Luiz Hebeche
A "paixão de Cristo" é basicamente o caráter escandaloso da morte do Messias na cruz. O escândalo da cruz é o núcleo kerigmático do tornar-se cristão. A serenidade dos místicos e a indiferença dos teólogos diluiram a força desse escândalo que diferenciou a fé cristã de todas as outras religiões do mundo. Por isso, contra a mística dos mosteiros renanos e da theologia gloriae das Universidades que, aliás, foi se tornando a doutrina oficial da Igreja, Lutero expôs as teses reformistas à Ordem dos Agostinianos de Heidelberg; nessas teses ele afirma o seguinte:
Admoestem-se os cristãos a que se empenhem em seguir seu cabeça; Cristo através da cruz, da morte e do inferno.
E desta maneira mais esperem entrar no reino dos céus por muitas aflições do que confiando em promessas de paz infundadas.
Séculos de conformismo foram sacudidos e abriu-se uma nova e mais radical possibilidade de acessar o núcleo kerigmático do "tornar-se cristão", que, entre outros rebentos, deu uma característica singular à fenomenologia heideggeriana, mas que também embebeda a própria gramática da faticidade no seu esforço em retocar o solo áspero da nossa complicada forma de vida. Sem o "escândalo da cruz" ela seria algo totalmente diverso, pois ele se situa no âmago da dramaturgia humana a partir da qual ou em comparação com a qual podem-se apelar para deuses das mais distintas culturas, ou o estar à espera deuses incógnitos ou ainda tentar ressucitar deuses que já morreram. A era da ciência e da técnica e da economia global que, nasceu junto com a Reforma, é a maior ameaça a esse escândalo e, portanto, àquilo que constitui a força do núcleo sentimental da fé em nossa forma de vida expresso na proclamação apostólica paulina. E o que principalmente se proclama no "tornar-se cristão"
senão o "assumir-se a crucificação da carne em Jesus Cristo"? O deixar-se levar para fora dessa proclamação - como os gálatas - situando-se apenas em questões como circuncisão ou incircuncisão é a perda da força em que se sustenta o núcleo da experiência fática cristã expresso nas palavras apostólicas. É a intensidade da vivência da significação dessas palavras que impede que se anule "o escândalo da cruz" ( )(Gl 5, 11). O
"escândalo da cruz", em termos proclamativos, está ameaçado pela lei da carne, pela
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Trecho do livro "O escândalo de Cristo - ensaio sobre Heidegger e São Paulo".
Professor de Filosofia na Universidade Federal de Santa Catarina.
possibilidade de debilitar-se em disputas informativas sobre a lei e a multiplicidade de suas obras. Essa ambigüidade atinge o núcleo do "tornar-se cristão" que, por sua vez, situa-se na tensão entre a linguagem fática e a linguagem fatual. No estar em suspenso da gramática da faticidade situa-se a proclamação do escândalo da cruz, que pode ser perdido na lógica da informação. A palavra "escândalo" quer dizer contradição, enfrentamento, indignação, estupefação, confusão, etc.; ou seja, ela pode ser empregada de diversos modos como, por exemplo, a teoria evolucionista causou escândalo na comunidade cultural, do mesmo modo o futurismo, o dadaismo, o balé russo de Diaguilev, a Sagração da Primavera de Stravinsky, os quadros de Pollock, etc. A própria Reforma luterana foi um escândalo ao recolocar no centro do cristianismo a significância da cruz. Ela é característica básica do "tornar-se cristão" e, como tal, expressa perturbação e inquietação. John Eadie traduz "escândalo" ( ) para o inglês por "offence", isto é, ofença, insulto, agressão, delito, crime e pecado. A cruz é abjeta. Que blasfêmia poderia ser maior que a proclamação de um Deus que morre no lenho?
Porém, essa proclamação é o que não pode ser esmaecido sem a perda do efetivo "tornar-se cristão". A ofensa, a agressão aos costumes e às leis está precisamente em que apenas através da crucificação do Messias poderá haver salvação. O escândalo ignominioso da cruz é o rito de passagem para a vida feliz. E esse escândalo está no cerne da proclamação apostólica e, enquanto tal, é uma fonte de hostilidade. A loucura e o escândalo que prega uma salvação que tem de passar pelo sangue derramado na cruz, abriu uma chaga que fez sacudir o orgulho da nação judaica e afrontou a autoestima da sua teologia, pois Jesus acabou julgado e condenado por blasfêmia e traição numa execução pública
2. Porém, esse dado histórico é conduzido pelo escândalo. O símbolo abjeto da cruz, servindo como instrumento para a vergonha e a dor agita todos os preconceitos, sacode inclusive toda queda da proclamação no hábito ou no costume, pois ele não provoca apenas a hostilidade dos apóstatas, mas deve ser assumido como o cerne do "tornar-se cristão". A proclamação do "escândalo da cruz" é a manutenção desse escândalo que, aliás, pode ser perdido nas lógicas da informação. O proclamar-se o "escândalo da cruz" é um obstáculo às tentativas de reificar o que constitui expressão religiosa decisiva da nossa complicada forma de vida. Para a lei mosaica esse escândalo se constitui na incitação ao pecado e à blasfêmia, mas, desde a sua proclamação, a lei mosaica torna-se uma queda, um efeitiçamento que leva ao esmorecimento do "estar crucificado com Cristo", a perda da proximidade com a vivência da significação da expressão "imagem de Cristo". Mas, assim como o formar-se à imagem de Cristo, não envolve processo mental, o mesmo é caso do
"escândalo da cruz". O critério desse escândalo é a pregação apostólica que, para os que estão fora, é como um logos enlouquecido, pois a palavra "cruz", de signo abjeto para a cultura romana e judaica ("maldito o que for dependurado no lenho") torna-se a única via salvífica. O caráter chocante da cruz não pode tornar-se um fato objetivo, nem mesmo pode ser traduzido em obras, excetuando-se, obviamente, a execução da sua proclamação que, aliás, comporta a possibilidade da sua perda, de seu esmorecimento, do enfraquecimento da sua capacidade de irritação, de agitação e de perturbação. Apenas na proclamação preserva-se a intensidade desse escândalo. A proclamação do "escândalo da cruz" não pode ser feita com o logos objetivador da lógica da informação da teologia. A linguagem da proclamação mantém-se na intensidade das palavras afetivas que não podem ser entendidas desde uma perspectiva que lhe é externa, a pregação do Cristo crucificado é escândalo para os judeus e loucura para os gregos (1 Cor 1, 23). É o logos excêntrico da proclamação; a vida fática cristã, portanto, está no manter-se proclamando essa loucura escandalosa. O "tornar-se cristão" sustenta-se nesse escândalo. Esse manter-se suspenso do "tornar-se cristão" não é levar uma vida que procura imitar um modelo
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John Eadie, A Commentary on the Greek text o the Epistle of Paul to the Galatians, Eugene OR: Wipf and
Stock Publishers, 1998, p. 396.
da cruz ao qual dever-se-ia ajustar, uma vida como imitatio Christi, pois o critério do escândalo da cruz está na sua proclamação. E o escândalo é o choque que ela provoca. Assim
"estar crucificado com Cristo" é expressar um modo de vida que não coincide com uma vida objetivamente concebida. Mas a proclamação do "escândalo da cruz" é também um contraponto às outras concepções religiosas do mundo que, aliás, são possibilidades do seu esmorecimento. O conceito de cruz é o cerne do "tornar-se cristão" e, enquanto proclamação, ele antecipa-se ao cristianismo como doutrina. Desse modo, as teologias são a diluição da proclamação do "escândalo da cruz". Por isso, mesmo as obras da fé tendem a diluir a força proclamadora desse escândalo. A diluição da proclamação do escândalo da cruz é a conversão do cristianismo em mais uma concepção do mundo. A perda da execução da tonalidade da sua dramaturgia sentimental em nossa complicada forma de vida. Porém, a "via crucis" do conceito de cruz está na habilidade da sua execução na gramática da faticidade. Tal escândalo atingiu em cheio os judeus, pois com a cruz, no "tornar-se cristão", aboliu-se a lei, ou melhor, com a proclamação da cruz, a lei perdeu a sua eficácia. Mas, desse modo, surge a questão de se, com a cruz, abole-se o "escândalo da cruz", isto é, se com a proclamação da morte do Messias na cruz, abole-se o que, nisso, seria irritante, indignante e chocante
3. Aqui encontra-se a tensão entre a proclamação da cruz e as outras concepções do mundo para as quais a cruz será signo de desconfiança, desprezo ou indiferença. A proclamação paulina toma a ressurreição como a salvação efetiva, mas a ressurreição não pode ser separada historicamente da morte na cruz tanto quanto esta não pode separar-se, cronologicamente, da fé de Abraão, pois tais eventos só tem significação no executar-se da proclamação. A proclamação é o critério do "tornar-se cristão", onde, como nas teses de Lutero, aproxima-se a cruz das aflições e dos sofrimentos, da morte e do inferno. Por isso, onde se poderia assumir tal escândalo senão na proclamação? A "cruz de Cristo" é sinônimo de perseguição, como afirma-se no fim da Carta aos Gálatas (Gl 6, 12) protestando-se contra os judeus-cristãos que levavam os gálatas à circuncisão para que, com as marcas dela, deixassem de ser perseguidos. Aqui é relevante destacar, mais uma vez, que o fim da carta não é o fim da proclamação, pois esta não tem começo nem fim, o começo e o fim da carta encontram-se na proclamação, cuja execução sustenta-se na gramática da faticidade que, aliás, tampouco tem começo e fim. O sentido das palavras "começo" e "fim" encontra-se na gramática. A carta expressa a tensão, na nossa forma de vida, entre a linguagem em que se acentua o "tornar-se cristão", da qual a circuncisão faz parte como ameaça latente, mas cuja queda só pode ser levada a cabo com o esmorecimento da proclamação da cruz. A perseguição não é simplesmente algo físico, como a prisão, o medo de ser submetido aos tribunais, etc., mas a possibilidade de perder-se a força ou a tonalidade da proclamação da cruz. Entenda-se por medo ou receio à "perseguição" as tentativas de limitar ou esmorecer a linguagem em que se expressa o cerne do "tornar-se cristão", isto é, a linguagem em que se sustenta a "cruz de Cristo". A tentativa de "gloriar-se na carne" pela circuncisão é uma vaidade fútil e vã que, como uma propaganda ilusória de uma fé segura, afasta-se do vigor da proclamação do evangelho da cruz. Esse modo de sustentar-se da linguagem está em sua execução na nossa forma de vida. O que se expressa na carta paulina já está em execução na trama da linguagem. A carta nada tem a ver com um processo mental de leitura que, uma vez terminado, pode-se deixar de lado, afastando-se o livro, deixando-o sobre a mesa ou dentro da gaveta da escrivaninha. Nas grandes letras escritas de próprio punho pelo
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Schlier, seguindo Ignácio, Ef 18, 1, aceita que também se diz apenas "em geral":
(para os judeus, a cruz, como falta de fé, é um escândalo). Partindo disso (generalidade) devia-se entender como um conceito. Ver H. Schlier, La Carta a los Gálatas, Salamanca:
Ediciones Sígueme, 1975, p. 276, 277. Ora, esse conceito está em execução enquanto proclamação. Ao
compreender-se isso mostra-se como a gramática da faticidade dá o salvo conduto à proclamação.
apóstolo não está envolvido a objetividade das palavras no papel e o processo mental de leitura que as acompanha, mas o domínio do que se proclama, isto é, a perturbação do escândalo da cruz. Com tal escândalo, aliás, a disputa sobre esse tema torna-se irrelevante, pois, ao contrário, ser perseguido pelo escândalo da cruz é expressão da autenticidade do "tornar-se cristão". Só há glória na proclamação da cruz. A circuncisão é um gloriar-se na carne que esmorece a intensidade da proclamação do escândalo de todos os escândalos, Cristo na cruz, e através do qual "o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo" (
.)(Gl 6, 14). As palavras "eu" e "mundo", porém, não se referem a processos internos (eu) e a processos externos (mundo), tampouco são idéias reguladoras da razão, ou produtos da intencionalidade da consciência; também deixam de ser concebidas no construto singular do ser-aí (Dasein), pois seus significados encontram-se na vivência da significação da linguagem da proclamação. A vivência da significação não é a significação de vivências da consciência transcendental ou de existenciais monocentricamente concebidos. A vivência da significação, neste caso, é a execução pública em que se expressa a experiência fática do "tornar-se cristão". A vivência da significação das palavras não é aleatória ou relativa, mas situa-se na proclamação apostólica como expressão do "escândalo da cruz". O
"escândalo da cruz" não está na história, mas na execução da proclamação a partir da qual a história pode ou não ter sentido. Esse discernimento, porém, é função da gramática da faticidade. Com isso, o sentido da história encontra-se no grau de faticidade que houver nela, pois o que seria a história sem a vivência da significação dos seus conceitos como passado, presente, futuro, morte, guerra, paz, etc.? Mas não se pode entender o "estar crucificado para o mundo" a partir da história, o que não significa que não exista, por exemplo, a história do cristianismo, cuja significância, aliás, não pode ser alcançada sem o domínio da vivência da significação da conceitografia histórica, o mesmo vale para a teologia, a antropologia, etc. Na execução da gramática da faticidade, embebida de proclamação apostólica é que a história ou a antropologia podem adquirir significância. Nessa execução está o caráter perturbador de que
"o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo" que, traduzindo nas palavras de Lutero, quer dizer que a teologia da cruz confronta a teologia da glória e que amar a Deus é odiar-se a si mesmo, pois a cruz é a ignomínia
4. A informação histórica que Lutero expôs suas teses em 1518, em tal e qual contexto não explica a ignomínia da cruz; no entanto, se esse caráter surpreendente e escandaloso da cruz estivesse totalmente ausente do discurso histórico, então o história não teria significância. A própria volta de Lutero às epístolas paulinas faz parte da luta pela execução da proclamação do "escândalo da cruz". Essa luta, porém, não é algo externo que possa ser esclarecido histórica ou teologicamente, pois, nos termos gramaticais, o decisivo é a coincidência entre o proclamador e o proclamado. Tal coincidência encontra-se na execução da proclamação. Apenas enquanto proclamação sustenta-se o
"escândalo da cruz". A fraqueza dos gálatas na fé faz parte da tensão que perpassa a proclamação apostólica; nos termos da gramática da faticidade, porém, a dissolução dessa tensão é que, aí sim, levaria ao esmorecimento da proclamação, a perda da vivência da significação das palavras, transformadas em significados mentais distanciados da sua expressão fática. Esse versículo "estar crucificado para o mundo" por "nosso Senhor Jesus Cristo", porta uma carga emocional e sentimental, ela está cheia de uma dramaturgia que todavia mantém uma solenidade da renúncia à figura passageira deste mundo a favor de uma mensagem que remete para a eternidade. A cruz é esse rito de passagem através da humilhação e do sofrimento capaz de abolir as representações do mundo. No entanto, esse rito está em execução enquanto expressão fática da linguagem e, desse modo, ele não remete para além da proclamação. A cruz é a humilhação e, portanto, autonegação capaz de abrir caminho para a
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