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O escândalo da cruz 1

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Academic year: 2021

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Luiz Hebeche

A "paixão de Cristo" é basicamente o caráter escandaloso da morte do Messias na cruz. O escândalo da cruz é o núcleo kerigmático do tornar-se cristão. A serenidade dos místicos e a indiferença dos teólogos diluiram a força desse escândalo que diferenciou a fé cristã de todas as outras religiões do mundo. Por isso, contra a mística dos mosteiros renanos e da theologia gloriae das Universidades que, aliás, foi se tornando a doutrina oficial da Igreja, Lutero expôs as teses reformistas à Ordem dos Agostinianos de Heidelberg; nessas teses ele afirma o seguinte:

Admoestem-se os cristãos a que se empenhem em seguir seu cabeça; Cristo através da cruz, da morte e do inferno.

E desta maneira mais esperem entrar no reino dos céus por muitas aflições do que confiando em promessas de paz infundadas.

Séculos de conformismo foram sacudidos e abriu-se uma nova e mais radical possibilidade de acessar o núcleo kerigmático do "tornar-se cristão", que, entre outros rebentos, deu uma característica singular à fenomenologia heideggeriana, mas que também embebeda a própria gramática da faticidade no seu esforço em retocar o solo áspero da nossa complicada forma de vida. Sem o "escândalo da cruz" ela seria algo totalmente diverso, pois ele se situa no âmago da dramaturgia humana a partir da qual ou em comparação com a qual podem-se apelar para deuses das mais distintas culturas, ou o estar à espera deuses incógnitos ou ainda tentar ressucitar deuses que já morreram. A era da ciência e da técnica e da economia global que, nasceu junto com a Reforma, é a maior ameaça a esse escândalo e, portanto, àquilo que constitui a força do núcleo sentimental da fé em nossa forma de vida expresso na proclamação apostólica paulina. E o que principalmente se proclama no "tornar-se cristão"

senão o "assumir-se a crucificação da carne em Jesus Cristo"? O deixar-se levar para fora dessa proclamação - como os gálatas - situando-se apenas em questões como circuncisão ou incircuncisão é a perda da força em que se sustenta o núcleo da experiência fática cristã expresso nas palavras apostólicas. É a intensidade da vivência da significação dessas palavras que impede que se anule "o escândalo da cruz" (     )(Gl 5, 11). O

"escândalo da cruz", em termos proclamativos, está ameaçado pela lei da carne, pela

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Trecho do livro "O escândalo de Cristo - ensaio sobre Heidegger e São Paulo".

Professor de Filosofia na Universidade Federal de Santa Catarina.

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possibilidade de debilitar-se em disputas informativas sobre a lei e a multiplicidade de suas obras. Essa ambigüidade atinge o núcleo do "tornar-se cristão" que, por sua vez, situa-se na tensão entre a linguagem fática e a linguagem fatual. No estar em suspenso da gramática da faticidade situa-se a proclamação do escândalo da cruz, que pode ser perdido na lógica da informação. A palavra "escândalo" quer dizer contradição, enfrentamento, indignação, estupefação, confusão, etc.; ou seja, ela pode ser empregada de diversos modos como, por exemplo, a teoria evolucionista causou escândalo na comunidade cultural, do mesmo modo o futurismo, o dadaismo, o balé russo de Diaguilev, a Sagração da Primavera de Stravinsky, os quadros de Pollock, etc. A própria Reforma luterana foi um escândalo ao recolocar no centro do cristianismo a significância da cruz. Ela é característica básica do "tornar-se cristão" e, como tal, expressa perturbação e inquietação. John Eadie traduz "escândalo" (  ) para o inglês por "offence", isto é, ofença, insulto, agressão, delito, crime e pecado. A cruz é abjeta. Que blasfêmia poderia ser maior que a proclamação de um Deus que morre no lenho?

Porém, essa proclamação é o que não pode ser esmaecido sem a perda do efetivo "tornar-se cristão". A ofensa, a agressão aos costumes e às leis está precisamente em que apenas através da crucificação do Messias poderá haver salvação. O escândalo ignominioso da cruz é o rito de passagem para a vida feliz. E esse escândalo está no cerne da proclamação apostólica e, enquanto tal, é uma fonte de hostilidade. A loucura e o escândalo que prega uma salvação que tem de passar pelo sangue derramado na cruz, abriu uma chaga que fez sacudir o orgulho da nação judaica e afrontou a autoestima da sua teologia, pois Jesus acabou julgado e condenado por blasfêmia e traição numa execução pública

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. Porém, esse dado histórico é conduzido pelo escândalo. O símbolo abjeto da cruz, servindo como instrumento para a vergonha e a dor agita todos os preconceitos, sacode inclusive toda queda da proclamação no hábito ou no costume, pois ele não provoca apenas a hostilidade dos apóstatas, mas deve ser assumido como o cerne do "tornar-se cristão". A proclamação do "escândalo da cruz" é a manutenção desse escândalo que, aliás, pode ser perdido nas lógicas da informação. O proclamar-se o "escândalo da cruz" é um obstáculo às tentativas de reificar o que constitui expressão religiosa decisiva da nossa complicada forma de vida. Para a lei mosaica esse escândalo se constitui na incitação ao pecado e à blasfêmia, mas, desde a sua proclamação, a lei mosaica torna-se uma queda, um efeitiçamento que leva ao esmorecimento do "estar crucificado com Cristo", a perda da proximidade com a vivência da significação da expressão "imagem de Cristo". Mas, assim como o formar-se à imagem de Cristo, não envolve processo mental, o mesmo é caso do

"escândalo da cruz". O critério desse escândalo é a pregação apostólica que, para os que estão fora, é como um logos enlouquecido, pois a palavra "cruz", de signo abjeto para a cultura romana e judaica ("maldito o que for dependurado no lenho") torna-se a única via salvífica. O caráter chocante da cruz não pode tornar-se um fato objetivo, nem mesmo pode ser traduzido em obras, excetuando-se, obviamente, a execução da sua proclamação que, aliás, comporta a possibilidade da sua perda, de seu esmorecimento, do enfraquecimento da sua capacidade de irritação, de agitação e de perturbação. Apenas na proclamação preserva-se a intensidade desse escândalo. A proclamação do "escândalo da cruz" não pode ser feita com o logos objetivador da lógica da informação da teologia. A linguagem da proclamação mantém-se na intensidade das palavras afetivas que não podem ser entendidas desde uma perspectiva que lhe é externa, a pregação do Cristo crucificado é escândalo para os judeus e loucura para os gregos (1 Cor 1, 23). É o logos excêntrico da proclamação; a vida fática cristã, portanto, está no manter-se proclamando essa loucura escandalosa. O "tornar-se cristão" sustenta-se nesse escândalo. Esse manter-se suspenso do "tornar-se cristão" não é levar uma vida que procura imitar um modelo

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John Eadie, A Commentary on the Greek text o the Epistle of Paul to the Galatians, Eugene OR: Wipf and

Stock Publishers, 1998, p. 396.

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da cruz ao qual dever-se-ia ajustar, uma vida como imitatio Christi, pois o critério do escândalo da cruz está na sua proclamação. E o escândalo é o choque que ela provoca. Assim

"estar crucificado com Cristo" é expressar um modo de vida que não coincide com uma vida objetivamente concebida. Mas a proclamação do "escândalo da cruz" é também um contraponto às outras concepções religiosas do mundo que, aliás, são possibilidades do seu esmorecimento. O conceito de cruz é o cerne do "tornar-se cristão" e, enquanto proclamação, ele antecipa-se ao cristianismo como doutrina. Desse modo, as teologias são a diluição da proclamação do "escândalo da cruz". Por isso, mesmo as obras da fé tendem a diluir a força proclamadora desse escândalo. A diluição da proclamação do escândalo da cruz é a conversão do cristianismo em mais uma concepção do mundo. A perda da execução da tonalidade da sua dramaturgia sentimental em nossa complicada forma de vida. Porém, a "via crucis" do conceito de cruz está na habilidade da sua execução na gramática da faticidade. Tal escândalo atingiu em cheio os judeus, pois com a cruz, no "tornar-se cristão", aboliu-se a lei, ou melhor, com a proclamação da cruz, a lei perdeu a sua eficácia. Mas, desse modo, surge a questão de se, com a cruz, abole-se o "escândalo da cruz", isto é, se com a proclamação da morte do Messias na cruz, abole-se o que, nisso, seria irritante, indignante e chocante

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. Aqui encontra-se a tensão entre a proclamação da cruz e as outras concepções do mundo para as quais a cruz será signo de desconfiança, desprezo ou indiferença. A proclamação paulina toma a ressurreição como a salvação efetiva, mas a ressurreição não pode ser separada historicamente da morte na cruz tanto quanto esta não pode separar-se, cronologicamente, da fé de Abraão, pois tais eventos só tem significação no executar-se da proclamação. A proclamação é o critério do "tornar-se cristão", onde, como nas teses de Lutero, aproxima-se a cruz das aflições e dos sofrimentos, da morte e do inferno. Por isso, onde se poderia assumir tal escândalo senão na proclamação? A "cruz de Cristo" é sinônimo de perseguição, como afirma-se no fim da Carta aos Gálatas (Gl 6, 12) protestando-se contra os judeus-cristãos que levavam os gálatas à circuncisão para que, com as marcas dela, deixassem de ser perseguidos. Aqui é relevante destacar, mais uma vez, que o fim da carta não é o fim da proclamação, pois esta não tem começo nem fim, o começo e o fim da carta encontram-se na proclamação, cuja execução sustenta-se na gramática da faticidade que, aliás, tampouco tem começo e fim. O sentido das palavras "começo" e "fim" encontra-se na gramática. A carta expressa a tensão, na nossa forma de vida, entre a linguagem em que se acentua o "tornar-se cristão", da qual a circuncisão faz parte como ameaça latente, mas cuja queda só pode ser levada a cabo com o esmorecimento da proclamação da cruz. A perseguição não é simplesmente algo físico, como a prisão, o medo de ser submetido aos tribunais, etc., mas a possibilidade de perder-se a força ou a tonalidade da proclamação da cruz. Entenda-se por medo ou receio à "perseguição" as tentativas de limitar ou esmorecer a linguagem em que se expressa o cerne do "tornar-se cristão", isto é, a linguagem em que se sustenta a "cruz de Cristo". A tentativa de "gloriar-se na carne" pela circuncisão é uma vaidade fútil e vã que, como uma propaganda ilusória de uma fé segura, afasta-se do vigor da proclamação do evangelho da cruz. Esse modo de sustentar-se da linguagem está em sua execução na nossa forma de vida. O que se expressa na carta paulina já está em execução na trama da linguagem. A carta nada tem a ver com um processo mental de leitura que, uma vez terminado, pode-se deixar de lado, afastando-se o livro, deixando-o sobre a mesa ou dentro da gaveta da escrivaninha. Nas grandes letras escritas de próprio punho pelo

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Schlier, seguindo Ignácio, Ef 18, 1, aceita que também se diz apenas "em geral":    

 (para os judeus, a cruz, como falta de fé, é um escândalo). Partindo disso (generalidade) devia-se entender     como um conceito. Ver H. Schlier, La Carta a los Gálatas, Salamanca:

Ediciones Sígueme, 1975, p. 276, 277. Ora, esse conceito está em execução enquanto proclamação. Ao

compreender-se isso mostra-se como a gramática da faticidade dá o salvo conduto à proclamação.

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apóstolo não está envolvido a objetividade das palavras no papel e o processo mental de leitura que as acompanha, mas o domínio do que se proclama, isto é, a perturbação do escândalo da cruz. Com tal escândalo, aliás, a disputa sobre esse tema torna-se irrelevante, pois, ao contrário, ser perseguido pelo escândalo da cruz é expressão da autenticidade do "tornar-se cristão". Só há glória na proclamação da cruz. A circuncisão é um gloriar-se na carne que esmorece a intensidade da proclamação do escândalo de todos os escândalos, Cristo na cruz, e através do qual "o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo" (    

   .)(Gl 6, 14). As palavras "eu" e "mundo", porém, não se referem a processos internos (eu) e a processos externos (mundo), tampouco são idéias reguladoras da razão, ou produtos da intencionalidade da consciência; também deixam de ser concebidas no construto singular do ser-aí (Dasein), pois seus significados encontram-se na vivência da significação da linguagem da proclamação. A vivência da significação não é a significação de vivências da consciência transcendental ou de existenciais monocentricamente concebidos. A vivência da significação, neste caso, é a execução pública em que se expressa a experiência fática do "tornar-se cristão". A vivência da significação das palavras não é aleatória ou relativa, mas situa-se na proclamação apostólica como expressão do "escândalo da cruz". O

"escândalo da cruz" não está na história, mas na execução da proclamação a partir da qual a história pode ou não ter sentido. Esse discernimento, porém, é função da gramática da faticidade. Com isso, o sentido da história encontra-se no grau de faticidade que houver nela, pois o que seria a história sem a vivência da significação dos seus conceitos como passado, presente, futuro, morte, guerra, paz, etc.? Mas não se pode entender o "estar crucificado para o mundo" a partir da história, o que não significa que não exista, por exemplo, a história do cristianismo, cuja significância, aliás, não pode ser alcançada sem o domínio da vivência da significação da conceitografia histórica, o mesmo vale para a teologia, a antropologia, etc. Na execução da gramática da faticidade, embebida de proclamação apostólica é que a história ou a antropologia podem adquirir significância. Nessa execução está o caráter perturbador de que

"o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo" que, traduzindo nas palavras de Lutero, quer dizer que a teologia da cruz confronta a teologia da glória e que amar a Deus é odiar-se a si mesmo, pois a cruz é a ignomínia

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. A informação histórica que Lutero expôs suas teses em 1518, em tal e qual contexto não explica a ignomínia da cruz; no entanto, se esse caráter surpreendente e escandaloso da cruz estivesse totalmente ausente do discurso histórico, então o história não teria significância. A própria volta de Lutero às epístolas paulinas faz parte da luta pela execução da proclamação do "escândalo da cruz". Essa luta, porém, não é algo externo que possa ser esclarecido histórica ou teologicamente, pois, nos termos gramaticais, o decisivo é a coincidência entre o proclamador e o proclamado. Tal coincidência encontra-se na execução da proclamação. Apenas enquanto proclamação sustenta-se o

"escândalo da cruz". A fraqueza dos gálatas na fé faz parte da tensão que perpassa a proclamação apostólica; nos termos da gramática da faticidade, porém, a dissolução dessa tensão é que, aí sim, levaria ao esmorecimento da proclamação, a perda da vivência da significação das palavras, transformadas em significados mentais distanciados da sua expressão fática. Esse versículo "estar crucificado para o mundo" por "nosso Senhor Jesus Cristo", porta uma carga emocional e sentimental, ela está cheia de uma dramaturgia que todavia mantém uma solenidade da renúncia à figura passageira deste mundo a favor de uma mensagem que remete para a eternidade. A cruz é esse rito de passagem através da humilhação e do sofrimento capaz de abolir as representações do mundo. No entanto, esse rito está em execução enquanto expressão fática da linguagem e, desse modo, ele não remete para além da proclamação. A cruz é a humilhação e, portanto, autonegação capaz de abrir caminho para a

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Max Lienhard, Martim Lutero - tempo, vida, mensagem, São Leopoldo: Editora Sinodal, 1998, p. 54 a 56.

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efetiva condição cristã, mas a expiação dos pecados pela cruz nada tem a ver com a serenidade mística, ao contrário, ela está conectada com a iminência do fim do mundo. A autonegação, porém, não é um evento privado da alma ou da consciência. A autonegação situa-se na proclamação e sua ausência equivaleria a perda da eficácia do evangelho. A autonegação é a dramaturgia pública da condição cristã expressa nas palavras em sua tonalidade emocional.

Por isso, a proclamação do "estar crucificado para o mundo" expressa o que é originário no

"tornar-se cristão". Autonegação é tornar-se desconfiado de si mesmo, mas isso só tem sentido enquanto proclamado, isto é, enquanto proclamar-se que estar crucificado é o mesmo que tornar-se um problema para si mesmo. Nesse sentido, a proclamação apostólica é escandalosa.

Mas ela tampouco se refere a um acontecimento histórico que causou perplexidade aos judeus e aos pagãos, pois a proclamação é a execução do "escândalo da cruz". Esse "escândalo" tende a anular-se no "tornar-se cristão", nessa condição, isto é, a predicação da cruz de Cristo tende a anular os valores e as legalidades deste mundo, pois, ao estar-se crucificado para o mundo, proclama-se uma condição em que o mundo deixa de ser um lugar seguro. No entanto, a proclamação que só se pode efetivamente gloriar-se na cruz de Cristo está submetida às tentações que podem levá-la ao esmorecimento; estar crucificado para o mundo é acentuar a sua finitude, a possibilidade iminente da sua destruição messiânica. Um antagonismo originário mantém-se nessa proclamação, ou seja, a fé em que se anula a cruz de Cristo e o escândalo que a cruz provoca. E, enquanto proclamação, o escândalo permanece tal como as

"marcas de Jesus" que o apóstolo afirma carregar: "que ninguém me inquiete; porque eu trago em meu corpo as marcas do Senhor Jesus" (        

    )(Gl 6, 17). O que tem a gramática da faticidade a dizer aqui senão que as marcas de Cristo não são marcas num corpo que pudessem ser interpretadas por processos mentais, que pudessem ser representadas nas mentes dos crentes. Nada disso. Elas são as marcas indeléveis da linguagem fática da proclamação paulina na nossa forma de vida.

E, como tal, elas são a expressão da loucura e da transmutação de todos os valores, que pode ser resumida na "palavra da cruz" (     )(1 Cor 1-18). A proclamação da mais ignóbil das palavras, com seu escândalo e vergonha, faz parte de um aspecto diferenciado da gramática. A atenção para o seu sentido, porém, está decidida pela habilidade em sustentá- la enquanto energia sentimental. Esse âmbito da gramática expressa o drama sentimental da cruz fincada no coração do mundo.

Mas as palavras "coração e "mundo" situam-se na sentimentalidade trágica da proclamação. Por exemplo, a palavra "mundo" pode ser empregada como "mundo dos animais", "mundo dos números irracionais", "mundo subatômico", etc., isto é, ela pode ser empregada de modo informativo ou argumentativo. A proclamação, porém, distingue-se da argumentação. Onde, porém, se dá essa distinção? A resposta é: na gramática da faticidade.

Esse lugar não é uma essência congelada na realidade externa ou num processo mental. Não há

um ponto arquimediano externo, pois a gramática é o estar em execução da diferença nos

modos como as linguagens são empregadas. A gramática da faticidade é o terminus a quo em

que se dá a execução fática da linguagem, como a linguagem da proclamação, que se distingue

do terminus ad quem, ou seja, da lógica da informação que, desde sua perspectiva, trata a

linguagem da proclamação como objeto de estudo histórico ou cultural. Mas o terminus a quo

não é um lugar vazio de linguagem, pois está embebido da linguagem fática da proclamação,

ainda que não coincida plenamente com ela; se esse fosse o caso, não haveria distinção entre o

fático e o fatual. Ora, é a partir dessa distinção que se pode afirmar que o fetichismo que

afetou os gálatas não é um desvio nos "seus juízos" ou uma afetação na sua "faculdade de

julgar", etc., pois a noção de juizo compromete-se com teorias do conhecimento ou teorias da

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verdade e, portanto, com a noção de que o ato de julgar envolve processos mentais. O que

"descabeçou" os gálatas não pode ser entendido como uma substituição ou distorção de imagens mentais. "Descabeçados" pode ser entendido como "desvitalizados". "Desvitalizar" é o enfraquecimento do proclamar. Mas o enfraquecimento não é algo externo, pois faz parte da tensão em que se sustenta a proclamação. A desvitalização é a economia da proclamação. Esse discernimento é a função da gramática da faticidade na nossa forma de vida. A partir dela, a apostasia dos gálatas deixa de ser um enfeitiçamento mental e passa a ser considerada como uma diluição da experiência fática do "tornar-se cristão". Enfeitiçar é reificar. A "imitação"

que propugna o apóstolo não é uma mera cópia de um modelo fixo, mas, nos termos heideggerianos, faz parte da luta contra o esvaziamento da experiência cristã originária da fé.

Essa experiência, porém, se expressa na proclamação apostólica, que tende a ser encoberta pelas concepções ou modelos de pensar, como os que destacam o "mistério da cristandade".

Ora, o que pode ser misterioso decide-se na gramática. Por conseguinte, é afastando a

propensão por assegurar-se ou fixar-se em modelos que se poderá, então, acessar a experiência

do mistério da vida fática cristã expressa na proclamação, distinguindo-a das experiências que

podem assumir as mais diversas imagens do mundo, como as que desviam as palavras da

proclamação ora para o ecumenismo oportunista, ora para o entusiasmo das seitas gnósticas,

ora para o misticismo silencioso dos mosteiros.

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