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Entre a tekoa e a sala de música: arranjos entre crianças não indígenas e guarani Mbya

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Academic year: 2022

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arranjos entre crianças não indígenas e guarani Mbya

Between the tekoa and the music classroom: arrangements Between non-indigenous children and guarani mBya children

Daisy Fragoso Universidade de São Paulo – USP/Universidade Federal de São Carlos – UFSCar

daisy.fragoso@usp.br

Este artigo discute a maneira como a inclusão de canções de diferentes culturas no repertório pode contribuir para o respeito às diferenças e para o exercício da tolerância, valores estes listados nos Parâmetros Curriculares Nacionais. As discussões, porém, são orientadas pelos dados recolhidos em trabalho de pesquisa realizado com um coro infantil não indígena e um coro infantil guarani Mbya que se encontravam periodicamente na aldeia guarani Tenondé Porã, na cidade de São Paulo, para trocarem experiências musicais, sociais e culturais. Essas vivências, analisadas a partir da voz de cada criança envolvida, apontaram para a transculturalidade como uma das vias que levam, na educação musical, ao rearranjo das impressões no que diz respeito às diferenças culturais e à promoção do respeito, da tolerância em relação a diferentes ideias de música, à cultura a que tais músicas se referem e até mesmo aos indivíduos dessa cultura.

Palavras-chave: educação musical, cultura guarani, transculturalidade.

This article discusses how the inclusion of songs from different cultures in a repertory may contribute to the respect for differences and to the exercise of tolerance, both values listed in the Brazilian National Curricular Parameters. Our discussions are guided by data gathered during research work with non-indigenous and Mbya guarani children that met periodically in the guarani community Tenondé Porã, in the city of São Paulo, Brazil, to exchange musical, social and cultural experiences. These experiences, analyzed based on the voices of each child involved, pointed to transculturality as being one of the means in music education that leads to the rearrangement of cultural difference impressions, and that promotes respect and tolerance to different ideas concerning music, to the culture referred to by the songs as well as to all individuals belonging to this culture.

Keywords: music education, Guarani culture, transculturality.

resumo

abstract

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o

respeito às diferenças, bem como o exercício da tolerância à diversidade cultural são orientações referenciadas nos Parâmetros Curriculares Nacionais – os PCN. De acordo com esse documento, um dos meios pelos quais se podem promover posturas relacionadas aos valores destacados é o acesso dos estudantes aos recursos e riquezas culturais brasileiras e do mundo (Brasil, 1997, p. 30). A relevância de tal acesso, por exemplo, é admitida quando, em 2008, são incluídos no currículo da educação básica brasileira os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros1.

A educação musical, portanto, pode ser forte aliada na contemplação dos recursos culturais brasileiros. Silva, por exemplo, discorre sobre a obrigação que a música na escola tem de contemplar a diversidade cultural brasileira, e ainda aconselha: “Temos que aproveitar esse momento2 para levar o Brasil para dentro da escola” (Silva apud Jordão et al., 2012, p.

159). Desse modo, o contato com as músicas que compõem a cultura brasileira seria uma das vias de acesso à diversidade cultural referida nos PCN e, por isso, de promoção dos valores enunciados.

No entanto, cabe a pergunta: de que modo o contato com esse repertório pode favorecer o respeito às diferenças, a tolerância, a redução do preconceito? Ou ainda: qual é a relação entre o desenvolvimento desses valores e a exposição a diferentes sonoridades, a diferentes músicas?

Almeida (2009, p. 122), sobre isso, afirma que a possibilidade da criança se tornar um ouvinte adulto sem preconceitos é tanto maior quanto mais cedo for criado o hábito de ouvir músicas de gêneros diferentes. Porém, ainda que consideremos extremamente relevante que se formem ouvintes adultos sem preconceitos, é preciso também ter em vista que, antes de adultos sem preconceitos, pretendemos uma sociedade com crianças sem preconceitos. Essa última perspectiva, além de transferir o foco do adulto para a criança, ressalta e valoriza a ideia de que as crianças têm papel ativo na sociedade e que, por isso, têm contribuições para o presente (Corsaro, 2011, p. 48), afetando a sociedade de hoje, (re)elaborando-a e (re)criando-a. Pensar na formação musical e mesmo social e cultural da criança implica não (somente) o sentido de suas futuras contribuições para a sociedade – e para a música –, mas aquelas de hoje, do tempo presente.

Assim, as contribuições da inclusão de canções de diferentes culturas no repertório (e mesmo da educação musical) para a formação da criança vão além do futuro que se espera da criança: elas caminham em direção, antes de tudo, para o seu presente. Preocupar-se, portanto, com a formação da criança

[...] não significa preocupar-se somente com o adulto que a criança será, como quem trabalha em função de algo ainda que está por vir, ou resumir o objetivo da educação a uma formação para o futuro; mas significa trabalhar para o presente, com a criança do presente e sua atuação numa sociedade do presente, de modo a alterar as relações

1. Lei n. 11.645, de 10 de março de 2008.

2. O momento ao qual a educadora se refere trata da Lei n. 11.769, de 18 de agosto de 2008, que tornava obrigatória a inclusão da música no currículo escolar.

Introdução

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com seus pares, com a sociedade, com a cultura e com a música. Desse modo, se o trabalho com canções de outros povos pode contribuir para o exercício da tolerância, que seja para ser exercida no presente, com seus pares; e que o exercício futuro desta seja consequência – e não o foco – do que já se viveu. (Fragoso, 2015a, p. 20-21)

Considerando a atuação das crianças na sociedade na qual estão inseridas, a intervenção delas nos processos sociais e musicais dos quais fazem parte e a interação com seus pares nas diferentes instituições sociais (família, escola etc.), é que se pretendeu analisar: 1) quais seriam os resultados e as implicações do convívio entre dois grupos corais infantis de culturas distintas; e 2) como as crianças envolvidas nesse trabalho rearranjariam suas relações, suas impressões, suas canções.

As próximas linhas tratarão, de forma bastante resumida, das reflexões geradas e registradas em trabalho de pesquisa3 que durou quase três anos de vivências entre crianças guarani Mbya e crianças não indígenas, cujas experiências foram mediadas pela música.

Entre a tekoa4 e a sala de música

C

omo adiantado acima, o grupo de trabalho participante da pesquisa era formado por dois coros infantis pertencentes a culturas distintas. Um deles reunia cerca de 15 crianças guarani Mbya5, entre 3 e 15 anos6, da aldeia Tenondé Porã, no extremo sul da cidade de São Paulo, lideradas pelo avô ou pai, o cacique e xeramo7 Elias. Já o grupo seguinte pertencia a um centro comunitário também da zona sul paulistana, e dele faziam parte 17 crianças, entre 5 e 11 anos.

A pesquisa, de caráter qualitativo, etnográfico e etnomusicológico, valeu-se de diversas ferramentas metodológicas, tais como entrevistas abertas e semiestruturadas, grupos focais, art-based research8, observação participativa, a depender do grupo e da situação. A intenção era que a metodologia fosse plástica, dinâmica, moldável, de modo a, em cada caso, mobilizar as técnicas que, dada a definição do objeto, fossem pertinentes (Bourdieu, 1989, p. 26). Essa escolha se justificava no fato de que as combinações entre os participantes eram formadas ora

3. Pesquisa de mestrado em Artes, na área de Musicologia, realizada entre 2013 e 2015, no Programa de Pós- Graduação em Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, intitulada “Entre a opy e a sala de música: arranjos entre crianças guarani Mbya e crianças não indígenas”, sob orientação do Prof. Dr. Pedro Paulo Salles.

4. Tradução do guarani: aldeia.

5. De acordo com as informações oferecidas pelo Instituto Socioambiental – ISA, há, entre os Guarani que vivem no Brasil, uma divisão em Guarani Mbya, Guarani Ñandeva e Guarani Kaiowá e diferem entre si quanto à língua, quanto à religião, quanto à música etc. Neste trabalho, tratamos dos Guarani Mbya. Assim, quando houver referência aos Guarani, deve-se subentender “Guarani Mbya”. Informações disponíveis em https://pib.socioambiental.org/pt, acessado em 26/06/2017.

6. As idades aqui registradas são aproximadas. Não pareceu haver, durante o trabalho com os Guarani Mbya dessa aldeia, uma preocupação em acompanhar a idade real das crianças. Tanto que frequentes foram as vezes em que, ao serem questionados sobre a idade das crianças ou mesmo a sua própria, as respostas chegavam a mim com pouca certeza ou de modo aproximado.

7. Tradução literal do guarani: “meu avô”. Nome também pelo qual são chamados os xamãs (Macedo, 2013, p. 190). No entanto, Elias Vera, cacique xeramo da aldeia Tenondé Porã, traduz xeramo como “pajé”.

8. Tradução literal do inglês: pesquisa baseada nas artes.

Entre a tekoa

4

e a sala de

música

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pelo grupo de adultos guarani e crianças guarani, ora pelas crianças guarani e crianças não indígenas, ora pelos três grupos em conjunto, ora por cada um deles individualmente.

Sobre as crianças não indígenas, estas eram reconhecidas como sujeitos da pesquisa e como indivíduos “capazes de relatar visões e experiências válidas” (Alderson, 2005, p.

423) – e não como objetos de pesquisa. Por essa razão, essas crianças atuaram como co- pesquisadores, recolhendo e analisando dados junto ao pesquisador adulto. Para que isso se viabilizasse, cada criança desse grupo levava consigo um diário de campo onde registravam o que acontecia tanto na aldeia, quanto fora dela9. Esses diários se configuraram riquíssimo material de análise para a pesquisa. Por meio deles, era possível verificar, por exemplo, de que maneira as impressões prévias que as crianças não indígenas tinham em relação à vida na aldeia, à cultura guarani etc., iam se rearranjando após cada encontro, até tomarem um lugar que correspondesse à realidade, desfazendo estereótipos e dissolvendo preconceitos.

Já as crianças guarani, estas eram meus principais informantes. Eram elas as incumbidas de ensinar a mim as canções guarani de que mais gostavam, as brincadeiras e o que pudessem e quisessem sobre a cultura guarani. Essa vivência permitiu a compreensão do modo como esse grupo indígena concebe o ensino e a aprendizagem, apontando para os fatos de que o mostrar como faz era o próprio fazer (Macedo, 2013, p. 206) e de que a aprendizagem e o ensino acontecem pela observação e pela experiência (Fragoso, 2015a, p. 85-94; Fragoso, 2016).

Durante o trabalho, os grupos infantis se reuniram a cada, mais ou menos, 20 dias durante dois anos e meio, e os encontros aconteceram dentro e fora da aldeia. Nesses momentos, as crianças guarani e não indígenas brincavam e cantavam juntas, conversavam entre si e compartilhavam experiências. Algumas situações compreendiam atividades planejadas e/ou conduzidas; outras, o planejado era justamente deixar as crianças não indígenas “às soltas”, como, aliás, parecem estar quase sempre as crianças guarani10.

Este movimento, o de ir-e-vir de uma cultura à outra, é uma das principais questões do trabalho, tanto pelo trânsito em si quanto pelas consequências dele. Esse estado de fluxo entre uma cultura e outra é traduzido por Cox e Assis-Peterson (2007, p. 35) como transculturalidade, em que o “prefixo trans, dentre seus muitos sentidos, veicula aqueles de ‘movimento através de’, ‘movimento de ir e vir’, [...] ‘trânsito’, ‘circulação’, ‘troca’”.

Transculturalidade, então, é entendida aqui como o movimento entre culturas. No entanto, vale observar que esse movimento não significa a troca de uma cultura por outra (mesmo porque cultura não é algo que se perde ou ganha, mas, sim, que se transforma constantemente;

e, por isso, cultura não é algo que se tem ou não; tampouco é algo que se tem mais ou menos), mas é entendido da mesma forma como concebe Kartomi (2008, p. 367): transculturalidade

9. Por exemplo, antes da primeira visita à aldeia guarani, as crianças não indígenas participaram de oficinas e discussões sobre língua e cultura guarani, sobre instrumentos indígenas, sobre arte indígena etc. Essas oficinas também foram registradas nos diários de campo desse grupo.

10. Para entender mais a concepção de infância entre os Guarani, sugiro a leitura do capítulo “O dia da ‘não-oficina’ de música: o aprendizado entre as crianças guarani Mbya” da dissertação em questão (Fragoso, 2015a).

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se refere aos processos de transformação gerados pelo movimento entre culturas, e não às consequências desses contatos.

Tais processos, durante a pesquisa, tiveram a música como mediador e ponto de partida, levantando duas questões: qual é a relevância da transculturalidade na educação e na educação musical; e de que forma a música pode intervir nesse processo, viabilizando a transculturalidade.

Para discutir a relação entre esses dois pontos, é preciso, primeiramente, tratar do que se entende, neste artigo, como cultura. Dentre as concepções de cultura, adotamos duas delas. A primeira delas é aquela trazida pelo antropólogo Geertz, em que cultura

[...] denota um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em símbolos, sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida. (Geertz, 2013, p. 66)

Já a segunda definição, vem da tradução e significado de nhandereko, palavra que os Guarani usam como equivalente de cultura, em que nhande significa “nosso/nossa” e reko é traduzido como “vida”, “conjunto de costumes”. Logo, nhandereko pode ser entendido como “nossa vida”,

“nosso modo de viver” (Macedo, 2012, p. 362). Disso, tem-se que cultura, para os Guarani Mbya, significa “nosso modo de viver”, “nossa vida”, nhandereko.

Se agruparmos essas duas definições, a conclusão a que se chega é que cultura é um nhandereko herdado e compartilhado, cujos símbolos são incorporados durante seu processo de transmissão, garantindo o legado. Porém, enquanto os Guarani revelam o significado de cultura e Geertz atribui ao mesmo termo um caráter de transmissão e perpetuação, Bourdieu (2011, p.

20) se encarrega de acrescentar à ideia de cultura a inovação, a reinvenção a partir do que já existe. Desse modo, temos que cultura é um modo de viver, um conjunto de costumes herdados, transmitidos e compartilhados que, na medida em que se articulam, reinventam-se, rearranjam-se:

[A cultura] constitui um conjunto de esquemas fundamentais, previamente assimilados, e a partir dos quais se articula, segundo uma “arte da invenção” análoga à da escrita musical, uma infinidade de esquemas particulares diretamente aplicados a situações particulares.

(Bourdieu, 2011, p. 20)

A compreensão de que as culturas estão a todo tempo se reinventando é chave para o entendimento de que há entre tais culturas um processo que é dinâmico, que provoca movimento, e, por isso, importam transformações. Nesse sentido, isto é, porque implicam transformações, é que os envolvidos provavelmente nesse processo não sairão ilesos destes.

O trabalho em educação musical que contempla canções de diferentes povos e culturas pode-se configurar em forte elemento provocador da transculturalidade, ou seja, do movimento entre culturas. Entretanto, é o educador musical quem mediará esses movimentos, lançando à mesa diversas e diferentes ideias de música (fazendo uso do termo utilizado por Brito [2007])11,

11. O termo se refere às concepções do que é música, do que pode ser entendido como música, do que a música é e pode ser feita e de que maneira ela é feita.

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articulando estas com aquelas trazidas pelos alunos, interferindo, em consequência disso, no fluxo dessas ideias, rearranjando-as, “como se fossem linhas, linhas sonoras que se esbarram e se emaranham” (Fragoso, 2015a, p. 75). Esse movimento entre ideias é, por sua vez, o responsável por “descristalizar posições” que se achavam confortáveis em relação ao conceito de música, a novas sonoridades; é, portanto, nesse sentido, responsável pelo rearranjo das impressões acerca da música.

Em outras palavras, a audição dessas músicas insólitas, como denomina Salles (2002, p. 101),

interfere no imaginário e no corpo; como que retira a música dos estados já codificados para outros mais livres. O confronto da ordem com a aparente desordem sonora dispara reações ativas e criativas, na medida em que promove um rompimento de estrutura.

(Salles, 1996, p. 54, grifo do autor)

Por essa razão é que a transculturalidade se configura como facilitador de processos em educação musical cuja intenção seja a promoção da tolerância e do respeito em relação à diversidade musical e sonora. No entanto, o trabalho com canções de diferentes culturas em sala de aula pode, além de contribuir para a formação musical da criança (na medida em que são ampliados seu repertório musical e sonoro), dar espaços para o exercício da tolerância e para o respeito em relação às próprias culturas de que tratam as músicas trabalhadas, já que a elas se referem.

Na primeira conversa que tive com o xeramo Elias, quando lhe contava sobre os objetivos que eu havia traçado para a pesquisa que realizaria ali com sua família (Fragoso, 2015a, p. 79), logo me foi dito: “se você ensina [a música guarani] para um aluno seu, esse aluno vai ensinar para outros e vai ajudar a divulgar nossa cultura, nosso povo. [...] Vai diminuir o preconceito”.

Essa fala do xeramo contempla três previsões: a de que as músicas guarani que as crianças não indígenas aprendessem ecoariam até alcançar a outros; que a cultura guarani, bem como o povo ao qual essa cultura se refere, seriam divulgados, isto é, por meio da aprendizagem das canções que a compunham, tanto a cultura guarani como o povo guarani seriam conhecidos; e a redução do preconceito em relação a sua cultura e a seu povo.

Durante a pesquisa, as crianças participantes confirmaram tais previsões, ponto a ponto.

E à narração de como se confirmaram esses pontos é que me dedicarei a seguir.

D

entre as muitas histórias colecionadas durante o trabalho de pesquisa em questão, escolhi algumas que pudessem exemplificar, ainda que resumidamente, o que foi levantado pelo xeramo, a saber: 1) a relação entre o par música/cultura; 2) de que modo o trabalho que tinha como ponto de partida e meio a música guarani contribuiu para a redução do preconceito em relação aos próprios Guarani; e 3) a maneira como as músicas e cultura guarani chegaram a outras crianças – e adultos – por meio das vozes daquelas crianças que participaram do trabalho.

Tove kyr gue’i

oporaei – Que

as crianças

cantem

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Uma das primeiras canções que aprendemos (crianças não indígenas e eu) com os Guarani foi Oreru Nhamandu Tupã, cuja tradução para o português é “Nossos pais, Nhamandu e Tupã”. Antes mesmo que fosse abordado qualquer aspecto musical da canção, a primeira questão que as crianças levantaram se referia à tradução da canção.

Esse é um interesse bastante óbvio. Porém, não são raros os casos em que não é revelada aos estudantes a tradução de uma canção em outra língua. Podemos especular os motivos por que isso acontece, que vão desde o desinteresse do educador pela busca da tradução até a dificuldade de encontrar tal recurso. Mas, se a intenção é que se desenvolva um trabalho pedagógico significativo, é preciso que tanto o professor quanto o grupo de alunos tenham acesso ao que a letra se refere. O simples fato de conhecer o texto da canção abre ainda mais possibilidades criativas de trabalho, como elaborar arranjos vocais e instrumentais, criar versões, fazer improvisações etc. Em outra canção guarani recolhida na aldeia, por exemplo, o grupo não indígena participante da pesquisa decidiu incluir em seu arranjo vocal um cânone, de modo que isso significaria o voo incessante da pombinha sobre a qual a canção falava12. Por essa razão, defende-se aqui que é imprescindível o acesso à tradução da canção em um trabalho que envolva canções de diferentes culturas em sala de aula, e, não havendo tal acesso, sugere-se que seja melhor considerar outra canção.

Sabendo, então, que cantávamos “Nossos pais, Nhamandu e Tupã”, a questão seguinte trazida pelas crianças era “Quem são Nhamandu e Tupã?”, “Eles são pais de quem?”. Quando o xeramo disse que, ao ensinar música guarani para as crianças não indígenas, sua cultura estaria sendo divulgada, ele já sabia da impossibilidade de se dissociar música e cultura.

Merriam (1964, p. 15), por exemplo, afirma que a música é uma ferramenta importante de análise da cultura e da sociedade à qual pertence, porque revela seus valores básicos; isso porque os valores de determinada sociedade são impressos em suas músicas e expressos através delas, refletindo e refratando a maneira como esse grupo se organiza (Blacking, 2008;

Blacking, 2000; Merriam, 1964).

Nesse sentido, o desenvolvimento de um trabalho que contemple canções de outras culturas precisa considerar que música e cultura compõem um par que é (ou que deveria ser) indissociável. Ou seja, se o conteúdo é música guarani, também o será a língua guarani, os costumes, a cosmologia, todo o nhandereko guarani, já que dele a música faz parte. Tanto é que, durante a pesquisa, quando foi dito ao grupo de crianças não indígenas que visitaríamos uma aldeia guarani e que cantaríamos com as crianças de lá, as primeiras e principais dúvidas que eles registraram em seus diários de campo tratavam de questões acerca da alimentação, da possível nudez indígena, do uso de celulares entre os indígenas, da língua, dos tratamentos de saúde etc. Somente uma criança registrou dúvida em relação aos instrumentos musicais que os Guarani usavam.

Outro exemplo é a fala de Giovanna. Quando perguntada sobre sua opinião quanto à participação na pesquisa, ela diz: “Eu acho importante também as crianças ouvirem [música

12. No trabalho “Que músicas trazem uma pombinha guarani para a aula de música?” (Fragoso, 2015b), é possível ter acesso ao trabalho desenvolvido com essa canção integralmente.

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indígena] na escola para conhecerem outras crenças, outros tipos de música, outros ritmos...

que são diferentes, [que] a gente não ouve sempre”, o que revela a associação entre ouvir música de uma cultura específica e conhecer outras crenças.

Os exemplos listados apontam para a necessidade que as crianças (e mesmos os adultos) têm de contextualizar o trabalho que envolve algum aspecto de outra cultura. De acordo com a arte-educadora Ana Mae Barbosa, por exemplo, “o conhecimento e o entendimento são mais facilmente efetivados se emoldurados pelo sujeito. É esta moldura que designamos contextualização [...]” (Barbosa, 1998, p. 38). Um trabalho descontextualizado, além de pouco – ou nada – significante para o aluno, pode inclusive prejudicar as comunidades às quais se propôs estudar, já que, em vez de desfazer os estereótipos, reforça-os, causando uma visão equivocada sobre quem são, de fato, as pessoas que formam a comunidade estudada, sua história e o que representam nos dias atuais.

Desse modo, espera-se um educador pesquisador, que esteja comprometido com um trabalho de pesquisa aprofundado sobre as culturas às quais tais canções pertencem e sobre os valores que estas trazem consigo de modo que, a partir do (re)conhecimento destes valores, o aluno possa compreender o que determinada canção representa para a sociedade estudada. (Fragoso, 2015a, p. 106)

Outro fator significativo indicado pela necessidade de manter música e cultura associadas no trabalho em sala de aula, e que completa o argumento anterior, consiste no fato de que, assim como a cultura é dinâmica e porque está a todo tempo se (re)fazendo, as músicas também estão em constante devir. Isso explica o fato de que

[...] “a música contém muitas músicas”, próprias a tempos e espaços diversos e singulares.

Modos de pensar o sonoro, agenciando acontecimentos, variam de uma pessoa para outra, de cultura para cultura, de uma época a outra, de forma que o dinamismo dos processos de ação/cognição provoca também transformações contínuas no que se refere à interação dos seres humanos com sons e músicas. Coexistem possibilidades de produções/reflexões musicais, próprias a cada pessoa (mudando ao longo da vida) e a cada ambiente, o que confere singularidade ao sistema musical. (Brito, 2007, p. 33)

A compreensão de que “a música contém muitas músicas”, como escreve Brito acima, porém, só é viabilizada se for entendido que, assim como coexistem diversas possibilidades de música, coexistem diversas culturas, nas quais e pelas quais a música se faz e refaz, influenciando tanto a maneira como determinada sociedade se organiza quanto os valores que defende; ao mesmo tempo em que, tanto o modo como se dá essa organização quanto os valores por ela defendidos, influenciam suas ideias de música.

Oliveira Pinto (2001, p. 275) diz que “ouvir e aprender a ouvir a sonoridade dos outros significa entendê-los melhor”, arrematando o que foi dito até aqui e corroborando a afirmação do xeramo. Para esse guarani, o fato de as crianças não indígenas conhecerem a música de sua cultura poderia fazer com que elas se tornassem mais tolerantes não somente à sua música, mas à sua cultura, e pode-se ir além: conhecer a música de sua cultura poderia tornar

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as crianças mais tolerantes ao povo de que se trata tal cultura, o que representa, no limite, ele mesmo.

Uma das crianças participantes, Sabrina, contou-me que comentava com seus amigos (não indígenas) da escola onde estudava sobre os amigos guarani que fizera durante o trabalho de pesquisa referido. Para provar àqueles a veracidade do que dizia, contou-lhes o nome de alguns dos amigos guarani. A tentativa provocou risos aos amigos não indígenas. De acordo com ela, o motivo da chacota era justamente a diferença entre os nomes da cultura guarani e os nomes os quais seus amigos da escola estavam acostumados a ouvir. Disse-me ela que tentou explicar como os nomes eram dados pelos Guarani; ela lhes contou que os Guarani recebiam dois nomes: um em português, escolhido pelos pais, e outro em guarani, revelado ao xeramo por Nhanderu. Sabrina disse aos amigos que riam que o nome guarani era escolhido pelo demiurgo dessa cultura e que era algo extremamente sagrado para os Guarani. A tentativa foi em vão. Irritada, a aluna abandona a conversa dizendo: “Vocês não conseguem perceber que as pessoas têm culturas diferentes e que o nome faz parte disso. Vocês não entendem porque vocês não conhecem”.

Há, ainda, outros momentos em que se ouviram as vozes das crianças não indígenas ressoando. Ouviu-se Catharina cantando para a sua turma escolar, na aula de História que tratava justamente do estudo dos povos originários do Brasil, a canção Oreru Nhamandu Tupã a fim de mostrar aos colegas que conhecia, em suas palavras, “índios de verdade”. Já João, que no início da pesquisa ficara bastante apreensivo quanto à primeira visita à aldeia, chegando, à época, a confessar que temia ser recebido agressivamente por indígenas guarani portando arco e flechas, tranquilizou a aluna nova que recebíamos um ano depois de iniciados os trabalhos: “Não precisam se preocupar. Eles não vão atirar flechas em vocês. Não é como todo mundo pensa”. No mesmo dia, Sofia delicadamente corrige uma dessas crianças que chegavam: “Não são indianos. São indígenas”.

E

m uma das visitas desacompanhadas das crianças não indígenas que fiz à aldeia, as crianças guarani me levaram até a represa que tinha ali perto. Uma delas, porém, não pôde ir conosco. A razão do impedimento era a leucemia que a criança tinha.

Quando encontrei as crianças não indígenas no dia seguinte, contei a elas sobre minha visita à represa e sobre a garota guarani que não pôde ir por conta de sua doença.

Extremamente afetada pela história, Catharina questiona: “Mas o pajé já pediu para Nhanderu curar a menina?”. Argumentei perguntando a Catharina se ela acreditava em Nhanderu, ao que ela me respondeu: “Eu não, mas os Guarani acreditam”.

Nas vozes de Sabrina, João, Catharina, Sofia e todos os outros, confirmava-se a previsão do xeramo. Sabrina, porque cantou com os Guarani as músicas desse grupo indígena, porque se colocou no trânsito de uma cultura a outra, foi capaz de fazer ecoar tanto o que aprendera entre os Guarani quanto a necessidade de se ouvir e respeitar aquela cultura, aquele povo, aqueles a quem ela agora chama amigos.

Opa vy –

Conclusão

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No movimento entre culturas impulsionado pela música e aprofundado e fortalecido nas relações sociais que as crianças não indígenas e guarani estabeleceram entre si, vimos que, pelo menos com esse grupo de crianças, é possível ir além da promoção da tolerância.

Vimos que, ainda que não se acredite em Nhanderu, é possível acreditar que, para os Guarani, Nhanderu é real; por isso, na transculturalidade que as envolvia, essas crianças demonstraram a possibilidade não somente de convívio sem conflitos entre indivíduos de culturas diferentes, mas de convívio baseado na empatia e na valorização da alteridade.

Esse era o previsto pelo xeramo Elias. No entanto, quando tal previsão foi feita, o xamã sequer conhecia o grupo que participaria da pesquisa. Sendo assim, não seria academicamente ousado arriscar dizer que sua previsão pode caber para outros grupos que estejam dispostos a transitar entre a tekoa e a sala de música.

Ao Elias Vera, Iara e suas crianças; às crianças do Tico-tico Coral Infantil; ao Centro Comunitário Verde Oliva; à Carob House pela contribuição financeira com esta pesquisa.

Ha’evete!

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Agradecimentos

Referências

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Recebido em 06/01/2017 Aprovado em

20/06/2017

Daisy Fragoso é Doutoranda e Mestra em Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade de São Paulo (USP). Licenciada em Música (ECA-USP) e professora de Educação Musical na educação básica.

Referências

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