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COMO FALAR DE GÊNERO NA EDUCAÇÃO SE GÊNERO TORNOU-SE UM PALAVRÃO?

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COMO FALAR DE GÊNERO NA EDUCAÇÃO SE GÊNERO TORNOU-SE UM PALAVRÃO?

Cláudio Eduardo Resende Alves

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Resumo: Este texto consiste num recorte da pesquisa de Pós-Doutorado em Educação realizada na Universidade Federal de Minas Gerais, entre 2019 e 2020, que tem como objetivo a investigação das interseções teórico-metodológicas entre gênero, currículo e políticas públicas. Gênero, como uma categoria analítica, discursiva e relacional impacta os processos de ensino e aprendizagem, bem como as relações docentes e discentes que integram uma concepção ampliada de currículo. Na contramão do contexto brasileiro de retrocessos nas políticas públicas educacionais que dizem respeito a gênero, a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte/MG elaborou o Plano Municipal de Equidade de Gênero a partir da adesão do município à Plataforma 50/50 da ONU Mulheres. O Plano prevê ações de promoção da equidade de gênero por meio de 6 eixos norteadores, dentre os quais destaca-se o eixo da educação inclusiva. Tendo como estratégias metodológicas o diário de campo e a observação participante, a investigação propôs uma análise crítica dos desafios enfrentados pelo comitê intersetorial de elaboração e monitoramento do referido Plano. A pesquisa aponta que apesar dos silenciamentos de gênero que permeiam muitas políticas públicas, o Plano pode ser pensado como uma forma de resistência pautada no enfrentamento à violência sexista e no exercício da cidadania.

Palavras-chave: Currículo; Educação; Gênero; Políticas Públicas.

¿CÓMO HABLAR DE GÉNERO EN LA EDUCACIÓN SI EL GÉNERO SE HA CONVERTIDO EN UNA PALABRA SUCIA?

Resumen: El presente texto consiste en un recorte de la investigación postdoctoral en Educación realizada en la Universidad Federal de Minas Gerais entre 2019 y 2020, que tiene por objeto investigar las intersecciones teórico-metodológicas entre el género, el plan de estudios y las políticas públicas. El género, como categoría analítica, discursiva y relacional, repercute en los procesos de enseñanza y aprendizaje, así como en las relaciones entre la enseñanza y los estudiantes que integran un concepto ampliado del programa de estudios.

En contraste con el contexto brasileño de retrocesos en las políticas educativas públicas relacionadas con el género, el Ayuntamiento de Belo Horizonte/MG elaboró el Plan Municipal para la Equidad de Género basado en la adhesión del municipio a la Plataforma de las Naciones Unidas para la Mujer 50/50. El Plan prevé acciones para promover la equidad de género a través de 6 ejes rectores, entre los que destaca el de la educación inclusiva. Teniendo como estrategias metodológicas el diario de campo y la observación de los participantes, la investigación propuso un análisis crítico de los desafíos que enfrenta el comité intersectorial de elaboración y seguimiento del referido Plan. La investigación señala que a pesar de los silencios de género que impregnan muchas políticas públicas, el Plan puede ser pensado como una forma de resistencia basada en la confrontación con la violencia sexista y el ejercicio de la ciudadanía.

Palabras-clave: Currículo; Educación; Género; Políticas Públicas.

1 Pós-Doutor em Educação pela UFMG e Doutor em Psicologia pela PUC Minas, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil.

cadupbh@gmail.com

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2 Introdução

Educação e gênero se tornaram palavras polêmicas, e mesmo temerárias, quando utilizadas na mesma frase, especialmente no atual contexto político nacional e transnacional caracterizado pelas ofensivas antigênero, por meio do slogan ideologia de gênero, do dito movimento Escola sem Partido e de seus “efeitos deletérios na vida política e social” (PRADO e CORREA, 2018, p. 445).

Tal contexto é demarcado pela emergência de um moralismo religioso por grupos específicos e pelo retrocesso em muitas políticas públicas educacionais, conquistadas no início dos anos 2000, no campo de gênero e sexualidade. Segundo Junqueira (2018), esse movimento consiste num “artefato retórico e persuasivo em torno do qual reorganiza-se seu discurso e desencadeiam-se novas estratégias de mobilização política e intervenção na arena pública” (JUNQUEIRA, 2018, p.451).

Gênero é um termo polissêmico, sendo produzido no e pelo discurso, disseminado e performado pela linguagem e produtor de efeitos nos processos de subjetivação. Salih (2012) ao analisar a obra da filósofa Judith Butler nos questiona sobre o poder das palavras em ferir. Nessa direção, nos cabe questionar se gênero consiste numa palavra que pode ferir e causar danos a crianças e jovens na escola. Afinal, por que é tão polêmico falar de gênero e sexualidade na escola?

A heteronorma corre risco com a discussão de gênero na escola? Visibilizar outros modos de existência – dissidentes, precarizados/as e abjetos/as – ameaça o padrão hegemônico masculino nas práticas do ensinar e aprender na escola?

Este artigo integra a pesquisa de Pós-Doutorado em Educação na Universidade Federal de Minas Gerais, realizada no biênio 2019/2020, que propõe uma reflexão sobre gênero, currículo e políticas públicas pela ótica dos estudos pós-críticos. Discussões sobre a equidade de gênero no contexto escolar podem potencializar ações transformadoras ao serem traduzidas em práticas cotidianas. Gênero, como uma categoria discursiva e relacional (BUTLER, 2003) impacta os processos de ensino e aprendizagem, bem como as relações entre docentes e discentes que integram uma concepção polissêmica de currículo que valoriza as diferenças entre sujeitos e corpos. Assim, faz-se necessário pensar um currículo ampliado, acolhedor e em movimento, um verdadeiro

“território de proliferação de sentidos e multiplicação de significados” (PARAÍSO, 2010, p. 588).

Apesar do contexto brasileiro de retrocessos nas políticas públicas educacionais de gênero, a

Prefeitura Municipal de Belo Horizonte/MG elaborou o Plano Municipal de Equidade de Gênero a

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3 partir da adesão do município à Plataforma 50/50 da ONU Mulheres. Dentre as 15 secretarias envolvidas no processo de elaboração do Plano, está a Secretaria Municipal de Educação. O presente artigo propõe uma análise crítica dos desafios enfrentados no processo de elaboração e monitoramento do Plano Municipal de Gênero de Belo Horizonte. A pesquisa foi realizada durante as reuniões quinzenais, no turno da manhã, do comitê intersetorial responsável pelo Plano. Foram utilizadas as estratégias metodológicas do diário de campo e da observação participante, assim como foram seguidas todas as recomendações de ética em pesquisa acadêmica no quesito anonimato dos/das participantes.

A partir daqui, o artigo está organizado em mais 4 seções, a primeira seção apresenta um breve histórico do Plano Municipal de Equidade de Gênero com destaque para as principais ações desenvolvidas; a segunda seção discute três polêmicas que demarcaram o processo de elaboração do Plano Municipal de Equidade de Gênero, quais sejam, o conceito de gênero, o uso do termo gênero no título de um evento e a disputa política pela autoria e pelo controle do Plano; a terceira seção problematiza gênero e currículo na perspectiva de uma educação inclusiva, comparando concepções macropolíticas e micropolíticas; e, por fim, a última seção, sistematiza a discussão realizada ao tentar responder a pergunta problematizadora presente no título desse artigo: como falar de gênero na educação se gênero tornou-se um palavrão?

Breve histórico do Plano Municipal de Equidade de Gênero

Em agosto de 2017 o então prefeito da cidade de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, assumiu junto à ONU Mulheres, o compromisso de implementar a Plataforma Cidade 50/50: todas e todos pela igualdade

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. A Plataforma Cidade 50-50 tem origem no reconhecimento da importância em fomentar, elaborar e executar ações e políticas públicas municipais que promovam a equidade de gênero e empoderamento das mulheres no território das cidades. As políticas públicas têm foco na economia, política, ambiente de trabalho, saúde, educação, cultura, lazer, mobilidade e outras áreas de incidência na cidadania. Tal iniciativa alinha-se com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e a iniciativa global da ONU Mulheres.

Em junho de 2018, a Secretaria Municipal de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania, por meio da Diretoria de Políticas para as Mulheres, instituiu o Comitê Municipal de Equidade de Gênero com objetivo de implementar a Plataforma Cidade 50-50 em Belo Horizonte, assim como elaborar e monitorar o Plano Municipal de Equidade de Gênero. Na sequência foi

2 Disponível em http://www.onumulheres.org.br/planeta5050-2030/

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4 realizada a indicação dos/das representantes (titular e suplente) em cada secretaria convidada e a publicação dos/das representantes no Diário Oficial do Município. O comitê, de caráter permanente, é composto por representantes de secretarias municipais, da Rede Estadual de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher e dos Programas de Pós- Graduação em Psicologia e Ciências Sociais da PUC Minas.

No 2º semestre de 2018, estabeleceu-se uma periodicidade de encontros semanais do comitê, sempre às terças-feiras pela manhã, conforme disponibilidade do grupo. Após alguns encontros de apresentação das secretarias partícipes e compartilhamento das expectativas e propostas acerca da elaboração do Plano, foi pensada uma formação interna da equipe no campo das epistemologias de gênero. Ao longo de vários encontros para atingir o maior número de representantes das secretarias, foi possível discutir alguns conceitos, terminologias, siglas, história dos movimentos feministas, história do movimento LGBT, teoria queer, correntes teóricas de diferentes autores e autoras, marcos legais nacionais e internacionais e políticas públicas de enfrentamento às violências.

A partir da discussão teórica de gênero, foi realizado um diagnóstico de políticas públicas com recorte de gênero em cada uma das secretarias envolvidas no comitê. Algumas secretarias integrantes do comitê nunca haviam pensado em suas ações pela ótica de gênero, como é o caso da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e da Secretaria Municipal de Planejamento, Orçamento e Gestão. Ao passo que as Secretarias Municipais de Educação e de Saúde desenvolvem ações articuladas sobre gênero, corporeidade e sexualidade desde o final dos anos de 1980 (ALVES e SOUZA, 2017). Foi um interessante e desafiador exercício de reflexão sobre as próprias ações institucionais pelo viés de gênero que produziu ricos debates no comitê.

No início do ano de 2019, os encontros passaram a ter como pauta a escrita coletiva dos textos de cada eixo norteador, a saber, Eixo 1 – Governança e Planejamento; Eixo 2 – Empoderamento Econômico; Eixo 3 – Participação Política; Eixo 4 – Enfrentamento à Violência Contra a Mulher; Eixo 5 – Educação Inclusiva e Eixo 6 – Saúde. Os textos foram organizados em duas partes, sendo a primeira relativa à apresentação do eixo e das concepções teóricas pertinentes ao âmbito macropolítico da ONU Mulheres e ao âmbito micropolítico das secretarias municipais; e a segunda parte relativa às propostas de ações de cada secretaria.

No segundo semestre de 2019, dois eventos externos ao comitê marcaram o processo de

elaboração do Plano Municipal de Equidade de Gênero, a saber: 1. Uma plenária ampliada do

Conselho Municipal dos Direitos da Mulher aberta ao público para discussão das ações sinalizadas

junto à sociedade civil; e 2. O “1º Seminário Municipal Diálogos para Equidade: políticas públicas

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5 e cidadania em Belo Horizonte”, realizado em parceria com os Programas de Pós-Graduação em Psicologia e Ciências Sociais da PUC Minas para discutir as propostas do Plano com a academia.

No dia 10 de dezembro de 2019, após a validação das propostas discutidas nos eventos pelos respectivos gabinetes institucionais das secretarias municipais, o Plano foi aprovado e publicado pelo Conselho Municipal dos Direitos da Mulher por meio da Resolução CMDM 03/2019 (BELO HORIZONTE, 2019). Aprovar o Plano via Conselho Municipal consiste numa estratégia política de evitação de confronto político com a Câmara Municipal de Belo Horizonte, uma vez que existe uma espécie de vigília de gênero nas políticas públicas (ALVES, 2020) por parte de vereadores/as.

Afinal, se o Plano tivesse sido aprovado via decreto municipal, se configuraria maior legitimidade política ao documento. É importante salientar que além do Plano Municipal de Equidade de Gênero, foram publicados na mesma data o Plano Municipal de Igualdade Racial e o Plano Municipal da Pessoa com Deficiência, aprovados pelos respectivos conselhos municipais.

Em 2020, no intuito de monitorar as ações estabelecidas no Plano, foi estabelecido um calendário organizacional das ações a fim de orientar o trabalho de monitoramento: ações de curto prazo até o final de 2021, ações de médio prazo até 2025 e ações de longo prazo até 2030. O comitê propôs também a realização de uma consulta à ONU Mulheres para chancela do Plano Municipal de Equidade de Gênero, numa estratégia política de potencializar o documento construído e reafirmar o compromisso da Prefeitura com a Plataforma 50/50.

Polêmicas que permearam o Plano Municipal de Equidade de Gênero

Durante os primeiros encontros do comitê foi instalada uma grande polêmica, qual seja, o

conceito de gênero tomado como sinônimo de mulher, desconsiderando o caráter relacional

intrínseco ao termo. Muito se problematizou, a partir de correntes teóricas pós-críticas e autores/as

como Louro (2000), Welzer-Lang (2001), Butler (2003; 2018), Preciado (2014), Junqueira (2018) e

Paraíso (2018), a respeito da ampliação conceitual para abarcar a diversidade de sujeitos e corpos,

bem como sobre a importância de discutir masculinidades e feminilidades no trato institucional com

discriminações e violências de gênero. Entretanto, ao final de muito debate, a maioria das

integrantes do comitê optou por restringir as ações do Plano Municipal para as mulheres,

considerando a trajetória histórica tanto nas políticas públicas quanto nos movimentos sociais de

enfrentamento à violência contra a mulher.

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6 Vale destacar que o comitê, do ponto de vista da política pública, é constituído por 23 servidoras municipais e apenas 2 servidores municipais. Outras secretarias até indicaram servidores municipais homens para compor o comitê, porém ao longo dos encontros foram sendo substituídos por servidoras, configurando o atual quadro de representantes. Um aspecto relevante para refletir sobre a maior participação de mulheres no comitê se deve à coordenação geral do comitê ficar a cargo da Diretoria Municipal de Políticas para Mulheres. Tal aspecto evidencia uma concepção endógena de gênero, disseminada na Prefeitura de Belo Horizonte, de que políticas para mulheres devem ser geridas por mulheres e aos homens não caberia nem discutir e nem participar dos encontros do comitê.

O conceito de mulher no Plano foi ampliado, abarcando mulheres cisgêneras, mulheres transgêneras, mulheres transexuais e travestis. No aspecto da orientação sexual, mulheres lésbicas e bissexuais, além das heterossexuais, também foram contempladas nas ações do Plano. Outra abordagem teórica que foi incorporada ao Plano corresponde à interseccionalidade, por meio da qual o marcador social de gênero é analisado em articulação com outros marcadores sociais como raça, classe social, religiosidade, escolaridade, inserção no mercado de trabalho e geração.

Historicamente os estudos de gênero levaram à desconstrução da explicação naturalizada das diferenças entre mulheres e homens por razões biológicas. Uma explicação essencialista de que as diferenças de posição de gênero nas relações sociais fossem derivadas de diferenças hormonais, genéticas ou anatômicas é refutada. As diferenças de gênero são (re)produzidas na linguagem, nos atos e nas concepções de mundo (BUTLER, 2003) sendo aprendidas e desaprendidas ao longo da vida. Assim, aprende-se diferentes habilidades e pode-se ampliar a visão de mundo em cada nova experiência de convivência social.

Ao desconsiderar a dimensão relacional de gênero no Plano Municipal de Equidade de Gênero ficou de fora a discussão das masculinidades, de significativa importância nos estudos pós- criticos de gênero. Discutir as feminilidades sem o contraponto epistemológico das masculinidades (WELZER-LANG, 2001) reduz o espectro de alcance das políticas públicas, uma vez que as discriminações – sexistas e homofóbicas – se convergem ao produzirem relações de poder hierárquicas de gênero. Nessa direção, nos cabe questionar se um homem poderia ser feminista.

Essa questão foi pontuada no comitê e gerou muito debate, muitas divergências e nenhum consenso.

Gênero como uma categoria de análise (SCOTT, 1995) discursiva produz relações de poder

desiguais na sociedade. As relações de poder, quando assimétricas e desiguais, geram submissão,

discriminação e violência. A promoção da equidade de gênero nas políticas públicas não fará

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7 desaparecer as relações de poder, mas poderá produzir relações mais igualitárias, justas, solidárias e democráticas. Assim, desnaturalizar as relações assimétricas entre homens e mulheres é um passo importante no campo das políticas públicas na busca pela garantia dos direitos de cidadania para todas/os (ALVES e SOUZA, 2017).

Na Declaração Universal dos Direitos Humanos encontra-se nos direitos civis, o direito à igualdade. Dentre os direitos sociais, encontram-se os direitos ao trabalho, à educação e à saúde.

Apesar da universalidade dos Direitos Humanos, as desigualdades de gênero têm gerado a violação dos direitos humanos de contingentes expressivos da sociedade ao redor do mundo. Para que todos/as, independentemente de suas condições singulares, sejam sujeitos dos direitos humanos é necessário um esforço contínuo e cotidiano de enfrentamento e de eliminação das desigualdades (MOREIRA, 2015).

A segunda polêmica no Plano Municipal de Equidade de Gênero ocorreu durante a preparação do 1º Seminário Municipal Diálogos para Equidade: políticas públicas e cidadania em Belo Horizonte. O evento contou com 3 painéis de debates teóricos e metodológicos sobre o tema com representantes das políticas públicas, da academia e da sociedade civil, sendo: 1º painel

“Estudo sobre as relações entre mulheres e homens e seus impactos na promoção da equidade nas políticas públicas”, 2º painel “A experiência da Prefeitura com a ONU Mulheres e a Plataforma 50- 50: diagnóstico do município e construção do Plano”; e o 3º painel “Experiências da Sociedade Civil na promoção da equidade”.

Desde o início da organização do seminário, o possível uso da palavra gênero no título do evento tornou-se um dilema entre integrantes e diretorias de algumas secretarias. O título originalmente pensado era 1º Seminário do Plano Municipal de Equidade de Gênero de Belo Horizonte, entretanto após muitas ponderações de ordem estratégica e política, optou-se por retirar a palavra gênero do título, evitando assim o confronto direto com a Câmara Municipal de Vereadores/as, uma vez que o seminário foi realizado no auditório principal da sede da Prefeitura no centro da cidade de Belo Horizonte. A política de silenciamento de gênero na política pública mais uma vez entrou em ação (ALVES, 2020).

A terceira e última polêmica do Plano ocorreu no início do ano de 2020, logo na retomada

dos trabalhos, e consistiu no seguinte questionamento: o Plano é de responsabilidade do Conselho

Municipal da Mulher ou do Governo Municipal de Belo Horizonte? De um lado o Conselho não

tem caráter deliberativo, de outro o Governo Municipal não abre mão do monitoramento das ações

propostas. Tal situação evidencia um entrecruzamento entre os discursos da política pública de

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8 gênero, da sociedade civil e do movimento social de mulheres, revelando uma intricada rede de conexões, poder e linguagem. Na falta de um denominador comum entre disputas políticas de autoria, o Plano deve ser compreendido como pertencente às mulheres da cidade de Belo Horizonte – mulheres cis, mulheres trans, mulheres negras, mulheres lésbicas, mulheres pobres, mulheres bissexuais, mulheres idosas, mulheres deficientes, mulheres trabalhadoras, mulheres estudantes – enfim, mulheres.

Gênero e Currículo: caminhos para uma educação inclusiva

No campo da educação municipal, é importante sinalizar de início certa contradição presente na gestão da Prefeitura de Belo Horizonte no ano de 2017. Apesar de o prefeito ter assinado a Plataforma 50/50 com a ONU Mulheres que originaria o Plano Municipal de Equidade de Gênero, no mesmo ano alguns/mas vereadores/as exigiram a extinção do Núcleo de Gênero e Diversidade Sexual que existia na Secretaria Municipal de Educação desde 2013, bem como das ações relativas às temáticas de gênero na educação, conforme sinaliza Paraíso (2018), “o prefeito assumiu o compromisso de desenvolvimento de políticas públicas de [...] construção de uma sociedade com maior igualdade de gênero [porém, ele] recuou e retirou todas as citações sobre a inclusão de gênero [na] Educação (PARAÍSO, 2018, p. 34 e 35).

Tal contradição política revela o terreno movediço sob o qual a educação está instalada, em especial, quando o termo gênero está presente. A educação tornou-se campo de disputa política por grupos religiosos conservadores que veem a discussão de gênero como uma suposta ameaça à integridade de crianças estudantes (JUNQUEIRA, 2018), além de desconsiderar completamente outros sujeitos educandos/as – adolescentes, jovens, adultos/as e idosos/as – como no caso das inúmeras escolas municipais de Educação de Jovens e Adultos de Belo Horizonte. O modelo de currículo exigido por um grupo de vereadores/as acaba por visibilizar e potencializar os interditos morais determinados por uma parcela da sociedade, se tornando refratário a qualquer modelo que escape do padrão cisheteronormativo e invisibilizando a diversidade de sujeitos e corpos (ALVES, 2020). Os discursos políticos que permeiam o atual cenário retrógrado brasileiro operam pela

“técnica do apagamento” (CALDEIRA, 2018, p. 68) de gênero nos currículos.

Para uma educação de qualidade que se preocupa com a equidade de gênero, é essencial

conceber um currículo permeável às diferenças presentes no cotidiano escolar. Investir nas relações

interpessoais, visibilizar as diversas formas de ser e estar no mundo (ALVES, 2020), problematizar

práticas pedagógicas excludentes e discriminatórias na escola e combater as desigualdades nos

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9 processos de ensino e aprendizagem podem tornar um currículo potente e inclusivo. Segundo Paraíso (2018), “há que inventar outras regras se o mundo está seguindo regras que não servem para o objetivo de fazer do currículo um território de acolhimento, hospitalidade e expansão da diferença (PARAÍSO, 2018, p. 37).

Nesse sentido, pensar a materialização das ações previstas no Plano Municipal no território do currículo pode fomentar práticas pedagógicas de equidade entre meninas e meninos, entre mulheres e homens, tanto pelo viés discente quanto dos/as profissionais que atuam da escola. A educação municipal é majoritariamente feminina, pois segundo dados de 2019 do Sistema de Gestão Escolar da Secretaria Municipal de Educação, do total de cerca de 15 mil docentes, 89% são mulheres e apenas 11% são homens (ALVES e SOUZA, 2017). Alia-se a esse dado, o grande quantitativo de mulheres que trabalham na cantina, biblioteca, serviços gerais e secretaria da escola.

O eixo específico da Educação Inclusiva no texto do Plano Municipal de Equidade de Gênero trata da inclusão de temas relacionados à igualdade de gênero (ODS – 5) e raça na educação e no cotidiano social. Para a Plataforma 50-50 da ONU Mulheres, o referido eixo corresponde ao desenvolvimento de ações formativas em gênero e raça nas escolas municipais, com profissionais, estudantes e toda a comunidade escolar. Na concepção da ONU Mulheres, esse eixo se alicerça nas seguintes propostas: 1) Incluir conteúdos sobre Igualdade de Gênero e Raça nos currículos escolares do sistema público municipal de educação, a fim de prevenir a violência contra mulheres e meninas dentro e fora do ambiente escolar; e 2) Realizar cursos de formação em Igualdade de Gênero e raça para professores/ as e comunidade escolar do sistema público de educação.

Uma educação inclusiva, busca assegurar as condições adequadas para a garantia de ambientes de aprendizagem seguros, eficazes e não violentos. Tais práticas são determinantes no enfrentamento às desigualdades de gênero, raça e etnia do Brasil. Para o Comitê Municipal de Equidade de Gênero, uma educação inclusiva se baseia numa perspectiva de valorização da diversidade de sujeitos envolvidos nos processos educativos.

Na concepção de Paulo Freire (2005), educar não é uma mera transmissão de conhecimentos

e conteúdos, educar vai, além disso, é uma busca constante por humanização. O ser humano não

pode ser neutro frente ao mundo, frente à permanência do que já não representa os caminhos do

humano ou à mudança destes caminhos, (FREIRE, 2005). É preciso fazer escolhas a partir de

reflexões críticas, individuais e coletivas, sobre a sociedade e seus atores e suas atrizes sociais. O

currículo deve ser receptivo às escolhas, às críticas e às mudanças da sociedade, em vez de ser

hermético e refratário ao movimento. A educação ocorre no movimento, no processo e na prática,

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10 resultante dos modos de socialização e subjetivação presentes na relação educadores/as e educandos/as, considerando um determinado contexto histórico, político, cultural e espacial.

Uma abordagem educativa polissêmica ocorre a partir da reivindicação ao direito à diferença que se contrapõe a uma perspectiva homogeneizante que toma o sujeito educando de forma universalista, reducionista e higienista. O direito à diferença na educação implica necessariamente numa prática docente reflexiva e dialogada como elemento primordial na profissão docente em ação (PERRENOUD, 2000). Nesse contexto, torna-se imprescindível conceber uma educação inclusiva em que os processos educativos atravessados por importantes marcadores sociais como gênero, raça, classe social, idade, religião, território geográfico entre outros.

No eixo da educação Inclusiva, o Plano Municipal de Equidade de Gênero prevê uma série de ações no contexto da formação discente, docente e dos/as demais servidores/as da prefeitura, produção de material de apoio à prática pedagógica, parcerias com outras instituições educativas, parcerias entre secretarias municipais e outros órgãos públicos e, por fim, a divulgação de ações nas escolas, bem como a continuidade de projetos pedagógicos sobre o tema da equidade.

Em busca de considerações finais

Retomando o título desse artigo e a reflexão sobre gênero e currículo a partir da experiência de elaboração do Plano Municipal de Equidade de Gênero no município de Belo Horizonte/MG é possível, e necessário, afirmar que devemos, cada vez mais, utilizar os termos educação e gênero numa mesma sentença. Numa perspectiva pedagógica de valorização das subjetividades nos processos de socialização e de enfrentamento aos discursos deletérios de apagamento de gênero (CALDEIRA, 2018) no espaço escolar.

Urge uma política de educação para as relações de gênero nos espaços escolares (ALVES e SOUZA, 2017). Uma educação que não quer destruir a família, nem corromper crianças e adolescentes como dizem os discursos inflamados das ofensivas antigênero. Uma educação que propõe uma ampliação da consciência e da visão de mundo de seus/as estudantes e educadores/as, exercitando a inclusão como uma prática almejada nas escolas. Uma educação que produza um currículo em constante movimento, permeável às diferenças (PARAÍSO, 2018), aberto à alteridade e receptivo ao estranhamento como condição para aprendizagem.

Há ainda um longo caminho a ser percorrido no monitoramento do Plano Municipal de

Equidade de Gênero e no enfrentamento aos silenciamentos (ALVES, 2020) impostos na discussão

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11 de gênero na educação. Afinal a instituição escolar para além de realizar a reconstrução do conhecimento, é o lugar de reflexão critica acerca das implicações políticas e sociais desse conhecimento. Ainda que macropoliticamente seja polêmico falar sobre gênero e educação, micropoliticamente é possível resistir e levar a discussão de gênero para a sala de aula, para os debates e as atividades propostas pela escola, para as relações interpessoais entre docentes e discentes e para a conduta ética e cidadã nos processos de ensino e aprendizagem. Por fim, em busca da equidade entre os diversos modos de existência no mundo torna-se necessário incluir gênero nas práticas curriculares da escola, bem como visibilizar gênero nos textos e, principalmente, nas ações de políticas públicas.

Referências

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FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

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12 JUNQUEIRA, Rogério Diniz. A invenção da “ideologia de gênero”: a emergência de um cenário político e discursivo e a elaboração de uma retórica reacionária antigênero. Psicologia Política, 18(43), p. 449-502, set/dez, 2018.

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HOW TO TALK ABOUT GENDER IN EDUCATION IF GENDER HAS BECOME A DIRTY WORD?

Abstract: This text consists of a cutout of the post-doctoral research in Education conducted at the

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13 Federal University of Minas Gerais between 2019 and 2020, which aims to investigate the theoretical-methodological intersections between gender, curriculum and public policies. Gender, as an analytical, discursive and relational category impacts the teaching and learning processes, as well as the teaching and student relations that integrate an expanded concept of curriculum. In contrast to the Brazilian context of setbacks in public educational policies related to gender, the Belo Horizonte City Hall/MG elaborated the Municipal Plan for Gender Equity based on the municipality's adhesion to the UN Women 50/50 Platform. The Plan foresees actions to promote gender equity through 6 guiding axes, among which the inclusive education axis stands out. Using field diaries and participant observation as methodological strategies, the research proposed a critical analysis of the challenges faced by the intersectoral committee to elaborate and monitor the Plan. The research points out that despite the gender silences that permeate many public policies, the Plan can be thought of as a form of resistance based on confronting sexist violence and the exercise of citizenship.

Key-words: Curriculum; Education; Gender; Public Policy

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