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UMA ANÁLISE DOS DISCURSOS SOBRE A CULTURA DO ESTUPRO

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Academic year: 2021

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Islana Cruz Pereira (UNEMAT) Prof. Dr. Paulo Cesar Tafarello (UNEMAT)

RESUMO

A violência existe em todo o mundo e se concretiza como graves problemas da nossa sociedade, podendo ocorrer por proporções distintas. Nosso objetivo nesse trabalho foi analisar discursivamente os sentidos de violência quando essa é perpetrada contra a mulher pautada principalmente por questões de gênero, ou seja, o agressor é o homem, podendo ser inclusive seu parceiro, namorado, noivo, pai ou marido e a violência se dá em função da vítima ser mulher. Um dos tipos de violência mais relatados historicamente é o estupro, seja ele como violência individual ou coletiva (no caso dos estupros de guerra). Assim o objetivo geral deste trabalho teve como premissa analisar os sentidos de estupro circulantes na mídia brasileira, observando os sentidos derivados do mesmo, como por exemplo, “cultura do estupro” e a tensão resultante entre os sentidos de “normalidade” e os sentidos de violência atribuídos a essa prática. A partir disso, desdobrou-se em três objetivos específicos, que são: Analisar a normalização da violência contra a mulher ao longo da história; analisar o termo cultura de estupro nas mídias sociais; Analisar os processos de culpabilização das vítimas de estupro. O corpus desta pesquisa foi constituído de notícias publicadas em portais de notícias sobre a ocorrência desse tipo de violência perpetrada contra a mulher. Desta forma, o trabalho está estruturado em três capítulos, sendo o primeiro a introdução. O segundo desdobrado em dois subitens que tratam da história do estupro e as leis criadas pelo Estado para combate-lo. O terceiro capítulo traz a Análise do Discurso com base teórica. No quarto capítulo intitulado análise, desdobrou-se em dois subitens, o primeiro apresenta o caminho metodológico seguido das análises propriamente ditas. E por fim as considerações finais.

Palavras-chave: Cultura do estupro, Análise do Discurso, Violência, Mulher.

ABSTRACT

Violence exists around the world and becomes a serious problem in our society, and there may be different proportions. Our objective in this work was to discursively analyze the meanings of violence when it is practiced against a woman mainly due to gender issues, ie the aggressor is the man, can be even his partner, boyfriend, fiance, father or son and violence occurs because the victim is a woman. One of the most historically related types of violence is rape, either as individual or collective violence (no case of war rape). Thus, the general objective of this paper was to analyze the meanings of circulation of the Brazilian media, observing the meanings caused by it, such as "discharge culture" and the tension affected between the meanings of "normality" and the meanings. senses of violence. From this, unfold it into three specified objectives, which are: To analyze the normalization of violence against a woman throughout history; Analyze or term social media culture; The corpus of this research was constituted by news recorded in news portals about the occurrence of this type of violence perpetrated against a woman. Thus, the work is structured in three chapters, the first being the introduction. The second unfolded into two sub-items dealing with the history of rape and the times killed by the combat state. The third chapter introduces Discourse Analysis based on theory. In the fourth chapter entitled analysis, it was divided into two sub-items, the first presents the methodological path followed by the appropriate analyzes. And finally as final considerations.

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1 – O ESTUPRO: UMA HISTÓRIA DE VIOLÊNCIA

A história das relações de gênero perpetua há décadas um reflexo do controle sobre o gênero feminino. Desde a circulação de ditados populares que são passados de geração a geração e considerados pelos povos antigos como expressões sábias, tornou-se difícil encontrar com mulheres que não tenham ouvido da avó ou da mãe o simples ditado popular “que lugar de mulher é... na cozinha” ou outros ditados que, repetindo o início “lugar da mulher é...”acabam gerando efeitos de sentido de que existe um lugar específico destinado a mulher que é diferente ao do homem e sobretudo, um lugar de submissão a ele.

Se observarmos o universo discursivo bíblico, desde a narrativa do surgimento da humanidade com Adão e Eva quando, após a expulsão de ambos do Paraíso, Deus disse a Eva: “Multiplicarei sobremodo os sofrimentos da tua gravidez; em meio de dores darás à

luz filhos; o teu desejo será para o teu marido, e ele te governará” (Gênesis 3:16), sendo

Eva considerada culpada pela queda da humanidade em função de sua desobediência de uma ordem divina, induzindo Adão ao pecado. Assim Eva é “amaldiçoada”, sendo fadada a ser dominada eternamente pelo homem. No mesmo sentido encontramos também ditados populares e livros bíblicos discursivizando esse lugar de que a mulher se constitui somente num espaço discursivo: o da submissão e do silêncio.

Os sentidos de estupro enquanto ação violência contra a mulher, ganham destaque em diversos meio de comunicação. O Instituto da Mulher Negra – Geledés (Geledés) destaca que na mídia, as mulheres são vistas de forma objetificada, com foco em sua aparência das mulheres em detrimento os demais aspectos que as definem enquanto seres humanos. A literatura é farta em obras que destacam um sistema familiar em que os pais muitas vezes utilizavam as filhas como moedas de troca em casamentos arranjados. Direcionando ao contexto histórico que remete

[...] a violência sexual contra a mulher ganha ares de romance e passa a ser naturalizada em todos os tempos. Passamos por várias culturas e tempos históricos, e a mulher é sempre contemplada como um objeto, que existe para

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servir aos homens. Vivendo em posição desumana, nenhuma afronta à humanidade da mulher foi prontamente repudiada, nem mesmo crimes, que sempre foram minimizados (KOLONTAI, 2016).

Os mitos gregos, em alguma medida, normalizavam essa prática. A principal divindade do panteão grego, Zeus, tinha como hábito transformar-se em animais celestes, para assim raptar mulheres e violentá-las sexualmente. Porém, muitas vezes a vítima engravidava, assim como foi com Europa que “colhia flores, o avistou e encantou-se, foi acariciá-lo e num momento de distração, Zeus a raptou e a levou para a ilha de Creta, onde sem revelar sua identidade, estuprou-a e a engravidou”. (Kolontai, 2016).

De acordo com a história nem sempre a mulher recebia punições por atos não cometidas ou acusadas, o homem que praticava atos violentos sem o consentimento da mulher recebia punições. Porém, antigamente na Germânia as leis eram diferentes para crimes hediondos, não carecia ou precisamente “[...] independia se a mulher fosse virgem, pois o estupro só era consumado quando a mesma era deflorada [...]” (RODRIGUES & LOPES, 2018), diferente da Germânia, na “[...] Lei de Moisés e o Código de Hamurabi protegiam as mulheres que fossem donzelas, que ainda não conheceu homem, excluindo assim as mulheres casadas e prostitutas. ”(RODRIGUES & LOPES, 2018).

Percebe-se, que seja em qualquer lugar, as mulheres são vistas com discriminação, com inferioridade perante a sociedade e principalmente pelo sexo masculino. A distinção das relações de gênero construída historicamente enfatizando de forma clássica da desigualdade entre o homem e a mulher, desigualdade essa construída por uma pratica ideológica. Viajando em contextos históricos, e desembarcando no Brasil em período Colonial, na qual nos livros didáticos, apresentam uma chegada pacifica, onde os portugueses mostram objetos aos índios conquistando a confiança dos moradores. Os acontecimentos reais analisados por pesquisadores que:

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Os indígenas viviam em comunidades, a terra onde habitavam não era de um, mas sim de todos, eles tinham suas tarefas divididas de acordo com idade e gênero: as mulheres tinham suas funções e os homens as deles, tudo distribuído entre todos os membros da tribo. Para os índios a mulher é uma figura fundamental e de total importância, eles viam as mulheres e crianças como as mais próximas da mãe terra, a mulher para eles tem o dom de gerar vida, perpetuando seu povo. (RODRIGUES & LOPES. Estupro, 2018)

Nas tribos indígenas as mulheres exerciam papal totalmente diferente das civilizações portuguesas, as índias andavam nuas e eram admiradas pela sua tribo. Já os portugueses eram conhecidos por serem bastante religiosos e as vestes femininas condiziam com a representatividade das mulheres daquela época, na qual, eram vestimentas longas e sempre cobertas, devido à crença as mulheres representavam a tentação e o pecado. Com isso, os portugueses ao se depararem com belas mulheres morenas e nuas, se sentiram excitados e inebriados com índias nuas e inocentes. Se sentindo os donos do território passam a violentar a índias para demonstrar o seu poder, sendo assim,

(...) concedido aos colonizadores o direito de usufruir da vida e de todos os habitantes da colônia, fazendo assim com que as índias fossem tomadas a força por eles, ou seja, mantivessem com elas atos sexuais incontáveis. As mulheres que mais sofreram os efeitos da colonização, na terra onde eram tratadas com respeito e admiração, estavam sofrendo abusos, sendo estupradas e maltratadas pelos colonizadores. (RODRIGUES & LOPES, 2018)

Com a chegada mais tarde de negros e negras escravos, as mulheres negras eram destinadas a servir aos grandes senhores e forçadas a serem mulheres deles. Muitas delas engravidavam e se o filho fosse negro, “seria mais um escravo da fazenda como todos os outros ou seria vendido. Para o escravizador, mulheres negras eram bens móveis sub-humanos, apenas propriedades”. (GELEDÉS, 2016), visto que, as mulheres não possuíam

voz ou força para lutar pela liberdade e dignidade como mulher. A história continua sendo narrada, porém, de forma diferente, a mulher negra ainda luta pela liberdade no século XXI, mas no sentido de ser respeitada em espaço público ou no seu próprio trabalho, histórias iguais, com adjunto de representatividade social com caráter extremamente difundindo em uma base ideológica voltado ao âmbito de poder político e de uma grande aceitação social.

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Diante de tantas lutas como conseguir um emprego e ganhar de forma digna e de ser sempre controlada, vivendo em constante perseguição de violências de amplas esferas, o movimento feminista surge no Brasil em meados dos séculos XIX e XX, com intuito de despertar as mulheres brasileiras, construindo forças e dando vozes para aquelas que eram e são silenciado todos os dias, tentando cristalizar e combater os crimes contra as mulheres em diversos meios sociais. Geledés destaque que no Brasil,

No código Civil de 1916, onde o homem era chefe de família e a mulher era considerada relativamente incapaz, admitia-se a tese de legítima defesa da honra para inocentar feminicidas. Em 1979, começou a discussão da possibilidade do marido ser responsabilizado pelo estupro da esposa, já que a ideologia até então, passada de geração em geração, fixada pelo patriarcado, é a de propriedade, servidão sexual e submissão.

Com a luta do grupo feminista contra o código Civil é contra uma sociedade machista e controladora, conseguem fazer com que alteram a lei dando à mulher a liberdade das funções negadas á elas. Porém, em 2019 a Constituição Federal reconheceu que o estupro é um ato que viola dignidade sexual da vitima e sua liberdade.Tais mudanças afrontam um duelo social entre o sexo feminino e o sexo masculino, pois para o homem é demonstra o poder virial é a dominação sexual na posse de uma mulher, por outro lado, a mulher que, se negar ao homem, ele se senti submetido à necessidade de usar a força para provar sua masculinidade.

Uma das principais definições da masculinidade na cultura ocidental para o gênero é que o masculino é ativo. Ser ativo, no senso comum a respeito de gênero, significa ser ativo sexualmente, o que para muitos significa penetrar o corpo da/o outra/o (GROSSI, 2004, p. 06).

A história do estupro é antiga, assim como a pratica do sexo é, os dois correspondem há um efeito de uma maneira violenta, sempre usar as artimanhas da velha é conhecida sedução, sendo cavaleiro, mascarando o ato da violência de forma sutil e contrapondo quaisquer vestígios. Centenas de mulheres sofrem diversos tipos de violências, a cada dia sendo subjugada por merecimento de atos que prejudicam a liberdade do sexual da mulher no seu dia a dia social.

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A agressão sexual que denominamos como estupro é referenciada diferentemente na história e nas línguas. No século 19, houve o registro do termo no dicionário de Oxford com sentindo racista referenciado ao negro tendo - Rapenigger, referenciando aos estupradores negros, que quando pegos, eram condenados e punidos. Já os homens brancos da época dificilmente recebiam punições praticando atos que prejudicasse a mulher, quando recebiam, suas penas eram irrisórias.

No dicionário eletrônico Houaiss de Língua Portuguesa encontramos o termo estupro com datação de uso em 1566 e derivado do latim stuprumou stupure cujo

significado é estupefato, ficar imóvel, ficar atônito.

O estupro em si, enquanto ato de violência contra a mulher, tem raízes históricas. Segundo Hayden1 (2001) em entrevista para a revista Veja afirma que “

(...) a arqueologia e a antropologia mostram que o estupro e a guerra datam dos primeiros dias de nossa espécie. O sexo forçado foi, inclusive, uma das principais causas das primeiras batalhas entre tribos.(...) Nas estruturas sociais rígidas das primeiras “tribos” da Pré-História, eram os líderes quem mantinham relações sexuais com a maioria das mulheres do grupo. E os jovens de pequenas tribos só podiam procriar quando “conquistavam” fêmeas de outras tribos em batalhas. Então, as primeiras guerras foram, na verdade, estupros coletivos.

Os estupros de guerra são relatados inclusive na Bíblia Sagrada:

"Porque eu ajuntarei todas as nações contra Jerusalém para a batalha, e a cidade será tomada, e as casas serão saqueadas, e as mulheres forçadas, e metade da cidade sairá para o cativeiro, mas o resto do povo não será extirpado da cidade ... "

Zacarias, 14:02. "As crianças vão estar na frente deles, as suas casas serão saqueadas e as suas mulheres violadas." Isaías, 13:16

Os casos se repetem na Grécia Antiga e na Roma Antiga, mas o estupro na ausência da guerra não era considerado sequer crime contra a propriedade na Grécia Antiga enquanto que na Roma Antiga,

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No discurso jurídico e moral latino, stuprum é a relação sexual ilícita, traduzível como "libertinagem criminal" ou "crime sexual". Stuprum engloba diversos crimes sexuais, incluindo incesto, estupro ("relações sexuais ilegais pela força") e adultério. Na Roma antiga, stuprum era um ato vergonhoso em geral, ou qualquer desgraça pública, incluindo, mas não limitado a sexo ilícito. A proteção contra a má conduta sexual estava entre os direitos legais que distinguiam o cidadão do não-cidadão. (Fonte Wikipedia)

Em alguma medida, o termo estupro vai se solidificar como violência sexual na Idade Média com a chegada da moral cristã, mas sua prática permanece ainda até os dias atuais, fortalecido e muitas vezes realimentado pelo discurso machista que toma a mulher como propriedade.

1.1 – O estupro sob a ótica da Lei e do Estado

No Brasil, de acordo com a pesquisa divulgada em 2019 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), mais de 16 milhões de mulheres brasileiras sofrem algum tipo de violência, isso implica que, “ao longo do último ano, a proporção de mulheres vitimadas nas pesquisas de 2017 e 2019 se manteve estável, 28,6% e 27,4% respectivamente”. Temos ainda, além desses dados a fato de que esses casos são subnotificados e seguem caminhando para uma violência silenciada pelas vítimas.

Dentre os diversos tipos de violência sofridos por mulheres destaca-se o estupro. Os dados divulgados pelo IPEA relativos ao ano de 2018 dão conta de que, levando em conta a subnotificação dos casos de estupro no Brasil, o número pode chegar a uma faixa de 822 a 1370 estupros por dia no país2. Isso implica em uma violência criminosa que tira a liberdade sexual da vítima. O Código Penal Brasileiro (CPB) conceitua o estupro como o ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter

1 2Fonte: IPEA -

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conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” (Art. 213 da Lei Nº 12.015/2009).

Em agosto de 2009 o CPB passou a prever os intitulados “Crimes Contra a Dignidade Sexual”, antigamente denominados de “Crimes Contra os Costumes”. A alteração de Título, em 2009, surgiu com intuito de adequar os tipos penais à nova realidade dos bens jurídicos protegidos, tendo em vista que “o foco da proteção já não era mais a forma como as pessoas deveriam se comportar sexualmente perante a sociedade do século XXI, mas sim a tutela da sua dignidade sexual. ” (GRECO, 2011, p. 611). Nesse contexto, houve uma significativa revolução, posto que, antes do advento da nova legislação, a postura do legislador era de simplesmente proteger os costumes e a moral social, porém, contudo, no entanto, com as alterações o indivíduo passou ater a liberdade sexual, ou seja, escolher ter controle do seu corpo e escolher o seu parceiro nas práticas sexuais.

A lei, portanto, tutela o direito de liberdade que qualquer pessoa tem de dispor sobre o próprio corpo, no que diz respeito aos atos sexuais. O estupro, atingindo a liberdade sexual, agride, simultaneamente, a dignidade do ser humano, que se vê humilhado com o ato sexual. (GRECCO, 2011, p.616).

Antes da Lei nº 12.015/2009, o caput do artigo 213, do CPB que trata do estupro dispunha em seu artigo 213:

Art. 213 - Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça:

Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.

Com a modificação passa a reconhecer o crime de estupro como:

Art. 213 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:

Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.

§ 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos. § 2º Se da conduta resulta morte:

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Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.

A vista disso denota que o crime de estupro passou a ser reconhecido como crime comum, ou seja, aquele que não exige qualidades especiais podendo ser praticado em qualquer pessoa, seja ativo ou passivo, visto que, a figura passiva se figura como a mulher, que no artigo o “passivo” foi substituído por “alguém”, tornando a violência criminosa referente a qualquer pessoa.

2 – A abordagem metodológica

Eni Orlandi, (2015, p 61), traz uma reflexão sobre o sujeito, história e a ideologia, assim como, os procedimentos analíticos do discurso, que segundo a autora:

A análise é um processo que começa pelo próprio estabelecimento do corpus eque se organiza face à natureza do material e à pergunta (ponto de vista) que o organiza. Daí a necessidade de que a teoria intervenha a todo momento para “reger” a relação do analista com o seu objetivo, com os sentidos, com ele mesmo, com a interpretação.

Ou seja, será a partir da análise do corpus, que se constituirá de discursos culpabilização das vítimas de estupro, extraída da web e das redes sociais, buscamos evidenciar a materialização da ideologia machista, realizando sua interpretação, e abordando as condições de produção, construção, estruturação e modo de circulação, levando em conta a ideologia e o inconsciente, assim considerados.

Sendo assim, optamos aqui por seguir o percurso proposto por Rodrigues (2011) que se inicia com a definição do objeto e objetivos, seguindo-se a coleta do corpus, sua seleção e agrupamento e formações discursivas que encaminharão e determinarão o encaminhamento da análise. Para Orlandi (2015, p. 62) a questão da constituição do corpus na AD é um ponto de partida da análise e já um princípio de análise em si mesmo, haja vista que “a construção do corpus e a análise estão intimamente ligadas: decidir o que faz parte do corpus já é decidir acerca de propriedades discursivas” (idem, p. 63), organizados

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em função “da natureza do material e à pergunta (ponto de vista) que o organiza” (idem, p. 64).

3. Discursos sobre o merecimento do estupro.

Nosso objetivo aqui é analisar os discursos de conteúdos publicados na mídia sobre casos de violência sexual, condizendo a comentários ou imagens relacionadas ao incentivo e ao merecimento da violação sexual da mulher. A naturalização do ato, expressada por internautas agregando à agressão a responsabilidade das mulheres pela violência sofrida.

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A imagem acima concentra enunciados de mulheres e homens acerca do merecimento do estupro que circulam na sociedade. A ilustração mostra ainda uma figura feminina deitada encolhida nua submetida aos comentários machistas e violentos assumindo contextos em que a vítima seria “culpada” pela violência por ela mesma sofrida.

E1. Parece que estava drogada. E2. Também com essas roupas... E3. 16 anos mas já tem um filho. E4. Mereceu.

Os enunciados de E1 a E4 apresentam um movimento de inversão de sentidos. Tomando como ponto de partida a condição da personagem deitada, nua e sangrando como resultado de um estupro, os enunciados produzidos pelas figuras em forma de diabos, sendo um feminino e os demais masculinos apresentam um processo discursivo de culpabilização do sujeito vítima e silenciamento do ato do estupro.

Os enunciados E1 e E2 articulam-se discursivamente com o momento da violência, enquanto o Enunciado E3 articula-se com um discurso de disponibilidade da vítima, enquanto que o Enunciado E4 apresenta-se discursivamente como uma síntese dos demais. Então temos:

E1. Parece que estava drogada.

E4. Mereceu (ser estuprada) E2. Também com essas roupas...

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Orlandi (2012) ao tratar dos processos de produção de sentidos aponta para a divisão do mesmo em três momentos distintos:

1) Constituição: a partir da memória do dizer, fazendo intervir o contexto histórico-ideológico mais amplo;

2) Formulação: em condições de produção e circunstâncias específicas; 3) Circulação: ocorre em certa conjuntura e segundo certas condições.

Desse modo podemos considerar o processo de produção dos sentidos desse cartaz como pertencente a um movimento de resistência ao processo de normalização do estupro. Assim, em E1-E4 há o atravessamento na constituição do processo de produção de sentidos de uma memória discursiva que remete ao modelo de mulher “de respeito”, ou seja, devidamente enquadrada no que seria socialmente aceito enquanto representação feminina. Assim, a mulher, para não “merecer” (E4) ser estuprada deveria ser recatada (E2), ter um comportamento social adequado (E1) e ter sua sexualidade controlada (E3). Dessa forma, o estupro surge discursivamente como um castigo pela não aceitação das regras sociais determinadas pelo discurso machista – “A mulher direita deve ser de forma X”, não o sendo, coloca-se numa condição de disponibilidade sexual a quem desejar.

Entretanto esses enunciados (daí o processo de resistência presente no cartaz) silenciam o ato do estupro enquanto violência física e simbólica. Ao colocar em circulação os sentidos produzidos em função da culpa da mulher o cartaz apaga o silêncio posto sobre sentido de estupro que tem como culpado o estuprador ao colocar em evidência o atravessamento ideológico que sustenta os sentidos produzidos pelos enunciados E1-E4.

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Figura 2 Carta Capital - 25/07/2019 - https://www.cartacapital.com.br/politica/damares-justifica-abuso-de-meninas-por-falta-de-calcinhas/

A reportagem da Revista Carta Capital de 25/07/2019, traz a fala da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves que justifica o alto índice de estupros na Ilha de Marajó pela falta de calcinhas para as meninas da ilha.

Especialistas chegaram a falar para nós que as meninas lá são exploradas porque elas não têm calcinhas, elas não usam calcinha porque são pobres”, disse a ministra ao comentar o alto índice de estupro na região. (...) a melhor forma de combater o crime seria levar fábricas de calcinhas para lá para dar emprego e produzir as peças a preço mais baixo.

O enunciado E5 “(...) as meninas lá são exploradas porque não têm calcinhas, elas não usam calcinhas porque são pobres.” Em alguma medida acaba por alinhar-se discursivamente aos enunciados E1-E4 no sentido de que desvia discursivamente a culpa do agressor para a agredida.

E5.1 ... as meninas lá são exploradas porque não têm calcinhas ... E5.2 ... elas não usam calcinhas porque são pobres.

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Se temos em E2 – também com essas roupas => (a mulher) => merece ser estuprada, E5 nos traz um alinhamento discursivo no sentido de que as meninas são

exploradas porque elas não usam calcinhas. Ao silenciar a ação do agressor e definir a

culpa do estupro ao vestuário (ou a falta dele) das meninas, a ministra acaba por enunciar de uma posição sujeito que define que o estupro quando ocorre em determinadas situações é justificável. Assim, ao afirmar que a culpa do estupro é da falta de calcinhas enuncia de uma formação discursiva que produz sentidos de disponibilidade para a mulher que não se enquadra a um modelo padronizado de mulher, que se comporta e veste de uma determinada forma e não outra. Andar sem calcinhas define, no enunciado, a disponibilidade para o estupro, independentemente se motivada pela pobreza.

O que se percebe neste conjunto de enunciados E1 – E5 é um conjunto de constituição – formulação – circulação de discursos nos quais o sujeito mulher é posto como seu próprio algoz, comportando-se ou vestindo-se de forma a provocar o estupro, ao mesmo tempo em que silencia o agressor e a violência praticada, colocando o sujeito estuprador como vítima daquela que, por “não se comportar” adequadamente, produziu sentidos de disponibilidade que não poderiam deixar de ser aproveitados pelo homem, dada sua condição de “macho”. Atravessado pelo discurso machista, os sentidos produzidos pela ministra Damares, somada a posição sujeito que a mesma ocupa (ministra do governo federal, voz de autoridade na área) acaba por delimitar o ponto de partida discursivo das políticas do atual governo federal – o de aceitação do estupro como prática provocada pela mulher.

4 – Discurso “Estupro como recurso “pedagógico”

Outro sentido de estupro que encontramos como recorrente em notícias é o sentido de estupro como recurso para “readequar” a mulher a seu espaço socialmente aceitável na sociedade conservadora, ou seja, ao espaço feminino, subalterno ao homem. Assim a

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existência de estupros “corretivos” (figura 3) acaba por novamente trazer à tona os sentidos de culpabilidade da vítima, ou seja, o estupro ocorre / deve ocorrer quando o sujeito mulher não ocupa o espaço social que se espera dela.

Figura 3 Estupros corretivos

Assim, mulheres seriam estupradas em função de sua orientação sexual. O estupro corretivo, como é chamado ocorre de forma bastante frequente e em alguns casos de forma institucionalizada.

Clínicas de reabilitação de dependentes químicos e alcoolismo de países sul-americanos, como Equador e Peru, recebem comprovadamente pacientes gays, lésbicas e trans para tratamento de reversão sexual ou cura gay. A maioria dessas unidades, ditas terapêuticas, é ligada a igrejas cristãs. No Brasil, o Ministério Público Federal investiga indícios de processo similar em pelo menos seis centros.3

No Brasil a notificação de estupros serviços de saúde e segurança pública, adotados no atendimento às vítimas de violência sexual, a partir de 2014 incorporaram o

3

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campo da motivação da violência, permitindo distinguir a ocorrência do “estupro corretivo” e coletar dados sobre sua prática. Além dos casos de violência sexual serem de notificação compulsória e imediata, as fichas de Notificação Individual de Violência Interpessoal/Autoprovocada possibilitam identificar LGBTfobia como motivo para a ocorrência de estupros.

O estupro corretivo tem como principal motivação do agressor “converter” à heterossexualidade, pessoas de orientação sexual que não atentem para o padrão socialmente aceitável, especialmente mulheres lésbicas, bissexuais e transexuais.

Um levantamento feito pelo portal Gênero e Número aponta para o fato de que em 2017, seis lésbicas foram estupradas por dia.

Em 61% dos casos, a agressão ocorreu na residência, enquanto 20% aconteceram em vias pública e 13% em “outros locais”. Os homens são algozes. Aparecem como autores em 96% das agressões sexuais Mulheres são apenas 1% das agressoras. Em 2% das agressões há registros de ambos os gêneros como agressores. Em 1% dos casos notificados o gênero do autor não é identificado.4

Os enunciados analisados aqui representam dois casos, mas segundo Bertho (2017) são enunciados recorrentes nesses casos.

E6. Agora você vira mulher de verdade5

E7. agora você vai aprender a gostar de homem6

Esses enunciados ouvidos pelas vítimas enquanto eram agredidas são marcas distintivas dos estupros corretivos. Aqui, o sujeito estuprador pretende “educar” o sujeito vítima em relação à sua orientação. Dos sentidos que perspassam esses enunciados o mais gritante é o de que a orientação sexual, no dizer do agressor, seria uma opção consciente do sujeito vítima e seu papel (do agressor) seria o de colocá-la no caminho “correto”. O segundo é o de que o sujeito mulher.

4http://www.generonumero.media/no-brasil-6-mulheres-lesbicas-sao-estupradas-por-dia/

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https://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/entretenimento/2017/11/02/vai-virar-mulher-de-verdade-estupro-corretivo-vitimiza-mulheres-lesbicas.htm

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Assim, o estupro, mais uma vez teria apagados seus sentidos de violência e assumido uma forma corretiva – o sujeito mulher é, nesse caso estuprado por ter uma orientação sexual divergente da que circularia de forma estável para a mulher. Essa “opção” seria feita de forma consciente e poderia ser também revertida conscientemente pelo sujeito mulher após o processo “educacional” do estupro corretivo – você vira mulher – e – você vai aprender a gostar de homem. Nesses dois casos, mais uma vez o sujeito mulher surge como culpada pelo estupro. O que se diferencia aqui é o papel do sujeito estuprador. Se em E1 – E5 ele surge como seduzido, vítima do comportamento e vestimentas da mulher, em E6 e E7 o estuprador emerge como controlador da sociedade, ou seja, aquele que procuraria “adequar” a mulher ao seu papel social através do estupro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho procuramos analisar os sentidos de culpabilização da mulher em casos de estupro através da análise dos processos discursivos – constituição, formulação e circulação de discursos que segundo Orlandi (2012).

A análise é um processo que começa pelo próprio estabelecimento do corpus eque se organiza face à natureza do material e à pergunta (ponto de vista) que o organiza. Daí a necessidade de que a teoria intervenha a todo momento para “reger” a relação do analista com o seu objetivo, com os sentidos, com ele mesmo, com a interpretação.

Selecionamos um corpus na rede mundial constituído por notícias e editoriais publicados em portais de notícias, dividindo a análise em dois tópicos ou formações discursiva. O primeiro denominado Uma breve história do surgimento do estupro traz uma memória da formação discursiva do termo estupro e a evolução dos sentidos do mesmo ao longo da história.

Em seguida analisamos os Discursos sobre o merecimento do estupro, no qual analisamos os sentidos de estupro tensionado pela questão de gênero. Após analisamos o discurso Estupro como recurso ‘pedagógico’

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O que percebemos ao longo da realização desse trabalho foi que, em alguma medida os sentidos de estupro estão intimamente ligados à posição sujeito mulher. Tensionada pela violência discursiva do estupro, a mulher vê cair sobre si a responsabilidade pelo ato, tomada que é, em muitos casos como culpada por esse tipo de violência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). PESQUISA MENSAL DE EMPREGO (PME). Mulher no mercado de trabalho: perguntas e

repostas. 2012.

JUSBRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho - Decreto-lei 5452/43 | Decreto-lei n.º

5.452, de 1º de maio de 1943. Disponível em:

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Notícias utilizadas para a análise:

<http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2014/12/bolsonaro-diz-que-nao-teme- processos-e-faz-nova-ofensa-nao-merece-ser-estuprada-porque-e-muito-feia-4660531.html.> Acesso em 15 de julho de 2017.

<https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/111983249/consolidacao-das-leis-do-trabalho-decreto-lei-5452-43. >Acesso em 10 de julho de 2017.

<https://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/trabalhoerendimento/pme_nova/Mu lher_Mercado_Trabalho_Perg_Resp_2012.pdf. > Acesso em 10 de julho de 2017.

http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/oficinadohistoriador/article/view/26768/15 676

https://jus.com.br/artigos/67300/estupro-o-mal-que-assola-a-sociedade-desde-os-primordios https://www.geledes.org.br/cultura-do-estupro-da-sua-origem-ate-atualidade/

Referências

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