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Gênero e as formas de comunicação das esposas atenienses na pólis

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Academic year: 2021

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UFRJ ISE

Palavras-chave: esposas atenienses – gênero – comunicação

Gênero e as formas de comunicação das esposas atenienses na pólis

Nosso grande desafio, neste estudo, é levantar de maneira comparativa os processos comunicacionais das esposas atenienses no Período Clássico. Ao dialogarmos com algumas ciências almejamos cruzar os resultados de pesquisas efetuadas por historiadores, antropólogos, arqueólogos e estudiosos de gênero visando perceber a individualidade das informações, pois nos possibilitarão interpretar com maior clareza a vivência dessas mulheres em Atenas.

Compartilhamos com Jean-Pierre Vernant que o homem deve ser estudado através do que ele criou e produziu em sua vida em grupo. Ele se faz presente em suas construções, suas obras, e estas devem ser transmitidas, comunicadas, perpassando de geração em geração. “O conjunto dessas obras constitui aquilo que chamamos de feitos de civilização, que dependem de um estudo histórico” (VERNANT: 2001, p. 54).

Peter Burke destaca que os historiadores têm ampliado consideravelmente seus interesses. História das mentalidades, história da vida cotidiana, cultura material, história do corpo – para isso houve a necessidade de diversificação da documentação (BURKE: 2001, p. 11). “Ainda que os textos também nos ofereçam importantes pistas, as imagens são a melhor guia para entender o poder que tinham as representações visuais na vida política e religiosa das culturas passadas” (BURKE: 2001, p. 17). O leque das produções efetuadas pelos sujeitos históricos do período estudado se ampliou e a gama de informações à respeito dos processos de comunicação de naturezas não-comuns para serem comparadas também.

Neste contexto, o estudo da vivência em grupo das mulheres atenienses por intermédio de suas ações cotidianas nos permitem levantar ruídos da linguagem feminina. Desse forma voltaremos nosso olhar para as maneiras que as atenienses burlavam o esquematismo social e para as relações de gênero.

As esposas abastadas atenienses passavam grande parte do seu tempo com as suas escravas, com as mulheres que prestavam serviços em suas residências e estavam presentes nessa relação, com as que possuíam laços de philía (Φιλία) e de parentesco. Nossa proposta, neste momento, é mapear de que forma esta convivência grupal proporcionou às atenienses maneiras de burlar o esquematismo social construído pelos gregos. Para tal priorizaremos os processos de comunicação das mulheres, pois concebemos que por intermédio da linguagem as esposas bem-nascidas se

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interavam dos acontecimentos da koinonía e disseminavam suas idéias, rompendo o modelo ideal de esposa.

Neste contexto, elas aproveitam as tarefas que lhes eram atribuídas (tecer, bordar, cuidar dos mortos e outros) para através delas burlar a idealização. As atividades que possuíam uma finalidade específica ganhavam uma outra dimensão. Elas não rejeitavam diretamente essas atividades, mas atribuíam à elas um novo sentido além do esperado. Como verificamos na tragédia Eléctra de Sófocles quando Crisótemis, irmã de Eléctra, sai de casa carregando nas mãos oferendas fúnebres que sua mãe estava enviando ao túmulo de seu esposo, Agamemnon. Eléctra pede a irmã para não levar aquelas oferendas, mas trocá-las por cabelos e cinto “Querida, não ofereças ao túmulo nada do que tens nas mãos. Pois não é justo nem lícito depor, da parte da mulher inimiga, oferendas no túmulo do pai, nem derramar nele água purificadora. Antes, lança-as aos ventos ou esconde-as numa espessa camada de pó, onde nunca nenhuma parcela delas atingirá o leito de nosso pai” (SÓFOCLES. Eléctra. vv. 422-428). Crisótemis acaba realizando o pedido de sua irmã: “Farei, pois o que é justo não é objeto de briga, mas deve ser realizado com pressa. Enquanto tentar executar estas coisas, guardai-me o segredo, amigas, pois se minha mãe for informada, penso que um dia pagarei caro esta tentativa” (SÓFOCLES. Eléctra. vv. 463-467).

Devemos destacar a manipulação executada pelos praticantes, pois só após esta observação se pode apreciar a diferença ou a semelhança entre a produção da imagem e a produção secundária que se esconde nos processos de sua utilização. O modelo ateniense sofre a manipulação das esposas dos cidadãos abastados gerando uma conduta que pode ser ou não o que se esperava. Nos versos da tragédia citados concluímos que a ação de Crisótemis não foi a aguardada por sua mãe e que Electra consegue, de certa forma, se vingar.

Nesta perspectiva, o trato diário possibilitava às esposas atenienses uma maior mobilidade social, visto que, de acordo com o modelo ideal, não estaria reservado às esposas abastadas um desempenho em grandes proporções no espaço público. Dessa forma, o campo de ação das bem-nascidas estava direcionado para o espaço interno do oîkos, o privado e o cotidiano, enquanto que as menos abastadas e as escravas usufruíam de um raio mais extenso, pois elas trabalhavam como amas, parteiras, circulavam no espaço externo, etc, para ajudar no sustento familiar. Sobre as mélissai estava depositada uma cobrança mais efetiva em relação ao modelo mélissa. Na tragédia Hipólito, de Eurípides, esta questão se faz presente por intermédio da fala do próprio protagonista. “De fato, vêem-se mulheres pervertidas tecendo na intimidade planos pérfidos que são levados para fora por criadas” (EURIPIDES. Hipólito. vv. 696-698).

Os grupos por nós estudados, eram constituídos por mulheres que cotidianamente ocupavam as duas esferas. Esta relação possibilitava às esposas uma extensão na atuação que ultrapassava o microcosmos destinado à elas no cotidiano. A dinâmica grupal na qual as esposas se encontravam

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inclusas proporcionava à elas convivência, partilha, modificações nos agentes sociais e a formação de identidade e de laços de amizade.

Verificamos que, essas experiências não ficaram encerradas nos grupos de esposas, mas constituíram representações simbólicas no interior da koinonía. Já que os escritores, tragediógrafos, comediógrafos e pintores por intermédio dos textos, das realizações teatrais, e das representações nos vasos, inseriram esta temática também em suas produções deixando registros desta prática grupal.

Os estudos e a divulgação do gênero como uma categoria de análise da organização social da diferença sexual têm grande relevância em nossa pesquisa, pois sinaliza que papéis próprios a homens e mulheres são construções sociais e culturais. O gênero vem enfatizar um sistema amplo das relações entre os sexos, sem vincular-se diretamente à diferença biológica. Tornando-se um instrumento para conhecer as simbologias e representações pelas quais as sociedades elaboraram e definiram o masculino e o feminino e, conseqüentemente, as relações de poder que permeiam ambos os conceitos. Contamos com os resultados dos estudos de gênero ao direcionarmos nosso olhar para a sociedade ateniense.

Se atualmente podemos efetuar tais reflexões sobre o gênero, devemos nos reportar às valiosas contribuições que vieram à tona com a História Social, onde se começou a estudar os grupos ditos marginalizados. Antes de refletir sobre o gênero, a História passou por profundas mudanças em seus paradigmas. Com a eclosão de novos movimentos sociais urbanos a partir dos anos 70: mulheres, ambientalistas, negros e grupos minoritários e marginais, os cientistas sociais repensaram seus parâmetros de análise do social. O sujeito histórico enquanto uma figura única é relegado e novos sujeitos entram em cena, dentre eles as mulheres. Os pesquisadores passaram a lançar mão com mais incidência de lembranças e de histórias de vida, de documentos iconográficos, de registros pessoais, de diários, cartas e romances.

Neste contexto, as mulheres passam a ser concebidas como agentes históricos. Os estudos acerca das mulheres atenienses ganharam novos rumos e os questionamentos quanto à dimensão da exclusão a qual estavam submetidas se intensificaram. A atuação das mulheres foi legitimada ao longo dos anos por um discurso masculino que encerrava a vida das atenienses no gineceu. Com a categoria gênero “novas histórias” emergiram e com elas percebemos uma dinâmica na vida dessas mulheres que não estava presente na concepção masculina. Os processos de comunicação das esposas atenienses nos permitem vislumbrar que suas vidas como sujeitos históricos vão além do que homens contemporâneos à elas deixaram registrado.

Guaciara Lopes Louro afirma que em diversos momentos de nossa História podemos observar ações isoladas ou coletivas dirigidas contra a opressão das mulheres. A autora aponta que contemporaneamente vem se preocupando em reconhecer essas ações (LOURO: 2003, p. 14). Neste

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trabalho, auxiliados pelo estudo de gênero, estamos pesquisando a linguagem, principalmente em conjunto, das esposas bem-nascidas com os sujeitos históricos. Com o intuito de trazer à tona ações e atitudes que foram silenciadas em outrora.

Estudar as ações não esperadas, ou seja, as que fugiam ao modelo se torna possível através dos estudos de gênero, pois nos dedicamos a entender a relação entre os agentes atenienses que transcendia o que está escrito, o que nos foi deixado residualmente. Para entendermos o contexto cultural ateniense temos que ler nas entrelinhas os registros deixados pelos contemporâneos das esposas atenienses. Segundo Margareth Rago, a História Cultural enfatiza a necessidade de se refletir o campo das interpretações culturais, priorizando a construção dos inúmeros significados sociais e culturais pelos agentes históricos (RAGO: 1998, 37).

Nesta perspectiva, compartilhamos com Joan Scott que “(...) gênero é o saber que estabelece significados para as diferenças corporais. Esses significados variam de acordo com as culturas, os grupos sociais e no tempo, já que nada muda no corpo, (...) determina univocamente como a divisão social será definida” (SCOTT: 1994, p. 13).

Louro defende que com a categoria gênero se passa a analisar a construção social e cultural do feminino e do masculino, apontando que devemos ficar atentos para as formas que os sujeitos se constituíam e eram constituídos em meio às relações sociais de poder (LOURO: 2002, p. 15).

Inserido nesta discussão, Thomas Laqueur enfatiza que o gênero na Antiguidade era muito importante e fazia parte da ordem das coisas. “Foi no mundo do sexo único que se falou mais diretamente sobre a biologia de dois sexos, que era mais arraigada no conceito de gênero, na cultura”. Ele defende ainda que ser homem ou mulher implicava em uma posição social, um lugar na sociedade, assumir um papel cultural (LAQUEUR: 2001, p. 19).

A sociedade ateniense construiu para as mulheres um papel que relegava à submissão, a exclusão das decisões da pólis. O discurso masculino legou a mulher ao interior, ao espaço interno do oîkos. Salientamos que apesar desta idealização masculina, as mulheres não viveram completamente pautadas neste modelo.

Na medida que nos aprofundamos nos estudos acerca das mulheres na sociedade ateniense através de sua atuação e das formas de expressão compreendemos que o papel desempenhado pelas atenienses não está presente diretamente na documentação textual. Entendemos que suas ações iam além da submissão, das responsabilidades que lhes foram atribuídas e a categoria gênero tem nos auxiliado quando nos oferece um suporte teórico para a compreensão da relação entre os viventes através da cultura. Assim, seguimos nossos estudos em busca de novos testemunhos sobre as mulheres, procurando rever as imagens e dar visibilidade à elas. Através dos estudos sobre o feminino, novas histórias emergiram, falas foram recuperadas (MATOS: 2000, p. 7).

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Nesta perspectiva defendemos que as esposas dos cidadãos abastados atenienses não viviam isoladas em ilhas, mas interagiam continuamente com os homens, quer os consideremos na figura de esposos, pais, irmãos ou filhos, com os quais conviviam no cotidiano, como podemos verificar nas representações dos pintores. Ao acrescermos aos estudos de gênero as pesquisas da Arqueologia e da Semiótica reunimos instrumentos de análise para interpretarmos a vida das mulheres de Atenas.

Inserido nesta discussão, Pierre Brulé, na imagética dos vasos, defende que as mulheres não estão sozinhas em cena. Este especialista ainda destaca que a pesquisa sobre as mulheres nos informa evidentemente muito, quando retornamos aos homens, à “associação” dos gêneros, às sociedades onde elas vivem, à cultura onde elas se encontram imersas (BRULÉ: 2001, p. 10).

Para Susan Paulson em contextos que as mulheres de certos grupos sociais vivem com os pés amarrados, com faixa apertada na cintura, com menos comida ou proteína que seus irmãos, elas são biologicamente mais fracas, e a ideologia de gênero justifica a sua saúde delicada com a crença de que as mulheres nascem fracas. Na verdade, as restrições culturais é que não consentem que elas andem, façam exercícios. São as práticas de gênero que agem na saúde e no corpo durante o seu desenvolvimento (PAULSON: 2002, p. 30).

Contemplando a abordagem cultural, Richard Sennett enfatiza a justificativa dos atenienses em relação à fraqueza da mulher desde a geração. A dominação feminina pelos homens era legitimada, na Atenas Clássica, por intermédio de uma concepção de que a temperatura dos corpos produzia maior ou menor resistência. De acordo com Sennett, os fetos bem aquecidos no útero, desde o início da gravidez, se tornariam machos, já os menos aquecidos deveriam se tornar fêmeas, desta falta de aquecimento resultaria corpos fracos, frios, frágeis, menos encorpados que os homens (SENNETT: 1997, p. 38), podemos desta forma, concluir que alguns dos atributos específicos a uma esposa tinham uma relação imediata com a procriação.

Concluímos que os estudos de gênero aplicados à Antiguidade Clássica contribuem para que possamos descortinar a vivência dos sujeitos históricos no período estudado trazendo novas reflexões para a historiografia e que a extensão da comunicação das atenienses rompia os padrões estabelecidos e, se apresentava na dinâmica da pólis.

Bibliografia

Documentação textual

EURIPIDE. Hippolyte, Hécube. Trad. L. Méridier. Paris: Les Belles Lettres, 1927 (edição bilíngüe). SOFOCLES. Electra. Tradução por Maria da Eucaristia Daiellou. Rio de Janeiro: Universidade Santa Úrsula, 1975.

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Bibliografia Instrumental e Específica

BRULÉ, P. Les Femmes Grecques à l’ époque Classique. Paris: Aachitte, 2001.

BURKE, P. Visto y no visto: el uso de la imagem como documento histórico. Barcelona: Crítica, 2001.

_________. “A linguagem do gesto no início da Itália Moderna”. IN: _____. Variedades da história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

_________. A arte da conversação. São Paulo: Unesp, 1995.

CALAME, Claude. Le Récit en Grèce Ancienne: Enonciations et Representations de Poètes. Paris: Meridiens Klincksieck, 1986.

LAQUEUR, T. Inventando o Sexo. Corpo e Gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001.

LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 2003.

_____________. “Epistemologia feminista e teorização social – desafios, subversões e alianças”. IN: ADELMAN, M. e SILVESTRIN, C. B. (org.) Gênero Plural. Curitiba: Ed. UFPR, 2002.

MATOS, M. I. S. de. Cotidiano e cultura: história, sociedade e trabalho. Bauru: EDUSC, 2002. PAULSON, S. “Sexo e gênero através das culturas”. IN: ADELMAN, M. e SILVESTRIN, C. B. (org.) Gênero Plural. Curitiba: Ed. UFPR, 2002.

RAGO, M. “Epistemologia feminista, gênero e história”. IN: PEDRO, Joana M. e GROSSI, Miriam P. Masculino, feminino, plural gênero na interdisciplinaridade. Florianópolis: Editora Mulheres, 1998.

SCOTT, J. “Prefácio a Gender and Politics of History”. IN: Cadernos Pagu: desacordos, desamores e diferenças. Campinas: PAGU/UNICAMP, 1994, v. 3.

SENNETT, R. Carne e Pedra. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1997.

SOITHET, R. “História, Mulheres, Gênero: contribuições para um debate”. IN: AGUIAR, Neuma. Gênero e Ciências Humanas. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997.

VERNANT, J. P. Entre Mito e Política. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.

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Referências

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