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Engenharia em Sociedade:

Por uma formação Profissional Engajada

DSc. José Antonio Aravena Reyes

Robot Sophia, 2017.

XLII Semana da Engenharia

III Semana de Saúde Mental

Faculdade de Engenharia

Universidade Federal de Juiz de Fora

Setembro de 2019

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Prezada audiência:

É sempre um grande prazer atender ao chamado dos nossos estudantes para tratar assuntos que são de amplo interesse e muitas vezes, até polêmicos e desafiadores. Na chamada deste ano já se pode observar o que inquieta os nossos pensamentos: a engenharia requer de cuidados face às novas diretrizes. E com esta palavra estou inaugurando uma forma de olhar para a nossa vida universitária e profissional desde uma perspectiva muito mais ampla que a do cuidado terapêutico que, sem dúvidas, requer também a nossa dedicação.

Pode parecer estranho falar de cuidados em engenharia, mas ao longo da minha exposição, esta temática ficará mais clara e todos entenderão a que me refiro concretamente com o cuidado que cito aqui.

Em abril desse ano (2019) foram homologadas as novas diretrizes para os cursos de Engenharia no Brasil.

Aparentemente, e sobre tudo considerando as palavras dos diversos atores que participaram na elaboração dessas, as novas diretrizes visam avançar nas melhorias do ensino de Engenharia em, digamos, duas direções importantes: primeiro, no processo formativo e segundo, no perfil do egresso.

Em relação ao primeiro ponto (o processo formativo) se propõem novas direções metodológicas e de organização e gestão dos cursos. Propõe-se um ensino baseado em competências utilizando metodologias ativas, além de atividades de acolhimento e recomendações para o processo avaliativo.

Já em relação a segundo item (o perfil do egresso) se observa que há uma guinada para a formação de um profissional inovador e empreendedor, com uma perspectiva mais abrangente das complexas situações que se apresentam hoje na sua vida profissional. Pessoalmente, acredito que as diretrizes são pertinentes, mesmo quando a maior parte das recomendações visa dar subsídios para melhorar os baixos indicadores de sucesso na formação de engenheiros (principalmente, para reduzir os altos índices de evasão e garantir a formação de competências), enquanto poucas linhas são reservadas para a questão do perfil profissional. De fato, tenho a forte impressão de que se consideramos que, perfil e competências possuem articulações que as fazem ser parte de um único conjunto conciso de recomendações para direcionar o perfil do egresso, se verá que muitas das características do novo perfil já se encontravam presentes nas suas antecessoras.

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Desde essa perspectiva, poderíamos dizer que, salvo as recomendações que visam tornar mais eficaz o processo formativo, as novidades que trazem as novas diretrizes representam uma leve guinada para a obtenção de um engenheiro mais adaptado às demandas produtivas dos novos tempos, as quais passariam, principalmente, por alinhar os egressos a uma perspectiva global da engenharia, na qual, o papel inovador e empreendedor seria fundamental.

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Inicialmente, poderíamos considerar que esse alinhamento passa por incluir aspectos relativos a fatores humanos e ambientais, não só mediante a inclusão das chamadas soft skill, senão também através de recomendações tais como incluir a perspectiva dos usuários e se atentar com preocupações relativas à formação cidadã e para a sustentabilidade. Porém, devemos estar atentos que tal leitura não representa a totalidade da complexa condição social na qual se insere a Engenharia hoje: há nas diretrizes certo entendimento que limita o entendimento do humano, em termos de cidadania e sustentabilidade, pois se circunscreve na figura de o usuário.

Afinal, de onde sai essa redução? Porque é que os agentes que importam são só aqueles afetados pela ação técnica?

O que gostaria de mostrar é que esses inocentes questionamentos que faço aqui nos revelarão que as diretrizes induzem um entendimento da realidade para o qual devemos estar atentos, em função dos efeitos nocivos que a prática profissional poderá provocar em função da base epistemológica que se instaura a partir dessa apreciação.

Sem dúvida nos enfrentamos a uma lacuna que faz com que todas as preocupações sobre os efeitos sociais e ambientais da Engenharia estejam num domínio de pré-compreensão tal que parece não ser necessário qualificar de forma mais precisa o social e seus agentes. Porém, exatamente essa pré-compreensão que implicitamente trazem as diretrizes requer de cuidados, e volto a afirmar, não de cuidados terapêuticos, senão de cuidados como a condição existencial que fora expressada por Martin Heidegger quando o exprime como forma de olhar com atenção aquilo que se configura como o mundo que se vive de forma autêntica.

E é que, como destaca o filosofo alemão, resulta muito fácil nós confundirmos com a categoria todos e nos alinharmos a esse todo que são todos, mas que nem sempre são

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representativos de um eu autêntico. Em outras palavras, coincidir com uma interpretação da realidade que não é autenticamente nossa, exige atenção e no caso, ora em pauta, requer a nossa atenção um entendimento do papel social da Engenharia que não emana de nós mesmos, senão, das diretrizes.

Então esse cuidado existencial exige de nós autêntica atenção com o que somos. Se nos fundimos no social sem questionar se estamos sendo autênticos, seremos parte de um projeto de outros, seremos, de certa forma, obedientes e disciplinados e realizaremos mediante o ordenamento de outros, aquilo pelo qual nós devemos responder diante da sociedade.

Dessa forma, para pelo menos saber até onde podemos concordar com a leitura do social que implicitamente nos oferece as diretrizes, é necessário desvelar essa leitura e conhecer o que ela tem a ver conosco, em termos dos autênticos desejos que teremos quando sejamos engenheiros, pois inevitavelmente seremos engenheiros em sociedade.

Assim, gostaria agora de descrever o que penso ser a condição de mundo que as diretrizes colocam como pano de fundo para instruir nosso processo formativo.

Trata-se de uma condição na produção técnica contemporânea que conhecemos qualificando-a através de conceitos como o de sociedade da informação ou do conhecimento e que nos coloca hoje perante um programa de desenvolvimento global que exige um novo leque de competências. Estas novas competências são apresentadas sob o título de soft skills e representam uma guinada para aspectos de gestão e negócios que até recentemente foram negligenciados no processo formativo. Portanto, nada mais natural que as novas diretrizes orientem para essa direção formativa.

Porém, como pretendo mostrar, esta mesma sorte de competências já foi anunciada muito tempo atrás como requisito fundamental para a manutenção e desenvolvimento do modelo econômico capitalista contemporâneo.

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Joseph Schumpeter foi um desses visionários que, a meados do século XX, colocou o capitalismo sobre a base da inovação enquanto, por um raciocínio similar, outro visionário chamado Daniel Bell, colocava no papel central dos processos produtivos o conhecimento tecno-cientifico.

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Estes dois visionários ajudaram a entender que o novo modo de produção capitalista se afastava da perspectiva de que a produção de riqueza descansava na posse dos meios de produção para colocar o intelecto humano ou a inteligência, como motor da geração de riqueza. Assim, o homem se torna o próprio ente produtivo, pois é da sua capacidade intelectual inventiva de onde surgem as novas formas de geração de riqueza.

O que sucedeu foi que, em função dos avanços e aperfeiçoamentos da fábrica, o capital humano seria o que consegue produzir e diversificar as novas mercadorias, ao ponto de hoje estarmos perante um novo ciclo econômico que se inspira na criatividade de alta tecnologia para reconfigurar os processos produtivos e, consequentemente, alimentar um novo ciclo de desenvolvimento social que, digamos, está baseado no consumo.

É o que costumamos chamar de sociedade altamente tecnologizada e de consumo, isto é, uma ordem social completamente permeada pelo uso intensivo de tecnologia para produzir objetos de consumo. Do singelo slogan tudo que se vê ao redor é tecnologia até as mais novas descobertas e aplicações da ciência moderna que surpreendem inclusive os mais informados, saem muitos dos sinais que nos revelam o alto grau de tecnologização da sociedade atual.

E mais uma vez, somos chamados, como engenheiros, a nos incumbir com os desafios destes novos tempos, que para nós se apresentam hoje através de um ideário técnico de origem alemão: a chamada indústria 4.0.

Parece contraditório em termos conceituais colocar em pauta a ideia de indústria no seio da sociedade do conhecimento, pois Daniel Bell já anunciara a meados da década dos setenta, que a centralidade do conhecimento científico e tecnológico caracterizava o advento de uma condição social pós-industrial, isto é, a emergência de uma sociedade onde o conhecimento seria central para alavancar os processos de obtenção (e acumulo) de riqueza, tal qual como a reconhecemos hoje.

Na condição pós-industrial cientistas e engenheiros são considerados peças-chave para operacionalizar as componentes produtivas do modelo. Isto quer dizer, se conta com o trabalho e conhecimento desses agentes para produzir os bens e serviços sobre os quais as relações econômicas irão se fundar. Cientistas e engenheiros são os operadores qualificados do progresso técnico que sustenta a sociedade pós-industrial e obviamente, de ambos é demandada a posse do conjunto de competências que permita a eles desenvolver eficazmente esse papel.

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Se isso parece ser a novidade do social que subjaz nas diretrizes, por sua vez, nada disso é novo para os países que a meados do século vinte já possuíam características de sociedade pós-industrial (notadamente, Estados Unidos e outros países da Europa). Os países que despertaram para a nova condição produtiva pós-industrial, fizeram grandes investimentos na formação dos seus quadros e elevaram significativamente a sua capacidade de produzir tecnologia. Para constatar isso, basta olhar o próprio dado que serve de argumento para a reorientação das diretrizes: estamos muito abaixo da media de engenheiros por habitantes dos países desenvolvidos e de alguns outros emergentes.

Mas, ressalvemos que esta constatação e feita observando e comparando o Brasil com um processo iniciado por esses países há algumas décadas atrás.

Ao olhar criticamente para a indústria 4.0 hoje, veremos que o fundamental da complexa sociedade que nos anunciam as diretrizes não está na ênfase da sua condição altamente tecnologizada, pois de fato esse já é o pensamento que deu origem ao projeto europeio da feira de Hannover e nesse contexto, nós já começamos tarde. Hoje a ênfase deveria ser outra.

Elevar os graus de competitividade no Brasil para responder às demandas da nova ordem produtiva global, requer em media, oito anos (três de implantação e mais cinco para os primeiros formandos entrarem na esfera profissional). Portanto, já podemos esperar que a Engenharia das novas diretrizes se encontrará plenamente implantada em um cenário extremamente competitivo e acirrado, principalmente se o país toma uma direção de apertura econômica de mercados.

Nesse contexto, acredito que se deva pular algumas etapas e tentar encurtar os caminhos de modo que ao chegar a um grau de maturidade produtiva apropriadas às demandas da nova ordem, se possa ao mesmo tempo chegar com um diferencial competitivo significativo. Aqui é onde considero que o cuidado é fundamental.

Hoje não se trata só de desenvolver o espírito empreendedor e inovador dos novos engenheiros, pois isso os coloca na esteira do processo de desenvolvimento que os países mais industrializados já alcançaram. Hoje as discussões mais acaloradas se dão na arena dos efeitos que a nova ordem produtiva pode gerar. E talvez isso seja uma boa direção de engajamento dos engenheiros em relação ao futuro da profissão. Então, uma competência qualificada para nossos projetos pedagógicos poderia ser a de compreender os impactos das assim chamadas tecnologias emergentes e disruptivas que acompanham a nova ordem produtiva.

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Assim, podemos pensar em uma nova pergunta que seria pertinente fazer agora, em função da preocupação formativa dos novos engenheiros: porque devemos direcionar as nossas competências para desenvolver o novo cenário industrial quando a sociedade se encontra em uma séria encruzilhada existencial, produto dos rumos que a própria produção técnica global tomou nos últimos tempos?

Os rumos de uma escola de pensamento técnico predatório, de domínio da natureza para extrair suas riquezas, levou os técnicos a degradar o planeta a patamares preocupantes. Hoje nós encontramos perante grandes desafios nessa matéria, mas não são exclusivamente de ordem técnica. De fato, mais do que enfatizar na formação operacional para a nova condição produtiva, nossa proposta deveria incluir uma forte formação social, tomando o social não como o simples contexto dos usuários da ação engenheiril, senão como a condição de onde emerge de toda a capacidade inventiva e produtiva da Engenharia. O recorte proposto nas diretrizes é perigoso, pois instala condições epistemológicas que limitam o entendimento da realidade e induzem um processo de evolução tecnológica que já recebe críticas e desperta temores, porque não coloca no devido nível de importância o entendimento do social, ao contrário, o reduz ao contexto do uso.

Qualificar claramente o social e os parâmetros que orientam a formação dos engenheiros em um entendimento mais amplo do social é mais do que uma demanda dos tempos modernos; é uma urgência. Quando a relação entre engenharia e sociedade é enfatizada em termos de usuários, processos inovadores e perfil empreendedor devemos nos preocupar, pois certamente o olhar para o processo formativo ainda se encontra em um patamar muito econômico-operacional e demonstra que o social que se inclui nas diretrizes se inspira em uma leitura muito estreita, que reduz o potencial inventivo produtivo que hoje existe e que se deve desenvolver nos estudantes de Engenharia.

Como tentei mostrar antes, esta questão não está relacionada com as recomendações operacionais para o processo formativo, essas respondem a preocupações de eficiência do processo formativo, mas não de sentido. As recomendações estão intrinsicamente ligadas ao entendimento da sociedade que implicitamente se assume nas diretrizes, pois de certa forma, só alguns estímulos para a vocação inventiva da Engenharia vêm dessa ordem social; muitos outros estímulos surgem de uma leitura ampla da ordem social e da intenção de modifica-la ou de instalar uma nova ordem, o que por sua vez, promove o projeto de outros sistemas técnicos, os quais obviamente obedecem a outras formas de análise da

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realidade, muito além daquelas que se obtém ao reticular a realidade em termos de função e uso.

Perante essa preocupação, é pertinente perguntar, quais são os impactos que o modelo de melhoria das diretrizes dos cursos de Engenharia promove? E para mim, a resposta seria: se não é bem contextualizada a produção técnica contemporânea em termos de promover ou rejeitar aspectos inerentes a ela, inevitavelmente avançaremos por dois caminhos: primeiro de consolidar um papel de engenheiros obedientes ao novo modelo produtivo que promove uma ordem social baseada no consumo exacerbado; e segundo, o de consolidar o preocupante modelo de crescimento econômico predatório que ampara o novo modelo produtivo.

E isso é alarmante porque ambas as considerações exercem enorme impacto em três dimensões do cuidado que os engenheiros devem saber desenvolver para o bem futuro da espécie humana: a condição subjetiva, a social e a ambiental.

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Partir tarde num modelo produtivo que por vez é global, exigirá que o Brasil desenvolva altos índices de produtividade, os quais inicialmente serão obtidos mediante altos níveis de esforço e estresse. O burnout é o fantasma que assolará os mais esforçados, mas antes dele, muitos sintomas da nocividade do modelo aparecerão.

Ter acesso aos níveis de consumo da nova ordem exigirá muito dinheiro, o qual por sua vez, em uma economia de viés liberal, exige desempenho e esse, se obtém trabalhando muito. De fato, a forma de cooptar os novos engenheiros para esse modelo produtivo será remunerando bem alguns deles para que também, através das suas realizações, defendam e promovam a nova ordem social emergente.

Mas Daniel Bell já anunciara a contradição que se instala no seio deste modelo capitalista: enquanto é necessário o esforço contínuo do sujeito que produz, o consumo o empurra para uma vida hedonista. O prazer como principio fundamental da recompensa pelo esforço do trabalho se compra com dinheiro, e o dinheiro advém do crescimento do consumo. No limite, o sujeito da nova ordem deverá dividir a sua vida entre os longos momentos produtivos e os singelos lapsus de descanso, onde a custa de qualquer coisa, deve-se garantir a recompensa prazerosa prometida. Isso significa concretamente, prazer a qualquer preço. Isto já soa alarmante, porém fica ainda mais alarmante se considerarmos

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que aquele que não consegue atingir o prazer compensatório do modelo, seja por falta de oportunidades ou por falta de qualificação, inicia um processo de frustração que na sociedade atual, também já parece estar equacionado na forma de uma política do ódio. Se o modelo não funciona para um sujeito, a culpa não é do modelo; sempre poderá se lançar mão de um culpável que canalize a frustração do prazer inalcançável. Esta política do ódio prepara o sujeito produtivo para rejeitar psiquicamente toda e qualquer condição que mostre as fragilidades da nova ordem e ameace tornar consciente o verdadeiro mecanismo da sociedade de consumo: a manipulação do éros; aquilo que Bernard Stiegler chama de economia libidinal.

Sem dúvida tal situação é frustrante e talvez seja até psicoanaliticamente necessária uma operação de recalque para esconder o rosto perverso do processo de manipulação dos desejos que são objeto de recompensa em função do esforço profissional.

Então devemos ter consciência que as diretrizes parecem apropriadas para o atual momento porque exatamente na neutralidade do seu texto não são anunciadas as dificuldades e perigos de reduzir a complexidade do social ao usuário, mas também porque por elas não se pode ter acesso à lógica que incorpora aspectos perversos de uma ordem social onde desejo e frustração caminham de mãos dadas na forma de incluídos e excluídos. Aqui vale a máxima de Heidegger: se a técnica moderna descansa sobre o cálculo da ciência moderna, então o homem virou cálculo; ele é calculável, previsível e, portanto, uma coisa, um objeto; no texto das diretrizes, uma categoria abstrata: o usuário.

Byung Chul-Han, um grande pensador sul-coreano, coloca a mesma questão desde uma perspectiva igualmente preocupante: a da sociedade do cansaço.

Se bem hoje podemos dormir tranquilos graças aos avanços técnicos que criam ambientes imunológicos em várias dimensões, também sabemos que são outras as preocupações que não deixam dormir em paz.

Byung nos alerta que o esgotamento do homem contemporâneo não provém de resistir às situações que não se deseja, senão à pressão do desempenho, isto é, àquilo que é incorporado voluntariamente como valor positivo do fazer: queremos tanto fazer e fazer bem, que adoecemos.

Não sendo submissos nem escravos, decidindo nos mesmos nossos próprios caminhos, dentro da nova ordem produtiva não chegamos a um estágio libertário de realizações plenas, pois sempre somos chamados a avançar: à melhoria contínua, ao aprender a

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aprender ou ao empreendedorismo constante da inovação shumpeteriana. Nessa ordem produtiva, não há descansos: há competições. Sem tempo, se industrializa, se condensa e intensifica o prazer, de modo a, em pouco tempo, repor o ânimo do sujeito produtivo e dispô-lo para as novas empreitadas.

O pouco tempo disponível exige também a condensação de todas as dimensões da realidade e de fato, esta é uma das tantas direções da nova ordem produtiva: oferecer sínteses da realidade: recomendações, compilações, sinopses, todos esses percursos previamente avaliados pela inteligência artificial dos sistemas produzidos para agilizar a experiência de um real que não pode ser mais vivido: ele precisa ser condensado, desrealizado e colocado em uma lógica de atalhos existenciais para evitar a esgotante condição de viver um real que multiplicou demais seus sinais.

Então somos poupados da realidade plena e ao mesmo tempo somos incluídos em uma realidade sintetizada, e nos todos sabemos, onde repousa o estatuto do sintético: no artificial. De fato, não interessa mais o real, interessa a experiência de qualquer real. Colocada a experiência no seio das relações existenciais, a nova ordem produtiva traz, implicitamente, um novo modo de existir.

Em face de estas inquietações, não seria impertinente perguntar: se na nova ordem produtiva não há tempo para a experiência com o real vivido, quem, porque e como se estão decidindo as sínteses de realidade nas quais seremos inseridos, ou em outras palavras, quem está pensando e induzindo as novas modalidades existenciais de onde surgiram os problemas da Engenharia?

O que se pode observar desde meados do século vinte é que o desenvolvimento tecnológico impõe um rumo evolutivo, mas isso não significa que existe algo como um determinismo tecnológico que obrigue a espécie humana a evoluir em uma dada direção. Sabemos que o homem pode ser entendido como o determinante ou o determinado da tecnologia, dependendo de qual seja o ponto de observação. O que existe é uma incapacidade de produzir alternativas tecnológicas perante os modelos produtivos hegemônicos, porque esses últimos também se sustentam em processos de poder e dominação. O desenvolvimento tecnológico não determina a engenharia do futuro, mas a condiciona através dos agentes do atual projeto evolutivo humano.

A falta de tempo e de contato com a realidade vivida, nos levará necessariamente a recortes do real, tanto em extensão como em profundidade. Porém, embora possamos ver com muito interesse os sistemas de recomendações do facebook e do resto do mundo digital, eles

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vigiam e controlam o desejo, reduzindo nossas capacidades operativas mentais, nos levando a uma espécie de atrofia cerebral, certa redução da atividade neuronal que se traduz diretamente em uma incapacidade de decidir à margem dessas recomendações, nas palavras de Bernard Stiegler, somos transformados em proletarizados cognitivos.

Em outras palavras, nosso cérebro está sendo modificado para aceitar recomendações mais do que para promover opções.

O resultado: seremos sujeitos superficiais, com poucas possibilidades de alterar a evolução filogenética do homem. O real sempre se configurará como um já dado não-alterável, ou no melhor dos casos, como um real com possibilidades de modificação, as quais podem até ser realizáveis, mas mediante muito esforço: seremos desestimulados a promover nossas próprias opções de existência.

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Neste adverso contexto, me atrevo a dar uma resposta: a Engenharia deve retomar seu papel inventivo para muito além das demandas do mercado profissional que através dos seus agentes ativamente instruiu o entendimento das atuais diretrizes. De fato, é esse mercado, esse sujeito invisível que impõe as condições de empregabilidade dos futuros formandos considerando como referencia absoluta e implícita, a nova ordem produtiva. Para esse segmento não há holismo; não há social amplo, há recortes: funções e usuários. A formação do engenheiro deve ser crítica a essa diretriz, pois de certa forma o que está em jogo é a espécie humana como um todo e isso significa que toda a expressão social deve ser pauta da crítica, não para se contrapor aos segmentos empresariais e corporativos, senão para sempre ter possibilidades de desvios, de produção de novos territórios existenciais e, obviamente, de novos sistemas técnicos para essa finalidade.

E isso, acredito eu, se faz promovendo uma forte condição inventiva nos estudantes de Engenharia, condição esta que se articula mediante um amplo acesso à realidade e a todas as formas de apreensão da realidade.

Aqui chegamos a um ponto onde é importante diferenciar aquilo que eu chamo de inventividade engenheiril em relação ao que se promove por criatividade e inovação nas diretrizes, pois desde a minha perspectiva, estes últimos conceitos instrumentalizam a inventividade engenheiril.

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Inventar traz para o território do real o novo, que como tal, epistemologicamente é inacessível até ele se tornar presente. Não há receita para promover uma aproximação ao novo. O que se pode fazer é multiplicar as suas possibilidades de emergência e isso pode ser obtido abrindo, ampliando, expandindo a capacidade de captar os sinais informativos do real para além das condições representáveis. Isto significa mergulhar para além do modelo, para além da representação e para além do simbólico. Henri Bergson deu um nome para essa condição: chamo-a de intuição, isto é, a apreensão imediata da realidade, a qual poderá ser representada e calculada, mas só após ela ter sido intuída e presentificada pelo pensamento. Inventar, portanto, implica uma sorte de superar o domínio da representação que tanto nos agrada como engenheiros para mergulhar no território do sensível, do variável para operar na base da antecipação, do projeto.

Gilles Deleuze também nos oferece referenciais para abordar a inventividade; trata-se da diferença, ou melhor, da diferenciação produtiva do desejo. O que ele nos oferece é um entendimento do potencial produtivo do desejo mediante a representação de uma espécie de máquina desejante que articula diversos aspectos da realidade fazendo com que nos movamos intuitivamente pelos sendeiros da existência que são pertinentes, autenticamente pertinentes para nós, deixando que a alteridade ilumine os limites e as relações de modo que o desejo flua para encontrar o que lhe é pertinente.

Nessas circustâncias, como destaca Tzvetan Todorov, é de frente para um outro legítimo, um outro que não é a projeção do eu, que se pode encontrar o pertinente a nós sem cair na tentação de homogeneizar a diversidade submetendo o outro às nossas pertinências. Aqui poderíamos pensar que o conflito é uma condição natural de estar com o outro quando ele surge no mesmo espaço de pertinências que o nosso, mas certamente também, podemos pensar que esses espaços não são absolutos e que a inventividade pode novamente dar os subsídios para superar os impasses e agir comunicativamente em torno dos consensos. Então o outro, forma parte dessa condição inventiva porque ela sempre se defronta com o lugar onde se é no mundo, que também é o lugar do outro ser no mundo.

A forma de apreender o outro não pode ser desde um lugar donde não se conheça e reconheça esse outro. Não se pode erguer o conhecimento sobre o outro em um campo de ação puramente subjetivo, de um eu isolado, nem de um eu que constrói o mundo à imagem e semelhança dele: para desenvolver a condição inventiva da Engenharia a empatia passa a ser fundamental, e esta demanda pelo empático não significa construir o outro desde um eu solitário ou exclusivamente a partir do relato que esse eu faz do outro; é a compreensão do

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devir-no-mundo-com-o-outro; de compreender como devimos em um mundo que devêm com um outro que também devêm o que torna possível o surgimento do outro como um diferente, e portanto, finalmente, é a plenitude do mundo em devir o que interessa.

Assim, e sem aprofundar em dimensões do social que podem nos ajudar a compreender o outro pelo mundo que ele constrói e que nos construímos a partir dele; sem sequer ter anunciado aqui uma forma ou expressão desse mundo, digamos, desse social, ou melhor, sem ter anunciado aqui algum aspecto significativo que nos ajude a entender a ordem social, a sociedade, caso se queira chamar assim, o que definitivamente podemos dizer é que o Engenheiro, para ser um autentico engenheiro, deve elaborar uma compreensão ampla do mundo e da sociedade.

Por isso, a minha proposta para auxiliar a inventividade do engenheiro não é só a de promover técnicas de pensamento projetual, de enaltecer as metodologias para a criação, pois acredito que a competência inventiva se promove mediante a expansão da capacidade de captar os mais diversos sinais informativos que subsidiam o pensamento projetual, o que passa necessariamente pela expansão da nossa fronteira com o mundo. Nosso contato com a compreensão do social precisa ser ampliado para que as metodologias criativas possam render frutos satisfatórios.

Gilbert Simondon tratou desse tema na sua vasta obra sobre a tecnologia, que resulta ser um convite irrecusável, inadiável para compreender a profunda condição de o técnico no mundo, e com isto também me refiro à condição de a Engenharia no mundo .

A minha proposta para a Engenharia é a formação social plena e não instrumental do engenheiro. Algumas horas semanais de contato com os sinais informativos do real podem ser extremamente proveitosos para a Engenharia do futuro.

Como vocês podem apreciar agora, se trata simplesmente da atenção com esses sinais, ou como eu chamo, do cuidado:

Trata-se de uma engenharia a partir do cuidado.

Esta engenharia do cuidado desenvolver uma condição empática que pode ser muito mais importante para atingir patamares de compreensão do papel da Engenharia em Sociedade que várias das colocações que sustentam as premissas das diretrizes.

Essa é minha proposta e meu engajamento com o nosso curso. Muito obrigado pela atenção e paciência.

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