Meu hom em agora é um hom em m elhor. Mora nos j ardins, veste e calça. Causa invej a por onde passa. Meu hom em não tem para ninguém , só para m im . Meu hom em se cham a Benj am im .
Meu hom em não trabalha. Não precisa m ais se suj ar de borracha.
Meu hom em não fede a graxa. Meu hom em agora dirige. Quando não pode, tem quem faça.
Meu hom em leva sol na piscina. Meu hom em viaj a. Meu hom em é um a bela com panhia. Se não entende de poesia, não fala. Quando o assunto é política, sai da sala.
Meu hom em conhece o m undo inteiro. Meu hom em m udou de ares, trocou de cheiro. Entende de com ida. Sabe escolher o vinho à m esa. Dança que é um a beleza. Meu hom em valsa.
Meu hom em é um a outra pessoa. Não quer m ais saber de sam ba.
Nem de futebol. Não gosta de feij oada. Meu hom em não quer voltar para casa.
Foge de lá porque tem m edo de levar bala à toa.
Meu hom em é a coisa m ais bonita. Os dentes perfeitos, o peito. Meu hom em leva j eito para ser m odelo. Mas eu não deixo. Coloco, assim , um cabresto. Para ele não m e deixar tão cedo.
Meu hom em m e obedece e m e respeita. Por incrível que pareça, m esm o quando m e põe de quatro, m e m achuca, m e prende à vara da cam a.
Quando m e chicoteia.
Meu hom em diz que eu serei seu escravo a vida inteira.
CANTO XVI YAMAMI
E os índios?
O que têm os índios?
O que você achou dos índios do Brasil?
Fodam -se os índios do Brasil. Toquem fogo na floresta. Vão à m erda.
Que turista é você? E a febre am arela?
Só lem bro de Yam am i.
Yam am i.
Sem pre gostei de crianças. Aqui é proibido. Yam am i, m eu tesouro perdido. Passei por um a cidade cham ada Cuiabá, depois Corum bá. Parintins, Parin-tintins, sei lá. Viaj ei no barco Barão do Am azonas.
Há peixes gigantes?
Não, pequenos.
Com o pequenos?
Minhocas sul-am ericanas, não enche o saco.
Puta que pariu. O barco na corrente. Manaus é a capital, chegam os.
O m ercado à boa do rio é um rio de frutas. As m açãs m acias. Belíssim as
Fotografar aquela m erda é um desperdício.
Merda?
Fiquei em um hotel em cim a do Rio Negro. Vento calorento. Meu sonho era esse, sair da frieza deste m eu lugar. Ir ao extrem o.
Você chega, estanca seu olhar em volta, seu olhar em cada buraco, estopa, saco. E vê no m ercado. Um extenso m ercado no centro da cidade. A puta que você vê tem onze anos. Ou m enos. Parece. Não cresce. Vive sem inua, suj inha e deliciosa, esperando a lotação da balsa. Há tucanos para vender. E corpos.
Vivi Yam am i lá.
Indiazinha típica de uns 13 anos. As unhas pintadas, descalçadas.
Tintas extintas na cara. Coisinha de árvore. A pele verm elha e ardente. Virei um canibal, de repente. Não é tão deliciosa a carne de tam anduá-bandeira.
E a m adeira?
O quê?
Dizem que há m uita m adeira e borracha.
Besteira. Eles não têm nada.
Segui o rastro que desce pelo m ercado. O m ercado é intransitável. Os gritos irritam . Tudo bem . Falam dem ais os nativos, são sim páticos. Yam am i não saiu do m eu j uízo. Há outras putinhas no entulho. Você quer ir para Santarém , enroscam na rede. Há cheiro fudido de peixe, m orte de passarinhos.
Mora na m inha m em ória aquele um bigo. A m ão fininha de Yam am i vai e vindo. O vento do rio no m ato. Trabalhar o ano inteiro fechado nesse laboratório, isso é vida? Ficar fazendo teste de urina, para quê? Quero ir em bora
deste m eu destino. Não quero m orrer no prim eiro m undo. Quero m orrer no horizonte. Estonteante. Nos esconderij os de Yam am i. Minha Liberdade sensível.
O cheiro caçador de Yam am i, os seus peitinhos. Pequenininhos. Seus olhos flechando os m eus testículos. O m ercado verde está Longe e feliz.
Minha alegria prim itiva, Yam am i. O m eu sorriso.
E os crocodilos?
Morram os crocodilos.
Lá posso colocar Yam am i no colo e ninguém m e enche o saco. E ninguém fica m e policiando. Governo m e recrim inando.
Dizem que lá tem m uita criança na rua.
Yam am i escorregando pelos galhos, nos cipoais do pântano.
Virei am ante de Yam am i, ao ar livre. Dei dinheiro para Yam am i, j óias, espelhos, colares. Fiz Yam am i vestir calcinhas coloridas. Minha m enina.
Você não gostou do Brasil?
Yam am i veio m e deixar no escadós do barco. Ela e algum as am iguinhas. Yam am i, Cauã, Jacira, Luanda. Coisa bonita o choro de Yam am i. O vento acenando as suas penas. De pavão, na despedida. Penas de arara. O m ercado cheirando a m erda. A bacia do rio indo em bora e m e levando.
Não gostei do Brasil, caralho.
Yam am i não tem nada a ver com o Brasil. O Brasil é São Paulo, um a cidade longe, parecida com esse continente de gelo, Yam am i.
O m eu corpo vazio.
Marcelino Freire nasceu na cidade de Sertânia, interior de Pernam buco, em 20 de m arço de 1967. Vive em São Paulo, vindo do Recife, desde 1991. É um dos principais nom es da nova geração de escritores brasileiros.
Autor, entre outros, dos Livros de contos Angu de Sangue (2000) e BaléRalé (2003), am bos lançados pela Ateliê Editorial. Tam bém idealizou e organizou, em 2004, a antologia Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século.
Mais inform ações sobre o autor e obra, acesse:
www.eraodito.blogspot.com
ou escreva para: m arcelinofreire@uol.com .br
O conto "Solar dos Príncipes" foi antes publicado na antologia Ficções Fraternas, organizada por Livia Garcia-Roza para a Editora Record (2003).
O "Caderno de Turism o" e o "Meus Am igos Coloridos" (esse com o título "Viver") foram publicados na antologia Os Transgressores, organizada por Nelson de Oliveira para a Boitem po Editorial (2003).
O conto "Yam am i" faz parte da antologia Putas, organizada por Valter Hugo Mãe para a Editora Quasi, de Portugal (2002).
A epigrafe deste livro (aqui, em grafia diferente) é de autoria de Ary Barroso. A epigrafe final, à página, à página 113, é de autoria de Vinicius de Moraes.
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