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Prometeus desacorrentados: a influência do discurso nacionalista dos anos 60 no processo de (des)construção do jazz brasileiro * Prometheus unleashed: the nationalism speech influence in the process of (de)construction of brazilian jazz

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PROMETEUS DESACORRENTADOS: A INFLUÊNCIA DO

DISCURSO NACIONALISTA DOS ANOS 60 NO PROCESSO DE

(DES)CONSTRUÇÃO DO JAZZ BRASILEIRO

1

PROMETHEUS UNLEASHED: THE NATIONALISM SPEECH

INFLUENCE IN THE 60S IN THE PROCESS OF

(DE)CONSTRUCTION OF BRAZILIAN JAZZ

José Ferreira Junior Antonio Carlos Araújo Ribeiro Junior

Resumo: O artigo faz uma análise inicial do discurso nacionalista dos anos 1960, tentando

investigar até que ponto os embates políticos e ideológicos desse período influíram nos rumos do jazz brasileiro. Uma vez que não se tem um consenso até hoje no âmbito da crítica musical para denominar e caracterizar o jazz tocado no Brasil, divergindo-se entre os rótulos “jazz brasileiro” e “música instrumental brasileira”. Acredita-se que alguns fatores contribuíram para esse cenário, por exemplo: o conservadorismo da crítica contra o teor antropofágico dos músicos brasileiros; o estabelecimento da canção popular, e de seu aspecto político, como fator fundamental de autenticidade musical; e, por fim, a ideia de um jazz como música alienante, corroborada pela intelligentsia da Música Popular Brasileira – conhecida como MPB, conceito hegemônico a partir da segunda metade do século XX.

Palavras-chave: Jazz Brasileiro; Bossa Nova; MPB; Música Instrumental; Nacionalismo.

Abstract: The paper analyzes initially the nationalist discourse in the 1960s, trying to

investigate to what extent political and ideological struggles in this period influenced the Brazilian jazz path. There is no consensus today in the field of musical criticism to name and describe jazz played in Brazil, pointing out the differences between the labels "Brazilian jazz" and "Brazilian instrumental music". It is believed that some factors have contributed to this scenario, namely: the conservatism of critics against the anthropophagic content of Brazilian musicians; the establishment of popular song, and its political aspect, as a fundamental factor of musical authenticity; and, finally, the idea of jazz as an alienating music, corroborated by the intelligentsia of Brazilian Popular Music – known as MPB, hegemonic concept from the second half of the twentieth century.

Key-words: Brazilian jazz; Bossa Nova; MPB; Instrumental Music; Nationalism.

Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),

Docente do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal do Maranhão. E-mail: jferr@uol.com.br

 Mestrando em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal do Maranhão. Bolsista da Fundação de

Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA). E-mail: tulhopd@hotmail.com

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Introdução

O reconhecimento de determinada produção ou gênero musical está, na maioria das vezes, sujeito aos enquadramentos e às determinações realizadas pela mídia, o que não impede, todavia, que as categorizações e os rótulos estipulados sobre tal produção estejam imunes às disputas simbólicas entre seus produtores e consumidores. O jazz é um exemplo disso: até hoje não existe um consenso a respeito do verdadeiro significado da palavra “jazz”. Várias grafias surgiram para tentar explicar sua origem. Nesse sentido, tal variedade de significados e, também, o hibridismo que nele está circunscrito demonstram as disputas entre as culturas que o formaram2. Acredita-se, portanto, que em torno do rótulo “jazz brasileiro” também emerge problemáticas que envolvem determinados enfrentamentos simbólicos, envolvendo uma noção de “brasilidade” construída pela memória oficial da MPB, brasilidade essa analisada e reiterada pelos críticos e historiadores da música popular.

A princípio, constata-se que há uma dificuldade, atualmente, em se estabelecer uma denominação para as bandas brasileiras que executam o jazz em seu repertório. Algumas páginas especializadas em jazz como a Ejazz e a Jazzseen, por exemplo, reafirmam a dificuldade de se sintetizar conceitualmente o que é, de fato, o jazz brasileiro e se esse é o termo mais correto. No artigo “Jazz Brasileiro” o colunista V. A. Bezerra demonstra a possibilidade de admitir a existência desse jazz, entretanto para defini-lo seria preciso considerar que este gênero estaria para além da mera reprodução do jazz norte-americano com um “sotaque brasileiro”. Também se destacam outras opções: considerar o “jazz brasileiro” o equivalente à Música Instrumental Brasileira Contemporânea (MIBC), característica dos anos 70, ou como simples improvisação jazzística dentro dessa música instrumental, repleta de ritmos brasileiros.

Percebe-se, entretanto, que tais tentativas não dão conta de entender o que é, de fato, o jazz brasileiro. Elas se impõem, dessa forma, mais como definições limitadas, incompletas. Nesse sentido, “quando falamos aqui em Jazz Brasileiro, não estamos falando de um estilo fechado e definido, mas sim plural e mutável”. Ou seja, a própria síntese musical não convém. Eis que na impossibilidade de se conceituar essa “intersecção de múltiplas influências”, prefere-se reconhecer a riqueza do jazz brasileiro e sua indefinição, como resultado da diversidade musical brasileira3.

Em contrapartida, na página Jazzseen, o “brazilian jazz” surge como tema, ao se discorrer sobre o surgimento do “latin jazz” – estilo de jazz com influências rítmicas

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afro-cubanas somadas às improvisações típicas do jazz moderno e contemporâneo –, porém o jazz brasileiro aparece apenas representado pela bossa nova, silenciando-se toda uma tradição de mistura musical4. Em termos bibliográficos, não há nem mesmo no livro Glossário do jazz de Mário Jorge Jaques a menção ao termo “jazz brasileiro”, apenas à bossa nova e à influência do jazz no samba.

Conforme demonstra Carlos Calado, essa dubiedade pode não está relacionada apenas com uma ausência de definição da indústria cultural, pois segundo ele, “esse termo já circula há décadas pelas programações de festivais e clubes de jazz norte americanos, europeus e japoneses, assim como é utilizado em lojas de discos e rádios, inclusive as veiculadas pela internet” (CALADO, 2014, p. 579). Há, então, uma discrepância entre os que defendem e os que negam o termo. Assim, no discurso dos que negam o rótulo “jazz brasileiro” e defendem uma “música instrumental brasileira” é perceptível a tentativa de “dissociar essa música do universo da canção (ou da chamada MPB, vertente mais sofisticada da canção brasileira)” (CALADO, 2014, p. 579). Um afastamento também por conta dos conflitos político-ideológicos que separam a cultura brasileira da norte-americana durante o século XX.

Logo, como não se tem um consenso para denominar essa forma de execução instrumental – divergindo entre jazz brasileiro e música instrumental brasileira –, o objetivo principal deste artigo é analisar até que ponto os embates político-ideológicos e os discursos nacionalistas contra o jazz ajudaram a construir uma terceira corrente na música brasileira, que seguiu um rumo distinto da música erudita e da MPB.

O problema principal desta investigação gira, portanto, em torno dessa “zona obscura” que as bandas e a musicalidade do jazz no Brasil foram colocadas. Um lugar de imprecisão, de lutas simbólicas e tensões. Se como mostra Carlos Calado em seu livro O jazz ao vivo (1989), o jazz realmente sofreu um “renascimento” nos anos 80 no Brasil, por que ainda permanece vigente a necessidade de algumas bandas em se afastarem do termo “jazz”?

Por que bandas como o Zimbo Trio, o conjunto Azymuth, e outras bandas instrumentais bem como alguns músicos da bossa nova aceitam e são constantemente rotulados de “brazilian jazz” enquanto outros recusam ser inseridos nessa categoria, ainda que executem o jazz em seu repertório? Haveria um temor de serem pichadas de bandas sem originalidade, sem uma “autenticidade brasileira”? E mais: por que ainda permanece sobre o jazz a pecha de “música imperialista”? Seria esse rótulo o motivo

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pelo qual se firmou certa repulsa em relação ao gênero? Por conseguinte, seria por conta desse rótulo a grande razão de ter se formado uma terceira via na música brasileira?

Sobre essa visão pejorativa do jazz, no primeiro tópico, A sedução e a aversão à

‘joça’, a análise busca demonstrar como desde o primeiro momento de sua chegada ao

Brasil, a recepção do jazz – gênero apreciado principalmente por possibilitar a liberdade de improvisação – não foi pacífica, causando tensões no seio nacionalista da sociedade. O objetivo é demonstrar de forma breve que, mesmo em um momento no qual a música instrumental era ponte para experimentações e extremamente valorizada como música ambiente de cinemas, bailes, agremiações e outras festividades, ainda assim o projeto de modernização nacional da época tentou criar um “sistema de categorização” conservador, imune às influências estrangeiras. É importante destacar que esses discursos não barraram a influência do jazz na música brasileira, mas geraram reações mais patrióticas de artistas brasileiros, que passaram a endossar em suas composições a bandeira das permutas culturais. Engendrava-se, assim, uma dicotomia (o nacional

versus o internacional) que iria estar presente nos discursos de críticos como José

Ramos Tinhorão, Sílvio Túlio Cardoso e Tárik de Souza nos anos 60.

O segundo tópico, Bebop: a ‘decadência’ com elegância, visa entender os fatores que contribuíram para certo afastamento da música brasileira do jazz, justamente no momento em que este se modernizou. Por fim, no último tópico, As regras da MPB:

festivais, habitus e delimitações musicais, demonstra-se em que medida os novos

padrões de consumo musical, a circulação das ideias nacional-populares reforçaram uma visão pejorativa do jazz e, por conseguinte, a tentativa de frear sua influência na música brasileira.

A sedução e a aversão à “joça”

A pesquisadora francesa Anaïs Fléchet (2016) publicou recentemente um artigo intitulado Jazz in Brazil: An Early History (1920s-1950s), no qual emprega “uma abordagem da história cultural e social da música para identificar os atores e vetores sociológicos que possibilitaram a primeira apropriação do jazz pelos músicos e audiências brasileiros”, uma apropriação que, segundo ela, causou um “impacto real, ainda que altamente controverso, na cena musical dos anos 20 aos anos 50”5.

Não se visa aqui retrilhar as sonoridades diversas que as jazz bands e as Orquestras da Era do Rádio difundiram no Brasil, mas ao se tratar dessa primeira

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influência do jazz no cenário nacional, é necessário destacar que sua presença desde o início gerou conflitos e embates no seio da crítica musical brasileira. Como detentores da “verdade” sobre a música, esses intelectuais tentaram construir uma memória para a música popular brasileira segundo suas próprias noções estéticas6.

Obviamente, as formas de escuta e apreciação de determinado gênero não são totalmente doutrinadas pelos julgamentos dos críticos, mas é de se considerar que na época os veículos de comunicação utilizavam o intelectual, o sujeito dotado de leituras e conhecimento para “esclarecer”, “desvelar”, e, portanto, construir pré-noções baseadas em seus próprios gostos estéticos e ideologias. Jota Efegê é um exemplo claro dessa afirmação. Em um texto intitulado “Ary Barroso, vítima da jazzificação da música brasileira” publicado em O jornal, em 12 de Dezembro de 1965, se ilustra quão ambíguo foi o trato com o jazz no Brasil durante boa parte do século XX. É bastante significativo que Efegê – considerado um dos primeiros historiadores da música popular urbana – tenha recuperado nos anos 60 o seguinte comentário feito por Ary Barroso nos anos 30:

A deturpação que vinha sofrendo a nossa música não poderia ficar sem uma reprovação. Corajosamente, ele (Ary Barroso) a expendeu clara, incisiva, nos termos de suas broncas tão celebradas. Aproveitou a entrevista concedida a um repórter do Correio da Manhã em 26 de janeiro de 1930 e desabafou: "Quando o jazz começou sua invasão pela nossa terra eu fui a primeira vítima. Apeguei-me em cheio à tal joça e acabei sem saber como pianista de jazz...!". Depois concluiu numa confissão dorida: “E foi como pianista de jazz que cheguei ao lugar onde me pôs a bondade extrema, a benevolência indescritível do povo carioca" (EFEGÊ, 2007, p. 161-162).

É perceptível o teor nacionalista na fala de Ary Barroso ao utilizar o termo, claramente pejorativo, “joça”, para se referir ao jazz: um gênero musical que, como ele mesmo afirmou, o havia lançado na carreira musical7. O próprio Ary Barroso pode ser lido, nesse sentido, como um exemplo das relações conflituosas entre o jazz e a música brasileira, no sentido de que justamente pelo seu sucesso e apelo comercial o jazz significou uma ameaça às “raízes do Brasil” e à “autenticidade” dos músicos brasileiros. Entretanto, e aqui reside um agravante, a própria música popular urbana estava sujeita ao contato com outras culturas no momento de sua comercialização. Ou seja, Ary Barroso como um músico profissional e atuante nas rádios, estava sujeito às misturas musicais, às experimentações e aos “modismos”; naturais no mercado da música. Sua atitude conservadora em relação à modernização da música brasileira

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dentro de meios que fomentavam essas trocas culturais desponta como algo simbólico, que permite perceber a tentativa de frear e de dar novos rumos à música popular brasileira.

Quanto a essa postura de se voltar para o passado da nação, Stuart Hall afirma que “as culturas nacionais são tentadas, algumas vezes, a se voltar para o passado, a recuar defensivamente para aquele ‘tempo perdido’ quando a nação era ‘grande’”, segundo ele, “este constitui o elemento regressivo, anacrônico, da estória da cultura nacional”, porém, “esse mesmo retorno ao passado oculta uma luta para mobilizar pessoas para que purifiquem suas fileiras, para que expulsem os ‘outros’ que ameaçam sua identidade e para que se preparem para uma nova marcha para a frente” (HALL, 2015, p. 33).

Ou seja, o romantismo presente nesses discursos nacionalistas não visava meramente retornar ao passado de forma totalmente retrógrada, mas alçava uma modernização conservadora. Ademais, o aspecto moderno dessa “nova marcha para a frente” no Brasil, foi de fato influenciado pela busca por uma modernização restrita ao território nacional, algo de dentro. Isto é, alinhavada pelo discurso folclorista e sua busca pelo núcleo duro da nacionalidade brasileira.

O próprio Mário de Andrade, nesse sentido, acusou em seu livro Ensaio sobre

a música brasileira (1962) que “todo artista brasileiro que no momento atual fizer arte

brasileira é um ser eficiente e com valor humano. O que fizer arte internacional ou estrangeira, se não for gênio, é um inútil, um nulo. E é uma reverendíssima besta” (ANDRADE, 1962, 19).

Nesse sentido, movidos pelo temor das influências externas, houve vários discursos que demonstraram repúdio à presença do jazz no Brasil. Ou seja, havia um temor de que a modernidade simbolizada pelos novos padrões de consumo de massa, pelas interações entre campo e cidade, deflagrasse o extermínio das tradições populares brasileiras. Isto fica claro no teor dos primeiros registros da presença de bandas de jazz (ou, jazz-bands) no Brasil, por volta dos anos 20, um desses recortes, publicado no jornal O Estado de São Paulo em 17 de março de 1920, foi recuperado por Alberto Ikeda nos anos 80 em seu texto intitulado Apontamentos históricos sobre o Jazz no

Brasil. Informa o fragmento:

Mas completando, afinal, a involução, a dança se apresenta hoje “yankeezada” em desengonçados bamboleios de plantígrados,

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sublinhados a pandeiradas e atabalhes “cowboyescos” e entrecortada de trejeitos de simiesca lubricidade. O que hoje, em geral, se dança por aí é apenas a cópia de uma perversão social (grifos nossos) aparecida em centros depravados, enkistados nas grandes metrópoles como Paris e Nova York. (IKEDA apud FRANCISCHINI, 2009, p. 64-65).

Os termos “involução”, “perversão social”, utilizados pelo autor, demonstram o grau de xenofobia recorrente em alguns discursos que buscavam desvalorizar o jazz no Brasil. E mais: denota a associação do jazz a algo “depravado”, “imoral”. O tom desses embates – muitas vezes vindo de sujeitos que flertaram com o jazz – poderia estar relacionado com a forma pela qual o jazz foi incorporado à música brasileira no começo do século XX, misturando-se a ela, o que não impossibilitou a tentativa de executar o jazz tal como os norte-americanos. Por isso se condena “a cópia” da sonoridade supostamente depravada8.

Em uma análise sobre o primeiro contato dos músicos brasileiros com o jazz – criando assim as primeiras jazz bands nacionais –, o historiador Antonio Carlos (2016) comenta em seu livro O lugar do jazz na construção da música popular: uma análise de

discursos na Revista da Música Popular (1950-1956) que essas primeiras bandas de

jazz simbolizavam a modernidade, não pelo fato de vislumbrarem no jazz uma música melhor e mais moderna do que o repertório brasileiro. Antes, porém, se instaurou um ambiente de trocas culturais. Naquele momento “a modernidade musical não estava apenas no fato de se tocar músicas estrangeiras, mas de utilizá-las dentro dos moldes da música brasileira” (RIBEIRO JÚNIOR, 2016, p. 33). Nesse sentido, os conjuntos regionais que assumiram o rótulo de jazz bands “representaram um momento de anseio por inovações culturais, e seu repertório variado, nada mais foi, que a tentativa de manter os ritmos tipicamente brasileiros – por fazerem parte das tradições regionais” e, também “adicionar arranjos, ou peças musicais que flertassem com o jazz” (RIBEIRO JÚNIOR, 2016, p. 33).

Quanto ao fato dos músicos brasileiros terem incorporado procedimentos do jazz em suas composições e mesmo adotado o rótulo “jazz band”, há um comentário que se tornou bastante recorrente em trabalhos que analisam a musicalidade de Pixinguinha, um dos músicos lembrados por estabelecer essas misturas. O texto do crítico musical José Cruz Cordeiro foi publicado no décimo quarto número da Revista Phono-Arte, em fevereiro de 1929:

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Repetimos para o samba o que já temos dito em composições anteriores do popular músico. Pixinguinha parece se deixar influenciar extraordinariamente pelas melodias e ritmos do jazz. Ouçam Gavião Calçudo. Mais parece um fox trot que um samba. As duas melodias, os seus contracantos e mesmo quase que seu ritmo, tudo respira música dos yankees. (CORDEIRO, 1929, p.28).

Se realmente Pixinguinha adotou ou não tais influências não é o que interessa, de fato, neste trabalho9. Mas, a existência de tais discursos simboliza as tensões entre a mídia (crítica musical) e os músicos brasileiros. Portanto, se o jazz, enquanto gênero estrangeiro, era visto a princípio como música negra (e tal aspecto, ora era louvado e ora era depreciado), moderna e amplamente comercializada, é bem possível que para esses estudiosos que louvavam o “mito das três raças”, o fator “mercado” fosse o único pecado do jazz. Uma música urbana e estrangeira não era interessante para o projeto de nação vigente nos anos de 1930 e 1940, momento em que o movimento folclórico predominava. Era o momento de formatação da música erudita produzida no Brasil, levada a cabo por Heitor Villa-Lobos e Mário de Andrade. Entretanto, vale ressaltar que, como aponta o historiador Antonio Tota em seu livro O imperialismo Sedutor (2000), o Estado Novo realizou uma espécie de “modernização paradoxal” no Brasil e por isso o investimento na educação musical erudita não impediu a difusão da música popular brasileira urbana por meio dos rádios e também a possibilidade de intercâmbio com outras culturas e musicalidades. Na verdade, todas essas ferramentas culturais foram utilizadas por Getúlio Vargas na tentativa de legitimar seu projeto nacional-desenvolvimentista. Não gratuitamente, é quando o samba ascende à qualidade de música nacional, rompendo as barreiras territoriais por meio do rádio.

Vale ressaltar que esses argumentos nacionalistas não se restringiram apenas ao Estado Novo e ao governo de JK – período de intensa entrada de bens estrangeiros no Brasil. Nos anos de 1960, José Ramos Tinhorão também apresentou argumentos que (embora equiparassem o jazz tradicional e o samba, no que tange as raízes negras de ambos), tendiam a ver as influências norte-americanas presentes na música brasileira a partir de 1946 como um sinal de decadência e usurpação nacional. Essa influência norte-americana já era visível em composições mais antigas como as dos anos de 1920 e 1930, nas próprias marchinhas, inclusive.

Contudo, a época de ouro da música popular urbana – momento marcado por uma atenção bastante forte ao chamado “samba do morro”, por exemplo – não parece constituir para Tinhorão uma “ameaça” à musicalidade brasileira. O que fica claro é

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que, para ele, a “decadência” da música brasileira estaria se consolidando no final dos anos de 1940, quando a música brasileira seria influenciada pelo jazz moderno10.

Assim, no começo da década de 60 a dúbia postura dos estudiosos da música popular brasileira em relação à música americana (iniciada no começo do século XX com os estudos folcloristas), tomou novas proporções e encontrou outra dimensão. Nesse contexto, uma série de acontecimentos históricos propiciou um salto nas discussões políticas, principalmente após o Golpe Civil-militar de 1964. Isso potencializou o caráter nacionalista das discussões sobre a música popular brasileira, sobretudo a respeito de qual deveria ser o seu papel político-ideológico. Objetivos, aliás, iniciados pelo ISEB – Instituto Superior de Ensino Brasileiro – e redirecionados pela UNE e pelo Centro Popular de Cultura (CPC). Como pontua, Charles Machado Domingos:

Mesmo com a crítica realizada por alguns membros do ISEB ao nacional-desenvolvimentismo, pela sua associação ao imperialismo e ao desenvolvimento associado com o capital estrangeiro, é nesse período que a crítica ao imperialismo se reforça, contribuindo para uma mudança no nacionalismo no Brasil, levando-o mais para a esquerda no espectro político. Se o nacionalismo, por pressuposto, oculta as contradições de classe – e essa era uma análise que poucos conseguiam vislumbrar naqueles finais da década de 1950 –, ele pode reforçar o anti-imperialismo (MACHADO DOMINGOS, 2014, p.384).

Em consequência desse cenário controverso, Alexandre Francischini afirma:

No âmbito da crítica musical, se elevarão a níveis contundentes as críticas nacionalistas à influência dos gêneros musicais americanos. Assim, encabeçada por José Ramos Tinhorão, essa ala mais radical que, outrora, tinha dúvidas em relação ao Jazz e seus referenciais de musicalidade vão optar pela sua repulsa, com o argumento de que se trataria de uma ferramenta imperialista dos EUA [...]. Já no período entre guerras, na medida em que os Estados Unidos firmavam-se no cenário mundial como uma superpotência – fazendo dos veículos de comunicação em massa um instrumento de difusão de seu “American way of Life” –, os nacionalistas brasileiros fizeram da política imperialista desse país – e do jazz como um símbolo desse imperialismo – o seu alvo preferido. (FRANCISCHINI, 2009, p. 61-62).

Portanto, no plano da crítica musical, durante toda a primeira metade do século XX, a influência do jazz prosseguiu tendo que conviver com ataques da fatia mais

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nacionalista e conservadora do meio musical. Se o jazz, de uma maneira ou de outra, continuou influenciando a música brasileira na Era do Rádio e mais tarde nos anos de 1950, quando começam a surgir músicos interessados em misturar o samba com o bebop, é justamente porque havia um público considerável, interessado nessas sonoridades misturadas.

Por isso mesmo, a produção musical brasileira não assistiu bestificada à influência do jazz. Muito pelo contrário. A resistência cultural – ou, talvez a antropofagia cultural feita de forma “espertalhona”, nos termos de Mário de Andrade – foi sendo estabelecida, não sem antes passar por sátiras, elemento recorrente em muitas composições brasileiras entre os anos 30 e 40. Foi por essa época que, segundo o historiador Antonio Pedro Tota, surgiram diversas canções que continham “mensagens nacionalistas”, levantando a bandeira de “um quase movimento anti-imperialista da música popular” (TOTA, 2000, p. 169). Entre essas canções destacam-se: “Dança do Booggie-woogie”, Carlos Armando; “Gosto mais de Swing”, de Lauro de Maia, “Cowboy do amor”, de Wilson Batista e Roberto Martins, “Yes, nós temos bananas” de Alberto Ribeiro e João de Barro e muitas outras.

Diferente da polêmica “Influência do jazz”, do dissidente da bossa nova, Carlos Lyra, esse meio musical, entretanto, não comprou o discurso xenofóbico e conservador dos críticos musicais. É o que se percebe em composições significativas como “Booggie-woogie na favela”, de Roberto da Silva e “Brasil Pandeiro” de Assis Valente. Em relação a essa última, Tota comenta que,

Antropofagicamente, Assis sugeria uma deglutição. Outros sambas, outras terras e outras gentes. O mundo vai sambar conforme a música de Tio Sam, só que na perspectiva brasileira. Não éramos os “Estados Unidos” da América do Sul? Não éramos, de certa forma, assemelhados? No sentido musical também poderia haver uma parceria. O fox ou o swing poderiam aderir ao samba e a música americana deveria ser ritmada pelo pandeiro brasileiro (TOTA, 2000, p. 172).

Para concluir este tópico deve-se cravar que o discurso da inteligência da música popular, ao reclamar uma identidade genuína para a música brasileira em prol do combate às influências externas, espraiou essa “ideologia” na produção musical, que chegaria aos anos 50 e 60 – período de tensões entre o modelo econômico capitalista e o socialista; de influência dos EUA na Ditadura Militar – a associá-lo ao imperialismo alienante e tentar expurgá-lo, dessa vez.

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Bebop: a “decadência” com elegância

Antes de tudo, do ponto de vista musical Júlio Medaglia esclarece: chegou um momento em que “a diferença entre a música popular brasileira urbana e o jazz é que este se tornou uma linguagem eminentemente instrumental” (MEDAGLIA, 2003, p. 203), indicando os rumos mais voltados para a improvisação e para o virtuosismo técnico. Por isso mesmo, além dessa diferenciação, os anos 60 podem ter sido decisivos para a difusão do imaginário do jazz como uma música sofisticada, destinada a pessoas de “bom gosto” ou aptas a compreender tal linguagem virtuosística. Isso é evidente em alguns discursos, estabelecendo uma comparação o próprio Caetano Veloso afirmou certa vez que a mudança do samba pelo “tratamento cool dos jazzistas dos anos 50”, acentua “não pode ser identificada com o rock, que é fundamentalmente de recusa a toda sofisticação” (VELOSO, 1997, p. 40-41).

Do ponto de vista mercadológico a modernização do jazz e os rompimentos fomentados pelas novas tendências, como o cool jazz e o free jazz entre os anos 50 e 60 não conseguiram acompanhar o grande sucesso do rock and roll, produto que atendia aos anseios do público estrangeiro mais jovem – embora o cool tenha tido uma difusão significativa. Porém, o jazz ainda permanecia, só que “tanto seus músicos quanto seu público ficaram mais velhos, e não surgiram novos adeptos” (HOBSBAWM, 2011, p. 14). Para se ter uma noção da situação do jazz frente ao rock, Eric Hobsbawm apresenta um quadro bastante elucidativo de vendas nos anos 60:

Tal era a realidade do jazz nos anos 1960 e na maior parte da década de 1970, ao menos no mundo anglo-saxão. Não havia mercado para ele. De acordo com a Billboard International Music Industry Directory, de 1972, apenas 1,3% dos discos e fitas vendidos nos EUA eram de jazz, contra 6,1% de música clássica e 75% de rock e gêneros semelhantes. (HOBSBAWM, 2011, p. 15).

Esses números são interessantes, tendo em vista fenômenos como a Passeata contra a Guitarra Elétrica de 1967, endossada por um setor da MPB, mas não dão conta de explicar o “afastamento” do jazz da música popular brasileira. Ora, o movimento da Jovem Guarda e a própria Tropicália flertaram com o rock e, mesmo com as críticas que lhes foram feitas nos anos 60 e 70, não é difícil associar suas composições com a memória da MPB.

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Fato é que no Brasil o público apreciador de jazz também se dividiu por conta disso. Caso se retome o debate para o momento em que se começou a misturar o jazz moderno com o samba (no que iria criar o samba-jazz), percebe-se que há uma introjeção no Brasil da dúvida em relação autenticidade (baseada em critérios supostamente raciais) do bebop e do cool.

Há uma clara relação de poder entre os defensores do jazz tradicional e do jazz moderno, em que o segundo era acusado de se “embranquecer”. As provas disso foram a divisão e a briga dos fã-clubes de jazz e a existência da coluna do crítico José Sanz, intitulada “Não troque gato por lebre” na qual se atacava o jazz moderno enquanto o outro colunista Jorge Guinle o defendia na Revista da Música Popular. Por tudo isso, se pode crer que a influência das discussões que aconteciam no exterior fez com que a memória do jazz no Brasil fosse marcada pela memória de um jazz moderno, intelectualizado.

Esse imaginário, porém, não foi construído a partir de uma inverdade. No cenário internacional, o surgimento do jazz moderno talvez indique o ponto mais crítico dessa construção, uma vez que os bebopers (jazzistas cultores do bebop como Duke Ellington, Thelonious Monk e Charlie Parker) começaram a inserir maior virtuosismo, ampla utilização de sincopas e ênfase nos acompanhamentos de baixo e de bateria. Ou seja, esses músicos queriam criar um jazz só para iniciados; queriam que sua musicalidade fosse apreciada como arte e não apenas para fins comerciais. Isso causou conflitos entre os próprios apreciadores do jazz que cultuavam o passado de um jazz tocado por negros pobres do sul dos EUA e por isso passaram difundir a imagem do jazz moderno como “decadente”.

De outro lado, havia as bandas de samba-jazz muito presentes no eixo Rio-São Paulo e que foram pioneiras em trazer para o Brasil o formato trio (piano, baixo e bateria, geralmente) utilizado pelas bandas de bebop norte-americanas. A essas bandas foi designado o acrônimo MPM (música popular moderna). As primeiras gravações que apresentavam a sonoridade do samba-jazz podem ser a versão de Laurindo Almeida e do saxofonista norte-americano Bud Shank para “Inquietação” de Ary Barroso11.

Em seguida, com a cisão da bossa nova, assiste-se ao nascimento de dois projetos de modernização musical: um internacionalista e outro nacional-popular. A versão nacional-popular da bossa – responsável pelo nascimento da canção de protesto – que para Celso Favaretto, “nada modificou no que diz respeito à linguagem da música popular”, mas “definiu uma forma expressiva de cantar” (FAVARETTO, 1979, p. 101),

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ora utilizando o samba, o folclore e a música rural. Ou seja, segundo Favaretto “privilegiou o tema – tratado segundo formas poéticas consagradas – em detrimento do material musical” (FAVARETTO, 1979, p. 101). Em outros termos, não interessava aos seus cultores o tratamento com os arranjos instrumentais, apenas com o teor da mensagem a ser passada.

Se por um lado a canção de protesto tentava estar distante do uso de elementos jazzísticos, ou qualquer aspecto musical externo, a fim de vislumbrar no samba o elemento de resistência aos ditames do mercado, ela mesma foi sendo incorporada à indústria cultural:

Nesse contexto de emergência das ideologias nacionalistas, ascensão das artes nacional-populares e formação pedagógica da intelectualidade, o desenvolvimento da indústria cultural surgia como elemento perturbador à constituição do engajamento artístico. Portanto a arte engajada que emergiu no final dos anos 1950 e início dos anos 1960 se caracterizou pela confluência de elementos aparentemente conflitantes (GARCIA, 2007, p.8).

A partir do sucesso da bossa nova, irrompe a modernização do samba e a valorização da canção popular se intensifica por meio de sua versão engajada, fator fundamental nos anos 60 para a criação da MPB, isto é, para um formato de música popular. Em outros termos, a década de 1960 desponta como um período em que se agravou uma visão pessimista em relação ao jazz e seu uso na música brasileira. Isso iria desembocar em uma noção que vai para além de seu status de “música estrangeira”. Não se tratava mais da pura estética: apenas a busca por uma sonoridade genuinamente brasileira tal como aconteceu em décadas anteriores, mas de uma postura ideológica e até mesmo xenofóbica por parte de alguns intelectuais e músicos brasileiros.

As regras da MPB: festivais, habitus e delimitações musicais

Setembro de 1978. Aconteceu na cidade de São Paulo um evento singular na história do jazz no Brasil. Em parceria com o Festival de Montreux, o I Festival Internacional de Jazz de São Paulo, contabilizava em sua primeira edição mais de três mil pessoas. E em sua segunda edição – realizada em 1980 –, novamente, um vasto público12. Jamais haveria, porém, uma terceira edição do festival. Curiosamente, o formato dos festivais – que alcançaria sucesso no final dos anos 60, ainda em pleno

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“milagre econômico” – embora trouxesse ao Brasil novas cargas de influências estrangeiras, sintoma da forte difusão do formato empregado em Woodstock, foi um dos fatores que ajudou a propagar o que viria a ser a MPB: um palco de disputas estético-políticas, subsidiado pelo sucesso da canção popular. Assim, segundo Tinhorão “os oito anos que marcaram essa ‘era dos festivais’, no entanto, serviram de qualquer forma para fazer aparecer diante das câmeras da televisão um certo tipo de música popular e de artistas brasileiros” (2014, p. 258).

Os festivais de música popular, é claro, já existiam nos anos 30 (MELLO, 2003, p. 14), porém com o clima político dos anos 60 e a querência cada vez mais forte pela canção popular foram fatores que provavelmente formataram a memória dos brasileiros acerca do jazz. O próprio nascimento do acrônimo MPB (uma definição do que seria ou não música brasileira; os limites do que entraria ou não na memória musical do povo brasileiro) é bastante significativo para o desenvolvimento desta hipótese. O grande sucesso da canção popular brasileira e o tom político parecem ter sido fatores que competiram conjuntamente para a (des)construção do jazz brasileiro.

Deve-se lembrar, porém, que geralmente os “músicos ligados à MPB são identificados à oposição ao regime militar e dessa forma a memória preserva artistas associados a este projeto estético-político” (ALONSO, 2013, p. 206). Dessa forma, a opção pelo rótulo “música instrumental brasileira” que surge nos anos 70 na cena musical do eixo Rio-São Paulo-Minas, emerge como lugar supostamente afastado das discussões ideológicas presentes na MPB. Aliás, “o rótulo MPB diz respeito a um conjunto de modalidades vendáveis” (KRAUSCHE, 1983, p. 9), geralmente imbuída do teor resistente ao mercado (e ao regime militar), construído ao redor de seus compositores. É curioso, nesse sentido, perceber que a MPB:

Apresenta-se não como um conjunto definido, fechado; mas até certo ponto diluído; um círculo de contornos não muito nítidos, pois o seu rótulo pode legitimar e evidenciar (grifos nossos) outros gêneros que até então não eram privilegiados. Tem-se a impressão que a MPB é fundamentalmente o que se cantou em grandes estádios de futebol, sob o título “Canta Brasil”, no ano de 1982: Chico Buarque, Gonzaguinha, Milton Nascimento, Simone, João Bosco, Pepeu Gomes, Clara Nunes, Baby Consuelo, Moraes Moreira e outros. (KRAUSCHE, 1983, p. 9).

Essas fronteiras móveis, resultantes desse “conjunto diluído”, permitiram criar mecanismos de categorização e definição do que é a música popular brasileira para

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atender a um determinado nicho do mercado. Um verdadeiro habitus, isto é, um “sistema de esquemas adquiridos que funciona no nível prático como categorias de percepção e apreciação, ou como princípios de classificação” (BOURDIEU, 2004, p. 26). O lugar do jazz nesse habitus é de uma música “proibida”, muito sofisticada, distante das raízes populares e alienantes13. A opção pelo privilégio de composições com influências do samba e da bossa nova nos nomes mencionados por Valter Krausche é significativa. Ora, se uma canção precisa ativar o samba como aspecto de resistência aos ditames do grande mercado, então a música norte-americana precisaria ficar fora dos arranjos dessa MPB.

Caetano Veloso expressou para o jornal O Pasquim, em 1971, quão conflituoso é esse assunto ao comentar sobre o músico Sérgio Mendes pontuando que “em todos os países da Europa há pessoas interessadas em jazz, que se exercitam dentro da linguagem do jazz e que chegam a ser jazzistas, importantes ou não, pouco importa” que tal opção “não é necessariamente uma negação da nacionalidade do sujeito” (VELOSO apud SOUZA, 2009, p. 159) contrariando os argumentos de Tinhorão, ele ainda afirmou que:

Tudo isso é muito complicado porque eu também poderia dizer que o sujeito tem o direito de não se prender a características nacionais. Mas, de qualquer maneira, se a suposta desnacionalização do trabalho de um artista pode vir a ser um piche para ele, há a defesa de que no caso de um cara que está interessado num determinado campo de arte em outro país não implica uma desnacionalização do trabalho dele. Tudo isso é muito difícil de falar, é muito complicado (VELOSO

apud SOUZA, 2009, p. 159).

O debate sobre o uso político da música e de sua comunicação com as massas e a própria noção de “decadência” do jazz – visto como um estilo que havia perdido suas raízes negras em prol de um suposto “embranquecimento” pelo mercado – pode ter contribuído para uma memória do jazz sempre associada a um aspecto “intelectualizado”, “erudito”, “impopular”. Isto é, ligada às noções de distinção e refinamento. De outra forma, ao passo que a canção se consagrou na memória oficial da MPB, a música instrumental não foi absorvida para dentro desse enquadramento memorialístico. Muitos músicos como Laurindo de Almeida, Sérgio Mendes, Manfredo Fest, Dom Um Romão, tiveram de ir se estabelecer no exterior por conta da desvalorização dos músicos diante do massivo consumo da canção, subsidiado pelos festivais. Em novembro de 1969, numa entrevista concedida para o jornal carioca O

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Antigamente, os músicos tinham emprego. Agora, não. Só tem os festivais. O que ganha, ganha alguma coisinha e pronto. Os outros não ganham nada: perdem seu tempo e perdem sua profissão. Esse negócio é muito grave. O profissional não tem mais como viver. E todo mundo tem de ir pro estrangeiro. Isso é péssimo. Que o músico brasileiro não possa ter emprego e viver na terra dele é uma grande sacanagem (SOUZA, 2009, p. 126).

O próprio José Ramos Tinhorão confirma os sintomas dessas transformações musicais no livro Os sons do Brasil: trajetória da Música Instrumental (1991):

Essa redução do campo de interesse em torno da música não cantada, levou a maioria dos instrumentistas ligados às correntes “modernas” – que eram, na realidade, as herdeiras do estilo jazz, logo ajustadas ao som de massa chamado “universal” – a situarem-se diante de poucas opções: ir para os Estados Unidos, matriz de sua formação musical – o que muitos fizeram a partir de fins dos anos 60 –, adotar a formação de conjuntos vocais ou de acompanhamento de cantores; transformar-se em fornecedores de música para dançar ou, finalmente, partir para a pesquisa de novos caminhos, individualmente ou em grupos situados fora do sistema (TINHORÃO, 1991, p. 34).

Por conta de todos esses fatores a atenção para com o jazz produzido no Brasil passou a se limitar à defesa e aos ataques de suas contribuições dentro da bossa nova. A música instrumental contemporânea que emergiria com mais força nos anos 70 estaria aberta ao jazz moderno, bem como a outros gêneros, e constituiria um lugar de recepção dessas melodias marginalizadas.

Conclusão

Em virtude do que foi exposto neste artigo, tende-se a concordar com Acácio Tadeu no que diz respeito à questão de que há umatônica fricativa sobre o jazz brasileiro – ou a “música instrumental” produzida no Brasil14. Isto é um “tenso diálogo da música instrumental, característica fundante deste gênero” (TADEU, 2005, p. 197). Acredita-se que essa tensão foi reforçada pelo “dilema nacional” tão presente durante boa parte do século XX na música popular brasileira. Os rastros desse dilema estavam presentes nas formas pelas quais o jazz foi lido e representado no Brasil.

As representações que o jazz ganhou nos discursos nacionalistas, sobretudo como música alienante para críticos conservadores dos anos 60 como José Ramos

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Tinhorão, Lúcio Rangel, Vasco Mariz, etc. foram fomentados, nesse sentido, por fenômenos históricos que envolveram as configurações ideológicas da época e as mudanças de sonoridade do gênero musical que alimentaram tal interpretação.

Tendo em vista esse raciocínio inspirado em ideias de Stuart Hall (2016), se poderia afirmar que essas formas de representação do jazz desde o princípio competiram para construir um sentido de pertencimento, ou identidade dentro da música brasileira. À luz do autor, é por meio das representações que os significados culturais passam a regular e organizar as práticas sociais e, assim, podem se constituir as normas e as convenções responsáveis pela manutenção de determinados sensos de pertencimento.

É possível que a influência dos discursos nacionalistas presentes tanto no cenário da crítica quanto na produção musical brasileira tenham alimentado ainda mais essas tensões entre a música estrangeira e a música brasileira, fomentando a dificuldade em se aceitar o rótulo “jazz brasileiro”. Por isso, neste artigo se tentou demonstrar como os conflitos ideológicos na música popular – que levaram à construção da MPB e, por conseguinte, uma memória específica pautada na canção “alienada” ou “engajada” –, apenas corroboraram para transferir o jazz para áreas menos visíveis desse mainstream. Ou seja, embora as trocas musicais se perpetuassem de maneira dinâmica por meio das trocas culturais, naturais quando se trata da música popular urbana, houve intelectuais advindos dos setores mais conservadores da sociedade que eram contra qualquer tipo de intercâmbio cultural. Chegando às raias da xenofobia, esses sujeitos levantaram uma bandeira nacionalista que buscava manter a música brasileira supostamente pura. Mesmo assim, as permutas continuaram acontecendo e, por isso mesmo, seria possível o surgimento de um jazz brasileiro.

Doravante, a preferência pela canção popular difundida pelos festivais, embora tenham enfraquecido o interesse pela música instrumental, não extinguiu a influência do jazz na linguagem instrumental e em suas experimentações. Direta ou indiretamente, mesmo assumindo um papel silenciado nessa memória oficial, além de ter oferecido o arcabouço modernizante para a música popular, o jazz brasileiro ainda alimenta embates políticos dentro do seu formato e proposta.

Por isso parte desse problema de indefinição pode denotar uma permanência desse imaginário do jazz até hoje como uma “música alienante”, incoerente com o cenário brasileiro. Em outras palavras, a discussão em torno do termo “jazz brasileiro” parece ter resquícios do dualismo “música brasileira versus música estrangeira”; e por outro lado, parece também constituir uma forma de superar os burburinhos em torno da

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nacionalidade/originalidade da música executada pelos músicos brasileiros, a fim de divulgar sua própria pulsação e criatividade.

No entanto, não se pode afirmar que os músicos que optaram pelo rótulo “jazz brasileiro” estejam afastados da busca por uma brasilidade sonora. Como se pode desprender das falas dos músicos do Zimbo Trio presentes no documentário Jazz

brasileiro produzido por Vitor Lopes em 2012: “o jazz brasileiro existe. Existe e é

tocado por músicos brasileiros. O jazz brasileiro não é possível ser tocado por um americano, russo. É tocado por brasileiro! O brasileiro é que criou essa forma de tocar”, afirmou o baterista Rubinho Barsotti15.

Logo, é válido crer que a indefinição existente no termo “jazz brasileiro” é uma escolha por si própria política e historicamente construída. Assim, o processo de construção de uma memória da música instrumental brasileira traz à tona a necessidade de, ao mesmo tempo, fazer uso de diversas sonoridades em diálogo com a World Music, manter aspectos da chamada brasilidade e, de forma prometeica, fazer uso dos procedimentos do jazz.

Como se pode perceber, essa discussão tem muito a render, necessitando de uma análise minuciosa da trajetória do jazz no Brasil por todo o século XX, as formas de divulgação e utilização no meio musical brasileiro, as disputas musical-simbólicas presentes nos palcos do Festival Internacional do Jazz em São Paulo, o renascimento do gênero musical nos anos 80, etc. Essas questões mereceriam um olhar mais aprofundado, ficando para um momento posterior.

REFERÊNCIAS

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VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo – Companhia das Letras. 1997.

1 A utilização da metáfora relacionada ao mito grego foi utilizada pelo historiador David Landes para

ilustrar as possíveis razões históricas para a revolução industrial, entre elas o avanço científico e, por conseguinte, o início da modernização. O uso aqui é direcionado para a modernização musical imprimida por músicos como Pixinguinha (um dos nomes mais simbólicos quando se trata do uso do jazz na Música Popular Brasileira), mas também em relação às jazz bands nacionais, orquestras da Era do Rádio, trios, quartetos, pela Bossa Nova, enfim, pela música instrumental brasileira que flertou com o jazz. Entende-se, nesse sentido, que dentro da proposta do trabalho, o jazz, enquanto elemento alienígena, foi visto pelos setores nacionalistas como algo de domínio estrangeiro, “proibido”, “prejudicial” à música brasileira.

2 Roberto Muggiati (1999, p. 08) destaca diversas possibilidades de grafia, dentre as quais jaseri, do

francês “tagarelar”, ou jasz, monossílabo da África Ocidental que quer dizer “coito”, ou mesmo da gíria elisabetana jass, significando “agir com entusiasmo” ou “vibração”. Essa diversidade é um sintoma da grande diversidade musical e das muitas tendências que compõem o jazz, tonando-se um gênero sem uma definição fechada.

3 Destaca-se que as origens dessa experimentação e diversidade musical se remontam desde os tempos de

Pixinguinha. Para saber mais sobre essa discussão, ver: http://www.ejazz.com.br/detalhes-estilos.asp?cd=181

4 Acessível em: http://jazzseen.blogspot.com.br/search?q=jazz+brasileiro. 5 Tradução nossa.

6 O historiador José Vinci de Moraes, por exemplo, considera o jornalista Vagalume (Francisco

Guimarães), o compositor Orestes Barbosa, Mariza Lira, Jota Efegê e Lúcio Rangel os primeiros historiadores da música popular urbana, ou seja, os primeiros que deram valor a essa temática no Brasil, dando vazão a uma nova memória da música urbana no país. Todos estes nomes eram apreciadores e militavam pela valorização do samba em seus estudos.

7 Essa informação, aliás, refuta a seguinte afirmação de Ruy Castro de que “Barroso, que acreditava nos

ufanismos nacionalistas que escrevia foi talvez o único grande compositor brasileiro da velha guarda que nunca flertou com ritmos estrangeiros” (CASTRO, 1990, p. 255-256).

8 A noção do jazz como “música depravada", vale lembrar, estava ligada nos EUA às raízes negras do

gênero. Não seria incoerente entender o ataque destacado por Alberto Ikeda como fruto da mesma leitura. Isto é, a condenação da importação de um gênero negro, de apelo altamente dançante; fatores que escandalizavam os mais conservadores.

9 Para se informar sobre essas influências que, inclusive, se confirmam, cf. BESSA, Virgínia de Almeida.

“Imagens da escuta: traduções sonoras de Pixinguinha” in. MORAES, José Vinci de. SALIBA, Elias Thomé (orgs.). História e Música no Brasil, São Paulo, Alameda, 2010.

10 Influência essa que desembocaria na bossa nova, gênero bastante atacado pelo historiador e até acusado

de ser “desnacionalizado”.

11 Essa afirmação pode ser constatada no bloco “Samba-jazz” do programa “Instrumental Brasileiro”,

Ricardo Silveira. Para realizar a escuta do programa pertencente à Rádio Batuta, ver: http://radiobatuta.com.br/RadioPrograms/view/20.

12 Por conta da escassez de ingressos a Rádio e a TV Cultura transmitiram ao vivo a segunda edição do

festival, o que comprova o sucesso da ousada empreitada musical. Para saber mais, ver: http://culturafm.cmais.com.br/cultura-jazz/jazz-ao-vivo-na-rtc.

13 Aliás, afirmar que o jazz simboliza uma música muito sofisticada para poder ser executada ou utilizada

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artistas da MPB, os arranjos, igualmente. Convém considerar que se construiu um imaginário para o jazz; imaginário esse que parte apenas de um momento específico da história do gênero musical e de uma associação ao imperialismo americano, sem considerar suas contribuições para a música brasileira e os músicos que, influenciados pelos seus processos, levaram a música popular para fora do Brasil.

14 Em se tratando do termo “fricção”, o projeto instrumental Avalanche do Paraná adotou o rótulo jazz

friction justamente por conta desse conceito. Logo no texto do encarte escrito por Roberto Muggiati para o álbum Avalanche, a pianista da banda destaca que “a ideia de fusion implica um hibridismo; já no jazz brasileiro se pode definir o que é brasileiro e o que é jazz: não se misturam e provocam uma fricção musical”.

15 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QOrrxu9PNxo.

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