• Nenhum resultado encontrado

POR UMA CIDADANIA DA INFÂNCIA EM MOÇAMBIQUE: Investigação com crianças e políticas públicas de educação

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "POR UMA CIDADANIA DA INFÂNCIA EM MOÇAMBIQUE: Investigação com crianças e políticas públicas de educação"

Copied!
15
0
0

Texto

(1)

Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. soc.. Vol. 1, No 2, pp 22-36, 2019

22

POR UMA CIDADANIA DA INFÂNCIA EM MOÇAMBIQUE:

Investigação com crianças e políticas públicas de educação

Hélder Pires Amâncio

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil

RESUMO: O objectivo deste trabalho é explorar as contribuições das pesquisas com crianças e suas implicações

para as políticas públicas de educação em Moçambique. Esta reflexão é feita com base na literatura do campo dos Estudos da Infância e da Criança e nas pesquisas recentes com crianças, desenvolvidas em Moçambique. Procuro responder à pergunta: o que os fazedores de políticas públicas de educação em Moçambique podem aprender a partir da investigação com crianças? Considero que há várias lições que os formuladores dessas políticas podem tirar da investigação com crianças. Porém, faço referência a duas fundamentais: a primeira delas é que as crianças (e jovens) têm uma palavra a dizer (e dizem) sobre as decisões tomadas em relação às políticas da educação no país e estas devem ser ouvidas ou melhor escutadas; a segunda, que decorre da anterior, é que o direito de participação das crianças (cidadania) constitui um ponto fulcral da afirmação do reconhecimento delas como seres sociais competentes e plenos. Nesse sentido, escutá-las no interior das instituições sociais não é apenas um princípio metodológico de acção adulta, mas uma condição política que favorece o diálogo intergeracional de partilha de saberes e poderes.

Palavras-chave: Cidadania da infância, investigação com crianças, Moçambique, políticas públicas de educação.

FOR A CHILDHOOD CITIZENSHIP IN MOZAMBIQUE: Research with

children and public policy of education

ABSTRACT: The aim of this study is to explore the contributions of research with children and their implications

for public education policies in Mozambique. This reflection based on the literature of the field of Childhood and Child Studies and recent research with children developed in Mozambique. I try to answer the question: what can the makers of public education policies in Mozambique learn from research with children? I believe there are a number of lessons that policy-makers can draw from research with children, but I refer to two fundamental ones: the first one is that children (and young people) has something to say (and they do) about decisions made regarding education policies in the country and they must be listened. The second, which follows from the previous one, is that children's right to participate (citizenship) constitutes a central point in affirming their recognition as competent and full social beings. In this sense, listening to them within social institutions is not only a methodological principle of adult action, but also a political condition that favors intergenerational dialogue of sharing knowledge and power.

Keywords: Citizenship of childhood, research with children, Mozambique, policy of education.

___________________________________

(2)

Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. soc.. Vol. 1, No 2, pp 22-36, 2019

23

INTRODUÇÃO

Temos, antropólogos ou não, muito que aprender com as crianças – com as nossas e com as dos outros (Renato Szututman, 2005). A infância é especialmente prejudicada, entre todos os grupos e categorias sociais excluídas, quer pela relativa invisibilidade face às políticas públicas e aos seus efeitos, quer por que é geralmente excluída do processo de decisão na vida colectiva (Manuel Sarmento, Natália Fernandes e Catarina Tomás, 2007)

O tema das crianças e infâncias, inicialmente marginalizado nas ciências sociais em geral e na Antropologia em particular (HIRSCHEFELD, 2002; HARDMAN, 2001), vem, nos últimos 20 a 30 anos, ganhando expressão no contexto mundial e africano em especial (WELLS, 2015; COLONNA, 2012; PASTORE, 2015; PUNCH, 2003). O objectivo deste trabalho é explorar as contribuições das pesquisas sobre crianças e suas implicações para as políticas públicas de educação em Moçambique. Se tivesse que dar outro título a este trabalho, no lugar de “Investigação com crianças e suas implicações para as políticas públicas em Moçambique”, colocaria em jeito de uma questão: “o que os fazedores de políticas públicas em Moçambique podem aprender da investigação com crianças?”. Embora não exista uma única definição do conceito de políticas públicas, entenda-se aqui enquanto “um tipo específico de acção política”, social e simbólica (DI GIOVANI e NOGUEIRA, 2018, p. 19; SHORE, 2010, p. 34). Assim, a “intervenção do Estado numa situação social considerada problemática” (DI GIOVANI, 2009, s/p.) é considerada uma política pública. Os fazedores de políticas públicas são os que desenham e decidem a nível macropolítico, mas, igualmente, aqueles que as executam ao nível micropolítico ou do quotidiano. Nesse

sentido, os/as professores/as e gestores de uma escola, por exemplo caberia na noção aqui empregue.

A motivação para escrever este artigo surge, por um lado, pela necessidade que há de se produzir conhecimento científico sobre e com esta categoria social e disseminá-lo dada a escassez de trabalhos cujos pressupostos teóricos e metodológicos se baseiam no campo dos Estudos da Criança e∕ou Infância. Acredito que a criação pela primeira vez, em 2017 de um eixo temático voltado para a questão da “Criança e Sociedade” na Conferência do Centro dos Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane (CEA) aponta para a importância de reflectir sobre as crianças e infâncias no nosso contexto actual e a necessidade de informar aos fazedores de políticas, considerando as experiências que a área dos Estudos da Criança e∕ou Infância trazem desde a década 1990, mas também, as pesquisas que vem sendo recentemente desenvolvidas no país sobre a temática. Do ponto de vista teórico, este artigo enquadra-se no debate sobre cidadania das crianças e da infância levantado por autores como Manuel Sarmento, Natália Soares e Catarina Tomás (2004; 2007), Catarina Tomás (2007), Manuel Sarmento (2005), Antonella Tassinari (2009; 2015), Elena Colonna (2012). Por cidadania da infância entenda-se o reconhecimento não apenas formal dos direitos das crianças enquanto “[SIC] atores sociais imprescindíveis e participativos na sociedade”, mas igualmente, “as condições do seu exercício por meio de sua plena participação” (TOMÁS, 2007, p. 45). Por participação compreenda-se, o “processo de interação social confluente na criação de espaços colectivos” (SARMENTO, 2007, p. 190). Em termos metodológicos, este texto resulta de uma análise da produção bibliográfica internacional na área dos estudos da criança e infância, mas também das pesquisas recentes nesse campo, desenvolvidas em Moçambique (COLONNA, 2012; PASTORE, 2015; AMÂNCIO, 2016). As

(3)

Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. soc.. Vol. 1, No 2, pp 22-36, 2019

24

referências bibliográficas foram selecionadas tendo em conta a sua relação com a temática aqui discutido, voltado para as questões da cidadania da infância, participação e escuta das crianças nos processos de decisão política no país, especialmente no sector da educação. O trabalho está estruturado em três tópicos, para além da introdução e considerações finais: a) investigação com Crianças, onde são apresentados os pressupostos teóricos e metodológicos do campo de “Estudos da Criança”; b) Políticas Públicas de Educação em Moçambique, com uma rápida reflexão sobre o campo educacional no país e sobre a existência ou não de espaços de escuta das vozes das crianças; c) o que os fazedores de políticas públicas de educação em Moçambique podem aprender da investigação com crianças. Neste tópico, reflecte-se sobre o que a investigação com crianças pode oferecer aos fazedores de políticas públicas ou, o que estes últimos podem aprender deste campo que seja útil na formulação de políticas mais consentâneas com a realidade social moçambicana.

INVESTIGAÇÃO COM CRIANÇAS: PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS

A investigação com crianças1 está

intimamente associada ao surgimento e desenvolvimento de um campo de estudos interdisciplinar designado “Estudos da Criança”2 (SARMENTO, 2008;

CHRISTENSEN e JAMES, 2005; FERNANDES, 2005; PUNCH, 2002; TASSINARI, 2011). Este campo, longe de ser homogéneo, congrega uma variedade de interpretações sobre a história de sua constituição3 (PIRES, 2008, p. 146).

Entretanto, de acordo com Sarmento (2008), este campo de estudos constituiu-se inicialmente nos países do Norte da Europa e no universo linguístico anglo-saxónico. Nas últimas décadas, vem se estruturando e se expandindo por todo o mundo. A prova disso é o processo de sua institucionalização, cujos indicadores são:

(...) a produção de um conjunto de saberes que reivindicam a sua ligação a este campo de estudos; constituição de revistas internacionais de grande difusão que difundem privilegiadamente os saberes constituídos no campo (destacam-se, entre elas, a

Childhood e a Children and Society); produção de manuais,

obras de referência e livros de difusão, que estabelecem o estado da arte e promovem o balanço da produção no campo (destacam-se, entre outros, as obras colectivas organizadas por Kehily (2004) ou Wyse (2004), a pequena mas muito útil obra de apresentação de James e James (2008), e, para o espaço de língua portuguesa, a recém-editada obra que organizei juntamente com uma colega brasileira, Sarmento e Gouvea (2008); constituição de unidades orgânicas universitárias de ensino e/ou investigação que assumem expressamente na sua designação “Estudos da Criança” (Child

Studies; Childhood Studies ou Early Children’s Studies),

movimento este que, iniciando-se nos países escandinavos e prolongando-se, do outro lado do atlântico, nos EUA e no Canadá, tem já expressão em muitas das mais reputadas universidades do Reino Unido, Irlanda, Austrália, Nova Zelândia, Japão, e ainda no Brasil (na Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e em Portugal (na Universidade do Minho); organização de programas de doutoramento e de mestrado no campo e criação de redes internacionais desses programas (SARMENTO, 2008, p. 1).

O campo de Estudos da Criança tem os seguintes pressupostos teóricos:

a) as crianças constituem objectos (diria sujeitos) de conhecimento em si e a partir de si mesmas;

b) a criança não se reduz a um adulto em miniatura – criança vista como agente social activo;

c) a geração é um conceito fundamental na análise da vida das

(4)

Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. soc.. Vol. 1, No 2, pp 22-36, 2019

25

crianças;

d) a análise das crianças e dos seus modos de vida exige uma abordagem interdisciplinar (e interseccional) (SARMENTO, 2008; SARMENTO e PINTO, 1997; CORSARO, 2011; PUNCH, 2003).

Em relação ao primeiro pressuposto teórico referente ao facto de as crianças constituírem per si objectos-sujeitos de conhecimento, podemos dizer que este campo de estudos se propõe a desconstruir a obviedade e legitimidade que sustenta o tradicional paradigma da infância enquanto fase natural e universal da vida e das crianças, estas últimas vistas como objectos passivos do processo de socialização dos adultos (MARCHI, 2009, p.228). Este pressuposto refuta o lugar das crianças como receptáculos da socialização dos adultos para considerá-las como agentes activos, a partir do que fazem, como agem, pensam e criam no contexto das múltiplas interacções que elas estabelecem entre si e com os adultos. A ênfase é colocada na autonomia das crianças. A alteridade da infância é considerada central nessa forma de desenvolver a investigação com crianças (SARMENTO, 2008, p. 2).

O segundo pressuposto teórico recusa a dimensão da criança como um “ser em transição” para a vida adulta – devir adulto. A ênfase da análise é colocada no que a criança é, e menos no que ela deve ser. Isso não significa que os Estudos da Criança neguem o desenvolvimento, antes pelo contrário, assumem-no como pressuposto de todos os ciclos da vida, especialmente no contexto das múltiplas relações sociais que as crianças estabelecem com os familiares, instituições, grupo de pares, mídias, com adultos de referência, com e no espaço público, com os outros indiferenciados. Nesse sentido, as crianças devem ser vistas como seres competentes, mesmo que vulneráveis e precisando de protecção dos adultos (SARMENTO, 2008, p.2). Portanto, o princípio criança-ator motiva a

passagem da visão determinista que insiste nos factores estruturais que pesam sobre a acção social para a capacidade de agência da criança (MARCHI, 2009, p.228).

O terceiro pressuposto teórico referente à relevância do conceito de geração para a análise da vida das crianças, prende-se com o facto de as crianças viverem em diferentes contextos sociais que influenciam os seus modos de pensar e agir. Tais contextos são por vezes comuns e outras vezes diversos, simultaneamente para um grupo etário, num determinado momento histórico. Comuns na medida em que todas as crianças sofrem as consequências dos processos reguladores das condições etárias de existência (não podem votar, não podem ser eleitas, são obrigadas a frequentar à escola, tem proibições e permissões diferentes das dos adultos, estão expostas à indústria cultural para crianças, entre outras). São diversos porque as condições estruturais da sociedade tendem a ser desiguais e a estratificar as diferentes categorias sociais a que as crianças pertencem, de acordo com a classe social, gênero, etnia, cultura, localização geográfica da residência (centro da cidade ou periferia), diferenças físicas e psicológicas (SARMENTO, 2008, p. 2-3). O quarto pressuposto teórico reconhece e coloca ênfase na abordagem interdisciplinar e interseccional como sendo a mais adequada para analisar a vida das crianças, pela sua complexidade (variedade temática e de conceitos) (SARMENTO, 2008, p. 3). Estes pressupostos teóricos têm implicações metodológicas fundamentais na realização da pesquisa com crianças. Uma das implicações metodológicas que desafia os pesquisadores adultos é que estes são percebidos como poderosos e controladores das vidas das crianças (CORSARO, 2005, p. 443). Esta percepção que se tem dos adultos desafia o pesquisador a encontrar estratégias de aceitação no mundo das crianças (ibdem, p. 444). Daqui surge um dos pressupostos metodológicos: as crianças não são e não devem ser encaradas simplesmente como objectos da pesquisa,

(5)

Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. soc.. Vol. 1, No 2, pp 22-36, 2019

26

mas sujeitos activos, que participam da vida social e tem algo a dizer e contribuições a oferecer nesse processo. Encarrar as crianças dessa forma significa que a escolha dos nossos métodos de pesquisa deve permitir uma maior abertura para que estas efectivamente participem do processo de produção do conhecimento sobre as suas próprias vidas.

Tomar as crianças como sujeito sociais activos e participativos no processo de construção do conhecimento, tem uma implicação política profunda (CHRISTENSEN e JAMES, 2005), na medida em que contribui para uma maior visibilidade4 para eles. Além disso, para que

elas sejam elas mesmas, isto é, assumindo o seu protagonismo no mundo e agindo e tomando decisões de forma relativamente autónoma, sem imposição dos adultos. Isso significa, em termos metodológicos, que, para conseguirmos acessar o seu mundo cultural, devemos em primeira instância, como nos ensinam muito bem as experiências de pesquisa etnográfica de William Corsaro nos Estados Unidos e na Itália, “não agir como um adulto típico”5

(CORSARO, 2005, p. 446).

Associado a este pressuposto metodológico, está a necessidade de o pesquisador equilibrar o direito da criança de participar na pesquisa e o seu direito a ser protegida (ou seja a ética na pesquisa). Este último aspecto impacta e influencia a escolha dos métodos e técnicas de pesquisa. A questão que se coloca então é: como garantir uma abertura e participação efectiva das crianças na pesquisa, valorizada as suas vozes e, simultaneamente, salvaguardando a sua integridade e identidades sociais?

Este tem sido um dos grandes dilemas deste tipo de pesquisa e não reúne consenso entre os pesquisadores por uma simples razão: quando assumimos e levamos às últimas consequências a ideia de que as crianças são sujeitos da pesquisa e não objectos desta, assumimos igualmente que as crianças podem falar por si, em nome próprio e dos seus direitos, assim como podem relatar as

suas experiências e visões de mundo. Um outro pressuposto metodológico é que a especificidade do campo dos Estudos da Criança não reside na aplicação de métodos e técnicas6 especiais, mas na aplicação

rigorosa dos requisitos metodológicos gerais. Contudo, tais métodos e técnicas deverão reflectir as particularidades dos sujeitos envolvidos no estudo e seus contextos sociais. O mérito do estudo das vidas das crianças está na compreensão do presente que é tão importante quanto o futuro delas, mas também, permite colocar questões sobre as sociedades a que essas crianças pertencem (PROUT, 1999). Este campo de investigação reflecte não só sobre a vida das crianças, inclui igualmente, os processos de produção desse conhecimento – processo de investigação em si – portanto, é um campo profundamente reflexivo7

(CHRISTENSEN e JAMES, 2005).

Um terceiro pressuposto metodológico importante da investigação com crianças é não assumir como um dado adquirido a distinção clara entre crianças e adultos (CHRISTENSEN e JAMES, 2005). Esta cisão ou grande divisão entre o mundo dos adultos e das crianças está associada a pré-noções que temos em relação à o que elas são ou podem ser:

tábula rasa a ser instruída e formada moralmente, ou o lugar do paraíso perdido, quando somos plenamente o que jamais seremos de novo. Ela pode ser a inocência (e por isso nostalgia de um tempo que já passou) ou um

“demoniozinho” a ser

domesticado (quantas vezes não ouvimos dizer que “as crianças são cruéis?”) – Estas ideias pré-estabelecidas produzem uma imagem negativa da(s) criança(s), pois, sempre usámo-las como contraponto para falar de outras coisas – da vida social ou responsabilidades da idade adulta – e não a elas mesmas (COHN, 2013, p. 7 - 8).

O quarto e último pressuposto metodológico que gostaria de apresentar é que “precisamos nos desvencilhar das

(6)

Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. soc.. Vol. 1, No 2, pp 22-36, 2019

27

imagens pré-concebidas (de criança, infância) e abordar esse universo e essa realidade tentando entender o que há neles, e não o que esperamos que nos ofereçam” (ibdem, p. 8). Isto significa que as crianças devem ser entendidas a partir do ponto de vista delas próprias. É por isso que, a investigação com crianças, levada a cabo pela Antropologia da Criança, Sociologia da Infância, assim como, Psicologia, Pedagogia e Psicanálise8 é relevante, na

medida em que compreender a participação social das crianças é tão importante quanto mapear as variáveis que moldam as suas vidas (PROUT, 1999).

POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO EM MOÇAMBIQUE: HÁ LUGAR PARA AS VOZES DAS CRIANÇAS9?

Em Moçambique, a produção de conhecimento sobre as políticas públicas do sector da educação é ainda escassa, especialmente quando visibilizada numa perspectiva de género (OSÓRIO e CRUZ e SILVA, 2008, p. 75), acrescentaria também numa perspectiva dos Estudos da Criança e Infância. Portanto, este é um campo10 que

deveria merecer a atenção de cientistas sociais moçambicanos/as.

A importância de estudar as políticas públicas reside na necessidade de compreender os processos a partir dos quais elas são formuladas, os contextos de formulação ou adopção das mesmas e, sobretudo, compreender melhor os problemas ou obstáculos que se colocam para a implementação das mesmas ou porquê é que determinada política funciona ou tem limitações. Formular melhor os problemas para os quais as políticas devem responder ou questionar a relevância das políticas formuladas seria uma grande contribuição dos cientistas sociais aos fazedores de políticas públicas de educação no nosso país. Assim, concordo com a colocação do sociólogo moçambicano Elísio Macamo (2016, p.2) quando diz que, mais do que procurar na sociologia (ou nas ciências sociais) as soluções para os problemas do mundo, devemos é “formular

melhor os problemas para os quais o mundo tem muitas soluções”. Parece-nos que aqui reside uma das grandes contribuições que podemos oferecer enquanto “bons cidadãos”11.

O discurso hodierno sobre a educação em Moçambique, plasmado e consubstanciado nos planos de governo para este sector, centram-se na “melhoria da qualidade do ensino” e no “alargamento da rede escolar”, especialmente do ensino básico; e as reflexões sobre a melhoria da qualidade limitam-se ao aspecto pedagógico (NGOENHA, 2000, p. 199). A falta de financiamento, de materiais didácticos, de professores qualificados e a expansão da rede escolar são apontados como alguns dos principais obstáculos para o alcance da qualidade de ensino desejada. Como bem aponta Severino Ngoenha (2000), falta à estas reflexões alargar a abordagem para uma componente teórica que se distancie dos compromissos eleitoralistas, ideológicos limitantes e com o passado. Deste modo, o autor sugere, então, que a educação deve ser repensada na sua globalidade e tendo em conta as condições concretas, “com vista a identificar os momentos disfuncionais do sistema, em relação à realidade e ao tecido social”. Mikael Palme (1992, p. 10), de forma similar, apontava para o mesmo caminho ao constatar que em Moçambique existia pouca ou quase nenhuma pesquisa sobre o funcionamento da escola em diferentes contextos sociais, e argumenta que:

São necessários estudos de como a educação funciona em diferentes contextos sociais, que significado ela tem para diferentes grupos sociais e gêneros, de quais são as condições linguísticas e culturais para o ensino, de como os conteúdos dos currículos, livros escolares e métodos de ensino se relacionam com a forma de aprender e pensar dos alunos e ao conhecimento pré-existente e necessidades de conhecimento deles, de como os professores pensam e se comportam, dos factores que fazem as escolas

(7)

Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. soc.. Vol. 1, No 2, pp 22-36, 2019

28 funcionar bem ou mal, do uso que se faz da alfabetização fora da escola, etc. É igualmente importante que esta investigação entre na “caixa negra” dos processos de ensino e tente explorar a maneira em que (aspectos linguísticos, as

concepções e experiências das crianças em meios sociais diferentes12, as maneiras de pensar

e agir dos professores, os currículos e os materiais escolares, etc.) interagem para produzirem o que chamamos normalmente de “qualidade” do ensino, e não se limita a estudos do tipo “macro” (PALME, 1992, p.119).

Destaca-se na citação directa de Palme (1992) a necessidade de investigar as

concepções e experiências das crianças em diferentes meios sociais para mostrar que

esta preocupação não é nova. Porém, vejo a necessidade de reiterar a chamada de atenção para que cientistas sociais e fazedores de políticas se atenham à importância que tem escutar as vozes das

crianças, pois, permite formular políticas

que sejam pertinentes e incorporem os seus interesses e desejos, não só dos adultos que dominam e decidem sobre as políticas públicas em nosso país. São necessários espaços e mecanismos que ajudem a ampliar essas vozes silenciadas para que se façam ouvir, escutar e sejam consideradas efectivamente. Que tais espaços não sejam apenas instituições formais com discurso único, que falam em nome das crianças, mas plurais e que valorizem as diferentes concepções de infância, experiências e formas de ser criança em no país.

O QUE OS FAZEDORES DE POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO EM MOÇAMBIQUE PODEM APRENDER DA INVESTIGAÇÃO COM CRIANÇAS?

Para reflectir sobre esta questão, gostaria de começar por lembrar que, as crianças são frequentemente atribuídas o lugar ou a posição de alunas ou aprendizes (TASSINARI, 2011). Poucas vezes elas são vistas como aquelas que ensinam. Assim, a

questão colocada por Tassinari (2011) “é possível pensar no que as crianças podem nos ensinar?” Acreditamos que sim, é possível que elas nos ensinem ou que aprendamos das crianças. As contribuições da Antropologia da Criança13 são um

exemplo disso. Entretanto, a outra questão que surge, como consequência, é: como aprendermos das crianças? A resposta aparentemente simples é escutando as vozes das crianças no lugar de silenciá-las. Na mesma perspectiva, Zélia Demartini (2009) questiona: até que ponto estamos a escutar as vozes das crianças, muitas vezes caladas? A autora argumenta que aprender a escutar as crianças e jovens é um imperativo que se impõe, com o “agravamento dos problemas que os têm atingido, da violência que sobre eles recai e também na que, crescentemente, por eles têm sido gerada e como nós, educadores e cientistas sociais, não estamos conseguindo entender ou, principalmente, não estamos conseguindo dialogar com crianças e jovens” (DEMARTINI, 2009, p. 2).

Para Demartini (2009, p.2) “não são apenas crianças e jovens que estão em ‘situação de risco’, como se costuma afirmar; toda a sociedade encontra-se nessa situação enquanto não conseguirmos incorporá-los na elaboração de projetos, nos dias atuais”. Segundo a autora este alerta vem sendo colocado há mais de vinte anos por estudiosos e pesquisadores, porém, parece que infelizmente tendemos a caminhar em direção contrária. Sobre este último aspecto, Maria Isaura Queiroz ao abordar a educação como forma de colonialismo e, nesse contexto a supermacia dos adultos sobre as crianças e jovens de um lado, e velhos de outro, defende que:

[SIC] Quer se trate de educação informal, quer se trate de educação formal, é ela sempre formulada a partir da posição de dominação dos adultos sobre as outras três categorias. Existem ainda hoje sociedades em que os velhos constituem a camada dominante, a educação se faz a partir de valores que encaram, a camada

(8)

Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. soc.. Vol. 1, No 2, pp 22-36, 2019

29 subordinada sendo composta pelos adultos e pelos mais jovens. [...] Mas, no mundo atual, estes tipos de sociedades se tornaram raros e tendem a desaparecer; quase por toda a parte, e, principalmente, no mundo ocidental, são os adultos que ocupam a primeira plana e suas funções são nitidamente de camada dominante; são eles que ditam as normas educativas, construindo a educação formal e orientando a educação informal. Noutras palavras, são eles que definem os valores fundamentais da educação em seu sentido tanto amplo quanto restrito, são eles que estruturam a imagem do homem que jovens e crianças se esforçarão por realizar” (QUIROZ, [1976], 2014, p.27).

Um exemplo ilustrativo deste argumento no caso moçambicano é a controvérsia e (des)informação em torno da elimiação ou não das dispensas que levou crianças/adolescentes e jovens a juntarem-se e protagonizarem uma greve em frente ao Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano (em 2018) para que o assunto fosse resolvido como reportou o jornal O País:

Fonte:

https://24.sapo.pt/jornais/lusofonia/4172/2018-05-21

Alguns dos comentários feitos por adultos na televisão à volta da greve, argumentavam que estas crianças/adolescentes e jovens que reagiam às informações sobre esta mudança específica, não o fizeram por si sós, mas, por impulso de seus professores/

dos adultos, insinuando que elas não teriam capacidade de reivindicar qualquer explicação. Com tais argumentos, recusa-se a compreender as crianças/adolescentes e jovens enquanto actores sociais com competência política (SARMENTO, FERNANDES e TOMÁS, 2007, p. 186). Esse efeito deriva de um conjunto de factores que se articulam e se conjugam. Porém, estes autores apontam dois principais: (i) a noção moderna e clássica de cidadania, que recusa o estatuto político às crianças e ii) a separação das crianças do espaço público. A redefinição da cidadania da infância é uma crítica à visão clássica e adultocêntrica do moderno conceito de cidadania.

Maria Queiroz apresenta um argumento que ilustra bem os efeitos da noção moderna e clássica de cidadania quando afirma que:

[...] [SIC] como no caso das classes sociais e da “situação de

dependência”, a base da

dominação é predominantemente econômica e serve para justificar o aspecto que chamaríamos de “político”, referente ao exercício do poder; os adultos, na força da idade, são os produtores por excelência, diante deles devem se dobrar velhos, jovens e crianças. Um conjunto de estereótipos e de comportamentos condicionados apoia esta maneira de ver... Como na “situação colonial”, uma segregação separa a categoria dominante, os adultos, de todas as outras categorias; e os poucos elementos destas últimas que conseguiram se englobar na categoria dominante, ou nela conseguiram se manter, são as grandes excepções que confirmam a regra... Não percebem, porém, os

adultos que numa sociedade como a nossa de transformações rápidas, há desfasagem entre sua maneira de ver e agir e o estágio em que a realidade se encontra.14

Dentro do esquema existente atualmente, o sentimento de

impotência dos jovens15 vai se

avolumando com a barreira estabelecida pelos adultos à sua

(9)

Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. soc.. Vol. 1, No 2, pp 22-36, 2019

30 participação em programar [...]” (QUIROZ, [1976] 2014, p.28).

Outras questões associadas às já colocadas surgem: como escutar então as crianças? Como não silenciar as suas vozes? As respostas à essas perguntas estão na investigação com crianças, cujos pressupostos teóricos e metodológicos vimos anteriormente, mas que retomaremos aqui para a compreensão das implicações que esses pressupostos podem ter para as políticas públicas, com exemplos concretos, baseados em três pesquisas etnográficas realizadas em Moçambique, concretamente na província e cidade de Maputo.

A primeira pesquisa que iremos rapidamente resumir e tomar como exemplo das implicações da investigação com crianças para as políticas públicas (de educação) em Moçambique ou do que os fazedores dessas políticas podem aprender com esse tipo de investigação é da Elena Colonna16 que pesquisou crianças que

cuidam de outras crianças no bairro de Infulene.

Nesta pesquisa a autora percorre o quotidiano das crianças, mostrando como estas, deste tenra idade participam activamente na vida familiar e assumem responsabilidades que por vezes ultrapassam suas capacidades enquanto crianças (FRANCISCO, 2014, p. 7). Ao questionar as noções de criança e infância no ocidente, que tendem a ser universalizantes – crianças encaradas como naturalmente ingênuas, cujo lugar delas é na escola (CORSARO, 2011, p.65; TASSINARI, 2011) – Colonna (2012; 2014) explora no contexto moçambicano, lugares onde são as próprias crianças a desempenharem “papéis” sociais que no mundo ocidental são tidos como de adultos, como o de educar e cuidar. A autora constatou que, embora a prática de as crianças cuidarem umas das outras17 seja

muito difundida no continente africano e moçambicano em particular, há poucos estudos a respeito18. Esta é uma das razões

que fundamenta a sua pesquisa. Segundo

ela, um dos argumentos que explica esta prática é que se trata de “uma resposta cultural à necessidades das mães de desempenhar uma multiplicidade de tarefas para o sustento familiar” (COLONNA, 2014, p. 10). Contudo, a autora reconhece os limites de tal explicação baseada nas necessidades sociais, na medida em que coloca a cultura como resposta à algo. No seu estudo, Colonna fornece “uma análise aprofundada das práticas e das representações das crianças relativas ao tomar conta de outras crianças” (COLONNA, 2014, p.11). Baseado numa etnografia com crianças, durante dezoito meses e partindo dos pressupostos teóricos da Sociologia da Infância19, chegou à

algumas considerações a sublinhar:

a) a grande maioria das crianças envolvidas na pesquisa desempenha um papel central na vida familiar;

b) as necessidades das crianças não se dissociam das necessidades de outros membros da família; c) as noções de trabalho e

responsabilidade não podem ser discutidas de forma abstracta, mas analisadas em contextos específicos20;

d) os trabalhos realizados pelas crianças representam um caminho indispensável para tornar a agência das crianças visíveis nas suas vidas quotidianas “normais”21;

e) cuidar de outras crianças é um aspecto significativo da vida quotidiana das crianças envolvidas na investigação. Não reconhecer isso é silenciar as crianças e relegá-las à concepção cultural dominante que considera a infância um período de dependência e incompetência;

(10)

Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. soc.. Vol. 1, No 2, pp 22-36, 2019

31

f) Cuidar de outras crianças representa um fenómeno social complexo.

O que estas considerações têm que ver com as políticas públicas ou seus formuladores? Tem tudo haver. Primeiro, porque as políticas de educação em Moçambique são influenciadas por organismos internacionais (ocidentais) que tem um grande poder e influência sobre elas (NGOENHA, 2000). Isso significa que essas decisões arrastam consigo noções pré-concebidas do que seja a infância e criança, que não condiz com as realidades locais e, mais do que isso, entram em choque com estas últimas. Por exemplo, Colonna (2012; 2014) mostra que os trabalhos que estas crianças realizam, não podem ser vistos como um problema, desvio social do padrão ocidental, mas entendido no contexto social do qual as crianças fazem parte, portanto, como parte do processo educativo. Assim, a preocupação na formulação de políticas não deve ser impedir que as crianças continuem a realizar actividades em casa, mas pensar como é que a escola pode potencializar e incluir essas actividades como parte do currículo escolar, ou seja, como a escola pode apoiar as famílias no fortalecimento dessa educação para a responsabilidade e não criminalizar as famílias e as próprias crianças por isso.

A pesquisa realizada por Marina Pastore22

em 2014, por sua vez, analisou as dinâmicas de socialização das crianças e universos infantis em um bairro da cidade da Matola. Esta pesquisa baseou-se numa etnografia com crianças, e durou cinco meses. Através do acompanhamento do quotidiano de cinco crianças, por vinte dias com cada uma (observando a rotina, participando das actividades domésticas e escolares, Pastore (2015) observou igualmente que as crianças assumem responsabilidades ainda pequenas. Porém, isso não constitui um problema como pressupõe a noção de infância ocidental, que coloca essas crianças como estando “fora do lugar”. No contexto por ela analisado, as crianças

deixam de brincar enquanto participam das actividades domésticas, aliás a brincadeira, argumenta, a autora permeia todos os contextos sociais onde as crianças circulam. Assim, ela aponta para a necessidade de “desuniversalizar” a noção ocidental de infância, que tende a impor-se em contextos africanos e de compreender formas outras de ser criança e que nos desafiam a pensar igualmente outros modelos de educação. Uma e última pesquisa consistiu na realização de uma etnografia com crianças de uma escola no bairro do Infulene (AMÂNCIO, 2016). Nessa pesquisa foram exploradas as experiências de início escolar na perspectiva de crianças. Metodologicamente, a pesquisa baseou-se no acompanhamento do quotidiano das crianças em diferentes contextos: na escola, no caminho da casa à escola e vice-versa, assim como no contexto familiar, através da observação directa e participante, mas também, de conversas informais.

Fundamentada na Antropologia da Criança e Sociologia da Infância, a pesquisa demonstrou empiricamente que, as crianças são seres sociais autônomos e protagonistas das suas experiências sociais. As escolhas metodológicas permitiram observar as crianças a concretizarem e expressarem o seu processo de participação na vida social e na construção da própria infância. Os dados apontam para outra concepção de infância e modos de ser criança não universais e para a necessidade de valorizar o saber das crianças e suas brincadeiras, predominantemente negligenciados pela educação escolar no país.

Estas últimas pesquisas voltadas para as experiências de ser criança em diferentes contextos sociais, especialmente o de casa e da escola, apontam para o quanto brincar e aprender são aspectos da vida quotidiana das crianças pesquisadas e que não se separam. As crianças aprendem brincando e brincam enquanto aprendem. Este é um elemento que as políticas públicas de educação deviam dar importância, no sentido de reforçar a relevância que a

(11)

Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. soc.. Vol. 1, No 2, pp 22-36, 2019

32

brincadeira ocupa nos processos de aprendizagem das crianças, muitas vezes, vista pelos professores como um obstáculo e não uma potencial oportunidade para as crianças aprenderem.

Os fazedores de políticas públicas da educação, tanto ao nível macro como micro, podem encontrar no campo da investigação com crianças ferramentas que auxiliem no processo do seu afazer e que estimulem a participação política das crianças. Um exemplo desse exercício pode ser dado ao nível das escolas, aproveitando o conhecimento/saber que as crianças têm (ITURRA, 2002) e trazem do contexto social em que habitam (relacionado às tarefas domésticas apenas para citar alguns) para construir o currículo local ou mesmo, envolvendo-as como sujeitos protagonistas em processos de pesquisa e produção de materiais artístico-pedagógicos para o efeito, que pode também ser usado para decoração do ambiente escolar e exposição. Como argumentou Ricardo Vieira (2013) “[...] a criança não cai de paraquedas na escola. A criança que chega à escola já tem todo um percurso de construção cultural que lhe dá um entendimento para a vida e uma epistemologia com a qual se senta como aluno nas cadeiras da escola” (VIEIRA, 2013, p.111). É nessa direção que Manuel Sarmento, Natália Fernandes e Catarina Tomás argumentam ao afirmar que:

A participação infantil no contexto escolar não é uma mera questão de estratégia pedagógica ou “modismo” (...) é um desiderato político e social correspondente a uma renovada concepção da infância como geração constituída por sujeitos activos com direitos próprios (não mais como destinatários passivos da acção educativa adulta) e um eixo de renovação da escola pública, das suas finalidades e das suas características estruturais” (SARMENTO, FERNANDES e TOMÁS, 2007, p. 197).

Assim, as crianças podem participar em vários âmbitos da gestão e organização escolar (assembleias de turma, comissões,

etc.), decidindo sobre aspectos do quotidiano relacionados ao conteúdo das actividades educativas, aos tempos, meios e metodologias de ensino, mas também, à limpeza e estética do ambiente escolar. Dessa forma, a valorização e promoção de pedagogias que estimulem a participação activa das crianças, a afirmação do poder de decisão delas e expressão da sua autonomia podem ser melhor potencializadas com os instrumentos e aprendizados que o campo da investigação com crianças proporciona.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho procurou-se reflectir sobre as implicações da pesquisa com crianças para as políticas públicas de educação em Moçambique, ou sobre o que os fazedores de políticas públicas no nosso país podem aprender a partir da investigação com crianças. Com as reflexões procurou-se chamar a atenção tanto dos formuladores de políticas, assim como dos pesquisadores sociais sobre a necessidade de se estar atento às crianças e infâncias e à escuta das vozes das crianças e jovens.

Há, portanto, várias lições que os formuladores de políticas de educação em Moçambique podem tirar da investigação com crianças, com destaque para: (i) as crianças (e jovens) tem uma palavra a dizer sobre as decisões tomadas em relação às políticas da educação no país e estas devem ser ouvidas ou melhor escutadas. É importante realçar, que escutar as crianças não significa apenas deixá-las falar, mas sim, considerar efectivamente as suas contribuições. Entretanto, para que elas sejam ouvidas e escutadas é necessário que se estabeleça um diálogo com elas, usando uma linguagem e metodologia apropriada e deixando-as falar, considerando suas proposições, em lugar de falar por elas. Permitir que as crianças falem por elas próprias e escutá-las é considerá-las actores sociais activos e, portanto, cidadãs. Talvez, a razão do fracasso escolar de que tanto falamos, resida na falta de consideração do que as criança tem a dizer sobre o que elas querem da escola ou sobre o que a escola

(12)

Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. soc.. Vol. 1, No 2, pp 22-36, 2019

33

significa para elas (PALME, 1992); (ii) a construção dos direitos participativos das crianças nos seus contextos de acção constitui um ponto fundamental da afirmação e reconhecimento das suas competências. Assim, ouvir a voz das

crianças dentro das instituições não é

apenas um princípio metodológico da acção adulta, mas uma condição política e um direito estabelecido pela Convenção dos Direitos da Criança, da qual Moçambique é signatário, e possui uma legislação específica a nível doméstico – Lei da Protecção à Criança. Portanto, escutar as crianças não é uma questão opcional, mas obrigatória do ponto de vista legal. Considerar essa condição política e o direito legalmente estabelecido, constitui ponto de partida para um diálogo inter-geracional de partilha de poderes, cuja expressão precisa encontrar fórmulas de sua materialização, para além dos mecanismos formais de decisão, instituídos nas organizações democráticas modernas. Isso vai permitir uma participação das crianças adequada aos seus diferentes grupos etários. “Em suma, a

cidadania organizacional configura-se

como um elemento determinante para a visibilização da participação das crianças como núcleo dos seus direitos sociais” (SARMENTO, SOARES e TOMÁS, 2004, p. 3). Portanto, é urgente o reconhecimento do que Sarmento, Fernandes e Tomás (2007) denominam de cidadania das crianças em Moçambique, estas vistas não só como destinatárias de políticas públicas, mas, sobretudo, como sujeitos políticos peculiares. É preciso construir no interior das escolas e outras instituições sociais e educativas de âmbito formal ou não modos alternativos de acção educativa que valorizem o saber e poder das crianças.

REFERÊNCIAS

AMÂNCIO, H. Da casa à escola e vice-versa: experiências de início escolar na perspectiva de crianças em Maputo. 2016.

Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Curso de Pós-Graduação em

Antropologia Social, UFSC, 2016.

CHRISTENSEN, P.; & JAMES, A. Pesquisando as crianças e a infância: culturas da comunicação. In: In: CHRISTENSEN, P.; ALLISON, J. Investigação com crianças: perspetivas e práticas.

Porto: Ediliber, 2005. Pp.XVII – XX COHN, C. Antropologia da Criança. Rio

de Janeiro: Zahar, 2013.

COLONNA, E. Eu é que cuida da minha irmã. Vida quotidiana das crianças na periferia de Maputo. Tese ( Doutoramento em Estudos da Criança -ênfase em Sociologia da Infância) - Curso de

Pós-Graduação em Estudos da Criança -ênfase em Sociologia da Infância, Universidade do Minho, 2012.

COLONNA, E. Crianças que cuidam de crianças: uma perspectiva de gênero.

Maputo: CIEDIMA, 2014.

CORSARO, W. A. Entrado no campo, aceitação e natureza da participação nos estudos etnográficos com crianças pequenas. Educação & Sociedade, v. 26,

n.91, p 443-464, 2005.

CORSARO, W. Sociologia da Infância.

Porto Alegre: Artmed, 2011

DEMARTINI. Z. Infância, pesquisa e relatos orais. In: FARIA, A; DEMARTINI. Z; PRADO, P. (Org.). Por uma cultura da infância: metodologias de pesquisa com crianças. 3.ed. Campinas-SP: Autores

Associados, 2009.

DORNELLES, L. V.; FERNANDES, N. Estudos da criança e pesquisa com crianças: nuances luso-brasileiras acerca dos desafios éticos e metodológicos. Currículo sem Fronteiras, v. 15, n. 1, p. 65-78, 2015.

FERNANDES, N. Nota introdutória. In: CHRISTENSEN, Pia & JAMES, Allison. (Org.). Investigação com crianças: perspectivas e práticas. Porto: Ediliber,

p.VII-IX, 2005

FRANCISCO. A. Prefácio. In: COLONNA, E. Crianças que cuidam de crianças: uma

perspectiva de gênero. Maputo: CIEDIMA, 2014.

(13)

Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. soc.. Vol. 1, No 2, pp 22-36, 2019

34

HARDMAN, C. Can there be an Anthropology of Children? Childhood, v.8,

p.501-516, 2001.

HIRSCHEFELD, L. Why don't anthropologists like children? American Anthropologist, v.104 , n.2, p.611-627,

2002.

ITURRA, R. Epistemologia da infância: ensaio de Antropologia da Educação.

Eduação, Sociedade e Cultura, n.17,

p.135-153, 2002

JAMES, A.; & JAMES, A. Key concepts in childhood studies. London: Sage

Publications Ltd, 2008

KEHILY, M. J. An introduction to childhood studies. Maidenhead. Londo:

Open University Press, 2004

LANGA. P. Prefácio. In: Macamo, E.

Sociologia Prática: como alguns

sociólogos pensam. Maputo: UEM, 2016. MACAMO, E. Sociologia Prática: como

alguns sociólogos pensam. Maputo: UEM, 2016.

MARCHI, R. C. As teorias da socialização e o novo paradigma para os estudos sociais da infância. In: Educação e Realidade,

v.34, n.1, p. 227-246, 2009.

NGOENHA, S. Estatuto e Axioligia da educação: o paradigmático questionamento

da missão suíça. Maputo: UEM, 2000. OSÓRIO, C.; CRUZ & SILVA, T.

Buscando sentidos: género e sexualidade

entre jovens estudantes do ensino secundário, Moçambique. Maputo: WLSA, 2008.

PALME, M. O significado da escola: repetência e desistência na escola primária moçambicana. Maputo: INDE,

1992

PASTORE. M. Sim! Sou criança eu! Dinâmicas de socialização e universos infantis em uma comunidade moçambicana - Dissertação ( Mestrado em Terapia Ocupacional) – Curso de Pós-Graduação

em Terapia Ocupacional, Universidade

Federal de São Carlos. São Carlos: UFSCar, 2015.

PIRES, F. Pesquisando crianças e infâncias: abordagens teóricas para o estudo das (e com as) crianças. Cadernos de campo, n.

17, p. 1-348, 2008.

PROUT, A. Foreword. In: CHRISTENSEN. P. & JAMES, A.

Research with children: perspectives and practices. London: Falmer press, 1999.

PUNCH, S. Research with Children: The Same or Different from Research with Adults? Childhood, v.9, n.3, p. 321-341,

2002.

PUNCH, S. Childhoods in the Majority World: Miniature or Tribal Children?

Sociology, v.37, n.2, p. 277–295, 2003.

QUEIROZ, M. I.. Educação como forma de colonialismo. In: Cadernos Ceru v. 25, n.

1, 2014

SARMENTO, M. Crianças, educação e cidadania ativa. Perspectiva, v. 23, n. 01,

p. 17-40, jan./jul., 2005

SARMENTO, M. Estudos da criança como campo interdisciplinar de investigação e conhecimento. Interacções n. 10, p.1-5,

2008.

SARMENTO, M..; FERNANDES, N.; TOMAS, C. Poplíticas públicas e participação infantil. Educação, Sociedade e Cultura, n.25, p. 183-206, 2007.

SARMENTO, M. J. & PINTO, M. As crianças e a infância: definindo conceitos, delimitando o campo. SARMENTO, M. J.; PINTO, M. (Org.). As crianças, contextos e identidades. Braga: Ed. Bezerra, 1997.

SARMENTO, M.; SOARES, N.; TOMAS, C. Participação Social e cidadania activa das crianças. In: IV Encontro

Internacional do Fórum Paulo Freire de 19 e 22 de setembro de 2004.

SZUTUTMAN, R.. Por uma antropologia da criança (Sobre o livro Antropologia da Criança, de Clarice Cohn). In: Trópico,

(14)

Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. soc.. Vol. 1, No 2, pp 22-36, 2019

35

TASSINARI, A. M. I. O que as crianças têm a ensinar a seus professores? Revista Ilha, Florianópolis: UFSC, 2011.

TASSINARI, A. M. I. Múltiplas infâncias: o que a criança indígena pode ensinar para quem já foi à escola ou a sociedade contra a escola. In: 33º Encontro Anual da Anpocs,

Caxambu – MG, 2009

TASSINARI, A. M. I Produzindo corpos ativos: a aprendizagem de crianças indígenas e agricultoras através da participação nas atividades produtivas familiares. Horiz. antropol. 2015, v.21,

n.44, pp.141-172.

TOMÁS, C. Participação não tem idade: participação das crianças e cidadania da infância. Contexto e Educação, n.78, 2007

WELLS, K. Childhood in a Global Perspective. 2ª ed. Cambridge: Polity

Press. 2015.

DI GIOVANI, G. As estruturas elementares das políticas públicas. Caderno de Pesquisa, n. 82. Campinas: UNICAMP,

2009

DI GIOVANI, G.; & NOGUEIRA, M. A.

Dicionário de políticas públicas. 3ª ed.

São Paulo: UNESP, 2018

SHORE, C. La antropología y el estudio de la política pública: reflexiones sobre la formulación de las políticas. Antípoda,

Revista de Antropología y Arqueología, n.10, pp. 21-49, 2010

VIEIRA, R. Etnobiografias e descoberta de si: uma proposta da Antropologia da Educação para a formação de professores para a diversidade cultural. Pro-Posições,

v. 24, n. 2, p. 109-123, 2013

WYSE, D. (ed.). Childhood studies: an

introduction. Malden: Blackwell Publ, 2004

1 Este tipo de pesquisa regista significativos

investimentos nos últimos anos e decorre de um movimento de reconceptualização da infância a partir da década de 1980 do século XX, que defendeu entre outros aspectos, “a necessidade de considerar as crianças como actores sociais e a infância como grupo social com direitos, sublinhando também a indispensabilidade de considerar novas formas de investigação com crianças” (FERNANDES, 2005, p.VIII).

2 Dornelles & Fernandes (2015, p.67) denominam

este campo de estudos de “ciência pluriparadigmática”.

3 Não é meu objectivo contar a história do

surgimento deste campo, por isso não irei deter-me nessas diferentes versões, para quem interessar pode ver Flávia Pires (2008) e as referências por ela utilizadas para essa discussão.

4 Tradicionalmente às crianças foi negado o direito

de participação e suas vozes silenciadas, permanecendo inéditas (CHRISTENSEN & JAMES, 2005, p.2).

5 Poderoso e controlador das vidas das crianças, mas

atípico, que se propõe a pesquisar com crianças e não sobre elas, aberto para escutá-las e aprender com as suas formas de ver e experiênciar o mundo. “Não agir como um adulto típico” implica também observar como os adultos interagem com as crianças (CORSARO, 200, p.447).

6 Embora algumas técnicas sejam consideradas mais

adequadas para realizar pesquisa com crianças, não

existe nenhuma que seja peculiar à elas e que seja imperativo usar apenas com elas (CHRISTENSEN & JAMES, 2005, p.2).

7 A reflexividade é uma necessidade metodológica

na investigação de qualquer tipo (CHRISTENSEN E JAMES, 2005: XVI, PUNCH, 2002).

8 Estas três últimas disciplinas lidam com essas

questões há muito tempo.

9 Lembrando a diferença sutil entre “ouvir” e

“escutar” feita por Roberts (2005), escutar diferentemente de ouvir, nos leva a “reconhecer completamente o que elas nos dizem”. Escutar constitui ainda um desafio aos investigadores que devem aprender em suas pesquisas melhores formas de envolver as crianças em todas as etapas da pesquisa, desde a indentificação de questões de investigação significativas ou seja que tomem em conta os sujeitos e os contextos de investigação, a colaboração com outros pesquisadores e a dessiminação de “boas práticas” ou pesquisas éticamente responsáveis (ROBERTS, 2005, p.243).

10 Refiro-me às políticas públicas, neste caso

particular da educação.

11 No sentido de suspeitar sempre das interpretações

primeiras que se lhe oferecem das coisas, portanto, ser crítico e autoreflexivo (LANGA, 2016).

12 Grifo meu.

13 As contribuições dos estudos antropológicos

voltados para a crianças e investigação com elas, tem contribuído com aquilo que aprendem delas em

(15)

Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. soc.. Vol. 1, No 2, pp 22-36, 2019

36

diferentes contextos socioculturais (TASSINARI, 2011).

14 Destaque meu. 15 Idem.

16 Que resultou na sua tese de doutoramento em

Sociologia da Infância defendida em 2012 na Universidade do Minho, Portugal. Esta pesquisa desdobrou-se em um livro (publicado em Maputo), artigos publicados em revistas internacionais (portuguesas e brasileiras) e capítulo de livros. Elena Colonna é uma pesquisadora italiana, residente em Moçambique.

17 Neste contexto cabe as crianças mais novas

cuidarem das mais velhas. Ser mais velha ou mais nova não está apenas relacionado a idade cronológica, mas, a responsabilidades sociais que estas crianças assumem, como bem mostra a etnografia realizada pela autora (COLONNA, 2012; 2014).

18 Na sua maioria os estudos sobre os cuidados

centram-se na questão da gestação e maternidade (de

modo reduzido, também a paternidade), marginalizando todas as outras formas de cuidado diferentes dos pais, por exemplo: os cuidados realizados por outros familiares adultos – irmãs, irmãos, tias e tios – e não familiares e uma variedade de crianças – especialmente irmãos (COLONNA, 2014, p.10). E do ponto de vista das políticas o trabalho das crianças tem sido visto como um problema a ser eliminado.

19 Que considera as crianças como actores sociais e

a infância como construção social e cultural.

20 A partir das referências culturais e sociais dentro

das quais as crianças se encontram.

21 “Normais”, pois no norte do mundo há uma

tendência a considerar esses trabalhos realizados pelas crianças, não como parte de um processo educativo, mas, como um problema, um desvio da norma social, portanto, o trabalho delas como anormal.

22 Pesquisadora brasileira que realizou esta pesquisa

no âmbito do seu mestrado em Terapia Ocupacional, defendida em 2015.

Referências

Documentos relacionados

Quando mudei para o Brasil, uma das grandes diferenças que percebi é que a taxa equivalente ao overdraft, o cheque especial, era dez vezes mais no Brasil do que na

injusticias. ¡Loco estaría si tal hiciera! Ahí tienes, Sócrates, la naturaleza de la justicia y las circunstancias con motivo de las cuales cuenta la gente que apareció en el

Assim sendo, o espaço da estrada é determinante como facilitador de um exercício de uma sexualidade mais plena, aberta e satisfatória, pelo menos para Thelma, e ao

Grande parte das professoras revela que apenas vê o PPP da unidade como um instrumento burocrático a ser entregue para a Secretaria de Educação no início do ano e não o utiliza

Estudo de caso (ações do coletivo Lupa) Questionários Quanto aos procedimentos Pesquisa Básica Quanto a Natureza Registros fotográficos Quanto ao método

b) Execução dos serviços em período a ser combinado com equipe técnica. c) Orientação para alocação do equipamento no local de instalação. d) Serviço de ligação das

FIGURA 1: Valores médios da porcentagem de germinação de sementes de Hymenaea stigonocarpa submetidas a diferentes tratamentos pré-germinativos.. contrapartida, Souza et

However, while in the commercial entrepreneurship these pull motivations are more closely associated with extrinsic and hedonic motiva- tion ( Santos, 2012 ), i.e., there is a