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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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Academic year: 2022

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo

nível."

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APRESENTAÇÃOAPRESENTAÇÃO É doce, m as não é m ole não

Por Xico Sá O cabra m al com eça, acabou-se. De tanto punch, de tão am argo, de tão doce — prosa-rapadura, contraditória?!

A gente lê voando, priu, num sopro.

É porrada, m as sem ser chato. O cara tem a m anha, a m úsica que não deixa esvaziar a pista.

Prosódia corrida que vem lá dos cafundós, lá de nós. Da m oral dos banzos que guardam o possível blues da palha da cana. Os gritos que dão em Zum bis e negros que em branquecem , com o no escravo do conto "Meu Negro de Estim ação". Fábula à Michael Jackson?

Marcelino Freire escreve com o quem pisa no m assapê, chão de barro negro, com o a fala preta am assada entre os dentes, no terreiro da sintaxe, dos dim inutivos dobrados nas voltas da língua, com o o outro Frey re, o com "y ".

É doce, m as num é m ole não. É m úsica, de quem assobia e chupa a cana caiana das heranças. De quem m asca o bagaço das pestes, das chagas, dando um nó de pulha no falar da casa-grande, a fala supostam ente civilizatória...

até hoj e.

Assim falou Totonha, no seu canto XI: Morrer j á sei. Com er, tam bém . De vez em quando, ir atrás de preá, caruá. Roer osso de tatu. Adivinhar quando a coceira é só um a coceira, não um a doença.

Aqui não tem o ilum inism o besta.

Tem o pau-grande & a senzala em branquecida de desej os. É doce, m as num é m ole não.

Tem a assonância, m úsica que se bole entre Luiz Gonzaga e Cay m m i, que vai deixando rastro, com o num assobio da prosa esquecida e grande do Herm ilo Borba Filho.

E o "Solar dos Príncipes", que conto! "Dialética do esclarecim ento"

para os sugadores estéticos da pobreza parda, branca ou negra. Sorria, sorry,

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periferia, você está sendo invadido pelas câm eras do cinem a-verdade!

Na m aciota, o Freire de Sertânia, Pernam buco, e da bagaceira de São Paulo — não o Frey re à som bra das pitangas de Apipucos —, dá belas chibatadas no gosto m édio e preconceituoso, com gozo, gala, esporro, com doce perversidade, sem pre no afeto que se encerra num a rapadura.

É doce, m as num é m ole não.

Esse é o m antra. Do Freire com "i" de Burundi e de Haiti, dos pretos de longe e dos pretos daqui de perto, das pretas, de todas as negas entregues aos tarados acidentais, das índias, das boy zinhas de Cuba e do Pina, da dor m estiça, banzo de todas as freguesias.

São Paulo, Brasil, j ulho de 2005.

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CANTO PRIMEIRO TRABALHADORES DO BRASIL

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Enquanto Zum bi trabalha cortando cana na zona da m ata pernam bucana Olorô-Quê vende carne de segunda a segunda ninguém vive aqui com a bunda preta pra cim a tá m e ouvindo bem ?

Enquanto a gente dança no bico da garrafinha Odé trabalha de segurança pega ladrão que não respeita quem ganha o pão que o Tição am assou honestam ente enquanto Obatalá faz serviço pra m uita gente que não levanta um saco de cim ento tá m e ouvindo bem ?

Enquanto Olorum trabalha com o cobrador de ônibus naquele transe infernal de trânsito Ossonhe sonha com um novo am or pra ganhar 1 passe ou 2 na praça turbulenta do Pelô fazer sexo oral anal sej a lá com quem for tá m e ouvindo bem ?

Enquanto Rainha Quelé lim pa fossa de banheiro Sam bongo bungo na lam a e isso parece que dá grana porque o povo se j unta e aplaude Sam bongo na m erda pulando de cim a da ponte tá m e ouvindo bem ?

Hein seu branco safado?

Ninguém aqui é escravo de ninguém .

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CANTO II SOLAR DOS PRÍNCIPES

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Quatro negros e um a negra pararam na frente deste prédio.

A prim eira m ensagem do porteiro foi: "Meu Deus!" A segunda: "O que vocês querem ?" ou "Qual o apartam ento?" Ou "Por que ainda não consertaram o elevador de serviço?"

"Estam os fazendo um film e", respondem os.

Caroline argum entou: "Um docum entário". Sei lá o que é isso, sei lá, não sei. A gente m ostra o docum ento de identidade de cada um e pronto.

"Estam os film ando."

Film ando? Ladrão é assim quando quer sequestrar. Acom panha o dia- a-dia, costum es, a que horas a vítim a sai para trabalhar. O prédio tem gerente de banco, m édico, advogado. Menos o sindico. O síndico nunca está.

— De onde vocês são?

— Do Morro do Pavão.

— Viem os gravar um longa-m etragem .

— Metra o quê?

Metralhadora, cano Longo, granada, os negros arm ados até as gengivas. Não disse? Vou correr. Nordestino é hom em . Porteiro é hom em ou não é hom em ? Caroline dialogou: "A ideia é entrar num apartam ento do prédio, de supetão, e film ar, fazer um a entrevista com o m orador."

O porteiro: "Entrar num apartam ento?"

O porteiro: "Não."

O pensam ento: "Tô fodido."

A idéia foi m inha, confesso. O pessoal vive subindo o m orro para fazer film e. A gente abre as nossas portas, m ostra as nossas panelas, m erda.

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Foi assim : com prei um a câm era de terceira m ão, m arcam os, ensaiam os uns dias. Im agens exclusivas, colhidas na vida da classe m édia.

Caroline: "Querido, por favor, m eu am or." Caroline m ostrou o m icrofone, de longe. Acenou com o batom , não sei.

Vou bem levar paulada de m icrofone? O m icrofone veio em prestado de um pai-de-santo, que patrocinou.

O porteiro apertou o apartam ento 101, 102, 108. Foi m exendo em tudo que é andar. Estou sendo assaltado, pressionado, liguem para o 190, sei lá.

A graça era ninguém ser avisado. Perde-se a espontaneidade do depoim ento. O condôm ino falar com o é viver com carros na garagem , saldo, piscina, com putador interligado. Dinheiro e sucesso. Festival de Brasília. Festival de Gram ado. A gente fazendo exibição no telão da escola, no salão de festas do prédio.

Não.

A gente não só ouve sam ba. Não só ouve bala. Esse porteiro nem parece preto, deixando a gente preso do lado de fora. O m orro tá lá, aberto 24 horas. A gente dá as boas-vindas de peito aberto. Os m alandrões entram , tocam no nosso passado. A gente se abre que nem passarinho m anso. A gente desabafa que nem papagaio. A gente canta, rebola. A gente oferece a nossa coca-cola.

Não quer deixar a gente estrear a porra do porteiro. É foda. Dom ingo, hoj e é dom ingo. A gente só quer saber com o a fam ília alm oça. Se fazem a m esm a festa que a nossa. Prato, feij oada, guardanapo. Caralho, não precisa o síndico. Escute só. A gente vai tirar a câm era do saco. A gente m ostra que é da paz, que a gente só quer m elhorar, assim , o nosso cartaz. Fazer cinem a. Cinem a.

Vej a Fernanda Montenegro, quase ganha o Oscar.

— Fernanda Montenegro não, aqui ela não m ora.

E avisou: "Vou cham ar a polícia."

A gente: "Cham ar a polícia?"

Não tem quem goste de polícia. A gente não quer esse tipo de notícia.

O esquem a foi todo m ontado num puta dum sacrifício. Nicholson deixou de ir vender churro. Caroline desistiu da boate. Eu deixei esposa, cadela e filho. Um longa não, é só um curta. Alegria de pobre é dura. Film a. O quê? Dei a ordem :

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film a.

Com eçam os a film ar tudo. Alguns m oradores posando a cara na sacada. O trânsito que transita. A sirene da polícia. Hã? A sirene da polícia. Todo film e tem sirene de polícia. E tiro. Muito tiro.

Em câm era violenta. Porra, Johnattan pulou o portão de ferro fundido. O porteiro trancou-se no vidro. Assustador. Apareceu gente de todo tipo.

E a idéia não era essa. Tivem os que im provisar.

Sem problem a, tudo bem . Na edição a gente m anda cortar.

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CANTO III ESQ UECE

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Todo cam burão tem um pouco de navio negreiro.

MARCE L O YUKA

Violência é o carrão parar em cim a do pé da gente e fechar a j anela de vidro fum ê e a gente nem ter a chance de ver a cara do palhaço de gravata para não perder a hora ele olha o tem po perdido no rolex dourado.

Violência é a gente naquele sol e o cara dentro do ar condicionado um a duas três horas quatro esperando um a m elhor oportunidade de a gente enfiar o revólver na cara do cara plac.

Violência é ele ficar assustado porque a gente é negro ou porque a gente chega assim nervoso a ponto de bala cuspindo gritando que ele passe a carteira e passe o relógio enquanto as bocas buzinam desesperadas.

Violência são essas buzinadas e essa fum aça e o trânsito parado e o outro carro que não entende que se dependesse da gente o roubo não dem oraria essa eternidade atrapalhando o m ovim ento da cidade.

Violência é você pensar que tudo deu certo e nada deu certo porque quando você vê tem um policial ali perto e outro policial ali perto querendo salvar o patrim ônio do bacana apontando para a nossa cabeça um 38 e outro 38 à paisana.

Violência é acabarem com a nossa esperança de chegar lá no barraco e beij ar as crianças e ligar a televisão e ver aquela m esm a discussão ladrão que rouba ladrão a aprovação do m ínim o ficou para a próxim a sem ana.

Violência é a gente ficar com a m ão levantada cabeça baixa em frente à m ultidão e depois entrar no cam burão roxo de hum ilhação e pancada e chegar na delegacia e o cara puxar a nossa ficha corrida e dizer que vai acabar

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outra vez com a nossa vida.

Violência é a gente receber tapa na cara e na bunda quando socam a gente naquela cela im unda cheia de gente e m ais gente e m ais gente e m ais gente pensando com o seria bom ter um carrão do ano e aquele relógio rolex m as isso fica para depois um a outra hora.

Esquece.

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CANTO IV ALEMÃES VÃO À G UERRA

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Alô, Johann. Johann. Com o as negrras do Nepal, tem . Das Ilhas Virrgens tam bém . É só irr. Feito as m ocinhas da Guiana. Da prraia do Pina, depois do hotel, é só irr. Prreparra a m ala, Johann. Deixa a m ala prronta.

É só vestirr o calçoão e a film adorra. Darr um a piscadela boa. À vista o Redentorr. O m arr de Copacabana. Alô, Johann. É só irr, Johann. Alô, Johann.

Johann, irr.

Nosso dinheirro salvarria, porr exem plo, as negrrinhas do Haiti.

Barratas com o as negrras de Burrundi. Trouxe um a parra aqui, lem brra? Faz tem po que eu trouxe um a parra aqui.

Aj udei a prreserrvarr, no m eu pescoço os dentes de m arrfim . Hoj e, ela ganha ensinando ao povarréu de Berrlim . Em Mönchengladbach, dança.

Ganha a sorrte no sam ba.

A gente acaba dando educaçoão a esse povo, Johann. E um pouco de esperrança. E herrança, Johann, com o aquela que o nosso am igo deixou parra as crrianças.

O que serria dela sem m im , Johann, m e diz. Eu é que noão quis m ais aquela infeliz. Pulei forra, com o os pobrres de Cuba. Abandonei o barrco. Nada m ais de j et ski.

Você ri, Johann, você ri? É verrdade. Antes que ela m e m andasse parra a Cochinchina. Nem sei se tem negrras na Cochinchina. Johann, alô. Alô, Johann. Se tiverr, eu vou.

Sei. Em todo canto tem . Júpiterr, Marrte. No burraco negrro, em toda parrte. Ainda bem . O m undo é dos negrros. Alô, Johann. Tem , sim , e estão nos esperrando.

Vam os? O que não podem os é ficarr neste clim a. Orra, é só passarr prrotetorr. Quem m anda serr m uito brranco? Pensa, Johann. Salvadorr, Salvadorr.

O que não falta nesse m undo, Johann, é am orr.

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CANTO V VANICLÉLIA

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U, hum . Agora ter que aguentar esse bebo belzebu. O que é que ele m e dá? Bolacha na desm ancha. Porradela na canela. Eu era m ais feliz antes.

Quando o avião estrangeiro chegava e a gente rodava no aeroporto. Na boca quente da praia. Pelo m enos, um príncipe m e encantava. Naquele feitiço de sonho. De ir conhecer outro Lugar, se encher de ouro. Com prar aliança. U, hum . Casar tinha futuro. Mesm o sabendo de um as que quebravam a cara.

O gringo era covarde, levava para ser escrava. Mas valia. Menos pior que essa vida de bosta arrependida. De coisa criada. Qual é a m inha esperança com esse m arido barrigudo, eu grávida? Que leite ele vai construir?

Se for m enina, vou ensinar assim : no porto, no Carnaval. No calçadão de Boa Viagem . Com cuidado para a polícia não ver a sacanagem . E querer participar. Um dia, eu tive que foder com a tropa inteira da delegacia. Mexeram com igo até o dia am anhecer. E ainda ficaram tirando onda: que eu devia respeitar o hom em brasileiro. Rarará. Mataram a Vaniclélia, lem bra, não lem bra, lem bra? De tanto que afolozaram ela.

Hom em ? U-hum . Não vale um tostão pelas bandas daqui. Os caras pelo m enos tinham educação, outra finura: levavam a gente para restaurante, deitavam a gente em cam a d'água. Sabonete de colônia. A gente era respeitada.

Precisava ver com o o garçom e o pivete e o gerente e o taxista da frente e o povo todo nos tratava. O que cada um ganhava de gorj eta não era brincadeira.

Acabava saindo rendendo pra todo m undo. Um a beleza!

Agora que valor m e dá esse belzebu? Quanto vale ele ali, na praça?

Pergunta, pergunta. A vida dele é m e cham ar de piranha e de vagabunda. E tirar sangue de m im . Cadê m eus dentes? Nem vê que eu tô esperando um a criança.

Agora, disso ninguém tem ciência. Ninguém dá um fim . Mulher com o eu ser tratada assim .

(19)

CANTO VI LINHA DO TIRO

(20)

— Não quero.

— Hã?

— Já disse que não quero.

— O quê?

— Chocolate.

— Chocolate?

— Você quer m e vender chocolate, não é?

— Que chocolate, m inha senhora?!!

— Bala-chiclete?

— Não, porra!

— O senhor é Hare Krishna, não é?

— Hã?

— Da Igrej a Am anhecer em Cristo, essas coisas?

— Não!

— É cego?

— Cego?

— Tá com um a ferida e quer com prar rem édio?

— Chega, caralho!

— O quê?

— Isto é um assalto, não tá vendo?

— Onde?

(21)

— Aqui dentro do ônibus.

— E por que você não faz algum a coisa?

— Eu?

— Cham a a polícia?

— Essa velha é doida!

— Quem é doida?

— Chapadona! Passa logo a bolsa.

— Não falei?

— O dinheiro, m inha senhora.

— Não quero.

— Hã?

— Já disse que não quero.

— O quê?

— Chocolate.

— Chocolate?

— Você quer m e vender chocolate, não é?

— Que chocolate, m inha senhora?!!

— Bala-chiclete?

— Não, porra!

— O senhor é Hare Krishna, não é?

— Hã?

— Da Igrej a Am anhecer em Cristo, essas coisas?

— Não!

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— É cego?

— Cego?

— Tá com um a ferida e quer com prar rem édio?

— Chega, caralho!

— O quê?

— Isto é um assalto, não tá vendo?

— Onde?

— Aqui dentro do ônibus.

— E por que você não faz algum a coisa?

— Eu?

— Cham a a polícia?

— Essa velha é doida!

— Quem é doida?

— Chapadona! Passa logo a bolsa.

— Não falei?

— O dinheiro, m inha senhora.

— Não quero.

— Hã?

— Já disse que não quero.

— O quê?

— Chocolate.

— Chocolate?

— Você quer m e vender chocolate, não é?

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— Que chocolate, m inha senhora?!!

— Bala-chiclete?

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CANTO VII NAÇÃO ZUMBI

(25)

zum bi.

fantasm a que vaga pela noite m orta.

(26)

E o rim não é m eu? Logo eu que ia ganhar dez m il, ia ganhar. Tinha até m arcado um a feij oada pra quando eu voltar, um a feij oada. E roda de sam ba pra gente rodar. Até clarear, de m anhã, pelas bandas de cá. E o rim não é m eu, saravá? Quem m e deu não foi Aquele-Lá-de-Cim a, Meu Deus, Jesus e Oxalá?

O esquem a é bacana. Os caras chegam aqui e levam a gente pra Luanda ou Pretória. No m aior conforto e na m aior glória. Puta oportunidade só um a vez na vida, quando agora? Dar um pulinho na cidade de Nam pula? Quem sabe, tirar fotografia? Abraçar outro negrão igual a m im , conversar noutra língua m esm o sem saber conversar?

Assim : lorotar, contar piada. Dançar no fogo, sei não. Em cim a de brasa, dentro de caldeirão. Sum ir na m ata fechada. Espinho de flecha, pedra de am olar. Disseram que na África tem m uita m acacada. Tem m uito Leão e zebra.

Hipopôtam o-pigm eu, quem j á ouviu falar? Nem eu.

Dizem que é bonito o hospital de lá. Bom de se internar. De se recuperar. Livre com ércio de rim , sim . Isso m esm o, o que é que há? Meu sonho não foi sem pre o de voar, feito um Orixá? Pôr m eus pés em cabine de avião? Diz aí, m eu irm ão, m inha asa quem m andou cortar? Quando irei sorrir quando a nuvem m e pegar? Ver o chão lá de cim a? Recife com endo as beiradas de Olinda.

De Longe, as pedras de Itam aracá.

Que m erda!

Por que não cuidam eles deles, ora essa? O rim é m eu ou não é? Até um pé eu venderia e de m uleta eu viveria. Na m inha. Um olho enxerga pelos dois ou não enxerga? Se é pra livrar m inha barriga da m iséria até cego eu ficaria.

Depois eu ia ali na ponte, ao m eio-dia, ganhar m ais dinheiro. Diria que foi um acidente, que esses buracos apareceram de repente, em cim a do m eu nariz.

Quem quer ver a agonia de um doente, assim , infeliz, hein, com panheiro?

Fácil é denunciar, cagar regra e caguetar. O que é que tem ? O rim não é m eu, bando de filho da puta? Cuidar da m inha saúde ninguém cuida. Se não fosse eu m esm o m e alim entar. Arranj ar batata e caruá, pirão de caranguej o.

Não tenho m edo de cara feia, não tenho m edo.

(27)

Por que vocês não se preocupam com os m eninos aí, soltos na rua?

Tanta criança m orta e inteirinha, desperdiçada em tudo que é esquina. Tanta córnea e tanta espinha. Por que não se aproveita nada no Brasil, ora bosta? Viu?

Aqui se m ata m ais que na Etiópia, à m íngua. Meu rim ia salvar um a vida, não ia salvar? Diz, não ia salvar? Perdi dez m il, e agora?

A polícia em m inha porta, vindo pra cim a de m im . Puta que pariu, que sufoco! De invej a, sei que vão encher m eu pobre rim de soco.

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CANTO VIII CORAÇÃO

(29)

Bicha devia nascer sem coração. É, devia nascer. Oca. É, feito um a porta. Ai, ai. Não sei se quero chá ou café. Não sei. Meus nervos à flor de algodão. Acendo um cigarro e vou assistir televisão. Televisão. O especial de Roberto Carlos todo ano. Ai, que am olação! Esse coração de m erda. Bicha devia nascer vazia. Dentro do peito, um peru da Sadia. É, devia.

Célio conheceu Beto na estação de trem , em setem bro. Moreno bonito. Célio acariciou o m em bro de Beto no aperto vespertino, no balanço ferroviário. Beto gozou na m ão do viado. Encabulado, m ascou seu chiclete, desceu e nem olhou para trás, para Célio. Célio feliz por um certo tem po. A gosm a entre os dedos. A porra a gente esconde no ferro, debaixo do banco.

Depois encontrei com ele de novo. Oi, oi. Perguntou se eu tinha um cigarro, se m orava na XV de Novem bro. Se eu trabalhava, de quê trabalhava, essas coisas. Se ele podia m e acom panhar até em casa. E você? Deixei, deixei.

Eu não tenho m edo. Se for um ladrão, não tem o que levar. E ele parecia, sei lá, um m enino bom . Bafão, m ona. Abra a j anela que eu estou ficando tonta.

Era feriado de 7 de Setem bro. O povo descendo cariado, passando catracas, barracas. Célio se sentindo...

A dona do puto.

...na com panhia de Beto, que vestia cam iseta branca, calça bege, m eio j egue, de peito cabeludo.

— Chegam os.

Havia caçarolas cinzas no fogão, pratos, ossos e esponj a. No quartinho, colchas coloridas.

Conquista de território.

Aí o bofe tom ou um ki-suco de m orango, com eu um om elete, conversou pouco e nada. Não rolou nada aquele dia, acredita? Ele travou, não sei.

Não-m e-toque, eu não toquei. E assim a gente ficou. Ele saiu chupando um chiclete de uva-m açã-verde. Eu am arelei.

(30)

Depois disso, quem disse que Célio se concentrou nos seus desenhos?

Fazia m oda verão, inverno, j aquetas e turbantes. E pensava na boca de Beto, no desodorante. No dia em que ele gozasse no seu travesseiro de cetim . Ai, ai de m im . Procurou o m oreno em todos os vagões. Não esqueceu nenhum .

A pior coisa, am iga, é um a trepada quando fica engasgada. Vira um a lem brança agoniada. Uh!

Encontrou Beto um a sem ana depois. Na m esm a hora em que estava m asturbando outro, desiludido e oco. Um loiro que nem chegava aos pés do m oreno m isterioso. Epa! Correu e disse algum a coisa: algo com o "Om elete recheado". Vam os de novo?

Foram e chegaram .

No quartinho, colchas coloridas. Conquista de território, nunca se sabe. O m undo é cheio de voltas desconfortáveis. Mas de hoj e não passa.

Aí o bofe tom ou ki-suco e com eu om elete. Tinha bolo Souza Leão. Foi quando ele perguntou se podia dorm ir com igo aquela noite. Claro que sim , se não! O rádio-relógio tocando Maria Bethânia, as canções que você fez para m im . Eu não tive dúvida. Fui tirando a roupa do bofe. Uau! Menina! Bicha devia nascer sem coração, tô te falando.

Quando acordou, depois de tanto prazer, cadê aquele am or? O m enino saiu, na m adrugada. Evaporou-se. Com o? Célio viu se tudo na casa estava em ordem . As caçarolas intactas, os ossos continuavam à m ostra. Ora, que m enino m ais capeta! Só sobrou o chiclete, acredita?

Ai, ai. Mesm o assim , cheio de form iga.

Cheguei atrasado na confecção, na terça. Não quis alm oço, não fiz m arm ita. Lá fui eu de novo atrás do bofe. Com o um a anta perdida. Não tem coisa pior do que o abandono. Depois de um a trepada daquela, tudo parecia ser eterno. Aí é que a gente se engana.

Nada, m ona.

No lugar do coração, bicha devia ter um a bom ba. A m inha vontade era ter um a granada, para estourar no trem . Para fazer um a desgraça, j uro. Só assim , Deus vai olhar para m im . Vai m e trazer de volta aquele anj o. Sim , porque era um anj o. Não m e roubou. Não m e bateu. Sabe o que ele m e falou? Que queria ser corredor de Fórm ula-I. Vai ver foi isso. Zum m m m m .

(31)

Até hoj e, nem som bra. Célio não quis saber de outro cara. Mesm o que alguns só faltassem esfregar o pau na sua...

Você m e respeite.

Tem um , lá no Brás, que vive convidando o Célio para ir ao parque.

Para com er tapioca com crem e de leite. Naquele Natal, até ganhou do cara um peru da Sadia, um vinho...

Não aguentei ficar em casa, sozinho, e vim tom ar um café com você.

Essa bosta de tristeza que bate no coração da gente, de repente. Que desm antelo!

Bem que Roberto Carlos podia cortar esse cabelo. E eu, nascer sem coração, repetiu. É, sem coração.

Para não ter que ouvir essa canção.

(32)

CANTO IX CADERNO DE TURISMO

(33)

Zé, essa é boa. O que danado a gente vai fazer em Lisboa? Bariloche e Shangri-lá? Traslados para lá. Para cá. Travessia de barco pelos Lagos Andinos? Nunca tinha ouvido falar em Viña del Mar. Valparaiso. A gente não devia sair do lugar.

Quem j á viu se aventurar na Ilha do Cipó? Ilha do Maraj ó? Itacaré?

Fugir de dentada de j acaré? O que você quer, hom em ? Sem dinheiro, chegar aonde? Não tem sentido. Oklahom a, nos Estados Unidos. É delírio. Peregrinar até as m úm ias do Egito.

Que história é essa de cruzeiro m arítim o? Caribe, Terra dos Vikings?

Mediterrâneo? Enfrentar o Oceano Atlântico? Canadá, Canaã? Deserto de Atacam a? Que besteira! Ir para Bali, Beij ing, Xian, Xangai, Hong Kong.

Zé, olhe bem defronte: que horizonte você vê, que horizonte? Pensa que é fácil colocar nossos pés em Orlando? Los Angeles? Valle Nevado? Que língua você vai falar no Cairo? Em Leningrado? Nem sei se existe m ais Leningrado.

Zé, esquece.

Nada de Andaluzia. Taiti. A gente fica é aqui. Que Sevilha? Roteiro Europa Maravilha. Safári na África pra quê? Passar m ais fom e? Leste Europeu, Escandinávia, PQP.

Presta atenção: a gente nem conhece o Brasil direito. Bonito, Chapada Diam antina. Dos Veadeiros. A gente não conhece a Am érica Latina. Guiana e Guiana Francesa. Não existe beleza. Não existe Rota do Sol, Rota das Estrelas.

Perca, atrase a viagem , Zé.

Não parta.

Você não vai para a Ilha de Malta, não vai. Eu não deixo. A vida da gente é aqui m esm o. Sem pre foi aqui m esm o. Não nascem os no Berço da Civilização, Istam bul e Capadócia.

Zé, o que deu na tua cabeça, ora j oça? Estam os longe de Miam i, hom em . Acapulco e Surinam e. Nosso destino é um só. A gente não tem dólar. A gente não tem cartão. Deixa de im aginação. Você não tem m edo de avião? Tanta

(34)

asa que cai pelo chão.

Atentado, bom ba em Bengasi, doença em Botsuana. Zé, estou sendo franca: olha bem para nossa cara. Por que partir para a Dinam arca? Caracas?

Cancún, Congo?

Cachorro a gente enterra em qualquer canto.

Enterra aí no quintal, Zé. E pronto.

(35)

CANTO X NOSSA RAINHA

(36)

Mãe, eu quero ser Xuxa. Mas m inha filha. Eu quero ser Xuxa. A m enina não tem nem nove anos, fica tagarelando com as bonecas. Com as pedras do Morro. Eu quero ser Xuxa. Mas m inha filha.

A m ãe ia fazer um book, com o? Viu no j ornal quanto custa. Perguntou ao patrão, no Leblon. Um absurdo! Ia bater na porta da Rede Globo? Nunca.

A m enina parecia um a lom briga. Porque nasceu desm ilinguida. Mas vivia dizendo, a quem fosse: eu quero ser Xuxa. Que coisa! Que doença! Ainda era m uito pequena. Eu quero ser Xuxa.

Quem não pode se acode.

A m ãe j á vivia da aj uda do povo. Mas tinha de levar a m enina ao cinem a. Toda vez que aparecia um film e novo. O que Xuxa está pensando? O que Padre Marcelo está pensando? Que tanto disco à venda, que tanto boneco, que tanta prece! Tenha santa paciência.

O Padre Marcelo a m ãe trocou por um pai-de- santo. Esse, pelo m enos, só m e pede um as velas. De quando em quando, um a galinha preta. Que eu aproveito e levo daqui, quando tem réveillon. Despacho de rico só tem o que é bom . Mas a m enina não tem j eito. É um a paixão que não tem descanso.

Eu quero ser Xuxa. Eu quero ser Xuxa. Eu quero ser Xuxa. Um dia eu esfolo essa condenada. Deus m e perdoe. Essa danada da Xuxa. Dou um a surra nela para ela tom ar j eito. Fazer isso com filha de pobre. Que horror!

A m ãe m al chegou do trabalho a m enina j á falou. Que a Xuxa vem esse final de sem ana. O que ela vem fazer no m orro?, a m ãe perguntou. Se a Xuxa que eu conheço aqui é só você, querida. Ali- sou a cabeça da m aldita, deu um abraço cego e m andou dorm ir. Maldita, sim . Quem disse que a danada foi pra cam a? Puta que pariu!

A m ãe tinha de faltar ao trabalho de novo. Tinha m edo que a filha tivesse um troço. Se j ogasse debaixo do carro, sei lá. Fosse pisoteada, que rem orso! Eu não. Mãe que é m ãe acom panha a filha no dia m ais feliz da sua vida.

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Pendurou a m enina nas costas e enfrentou o calor. E o em purra- em purrão. E tam bém gritou para ver se a Xuxa ouvia: Xuxa, Xuxa, Xuxa. Pelo am or de Deus! Faz essa m enina calar a boca. Diz pra ela pensar em outra coisa, sonhar com os pés no chão.

Quando ela vai ser, assim com o você, um dia? A Rainha dos Baixinhos nossa Rainha da Bateria, sei não, sei lá.

O m orro nessa euforia, todo m undo doido para vê-la sam bar.

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CANTO XI

TOTONHA

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Capim sabe Ler? Escrever? Já viu cachorro Letrado, científico? Já viu j uízo de valor? Em quê? Não quero aprender, dispenso.

Deixa pra gente que é m oço. Gente que tem ainda vontade de doutorar. De falar bonito. De salvar vida de pobre. O pobre só precisa ser pobre.

E m ais nada precisa. Deixa eu, aqui no m eu canto. Na boca do fogão é que fico.

Tô bem . Já viu fogo ir atrás de sílaba?

O governo m e dê o dinheiro da feira. O dente o presidente. E o vale- doce e o vale-Lingüiça. Quero ser bem ignorante. Aprender com o vento, tá m e entendendo? Dem ente com o um m osquito. Na bosta ali, da cabrita. Que ninguém respeita m ais ii bosta do que eu. A quím ica.

Tem coisa m ais bonita? A geografia do rio m esm o seco, m esm o esculham bado? O risco da poeira? O pó da água? Hein? O que eu vou fazer com essa cartilha? Núm ero?

Só para o prefeito dizer que valeu a pena o esforço? Tem esforço m ais esforço que o m eu esforço? Todo dia, há tanto tem po, nesse esquecim ento.

Acordando com o sol. Tem m elhor bê-á-bá? Assoletrar se a chuva vem ? Se não vem ?

Morrer j á sei. Com er, tam bém . De vez em quando, ir atrás de preá, caruá. Roer osso de tatu. Adivinhar quando a coceira é só um a coceira, não um a doença. Tenha santa paciência!

Será que eu preciso m esm o garranchear m eu nom e? Desenhar só para a m ocinha aí ficar contente? Dona professora, que valia tem m eu nom e num a folha de papel, m e diga honestam ente. Coisa m ais sem vida é um nom e assim , sem gente. Quem está atrás do nom e não conta?

No papel, sou m enos ninguém do que aqui, no Vale do Jequitinhonha.

Pelo m enos aqui todo m undo m e conhece. Grita, apelida. Vem m e cham ar de Totonha. Quase não m udo de roupa, quase não m udo de lugar. Sou sem pre a m esm a pessoa. Que voa.

Para m im , a m elhor sabedoria é olhar na cara da pessoa. No focinho

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de quem for. Não tenho m edo de linguagem superior. Deus que m e ensinou. Só quero que m e deixem sozinha. Eu e a m inha língua, sim , que só passarinho entende, entende?

Não preciso ler, m oça. A m ocinha que aprenda. O prefeito que aprenda. O doutor. O presidente é que precisa saber Ler o que assinou. Eu é que não vou baixar a m inha cabeça para escrever.

Ah, não vou.

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CANTO XII POLÍCIA E LADRÃO

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Parece criança, Nando. Esquece essa arm a, vam os conversar. Antes do pessoal chegar. O pessoal j á vem . Eu aviso para a sua m ãe que tudo acabou bem .

Esse tiro na perna não foi nada. Não adianta ser teim oso, cara.

Lem bra? Quando a gente m ontava em cavalo de vassoura. Voava do telhado.

Entrava dentro do quadrado da escada. Ali, a gente guiava o nosso carro. Dentro da escada, entre os degraus da escada, lem bra?

Por favor, deixa essa arm a largada, vam os conversar. Me aj uda a lem brar: o dia que a gente foi roubar a dona da padaria. Era m uita chata a dona da padaria, por isso a gente foi lá.

Era noitinha. Você sabia com o entrar na padaria porque o seu tio trabalhava de confeiteiro, lem bra? Os bolos que ele fazia e que a gente com ia?

Até que desconfiaram que ele tava fazendo bolo para bandido. Esconder 38 na rosquinha de coco. Seu tio quase foi preso, coitado. Que m olecagem , Lem bra?

Que assalto!

A gente conseguiu entrar pela garagem , m e parece. A gente chupou picolé, com eu bolachas Maria. A gente tom ou guaraná e m ascou chiclete. A gente nem queria sair m ais de lá. A gente pegou m oeda. Tudo porque a gente não gostava da dona da padaria. Ela sem pre dizia que a gente roubava algum a coisa:

um pirulito. Bala na m aior cara dura.

A gente não tinha ainda essa cara dura que ela dizia, não tinha. Por isso que você teve a idéia da gente virar ladrão de verdade. E ir à padaria, no outro dia, só para olhar o desespero da broaca. Lem bra? Serviço de gente grande, ela nem desconfiaria. A gente entrou de m áscara. Feita de j ornal. E a gente levou um apito j unto. Para que era m esm o o apito, Nando?

Fala, Nando. Escuta: a gente é am igo desde m uito tem po e não pode ficar aqui, brigando. Você é teim oso dem ais, Nando. Sem pre foi. Lem bra?

Quando pulava na lam a só para fugir da escola. O seu negócio era j ogar bola. Eu nunca fui bom de bola. Gostava era de te ver j ogando e driblando.

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Eu torcia por você, Nando, sem pre torci. Todo m undo tinha m edo de você em cam po. Não sei. As coisas se com plicaram depois que seu pai m orreu. Depois que incendiaram o barracão. Bateram na sua m ãe. Corri lá para ver se você escapou do fogo.

Ali, sim , você ganhou um a cara dura, de dem ônio. Saindo do fogo e chorando. Chorando m uito. Algum a coisa fum açando no peito, sei lá. Eu entendo.

Eu só não entendo a gente perdendo tem po com essa intriga. Daqui a pouco o pessoal chega, Nando. Porra, há quanto tem po! Não era bem assim que eu queria te encontrar. Os dois aqui, deitados, com o naquele dia. Logo depois do roubo da padaria. A gente ficou em cim a da laj e, de barriga cheia, im aginando com o seria a vida em outros planetas. Lem bra? Se existiam favelas em outros planetas. Se era legal m orar na Lua.

Porra, Nando, não com plica. Parece criança. Já falei para você esquecer, não adianta se arrastar na gram a. Já perdem os m uito sangue, Nando.

Para que apontar essa arm a para a m inha cabeça, am igo? Não aponta.

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CANTO XIII MEUS AMIG OS COLORIDOS

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Prim eiro foi o Cadu. Não Lem bro. Kiko, o m eu prim o. Não Lem bro.

Tudo no banho de ribeirão. A gente ia m ergulhar no açude. Lodo de caram uj o.

O Cadu foi o segundo, perto do cam po. O segundo. A gente j ogou bola. A m olecada era só gritar que eu deixava o atacante passar. Minha Lem brança de futebol é zero.

Depois veio o Beto. Beto com onze anos. A gente ia j ogar bafo. Essa figurinha é m inha. E o vento assanhando as figurinhas. Passar a Língua na palm a da m ão.

O irm ão de Beto tam bém queria. O prim o do Beto. Tem que com pletar o álbum para ganhar um a bicicleta. A gente se j untava e pulava o m uro do cem itério. O cem itério quente. E as caveiras contentes. A gente chutava osso. A alm a não doía.

Aí depois eu conheci o Hum berto. Hum berto m e levava para ver vídeo. E a gente discutia fotografia. E j azz. Hum berto tocava saxofone. A gente desligava o telefone. E ficava aquela m elodia. Hum berto fum ava m aconha.

Depois apareceu o João Gilberto. A gente foi j unto ver o film e: Não Lembro. Só sei que foi um a m erda.

Conheci tam bém o dr. Salém . Nunca tive um am igo assim , bem m ais velho. Aconteceu. Quando vi, viaj am os para a Nova Guiné. E Kawasaki. Não sabia que havia um a floresta fálica em Kawasaki.

Depois apareceu o Herm es. Ele trabalhava onde eu trabalhava. E a gente saía para tom ar um chope. E com er batata. O que m e incom odava nele era

o cheiro de cigarro. No cabelo encaracolado.

Herm es m orava na Pom péia. Não podia ficar tarde. Eu tinha de pegar o m etrô. Foi num a noite dessas que um assobio m e convidou para descer na Liberdade. Segui o assobio.

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Lem brei de novo da floresta fálica. E do dr. Salém . Fiquei sabendo que o dr. Salém não está lá m uito bem . Pegou um a uretrite.

Faz frio, m as tudo bem .

Eu enrolo o cachecol e m eto as m ãos no casaco. Passeio no centro.

Marcelo eu conheci no centro. Marcelo faz design. Eu tam bém gosto de garrafas.

De rótulos. Latas. E de cadeiras italianas.

Marcelo foi um a am izade m ais longa. A gente chegou a dividir apartam ento. Ele leva as garotas dele. E eu não levo ninguém . Saí fora. Segui o conselho da m inha m ãe e fui procurar um lugar só para m im . No Brooklin.

Decorei a sala com um as plantas. E um quadro verde. Acabei de conhecer um arquiteto m uito bom , antes de ontem . Rogério é o seu nom e. Ele m e deu uns conselhos a respeito de escadarias. De banheiros de cinem a.

Azulej os azuis. E am arelos. É dele o proj eto da Praça do Choro. Da Passarela do Sam ba. Um dia fom os lá, à Passarela do Sam ba.

Enquanto o arquiteto sum iu na bateria, fiquei pousando. Tenho certeza que agora, finalm ente, conheci o am or da m inha vida. Meu prim eiro am or, depois de tantos anos.

alo daquele negronegronegronegro ali, rebolando.

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CANTO XIV CURSO SUPERIOR

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O m eu m edo é entrar na faculdade e tirar zero eu que nunca fui bom de m atem ática fraco no inglês eu que nunca gostei de quím ica geografia e português o que é que eu faço agora hein m ãe não sei.

O m eu m edo é o preconceito e o professor ficar m e perguntando o tem po inteiro por que eu não passei por que eu não passei por que eu não passei por que fiquei olhando aquela loira gostosa o que é que eu faço se ela m e der bola hein m ãe não sei.

O m eu m edo é a loira gostosa ficar grávida e eu não sei com o a senhora vai receber a loira gostosa lá em casa se a senhora disse um dia que eu devia olhar bem para a m inha cara antes de chegar aqui com um a nam orada hein m ãe não sei.

O m eu m edo tam bém é do pai da loira gostosa e do irm ão da loira gostosa e do irm ão da loira gostosa no dia em que a Loira gostosa m e apresentar para a fam ília com o o hom em da sua vida será que é verdade será que isso é felicidade hein m ãe não sei.

O m eu m edo é a situação piorar e eu não conseguir arranj ar em prego nem de faxineiro nem de porteiro nem de aj udante de pedreiro e o pessoal dizer que o governo j á fez o que pôde j á pôde o que fez j á deu a sua cota de participação hein m ãe não sei.

O m eu m edo é que m esm o com diplom a debaixo do braço andando por aí desiludido e desem pregado o policial m e olhe de cara feia e eu acabe fazendo um a burrice sei lá um a besteira será que vou ter direito a um a cela especial hein m ãe não sei.

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CANTO XV MEU NEG RO DE ESTIMAÇÃO

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Meu hom em agora é um hom em m elhor. Mora nos j ardins, veste e calça. Causa invej a por onde passa. Meu hom em não tem para ninguém , só para m im . Meu hom em se cham a Benj am im .

Meu hom em não trabalha. Não precisa m ais se suj ar de borracha.

Meu hom em não fede a graxa. Meu hom em agora dirige. Quando não pode, tem quem faça.

Meu hom em leva sol na piscina. Meu hom em viaj a. Meu hom em é um a bela com panhia. Se não entende de poesia, não fala. Quando o assunto é política, sai da sala.

Meu hom em conhece o m undo inteiro. Meu hom em m udou de ares, trocou de cheiro. Entende de com ida. Sabe escolher o vinho à m esa. Dança que é um a beleza. Meu hom em valsa.

Meu hom em é um a outra pessoa. Não quer m ais saber de sam ba.

Nem de futebol. Não gosta de feij oada. Meu hom em não quer voltar para casa.

Foge de lá porque tem m edo de levar bala à toa.

Meu hom em é a coisa m ais bonita. Os dentes perfeitos, o peito. Meu hom em leva j eito para ser m odelo. Mas eu não deixo. Coloco, assim , um cabresto. Para ele não m e deixar tão cedo.

Meu hom em m e obedece e m e respeita. Por incrível que pareça, m esm o quando m e põe de quatro, m e m achuca, m e prende à vara da cam a.

Quando m e chicoteia.

Meu hom em diz que eu serei seu escravo a vida inteira.

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CANTO XVI YAMAMI

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E os índios?

O que têm os índios?

O que você achou dos índios do Brasil?

Fodam -se os índios do Brasil. Toquem fogo na floresta. Vão à m erda.

Que turista é você? E a febre am arela?

Só lem bro de Yam am i.

Yam am i.

Sem pre gostei de crianças. Aqui é proibido. Yam am i, m eu tesouro perdido. Passei por um a cidade cham ada Cuiabá, depois Corum bá. Parintins, Parin-tintins, sei lá. Viaj ei no barco Barão do Am azonas.

Há peixes gigantes?

Não, pequenos.

Com o pequenos?

Minhocas sul-am ericanas, não enche o saco.

Puta que pariu. O barco na corrente. Manaus é a capital, chegam os.

O m ercado à boa do rio é um rio de frutas. As m açãs m acias. Belíssim as m elancias.

Não, não trouxe fotografias.

Com o não?

Não tive tem po.

Com o não?

(53)

Fotografar aquela m erda é um desperdício.

Merda?

Fiquei em um hotel em cim a do Rio Negro. Vento calorento. Meu sonho era esse, sair da frieza deste m eu lugar. Ir ao extrem o.

Você chega, estanca seu olhar em volta, seu olhar em cada buraco, estopa, saco. E vê no m ercado. Um extenso m ercado no centro da cidade. A puta que você vê tem onze anos. Ou m enos. Parece. Não cresce. Vive sem inua, suj inha e deliciosa, esperando a lotação da balsa. Há tucanos para vender. E corpos.

Vivi Yam am i lá.

Indiazinha típica de uns 13 anos. As unhas pintadas, descalçadas.

Tintas extintas na cara. Coisinha de árvore. A pele verm elha e ardente. Virei um canibal, de repente. Não é tão deliciosa a carne de tam anduá-bandeira.

E a m adeira?

O quê?

Dizem que há m uita m adeira e borracha.

Besteira. Eles não têm nada.

Segui o rastro que desce pelo m ercado. O m ercado é intransitável. Os gritos irritam . Tudo bem . Falam dem ais os nativos, são sim páticos. Yam am i não saiu do m eu j uízo. Há outras putinhas no entulho. Você quer ir para Santarém , tem . Se não quer ir, tem . Os barcos a m otor. Muita gente j á s(' foi nesse vaivém . Não voltaram m ais. Há navegações que afundam com m ais de cem .

Pisquei para Yam am i e saím os. Fiz sinal de fum aça, acendi um cigarro. Yam am i, venha com igo. Sou um branco pálido e telepático. Estou de férias, caralho, longe do m eu país, infeliz. Yam am i, m inha m eretriz, o m eu turism o.

Outras m eninas gaiolando os gringos. Tam bém brasileiros vêm e se enroscam na rede. Há cheiro fudido de peixe, m orte de passarinhos.

Mora na m inha m em ória aquele um bigo. A m ão fininha de Yam am i vai e vindo. O vento do rio no m ato. Trabalhar o ano inteiro fechado nesse laboratório, isso é vida? Ficar fazendo teste de urina, para quê? Quero ir em bora

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deste m eu destino. Não quero m orrer no prim eiro m undo. Quero m orrer no horizonte. Estonteante. Nos esconderij os de Yam am i. Minha Liberdade sensível.

O cheiro caçador de Yam am i, os seus peitinhos. Pequenininhos. Seus olhos flechando os m eus testículos. O m ercado verde está Longe e feliz.

Minha alegria prim itiva, Yam am i. O m eu sorriso.

E os crocodilos?

Morram os crocodilos.

Lá posso colocar Yam am i no colo e ninguém m e enche o saco. E ninguém fica m e policiando. Governo m e recrim inando.

Dizem que lá tem m uita criança na rua.

Nua.

É com um , por todo canto. Dizem que tem m enina abandonada em Rondônia, Roraim a. No Ceará, em Pernam buco. Vendidas no coração de Rio Branco.

Yam am i pulando, chupando caroço de m anga, m e lam buzando.

Yam am i escorregando pelos galhos, nos cipoais do pântano.

Virei am ante de Yam am i, ao ar livre. Dei dinheiro para Yam am i, j óias, espelhos, colares. Fiz Yam am i vestir calcinhas coloridas. Minha m enina.

Você não gostou do Brasil?

Yam am i veio m e deixar no escadós do barco. Ela e algum as am iguinhas. Yam am i, Cauã, Jacira, Luanda. Coisa bonita o choro de Yam am i. O vento acenando as suas penas. De pavão, na despedida. Penas de arara. O m ercado cheirando a m erda. A bacia do rio indo em bora e m e levando.

Não gostei do Brasil, caralho.

Yam am i não tem nada a ver com o Brasil. O Brasil é São Paulo, um a cidade longe, parecida com esse continente de gelo, Yam am i.

O m eu corpo vazio.

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Marcelino Freire nasceu na cidade de Sertânia, interior de Pernam buco, em 20 de m arço de 1967. Vive em São Paulo, vindo do Recife, desde 1991. É um dos principais nom es da nova geração de escritores brasileiros.

Autor, entre outros, dos Livros de contos Angu de Sangue (2000) e BaléRalé (2003), am bos lançados pela Ateliê Editorial. Tam bém idealizou e organizou, em 2004, a antologia Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século.

Mais inform ações sobre o autor e obra, acesse:

www.eraodito.blogspot.com

ou escreva para: m arcelinofreire@uol.com .br

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O conto "Solar dos Príncipes" foi antes publicado na antologia Ficções Fraternas, organizada por Livia Garcia-Roza para a Editora Record (2003).

O "Caderno de Turism o" e o "Meus Am igos Coloridos" (esse com o título "Viver") foram publicados na antologia Os Transgressores, organizada por Nelson de Oliveira para a Boitem po Editorial (2003).

O conto "Yam am i" faz parte da antologia Putas, organizada por Valter Hugo Mãe para a Editora Quasi, de Portugal (2002).

A epigrafe deste livro (aqui, em grafia diferente) é de autoria de Ary Barroso. A epigrafe final, à página, à página 113, é de autoria de Vinicius de Moraes.

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epub - LAVRo

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