Sobre o pensamento de Althusser, cf. VÁZQUEZ, 1980;

7 Sobre algumas posições no interior da polêmica acerca da unidade na obra marxiana, cf. VAISMAN,

2002; MORAES, 2002; GIANNOTTI, 1966; FAUSTO, 1979;

8 Nesse ponto, é oportuno considerar as palavras de Ester Vaisman, para quem “o devido posicionamento

diante do dilema teórico em torno da continuidade ou ruptura no decurso intelectual marxiano depende, antes de mais nada, do reconhecimento de que dentre as múltiplas vicissitudes contraditórias do século XX, avulta a exacerbada perversidade do destino teórico do pensamento de Marx: quanto mais foi

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20

Aprofundar o debate em torno da problemática do “jovem Marx” em oposição

ao “Marx maduro” exigiria, sem embargo, um estudo exaustivo capaz de esmiuçar a totalidade da obra marxiana, o que acabaria por transgredir os limites da proposta desta dissertação voltada, prioritariamente, às análises de Marx das revoluções de 1848 em França. Não obstante, sem perder de vista a importância do estudo genético, decisivo para a adequada compreensão do pensamento marxiano, intenta-se, nas linhas seguintes, apenas reproduzir, com o devido rigor, alguns elementos considerados centrais para o entendimento das categorias operantes no pensamento do autor em O 18 de brumário de Luís Bonaparte9.

Esclarecidas essas questões preliminares, vale anotar, dando início à incursão na trajetória intelectual de Marx, que esta se inscreve num momento peculiar da história da filosofia clássica alemã, caracterizado pelo conflito teórico em torno do significado do legado hegeliano. Sumariamente, de um lado, os chamados hegelianos de direita identificavam a monarquia prussiana com a realização idealista do Estado nos termos da filosofia do direito, valendo-se, pois, do aspecto conciliador do pensamento de Hegel para atribuir legitimidade aos reinados de Frederico Guilherme III e IV. De outro, a esquerda hegeliana se recusava a admitir que a monarquia prussiana pudesse ser identificada à realização do Espírito na história, apegando-se ao caráter processual do método dialético e transformando-o em um artifício crítico ao satus quo alemão. Como aponta Celso Frederico, a crítica dos neo-hegelianos de esquerda aproveitava “o caráter negativo da dialética para argumentar que o movimento ininterrupto da Idéia nunca cessa e, portanto, em sua marcha ascendente, superaria o presente, negaria o Estado

prussiano monárquico, anunciaria os novos tempos”10 (FREDERICO, 1995, p. 21).

Marx se posiciona, em princípio, teórica e politicamente, ao lado dos neo-hegelianos de esquerda11, compartilhando com eles, como se adiantou, uma postura

9 Ademais, o período de formação do pensamento de Marx foi bastante estudado, de modo que se pode

efetuar uma apropriação crítica de uma série de pesquisas já realizadas sobre o tema. Em especial, cabe destacar as pesquisas de José Chasin (cf. CHASIN, 2000, 2009), bem como aquelas do Grupo de Pesquisa Marxiologia, Filosofia e estudos Confluentes da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais.

10 Rubens Enderle esclarece que a disputa entre os hegelianos de esquerda e direita “girava

fundamentalmente em torno da interpretação do tema da ‘reconciliação’ do real com o racional. Para os jovens-hegelianos [de esquerda], tratava-se de demonstrar que o ‘real’ não devia ser identificado imediatamente com a realidade empírica, positiva, como afirmavam os velhos-hegelianos [de direita], mas sim com a realidade que, pelo ‘trabalho do negativo’, deve ser supra-sumida em um nível superior do conceito” (ENDERLE, 2006, p. 11).

11Em carta ao pai de 10 de novembro de 1837, Marx “relata o modo pelo qual, aos 19 anos, depois de

uma breve mas intensa luta interna, apropriou-se da filosofia hegeliana e entrou em contato com os jovens

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21

intelectual “confinada ao quadro da autoconsciencialidade” (CHASIN, 2009, p. 47), que atribui à crítica filosófica a capacidade de transformar, por si mesma, a realidade. Essa vinculação de Marx ao idealismo ativo repercutia no seu pensamento político que, em concordância com a matriz hegeliana da qual é herdeiro, inclui-se na “vertente – clássica e de origem tão remota quanto a própria filosofia – que identifica na política e no Estado a própria realização do humano e de sua racionalidade” (ibid., p. 49).

A inserção nos quadros da filosofia da autoconsciência, entretanto, não ocorreu sem reservas. Como observa Lukács, Marx, pelo menos desde 1841, era superior aos jovens hegelianos num duplo sentido: “tanto politicamente, pelo seu democratismo radical, quanto filosoficamente, pela profundidade no desenvolvimento crítico (por

enquanto) da filosofia hegeliana” (LUKÁCS, 2009, p. 124). Sobre esse segundo aspecto, importa observar que enquanto os jovens hegelianos se limitavam em distinguir e opor um Hegel esotérico (ateu e revolucionário) de um Hegel exotérico (conservador que se submetia ao poder político da monarquia prussiana)12 – o que, ainda segundo Lukács, impossibilitava compreender que “na filosofia hegeliana como tal, em seu

idealismo e no caráter metafisicamente fechado de sua sistematização, estavam previamente contidas as premissas que haviam tornado possível a acomodação de Hegel

diante do Estado reacionário prussiano” (idem) – Marx, ao menos desde sua tese de doutorado (1841), “quis descobrir e superar a contradição do próprio Hegel”13, o que implica dizer que, mesmo naquela época, ainda que de modo embrionário, “já estava presente nele o núcleo da posterior superação crítica da filosofia hegeliana”14 (idem).

12 Para Rubens Enderle, o erro dos jovens hegelianos “estava em tomar como base da crítica a

‘consciência particular’ do filósofo, isto é, em atribuir ao autor uma‘consciência reflexiva’ diante de sua própria obra e, a partir daí, imputar a ele uma atitude de ‘acomodação’, reputada como imoral” (ENDERLE, 2006, p. 12).

13 Nesse ponto, as colocações de Enderle, valendo-se das palavras do próprio Marx, se mostram,

novamente, bastante esclarecedoras. Segundo ele, “para Marx, uma crítica verdadeiramente filosófica não podia consistir em tributar as insuficiências da teoria política de Hegel a uma simples acomodação

(consciente ou não), mas em demonstrar em que medida a ‘possibilidade dessas aparentes acomodações

tem sua raiz mais profunda na insuficiência ou na insuficiente formulação de seu próprio princípio’. Se, de fato, houve acomodação por parte de Hegel, isso não podia ser explicado partindo-se de seu ‘saber particular’, mas sim de sua consciência interior essencial, tomando-se como base o desenvolvimento interno do seu pensamento, uma vez que, como recorda Marx, o próprio Hegel ensinava que ‘a ciência não é algo que se recebe, mas sim algo que se desenvolve, algo cujo sangue espiritual se impulsiona do coração até as extremidades’. Por esse procedimento, mais do que um simples ‘progresso da consciência’ rumo à moralidade, realizava-se ‘um progresso do saber’, pois ‘não se suspeita da consciência particular do filósofo, mas sua forma de consciência essencial é construída e elevada a uma determinada forma e significação, com o que ela é, ao mesmo tempo, ultrapassada’. Em vez de apontar e recriminar insuficiências do pensamento de Hegel, a verdadeira crítica devia desvendá-las; em vez de lutar contra seu objeto, ela devia ultrapassá-lo, demonstrá-lo em sua verdade” (ENDERLE, 2006, p. 12).

14Segundo Lukács, Marx, em sua tese de doutorado, “se põe diante da filosofia hegeliana enquanto tal

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22 1.2.A CRÍTICA ONTOLÓGICA DE FEUERBACH

A ambição de Marx em superar os pressupostos da filosofia hegeliana (esta a fonte das críticas dos “jovens hegelianos” ao Estado prussiano) foi, muito provavelmente, um dos principais fatores que o levaram a se interessar pela filosofia de Ludwig Feuerbach. Em carta a J. B. von Schweitzer, escrita em janeiro de 1865, Marx, tratando da relação da filosofia hegeliana com o materialismo feuerbachiano, aduz que

“comparado a Hegel, Feuerbach é muito pobre”. Logo em seguida, entretanto,

acrescenta que Feuerbach, depois de Hegel, assinalou uma época, “já que realçou alguns

pontos pouco agradáveis para a consciência cristã e importantes para o progresso da crítica, que Hegel deixara em mística penumbra” (MARX, 2011, p. 260). Essa referência serve para esclarecer que, para Marx, a importância de Feuerbach para o progresso da crítica estava justamente na radicalidade de sua proposta de refundar a filosofia, sendo o único jovem hegeliano que assumia uma postura verdadeiramente crítica em relação a Hegel e à filosofia especulativa em geral:

Feuerbach é o único que tem uma relação séria e crítica para com a dialética de Hegel e realizou neste campo verdadeiras descobertas; acima de tudo, foi quem superou a antiga filosofia. A magnitude da proeza de Feuerbach e a despretensiosa simplicidade com que a apresenta ao mundo estão em impressionante contraste com o comportamento dos outros [jovens hegelianos] (MARX, 1993, p. 239).

Em Princípios da filosofia do futuro, explicita-se a intenção de Feuerbach em se situar para além de toda a especulação moderna. Para ele, “a filosofia moderna

procurava algo de imediatamente certo” e, por conseguinte, “rejeitou o pensar sem fundamento e sem base da escolástica”, fundando, assim, “a filosofia na autoconsciência”. Em outros termos, a filosofia moderna substitui o “ser puramente pensado” (Deus) pelo “ser pensante, o eu, o espírito autoconsciente”:

Mas a autoconsciência da filosofia moderna é, por seu turno, apenas um ser pensado, mediado pela abstração, susceptível de dúvida. Indubitável, imediatamente certo, é unicamente o objeto dos sentidos, da intuição e do sentimento (FEUERBACH, 2002, p. 83).

De acordo com Feuerbach, a tradição filosófica moderna ao encontrar na autoconsciência o fundamento da filosofia, “demonstrou unicamente a divindade do entendimento – aceitou apenas o entendimento abstracto como ser divino e absoluto” (ibid., p. 60). Sendo assim, a filosofia moderna é a “negação da teologia do ponto de

vista da teologia”, pois, “o ser material, o ser enquanto puro objeto do entendimento,

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23

pura essência intelectual, é para a filosofia moderna e também para a hegeliana, unicamente o ser verdadeiro e absoluto –Deus” (ibid., p. 62). Desse modo, “a filosofia especulativa apenas generalizou, unicamente transformou em propriedade do pensamento e do conceito em geral o que a teologia transformava numa propriedade exclusiva do conceito de Deus” (ibid., p. 68).

Ao transformar o Deus da escolástica em razão, a filosofia moderna revestiu a própria razão com a natureza do ser divino e abstrato, não sendo, pois, mais do que

“teologia resolvida e metamorfoseada em filosofia” (ibid., p. 60). Feuerbach aproxima, assim, o modus operandi da filosofia da autoconsciência com o da religião criticado em

A essência do cristianismo. Nessa obra, cuja publicação em 1841 causou intensa polêmica no meio intelectual alemão, a crítica feuerbachiana à religião serve-se da ideia segundo a qual a substância divina não seria outra coisa que os predicados do homem projetados para fora de si, situação que produz um quadro de alienação, uma vez que o homem passa a se relacionar com sua própria essência “não como sendo sua, mas de um outro ser diverso dele, até mesmo oposto” (FEUERBACH, 1988, p. 239). Em

Princípios da filosofia do futuro, publicada apenas dois anos depois, a crítica da filosofia especulativa segue uma argumentação muito semelhante, identificando como

alienação a “elevação da razão a uma essencialidade divina” (FEUERBACH, 2002, p. 57), separada do ser sensível, do mundo, do homem15. Nas palavras do autor, “assim como outrora a abstracção de todo o sensível e material foi condição necessária da teologia, assim ela foi também a condição necessária da filosofia especulativa" (ibid., p. 45). A especulação, desse modo, “comporta-se tal e qual como a teologia, que fez das determinações do homem determinações divinas, privando-as da determinidade na qual

são o que são” (ibid., p. 66).

Concebido como consumação da filosofia moderna16, o pensamento hegeliano manifesta essa mesma contradição. Em Teses provisórias para a reforma da filosofia, a argumentação feuerbachiana apresenta a mesma estruturação ao aproximar a filosofia hegeliana da teologia, pois sendo a essência da teologia “a essência do homem,

transcendente, projectada para fora do homem”, no caso da lógica de Hegel, a essência

15 Em Teses provisórias para a reforma da filosofia, explicita-se que “o método da crítica reformadora da

filosofia especulativa em geral não se distingue do já aplicado na filosofia da religião. Temos apenas de fazer sempre do predicado o sujeito e fazer do sujeito o objeto e princípio – portanto, inverter apenas a filosofia especulativa de maneira a termos a verdade desvelada, a verdade pura e nua” (FEUERBACH, 2002, p. 20).

16 Para Feuerbach, “a consumação da filosofia moderna é a filosofia de Hegel. A necessidade e a

justificação históricas da filosofia moderna religam-se, pois, sobretudo com a crítica de Hegel

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24

“é o pensamento transcendente, o pensamento do homem posto fora do homem” (ibid., p. 21). Seguindo com as palavras do autor, tem-se que:

A filosofia hegeliana é a supressão da contradição do pensamento e do ser, como exprimiu particularmente Kant, mas, cuidado! é apenas a supressão desta contradição no interior da contradição– no interior de um só e mesmo

elemento – no seio do pensamento. Em Hegel, o pensamento é o ser; – o pensamento é o sujeito, o ser é o predicado. A lógica é o pensamento num elemento do pensamento, ou pensamento que a si mesmo si pensa, – o pensamento como sujeito sem predicado ou o pensamento que é simultaneamente sujeito e o seu próprio predicado. /.../ Hegel pensou unicamente os objetos como predicados do pensamento que a si mesmo pensa (ibid., p. 31).

Continuando, assim, sua crítica a toda tradição idealista moderna, Feuerbach identifica na filosofia hegeliana uma inversão fundamental na qual a realidade é posta pela Ideia, movimento que, para ele, continua possuindo um caráter teológico. A filosofia especulativa de Hegel, seguindo o caminho do abstrato ao concreto, parte de um ser indiferenciado e sem realidade, do conceito de ser, que se torna concreto através da atividade do pensamento que volta sobre si mesmo, num movimento que, entretanto,

“pressupõe de antemão o conceito, isto é, a essência do pensar”, razão pela qual “o real

ou efectivo só se pode conhecer de um modo indirecto, só como o adjectivo essencial e

necessário do conceito” (ibid.,p. 77). O verdadeiro real da filosofia hegeliana é, assim,

o pensamento, “que bem depressa se despoja do predicado da realidade para, de novo,

estabelecer a sua falta de predicados como sua essência verdadeira” (ibid., p. 31). Isso leva Feuerbach a afirmar que:

Quem não abandonar a filosofia hegeliana, não abandona a teologia. A doutrina hegeliana de que a natureza é a realidade posta pela ideia é apenas a expressão racional da doutrina teológica, segundo a qual a natureza é criada por Deus, o ser material por um ser imaterial, isto é, um ser abstracto. No final da lógica, leva mesmo a ideia absoluta a uma decisão nebulosa para documentar, por sua própria mão, a sua extracção do céu teológico (FEUERBACH, 2002, p. 31).

Orientando-se, por uma argumentação centrada em sua teoria da alienação, ele sustenta que “o caminho até agora seguido pela filosofia especulativa, do abstracto para

o concreto, do ideal para o real, é um caminho invertido”, pelo qual “nunca se chega à realidade verdadeira e objectiva, mas sempre apenas à realização das suas próprias

abstracções” (ibid., p. 25). E “ao fundar todo o seu sistema nestes atos de abstracção, a

filosofia hegeliana alienou o homem de si mesmo”, pondo “a essência do pensamento

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25

p. 22). Uma vez que tem o seu começo na ideia abstrata, a sistematização hegeliana mantém-se estruturada de tal modo que o ser torna-se mero predicado pensamento, sendo que, para Feuerbach, ao contrário,

A verdadeira relação entre pensamento e ser é apenas esta: o ser é o sujeito, o

pensamento o predicado. O pensamento provém do ser, mas não o ser do pensamento. O ser existe a partir de si e por si – o ser é só dado pelo ser. O ser tem o seu fundamento em si mesmo, porque só o ser é sentido, razão, necessidade, verdade, numa palavra, tudo em todas as coisas – O ser é, porque o não ser é não ser, isto é, nada, não-sentido (idem).

Contra o racionalismo hegeliano, que inverte a adequada relação entre pensamento e realidade ao transformar o pensamento em sujeito e o ser em predicado, Feuerbach propõe uma filosofia que tenha como ponto de partida o ser real, do homem e da natureza17. A filosofia hegeliana é criticada por partir do “ser como predicado do

absoluto ou da ideia”– abstrato e indeterminado – quando a verdadeira filosofia tem o seu começo no finito, no determinado, no real. E isso porque o ser é o limite do pensar, isto é, “o infinito não pode pensar-se sem o finito” e, consequentemente, “o primeiro não é o indeterminado, mas o determinado, pois a qualidade determinada nada mais é do que a qualidade real” e “a qualidade real precede a qualidade pensada” (ibid., p. 24-25).

Os aforismos feuerbachianos, ao mesmo tempo em que condenam a alienação idealista de toda uma tradição filosófica moderna – que culmina no pensamento

hegeliano, “o último suporte racional da teologia” (ibid., p. 31) –, pretendem, em caráter propositivo, lançar as bases para a “nova filosofia”, a única positiva, que “é a

negação da filosofia como qualidade abstracta, particular, isto é, escolástica” (ibid., p. 32). Segundo eles, “a filosofia nova considera e aborda o ser, tal como é para nós,

enquanto seres não só pensantes, mas também realmente existentes” (ibid., 80). E “o real na sua realidade efecctiva, ou enquanto real, é o real enquanto objecto dos sentidos, é o sensível. Verdade, realidade e sensibilidade são idênticas. Só um ser sensível é um ser verdadeiro e efectivo” (ibid., p. 79). Assim,

Se a antiga filosofia tinha como ponto de partida a proposição: sou um ser abstracto, um ser puramente pensante, o corpo não pertence à minha essência; então, pelo contrário, a nova filosofia começa com a proposição:

sou um ser real, um ser sensível; sim, o corpo na sua totalidade é o meu eu, a minha própria essência (ibid., 82).

Ao rejeitar o idealismo hegeliano que começa no ser indeterminado, procedimento que aliena a filosofia ao inverter a relação fundamental entre pensamento

(27)

26

e ser, Feuerbach propõe em seu lugar uma filosofia que, guiada pela intuição sensível, deve estabelecer o seu ponto de partida numa verdade imediata e sem contradição, alheia, portanto, “ao intricado movimento de auto-afirmação do ser, tal como aparece na seqüência interminável de sucessivas figuras na filosofia hegeliana, no incessante jogo de mediações e negações conduzindo o processo de constituição do real” (FREDERICO, 1995, pp. 31). Se na filosofia hegeliana “tudo é mediatizado”, a nova

filosofia afirma que “algo só é verdadeiro se já não for um mediado” (FEUERBACH, 2002, p. 83), mas um imediato. Tendo isso em vista, Celso Frederico salienta que:

Contra o pensamento especulativo, Feuerbach levanta a realidade imediata da natureza humana, realidade evidente e segura em si mesma, já plenamente determinada, que não precisaria do recurso logicista da mediação para existir. A nova filosofia por ele proposta surge assim como uma antropologia radical em busca de uma verdade imediata, sensível, não derivada do pensamento, e que de fato deveria orientá-lo. O acesso à verdade prescindiria dos jogos especulativos da dialética, das mediações tortuosas, das fantasias do raciocínio teológico (FREDERICO, 1995, p. 30).

Com o apelo à realidade imediata da natureza humana, Feuerbach pretende abrir caminho para uma “ontologia empirista”18, que substitui o processo dialético de

constituição dos seres – que vai do abstrato ao concreto – “pela exigência de partir do concreto, daquilo que se opõe ao pensamento, isto é, do ser empírico dado de uma vez

por todas, determinado, anterior ao pensamento e, de resto, seu fundamento”

(FREDERICO, 1995, p. 30). E, sendo o ser empírico o verdadeiro ponto de partida da nova filosofia, tem-se que:

O real na sua realidade e totalidade, o objecto da nova filosofia, é também

só objecto para um ser real e total. A nova filosofia tem, pois, como seu

princípio de conhecimento, como seu sujeito, não o eu, não o espírito absoluto, isto é, abstracto, numa palavra, não a razão por si só, mas o ser real e total do homem. A realidade, o sujeito da razão é apenas o homem. É o homem que pensa, e não o eu, não a razão. A nova filosofia não apoia, portanto, na divindade, isto é, na verdade da razão por si só, apoia-se na divindade, isto é, na verdade do homem total. Ou: apoia-se, sem dúvida, também na razão, mas na razão cuja essência é o ser humano; por conseguinte, não numa razão sem ser, sem cor e sem nome, mas na razão impregnada com o sangue do homem. Se, pois, a antiga filosofia dizia –‘só o racional é o verdadeiro e o real’ –, então a nova filosofia diz, pelo contrário –

só o humano é o verdadeiro e o real; com efeito, unicamente o humano é o racional; o homem é a medida da razão (FEUERBACH, 2002, pp. 93-94).

Seguindo as colocações de José Chasin, pode-se observar que, na afirmação do

sujeito sensível, Feuerbach procura “se destacar contra e se situar para além – não só da filosofia hegeliana, mas de toda a especulação moderna – sem ignorar o passo evolutivo

que esta consubstanciara na ultrapassagem do pensamento medieval” (CHASIN, 2009,

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27

p. 42). Sua rejeição dos volteios da razão autossustentada através de um apelo ao ser sensível faz emergir um questionamento de caráter ontológico, que denuncia a natureza abstrata do ser no qual se apoia a sistematização idealista de Hegel. O ser abstrato é, para a filosofia feuerbachiana, um pensamento sem realidade; um pensamento que se sobrepõe ao seu outro – o ser – e ultrapassa os limites naturais do próprio pensar, isto é,

“o pensar reivindica para si, não o que pertence ao pensar, mas ao ser” (FEUERBACH, 2002, p. 73). Daí Rubens Enderle observar que “Feuerbach não centra sua crítica à especulação hegeliana na denúncia de um erro de método, mas sim na falsidade da

determinação ontológica em que o método está assentado”, já que “a pergunta lógica ‘quem é o sujeito’ remete /.../ à pergunta ontológica fundamental: ‘quem é o ser’”

(ENDERLE, 2006, p. 20). Vale insistir, a insuficiência do pensar especulativo está, para Feuerbach, enraizada no ser do pensar abstrato em detrimento do verdadeiro ser do homem:

O ser, enquanto objeto do pensar especulativo, é o simplesmente imediato, isto é, indeterminado; portanto, nada nele se pode distinguir, nada se pode pensar. Mas o pensar especulativo é para si a medida de toda a realidade; só reconhece como algo aquilo em que ele se encontra confirmado, onde tem material para o pensar. Por conseguinte, em virtude de ser o nada do pensamento, isto é, de nada ser para o pensamento –o vazio de pensamento

o ser do pensar abstracto é o nada em si para si mesmo. Justamente por isso, o ser que a filosofia especulativa introduz no seu domínio e cujo conceito para si reivindica é também um puro fantasma, que está em absoluta contradição com o ser verdadeiro e com o que o homem entende por ser. O homem entende por ser, segundo os factos da razão, o ser-aí, o ser-para-si, a realidade, a existência, a efetividade e a objectividade. Todas estas determinações ou nomes exprimem uma só e mesma coisa a partir de diversos pontos de vista. O ser no pensamento, o ser sem objectividade, sem efectividade, sem ser-para-si é, certamente, nada; mas neste nada, expresso apenas a niilidade da minha abstração (FEUERBACH, 2002, p. 70).

O problema decisivo encontra-se, portanto, na pergunta em torno do ser. Se a filosofia especulativa é rejeitada por partir do ser como puro pensamento, sendo que

“um ser que apenas pensa e, claro está, de modo abstracto não tem representação alguma do ser, da existência e da realidade” (FEUERBACH, 2002, p. 70), a nova filosofia deve afirmar o ser finito, sensível e inseparável das coisas, como o ser verdadeiro, já que “o ser não é um conceito universal, separável das coisas. É um só com o que existe” (ibid., p. 71). E, se para Hegel o objeto da filosofia é o pensamento, para Feuerbach, “a filosofia é o conhecimento do que é. Pensar e conhecer as coisas e os seres comosão– eis a lei suprema, a mais elevada tarefa da filosofia”. Segundo Lukács:

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28

Até mesmo as debilidades de sua posição, reveladas mais tarde – caso de sua limitação à relação abstrata entre Deus e ser humano –, contribuíram para fazer emergir nas consciências, de modo claro e energético, o problema ontológico (LUKÁCS, 2012, p. 282).19

A filosofia feuerbachiana representa, por conseguinte, uma autêntica virada ontológica no interior da história do pensamento clássico alemão, que contrapõe ao idealismo – no qual a relação entre ser e pensamento se dá de modo invertido – uma filosofia alicerçada no ser material sensível, restabelecendo a posição privilegiada do homem concreto no pensamento filosófico. A radicalidade das críticas feuerbachianas se dá, pois, numa dupla dimensão: tanto pela absoluta negatividade em relação à tradição idealista moderna, posto que “só quem tem a coragem de ser absolutamente

negativo tem a força de criar a novidade” (FEUERBACH, 2002, p. 14), quanto pelo

reconhecimento da “necessidade de uma filosofia essencialmente nova”, uma vez que

“temos diante dos olhos o tipo já acabado de filosofia antiga” (ibid., p. 15). E, segundo

Chasin, “é nessa dupla condição de radicalidade, tanto na ruptura, como na vigorosa impulsão a um universo ontológico qualitativamente novo, que as proposições feuerbachianas não podem ser ignoradas, como não o foram – o que é decisivo – por

Marx” (CHASIN, 2009, p. 44).

1.3.A NOVA POSIÇÃO ONTOLÓGICA DE MARX

Em 1842, enquanto trabalhava para o jornal Gazeta Renana, Marx, orbitando no universo do idealismo hegeliano, leu A essência do cristianismo de Feuerbach, compreendendo imediatamente “o significado desta obra, na qual, pela primeira vez na

filosofia alemã, realizava-se a passagem ao materialismo” (LUKÁCS, 2009, p. 132).

Nesse mesmo ano, em carta a Ruge, ele revelou seus planos de redigir uma “crítica do

direito natural de Hegel, no que se refere à constituição interna” (MARX apud

LUKÁCS, 2009, p. 132). Ou seja,

No início de 1842, Marx – ao identificar-se com Feuerbach, por um lado, e, por outro, ao propor uma crítica da filosofia do direito de Hegel – tomou o caminho que, nos anos seguintes, irá levá-lo inevitavelmente à fundação do materialismo histórico. A partir desse momento, seu caminho solitário para além dos resultados mais importantes da filosofia alemã – para além de Hegel no sentido do materialismo, para além de Feuerbach no sentido da crítica da política e, através dela, para a crítica política de Hegel – não pode mais ser freado (LUKÁCS, 2009, p. 133).

19 Em realidade, a natureza ontológica da crítica antiespeculativa de Feuerbach se insere, de acordo com

Lukács, num contexto peculiar da história da filosofia clássica alemã, que tem na questão ontológica um problema decisivo. Segundo o filósofo húngaro, nesse momento da história intelectual germânica

“verifica-se um movimento que leva da negação teórica da ontologia em Kant à ontologia universalmente

explicitada em Hegel” (LUKÁCS, 2012, p. 181), sendo que mesmo a negação kantiana “não se apresenta

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