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“Dizem que sou louco...”: a experiência da dança na ressignificação da ideia de loucura

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Academic year: 2021

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CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE ARTES

CURSO DE LICENCIATURA EM DANÇA

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO – TCC II

NALVA MARIA VIEIRA GOMES RAMOS

“DIZEM QUE SOU LOUCO...”

A EXPERIÊNCIA DA DANÇA NA RESSIGNIFICAÇÃO DA IDEIA DE LOUCURA

Natal – RN 2019

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NALVA MARIA VIEIRA GOMES RAMOS

“DIZEM QUE SOU LOUCO...”

A EXPERIÊNCIA DA DANÇA NA RESSIGNIFICAÇÃO DA IDEIA DE LOUCURA

Trabalho de Conclusão de Curso (TCC II) apresentado ao Colegiado do Curso de Licenciatura em Dança, do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito obrigatório à obtenção do grau de Licenciado em Dança.

Orientação: Prof. Me. Makarios MaiaBarbosa

Natal – RN 2019

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DEDICATÓRIA & AGRADECIMENTOS

Dedico... aos meus entes queridos: minha mãe, Maria Nízia Vieira Gomes; e a minha sogra, Íris Medeiros Porto Vieira; meu pai, Augusto Marcelino Gomes; meus filhos, Marcelo Davi Porto Vieira e Felipe Augusto Meeiros Porto Vieira; ao meu esposo, Nodgi Ramos; aos meus irmãos; e, muito especialmente, às minhas netas, Íris, Nízia, Artêmis e Guaia. Dedico, também, as pessoas que sofrem com suas mentes luminosas nesse mundo cinzento, muitas vezes, vítimas da brutalidade manicomial!

Agradeço... à Universidade Federal do Rio Grande do Norte, ao Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, ao Departamento de Artes; à Licenciatura em Dança; ao meu orientador Professor Me. Makarios Maia Barbosa, às Professoras Doutoras Larissa Kelly Marques Tibúrcio e Karenine de Oliveira Porpino (Examinadoras deste trabalho de conclusão de curso); aos meus entes queridos, já citados; à Plural, pelo carinho e força que me dedicou, durante estes anos, para que eu conseguisse chegar ao fim desse ciclo, me instruindo, me inspirando, me ensinando a sentir e saber o mundo fora das caixas.

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RAMOS, Nalva Maria Vieira Gomes. “Dizem que sou louco...”: a experiência da dança na ressignificação da ideia de loucura. Trabalho de Conclusão de Curso (TCC II) apresentado ao Colegiado do Curso de Licenciatura em Dança, do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito obrigatório à obtenção do grau de Licenciado em Dança. Orientação: Prof. Me. Makarios Maia Barbosa. Natal (RN), 2019.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________ Prof. Me. Makarios Maia Barbosa

(DEART/UFRN) – Orientador

_________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Larissa Kelly de Oliveira Marques

(DEART/UFRN)

_________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Karenine de Oliveira Porpino

(DEART/UFRN)

Data e Local da Defesa

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RESUMO

O presente artigo é o resultado do Trabalho de Conclusão de Curso II da Licenciatura em Dança da UFRN e busca fazer uma reflexão singular analítica acerca de experiência de prática e criação da dança com pacientes de transtornos psíquicos, portadores de deficiências cognitivas, usuários de substâncias químicas (pessoas que vivenciam transtornos psicoemocionais pelo uso de drogas lícitas e/ou ilícitas), alcoólicos, em atividades vivenciadas no grupo Plural, no Núcleo de Apoio Psicossocial da UFRN, no SEPA – Serviço Especializado em Psicologia Aplicada, sob a perspectiva metodológica de um relato de experiência. A observação participante de experiências de ensino de dança, com sujeitos socialmente tratados como “loucos”, se deu a partir da compreensão da loucura em uma chave de entendimento humanista, comparável à expressão artística, à poética pessoal. A experiência relatada alude às formas de ensino e vivência da dança como aporte psicológico da expressão desses usuários, na criação de narrativas de ser, em condições complexas de tratamento e de ressocialização.

Palavras-chave: Dança. Imaginário. Expressão. Loucura. Criatividade.

ABSTRATC

This article is the result of the Second Study of Completion of Course of the Degree in Dance of UFRN and seeks to make a singular analytical reflection on the experience of practice and creation of dance with patients of psychic disorders, with cognitive deficiencies, users of chemical substances (people who experience psychoemotional disorders by the use of licit and/or illicit drugs), alcoholicdrugs, in activities experienced in the Plural Group, at the Psychosocial Support Center of UFRN, in SEPA - Specialized Service in Applied Psychology, from the methodological perspective of an experience report. The participant observation of dance teaching experiences, with socially treated subjects as "crazy", took place from the understanding of madness in a key of humanist understanding, comparable to artistic expression, to personal poetics. The reported experience alludes to the forms of teaching and experience of dance as a psychological contribution of the expression of these users, in the creation of narratives of being, in complex conditions of treatment and resocialization.

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Estou agora aqui neste lugar da palavra. Encontro com o que meu corpo deflagra e digere desse momento no mundo. Assim, encontro também com outros contemporâneos dessa existência. Alguns encontros fugazes, outros intensos e, na maioria das vezes, imperceptíveis. Mas que acredito que estes encontros quase imperceptíveis é que transformam e somam o meu pensar contemporâneo. Minha janela de compreensão tem sido o movimento, estou exercendo e fisicalizando minhas ações através desde aprendizado, que é o dançar. Talvez a maturidade começa agora a me colocar no tempo e no espaço, de uma maneira mais inteira. Isto quer dizer, como você se observa e escolha os seus caminhos. Sei também que todo este percurso se deve ao outro, causa e efeito, espaço livre para as opções dos afins. Aquilo que lhe atrai também é atraído por você, frequências similares. O que estou falando através das palavras vem através das impressões, alimento fundamental de nossas vidas. É verdade! O corpo grava, grafa e escreve a sua real história...

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 08

Parte I – MINHA JANELA DE COMPREENSÃO TEM SIDO O MOVIMENTO ... 13

Parte II – O PERCURSO DO “EU” SE DEVE AO “OUTRO” ... 18

2.1 A singularidade da Dança na Plural ... 20

2.2 “Onde está o Eu Gênio?”: Origens ... 21

2.3 “Onde está o Eu Gênio?”: Reflexões ... 25

À GUISA DE CONCLUSÃO ... 29

REFERÊNCIAS ... 31

APÊNDICE ... 33

Apêndice 1 – ROTEIRO DO ESPETÁCULO ... 33

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INTRODUÇÃO

Dizem que sou louco por pensar assim Se sou muito louco por eu ser feliz Mais louco é quem me diz e não é feliz Não é feliz! [“Balada do Louco” (1968) – Arnaldo Batista e Rita Lee]

Quando dizem que “somos loucos” ou “maluco beleza”, como nas canções famosas, por que somos diferentes – divertidos ou exagerados – até nos conformamos, isso até nos agrada. Mas quando a sociedade afirma que somos “loucos”, de maneira institucional (na família, na área médica, nos tratos da sociabilidade) há sempre um grande risco para nós. A imagem da loucura, fora dos contextos de alegria e descontração, é sempre aludida de forma pejorativa, e quebra – em nossa própria autoimagem e no convívio sociocultural – um ideal de perfeição que nos dá forma e sentido.

O risco de sermos instituídos como “loucos” é objeto de diversos tratados e estudos nas diversas áreas do pensamento humanista. A principal referência filosófica desses estudos encontra-se nos trabalho do pensador contemporâneo francês Michel Foucault (1987), que transita com investigações e reflexões sobre a história da saúde e da sanidade humanas, com críticas: a) à intervenção do Estado nos casos de divergência social pela loucura (ou diferença política), b) às práticas de controle social dos sujeitos divergentes, c) às metodologias de tratamento tradicionais da loucura, d) à constituição de legislaturas (conjunto de leis e práticas legais) de controle e anulação dos sujeitos.

Em nossa sociedade, de matriz europeia – que busca uma higienização social pela demanda do ideal de sanidade –, segundo Foucault (1984), o livre pensar nos faz mais ou menos loucos, de acordo com nossas interferências na textura social.

Na canção “Balada do Louco”, Os Mutantes (Arnaldo Batista e Rita Lee) nos apresentam, de modo romanceado, carismático e persistente, que “dizem que sou louco por eu ser feliz”. Ser feliz, nas heranças de uma sociedade judaico-cristã, pode ser uma heresia, um descalabro, uma subversão da ordem social. A condição da loucura implica, desde sempre,

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repressão contra algumas práticas humanas de expressão da felicidade e da diversidade comportamental.

No controverso universo da convivência sociocultural, o que pensamos dos “vagabundos”, sujeitos que transitam na ordem social se contrapondo, ideológica e politicamente, ao ideal produtivo, desviando do padrão da força de trabalho convencional, vivendo em situações de rua, nas vias públicas, sobrevivendo de doações ou a espera de uma oportunidade de emprego e aportes da demanda social de governos? Seriam esses sujeitos seres desprezíveis? Porque lhes é negada a condição do “simples viver” e do direito de ir e vir e permanecer em espaços urbanos, rurais e litorais? É proibido viver sem trabalho convencional integrado, sem se embrenhar nos modelos da produção de riquezas e do consumo capitalista? Nas ruas há diversas pessoas com histórias diferentes, vindo de diversas classes sociais, culturais. São artistas, escritores, pintores, poetas...

Na noite, há poesia / A poesia fala mais alto / A poesia fala mais alto no asfalto / Há resplandecências nas ruas nuas, cruas, nas luas / Há sabores nos odores, dessabores nos amores / Há afetos sem tetos / E há oblíquas mentiras nos casos retos / Há os afetados dos desafetos / E há brio no desvio. (Oblíquos – Nalva Ramos; Makarios Maia).

Neste mesmo contexto, o que pensamos dos sujeitos criativos, dos excêntricos, dos que se comportam fora dos “padrões” de comportamento? Será que todos precisam viver a normatividade social como postura? O certo em se viver em sociedade é manter-se neutro, invisível, “igual”? O erro das pessoas é sair da linha?

Em nossa sociedade, os padrões se afirmam com muita potência, sobretudo, nas demandas públicas de convivência. A educação, sob certa medida, tende à conformação dos sujeitos em posturas “corretas” ou “erradas”. A mídia (e os meios culturais) não cansam de comandar padrões de sucesso e de fracasso. Há um grande estímulo à regra, ao regramento, ao “modo correto” de ser e de se comportar. Na medida do possível, a psicologia e os estudos sociais têm elaborado estratégias “libertadoras” para as pessoas em convivência social. Mas já é o bastante?

Os estudos mais recentes da psicologia social tentam responder questões como: Quanto do que sofremos em doenças corporais e somáticas é por conta do regramento e da padronização de comportamento? Quantos de nós sofrem de transtornos de ansiedade e de pânico por falta

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de uma livre expressão de suas pessoalidades, de sua subjetividade? Como viver sem sucumbir ao caos social que define no consumo e no padrão de sucesso a vida e a existência?

Dentre os inúmeros caminhos que podemos percorrer para compreender a “loucura” como expressão, nos atenhamos aos usuários de substâncias químicas (pessoas que vivenciam transtornos psicoemocionais pelo uso de drogas lícitas e/ou ilícitas), que são igualmente tratados como “loucos” pela sociedade que defende a exclusão social, por via da internação manicomial.

Ainda neste semestre, o Governo Federal do Brasil sancionou um projeto de lei que autoriza a “internação involuntária”, em casos de usuários de drogas, ferindo todos os avanços das pesquisas na área e a legislação internacional e brasileira acerca do tema. (Cf. https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/718210458/lei-13840-19).

[...] A Lei nº 13.840, publicada no Diário Oficial da União desta quinta-feira, 6, dispõe sobre o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas e as condições de atenção aos usuários ou dependentes e para tratar do financiamento das políticas sobre drogas. [...] De acordo com a lei, serão consideradas dois tipos de internação: voluntária e involuntária. Na internação involuntária, o texto diz que ela deve ser realizada após a formalização da decisão por “médico responsável e indicada depois da avaliação sobre o tipo de droga utilizada, o padrão de uso e na hipótese comprovada da impossibilidade de utilização de outras alternativas terapêuticas previstas na rede de atenção à saúde”. 1

O cenário que se mostra, na atualidade, para pessoas dependentes químicos, sobretudo, a partir das políticas públicas propostas pelo Governo Federal é extremamente delicado e perigoso. A avaliação dos especialistas, em sua grande maioria, é de que poderemos ter uma endemia de casos que, em sua maioria, poderiam ser tratados de outra maneira, não pela criminalização ou internação involuntária, conforme prevê o Parágrafo 5º da referida Lei.

As pesquisadoras Maria Lúcia Teixeira Garcia, Fabíola Xavier Leal e Cassiane Cominoti Abreu apontam que, desde os governos de Fernando Henrique Cardoso (1994/2001) e Luis Inácio Lula da Silva (2002/2010), já havia conflitos nas políticas de tratamento.

A política de enfrentamento às drogas no Brasil enseja, em suas proposições, uma luta entre as lógicas de segurança pública e de saúde pública expressas no embate entre as duas políticas instituídas pelo governo brasileiro, a saber: a Política Nacional Antidrogas regulamentada em 2003 pela Secretaria Nacional Antidrogas (estrutura criada pela medida provisória nº 1689 (1998) no governo de Fernando Henrique Cardoso e modificada para "Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas" no

1 Fonte: Catraca Livre

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governo Lula) e a Política de Atenção Integral ao Usuário de Álcool e Drogas do Ministério da Saúde instituída em 2004 (GARCIA; LEAL; ABREU, 2008, p. 96).

Os Governos do Presidente Lula e da Presidenta Dilma Rousseff teriam, segundo a perspectiva das referidas pesquisadoras, ampliado a dimensão humanitária dos tratamentos.

O governo do país a partir de 2011 tem como plano governamental o ‘enfrentamento ao crack', sob a campanha "Crack, é possível vencer", com significativo investimento financeiro para contemplar a demanda da sociedade por alguma medida para dar conta de tal problemática. Antes disso, em 2010, foi publicado o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack que conveniou formalmente as comunidades terapêuticas com o SUS (Decreto 7179 – intitulado de "Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas"). Este plano teve como principal e primeira ação imediata a ampliação de leitos para tratamento de usuários de crack. Após esta publicação, foi lançado o Edital 001/2010 do Comitê Gestor do Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras drogas, SENAD e Ministério da Saúde para a contratação de leitos em comunidades terapêuticas. (Idem).

No entanto, na atualidade, seguindo o raciocínio das pesquisadoras citadas, o atual Governo Federal tenta promover acirrada cisão entre a saúde pública e a vida de quem faz uso de substâncias químicas, tratando como problema policial sua condição de saúde. Os usuários estão, cada dia mais, à mercê dos riscos jurídicos, de violentamente serem internados de forma compulsória e de perdem a cidadania pela força da criminalização.

A política manicomial estruturada em uma abordagem em que o “louco” é visto como escoria da sociedade, indivíduos a quem deve ser negada a cidadania e que devem ser excluídos da civilização não permeia a realidade com objetificações que tenham por finalidade desconstruir preconceitos, pelo contrário, fortalece os estigmas que os segregam da sociedade, ao invés de determinar como a estrutura social e a cultura geram pressões desfavoráveis ao comportamento socialmente “desviante”.

Este viés da abordagem dos usuários dependentes em aproximação com a antiga e persistente imagem da “loucura”, em condição de igualdade com o crime ou no comportamento “não aceitável” socialmente fortalece a política manicomial. Prender é a solução? Para quem? O que pensam e dizem os usuários importa? O que eles dizem? Como eles se expressam?

É neste campo de reflexão que nos colocamos como professora da dança, das Artes, propondo um mecanismo de expressão para esses usuários, para que possam se perceber, enquanto pessoas (sujeitos de suas próprias narrativas). Acreditamos, por crença e observação

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sistemática, que a dança pode favorecer aos usuários meios de expressão e de significação que rompem com sua imagem de loucos.

Esse TCC é, portanto, a busca por analisar a prática de oficinas e contatos com usuários, participantes do Projeto Plural, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). A “Plural” é um projeto de psicologia de atendimento à comunidade, desenvolvida no SEPA – Serviço Especializado em Psicologia Aplicada, localizado no Campus da UFRN, que foi fundada em 17 de maio de 2009, na UFRN, com o intuito de atuar como uma Organização Não-Governamental. Mas, devido à falta de apoio e outros fatores, passou a atuar apenas como grupo de apoio psicossocial. Posteriormente, agregou outros valores e profissionais de outras áreas, inclusive das Artes, como a Dança, o Teatro e as Artes Visuais para atender à comunidade de usuários (funcionárias, alunas, professoras e usuários, de dentro e fora da UFRN.

Seguimos o fio da pesquisa da Professora Dr.ª Nara Salles (2019), que muitos nos inspirou, buscamos nos inspirar em pesquisas que perseguem objetivos similares. Encontramos a dissertação de mestrado que Josadaque Pires (2016), que realiza importante dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN (PPGArC), orientado pela Professora Dr.ª Nara Salles, que enfoca

“[...] uma proposta de investigação com metodologia de pesquisa ação; sobre o denominado ser louco, sua corporeidade e as relações intersubjetivas que esses corpos travam e que se revelam na cena cotidiana de uma instituição psiquiátrica, quando em contato direto com processos artísticos de instaurações de cenas; lembrando sempre que, esses corpos sob o signo da loucura lidam com o estigma”. (PIRES, 2016 – Resumo).

Na mesma perspectiva, encontramos a pesquisa de Ewerton Medeiros (2019), também orientada pela Professora Dr.ª Nara Salles, que faz uma

[...] abordagem qualitativa que envolve os paradoxos da criação artística na contemporaneidade com seus acontecimentos simultâneos em um percurso prático e teórico, permeando intensamente as ambiguidades e imbricações arte/vida. As Instaurações Cênicas criadas pelo CRUOR Arte Contemporânea em Residência Artística no Hospital Psiquiátrico Dr. João Machado configuram-se como objetos de estudos e análise da criação no campo das Artes Cênicas. (MEDEIROS, 2019 – Resumo).

Os referidos trabalhos de pesquisa são inspirações e, ao mesmo tempo, pistas a se seguir na luta antimanicomial e, para a dança (arte), são grandes conquistas de um novo entendimento do corpo, do movimento, da criação e da loucura. São janelas abertas para novos horizontes.

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Parte I – MINHA JANELA DE COMPREENSÃO TEM SIDO O MOVIMENTO

O presente trabalho objetiva fazer uma reflexão analítica de práticas pedagógicas desenvolvidas em diversos espaços, momentos, oportunidades (formais e não-formais), utilizando a dança como poética e fenômeno de promoção da criação de narrativas de usuários, sujeitos dependentes químicos. Em todos esses sujeitos percebemos que a condição de “loucura” tem sido uma marca social de suas existências.

A suspeita que estamos propondo desvendar com esse trabalho é a de que as artes, muito especialmente, a dança, pode descontruir a imagem que os usuários têm de suas “loucuras” à medida que podem fazer uma analogia entre o “ser artista” e o “ser louco”, em práticas assistidas.

Acreditamos poder contribuir, com esse trabalho, na desmistificação do estigma da loucura, partindo do pressuposto que a criação artística, a dinâmica da dança, a expressão de sus conflitos em forma abstraídas, ou seja, como narrativa, possa apontar novos caminhos, bem como trabalhar as funções cognitivas motoras, a criatividade e a liberdade de expressão através da ludicidade.

Entendemos que se faz necessária uma percepção não-estática da vida, pois certos comportamentos desviantes, de caráter inovador, podem trazer as respostas adequadas para permanência de determinado sistema. Essa é ideia que o desviante de hoje pode ser o herói civilizador de amanhã, conforme a crítica da patologia geral feita por VELHO (2003), que também nos apresenta a ideia de que um desvio, de um modo ou de outro, implica na existência de um comportamento “médio” ou “ideal” que expressaria uma harmonia com as exigências do sistema social.

A dança ocupa, assim, o centro desse trabalho e se dá a partir da “observação participante” do que realizamos como experiência vivida no Projeto Plural, da UFRN, em parceria com pesquisadores, artistas, psicólogos e agentes da área de saúde, desde 2015, até a data presente. Nos baseamos nas Oficinas de dança que ministramos na Plural para fazer uma analogia entre a dinâmica psicológica e emocional vividas nas práticas da arte, com as mesmas dinâmicas que aparecem na condição de loucura (como ainda tratam essa condição existente na pessoa humana).

O que é estar são e estar louco? Que regimentos e percepções podemos ter de uma pessoa e aponta para ela o dedo punitivo que a exclui da vida social por ela “estar louca”? A loucura

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tem muitos nomes na sociedade. E tem muitas funções. Nos propomos a vê-la como estado de ser. Não muito diferente de nenhum outro estado de ser, como se estar poético ou realista; se estar triste ou alegre; depressivo ou ativo... A loucura ainda é um grande mistério. (SILVEIRA, 1981).

As comparações entre as produções artísticas modernistas e a de pacientes esquizofrênicos proporcionou(sic) uma mudança na concepção do processo criativo. Tanto profissionais das artes como psiquiatras de psicanalistas observaram que ambas as produções se baseavam em aspectos individuais instintivos que privilegiavam a subjetividade, o sentido e a intuição. As idéias(sic) apareciam organizadas livremente a partir do mundo imaginativo. A arte no sentido do inapreensível nos remete à arte dos esquizofrênicos que destaca este aspecto. A produção artística dos esquizofrênicos, assim como sua linguagem, também está ligada ao que é incompreensível. (ZOSCHKE, 2007, p. 94).

A partir da segunda metade do século XX, muitos estudiosos das mais diversas áreas passaram a questionar as formas de como medicina e a clínica categorizaram a “normalidade” e a “loucura”. O mais exponencial desses estudiosos é o pensador francês Michel Foucault, que escreveu uma obra voltada para a revisão dos mecanismos de análises, abordagem, encarceramento e cuidados “dos loucos”.

Em História da loucura na idade clássica (1987) e O Nascimento da Clínica (1987) Foucault destaca, consecutivamente, a importância do “doente” e da “loucura”, ao contrário do que estudiosos da “doença mental” haviam categorizado como ciência. Em sua pesquisa, Foucault revela circunstâncias atenuantes das institucionalizações do tratamento da loucura pelo viés da “normalidade”. Seus estudos apontam para o fato de que: a) o louco é menos louco do que a sanidade imaginada pelo ideal de “normalidade”; b) a teoria não dá conta da verdade e o tratamento pode ser apenas facção qualificativa da cultura sobre indivíduos que se mostram como “desertores do cotidiano”.

A história da loucura iniciou-se aproximadamente na Idade Moderna com o fechamento dos leprosários onde os indivíduos acometidos pela lepra eram banidos da sociedade, isolados e excluídos por se tratar de uma doença transmissível e sem cura representando assim um perigo para a sociedade. Com o término dos leprosários observa-se o surgimento de um novo ideal, constituindo um novo ideal de doença. Onde a nau (a nau dos loucos) levava os loucos as terras distantes, desconhecidas, onde não sabiam para onde iam nem porque estavam lá, tampouco sabiam como voltar e não conheciam ninguém e nem ao menos se reconheciam.

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No início da Idade Contemporânea, surge o nascimento das clínicas. O louco não seria mais um problema da sociedade, mais puramente um problema científico surgindo assim a psiquiatria e as mistificações da ciência que legitimaria como doença a loucura a qual passaria a ser criminosa, perigosa e até contagiosa. As pessoas com transtornos mentais eram trancafiadas em manicômios, isoladas, excluídas e punidas com tratamentos desumanos como eletrochoques e outros.

O pensador francês Michel Foucault, em grande parte de sua obra, dedicou espaço à crítica dos mecanismos de busca da saúde, na sociedade, como forma de exclusão, segregação e controle. Em “História da Loucura” (2008), Foucault investiga as formas com que a intelectualidade ocidental moderna se dedicou a separar, racionalmente, razão e loucura.

Segundo ele, estrutura de uma “razão científica” foi o que nos permitiu medir as formas de manifestação das individualidades e instituir um padrão de controle. Assim, a oposição entre insensatez e sentido deriva de uma forte necessidade que o pensamento intelectual hegemônico criou para manter os indivíduos em posturas de “bela retidão”. Dessa forma, o pensamento racional passou a estudar e definir a loucura como o comportamento de indivíduos em estado de doença mental. Para o francês, seria o caso de na contemporaneidade rever tal ontologia e ampliar a percepção da condição desses indivíduos sob uma chave essa distante da ordenação racionalista. “[...] verifica-se que sob cada uma de suas formas ela oculta de uma maneira mais completa e também mais perigosa essa experiência trágica que tal retidão não conseguiu reduzir (FOUCAULT, 2008, p.29).

No Brasil, Nise da Silveira foi revolucionária na psiquiatria inspirada por Carl Jung (um dos pais da psiquiatria). Foi uma das primeiras mulheres a se formar no curso de medicina no Brasil e a única mulher da turma a se formar na Bahia em 1936. A alagoana se destacou em usar a arte como forma de expressão e dar voz aos conflitos internos vivenciados principalmente pelos esquizofrênicos, os quais tiveram obras de arte exposta na semana de arte moderna em São Paulo com a curadoria de Mário Pedroza, onde participaram nove artistas (os loucos), tendo sido exposto 179 desenhos, pinturas e esculturas com debates dos críticos de arte Mário Pedrosa e Quirino Campo Fiorito sobre o valor das obras produzidas por pacientes psiquiátricos exilados da sociedade nos manicômios que projetavam o trabalho de Nise da Silveira, isso fez com que se comprovassem a eficiência do seu trabalho que circula dentro e fora do país.

Seu trabalho antecedeu a luta antimanicomial no Brasil.

As pesquisas e as experiências do Hospital Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, dirigido por Nise da Silveira, apontam a necessidade de situar a loucura num contexto

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social, pois esta é uma experiência social e psicológica. Social porque existe uma maneira variada dos grupos sociais a conceberem. O que um grupo caracteriza como loucura pode não ser reconhecida da mesma forma em outro grupo. [...] A maneira de se perceber as perturbações emocionais também varia de grupo para grupo. Há pessoas que ao se depararem com estes tipos de problemas buscam soluções no âmbito da religião e preferem conversar sobre suas angústias com padres ou pastores. Uns procuram a intervenção médica e/ou psicológica. Outros buscam terapias através das linguagens artísticas: pintura, escultura, dança, teatro e literatura. As práticas e linguagens sociais adotadas em relação à loucura constituem códigos que funcionam discriminando comportamentos, atitudes, sentimentos e posições, desdobrando-se em códigos de valores, certo/errado, bem/mal, desejável/indesejável, impostos pela cultura. Esses códigos sociais, que trazemos dentro de nós, regulam nossa interioridade e nossa relação com os outros. A loucura, então, se apresenta para a mente humana como algo estranho que foge à compreensão de conduta, como se houvesse uma perda de sentido. A loucura pode ser percebida como se existisse algo que escapa a compreensão, algo que não se consegue identificar como pertencente ao indivíduo. (SALLES, 2005).

Em 1956, a Dr.ª Nise da Silveira fundou a Casa das Palmeiras, um passo na direção da luta antimanicomial, que chegou ao seu ápice em 2001 com a Lei Nº 10.216/2001 (lei ordinária) de 06/04/2001. Também, construiu o Museu do Inconsciente, aberto até hoje no Rio de Janeiro. A Dr.ª Nise, tendo dedicado sua vida à psiquiatria e manifestando-se radicalmente contrária as formas de tratamento psiquiátrico de sua época, tais como o confinamento em hospitais psiquiátricos, eletrochoques, insulinoterapia, lobotomia, entre outros, esteve sempre à frente do tempo, tendo possibilitado aos loucos reatar seus vínculos com a realidade através da expressão e criatividade, também possibilitou a interação de pacientes com animais.

Nise da Silveira é reconhecida internacionalmente como sendo uma psiquiatra que através da arte conseguiu apontar novos caminhos, possibilitando novas formas de viver e conviver com a loucura que perpassa o entendimento de uma sociedade que ainda não evoluiu em relação às diferenças, pois mantém ainda muitos preconceitos que normatiza e esquadra indivíduos, tentando retirar-lhe a identidade e descaracterizá-lo, punindo o louco e o excluindo como uma ameaça a sociedade.

No presente trabalho, seguindo a mesma suspeição da Dr.ª Nise, buscamos reavivar a ideia de acolhimento afetivo que só a expressão artística pode propiciar com usuários do Projeto Plural e, assim, analisar os resultados colhidos naquela experiência, nos deparamos com a necessidade de compreender a loucura, mas não na forma que a tradição cultural do senso comum tem nos apresentado.

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Nosso contato com a Plural se deu a partir da ampliação do grupo de especialista da Plural, que antes era formado apenas por psicólogos. Após algum tempo, a equipe convidou outros especialistas para desenvolver funções de arte-terapia, com a intenção de que a arte pudesse funcionar nas práticas do grupo como possibilidade de desmistificação da “loucura”, uma vez que toda ludicidade é lúcida e, portanto pode interagir de modo constitutivo na dinâmica de pessoas em situação de acolhimento nas práticas do grupo.

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Parte II – O PERCURSO DO “EU” SE DEVE AO “OUTRO”

Desde 2015 até a presente data, participamos ativamente da Plural, desenvolvendo projeto educacional e artístico em dança. Desse modo, esse nosso TCC faz uso referencial de fundamentação teórica para refletir do que temos observado no referido grupo, bem como da análise de relato do que vivenciamos com a dança, em contato com usuários. Considerando que a intensidade com que o “artista” e o “louco” expõem suas emoções muitas vezes se assemelham.

Em nosso contexto sociocultural, algumas pessoas são punidas por apresentar sofrimentos psíquicos que “não podem” ser expressos em coletividade, mas “precisam ser”. Por isso, acreditamos que a arte é uma das formas de trazer o indivíduo à condição de narrador de sua própria história, um meio de se libertar do seu sofrimento, através de sua expressividade.

Para isso, fazendo uso da observação participante, procuramos conhecer a história de vida de cada um, aproveitando os relatos já realizados nas reuniões de acompanhamento assimilando o teor constitutivo de suas falas e expressões para coletar dados para que fosse possível executar um trabalho artístico, compreendendo que a arte atua como veículo facilitador da expressividade.

No começo de suas ações, a Plural tinha como alvo atender apenas os usuários, mas se estendeu também aos familiares. E, além de ter construído um grupo de atenção psicológica de qualidade, também atua com ações sociais, investindo em ações de formação docente (Como os estagiários do Curso de Especialização de Psicologia e organização de seminários e encontros em prol da saúde mental). Desenvolvendo, ainda, práticas de vivências psicossociais através das artes, especialmente, da dança, do Teatro e das Artes Visuais, com parceria com profissionais qualificados e especializados. 2

A Plural desenvolve suas atividades todas as sextas feiras, no turno vespertino. E desde que ampliou seu público alvo, passando a atender a comunidade em geral, faz extensão em outros espaços de saúde pública, como o Hospital João Machado e o Centro de Convivência

2 A estrutura física da Plural é composta apenas por uma sala, cedida no espaço do SEPA. Mas a Plural atua em

qualquer outro espaço público ou privado que possa ocupar. Atualmente, não dispõe de financiamento e todo o trabalho ali desenvolvido é voluntariado. A coordenadora do projeto é a doutora Ana Karenina, psicóloga e professora da UFRN.

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Rocas. As pessoas que procuram atendimento na Plural, em sua grande maioria, são das classes sociais de média e baixa rendas.

O espaço da sala é onde são realizados e expostos os trabalhos, onde são feitos os acordos, criadas as rotinas. Os calendários de atividades são apregoados próximo à porta de entrada, onde, também, fica exposta uma lista de presença. Nos sábados, a Plural se dedica às práticas de artes.

A Plural é composta por 30 pessoas atuantes, entre usuários e profissionais. Mantém uma equipe multidisciplinar com um professor titular e oito estagiários da área da Psicologia. No último semestre (2019.1), manteve atendimento para cerca de 20 usuários.

A frequência de usuários é flexível, por conta da própria condição social e de tratamento. Além disso, podemos observar que os usuários possuem uma necessidade muito grande de se movimentar. O perfil dos atendimentos é de certa dificuldade para concentração. No grupo de usuários assistidos existem pessoas com necessidades especiais (com problemas de fala e locomoção; de coordenação motora dos membros inferiores, além de outros transtornos mentais).

Na Plural, participamos através de uma ação pedagógica que contempla as relações entre as experiências e conhecimentos acumulados socialmente dos usuários e alguns de seus familiares. A partir da participação e apoio das famílias, podemos discutir formas interdisciplinares de elaboração de projetos artísticos e educacionais em dança (construídos por todos da equipe), em que os usuários (que é foco principal) e todos docentes efetivados e estagiários (mediante suas especificidades) poderão interagir e criar.

O desenvolvimento do projeto de ensino acontece com base nas condições dos envolvidos (profissionais e usuários). Assim, conseguimos desenvolver algumas ações corporais, como o sacolejar, arrastar, que se implicam em fatores essenciais para os usuários retomarem algumas de suas condições de autocontrole de tempo (lento, moderado e rápido); de fluências de movimento (livres e controladas); de peso (leve e pesado); de utilização de espaço (com figuras geométricas e abstrações) etc. (LABAN, 1979; TIBÚRCIO; 2016).

A receptividade e participação podem ser pontos positivos em nossa observação da forma como os usuários e os psicólogos nos acolhem. A equipe atua reforçando e auxiliando nas práticas da dança nas oficinas, que se conectou com o projeto Plural, apresentando e pensado dinâmicas da psicologia aplicada como poética de sujeitos.

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2.1 A singularidade da Dança na Plural

O movimento é inerente aos de nossa espécie. E de outras, também. Mas não nos cabe falar deles, por enquanto. O movimento é o que nos arremessa pela vida. Desde que somos formados no útero. Assim, somo seres que dançam. E a dança é vida. E a dança da vida é cíclica. Nascemos e morremos todos os dias, assim como o dia e a noite. Sempre soubemos que nossos corpos entram no movimento logo que somos gerados. E só paramos no instante do último sopro de vida e da última batida do coração.

Entretanto, é muito comum ouvir alguém dizer “não gosto de dançar”. Na verdade, esse alguém está querendo dizer muita coisa que não, necessariamente, tem a ver com a dança. pode mesmo estar dizendo “eu tenho medo de me expressar pela dança”. Ou, “eu não sei de técnicas de dança” e, ainda, “eu não gosto de dançar com pessoas me observando, tenho vergonha”.

Por aí vai. E, a cada vez, a dança ganha mais relevância na vida. Daí, acreditarmos que é “divino” dançar. Já vimos isso nos livros mais antigos, nas esculturas em pedras, nos sussurros de povos ancestrais, nas palavras bíblicas, nas gravuras de todas as histórias, na tradição.

E vai ficando mais difícil definir o que é dança e o que é subjetividade. Para bem e para mal. O fato é que, se alguns não dançam, muita gente dança: reza dançando, celebra a vida dançando, namora dançando, fica célebre dançando, fica rica dançando, compete dançando, ensina dançando, faz amor dançando, se “amostra” dançando, goza dançando, sofre dançando... Não para nunca. Vai por aqui, por ali, por aí e por acolá, a vida dançando.

Trabalhar movimentos com os pacientes da Pluralnão foi diferente, disso. Muitos dos que frequentam o grupo diziam que não sabiam dançar e outros, que tinham vergonha. Que não sabiam as técnicas. Ora! Dançar é mais do que técnicas.

Dançar é o resultado de movimentos que mexem com o corpo. O corpo é cultura, subjetividade, coisas de fora e de dentro... o psicológico das pessoas. É mais do que consciência, vai para além do inconsciente e mexe com memórias. É parte do que nos adoece e mais do que isso, é acima de tudo experiência que abre potencialidades para descobertas de si. Dançar é profilaxia no corpo que dança. Se a mente adoece... “Quem não gosta de samba, bom sujeito não é...” A dança pode nos elevar a um estado de compreensão de nós mesmos... “É doente da cabeça ou doente do pé.”

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Os movimentos do corpo, expressados em dança, no balançar, no sacudir, contrair, descontrair etc., fazem com que se mexam músculos, articulações, estrutura óssea, órgãos internos, sistema respiratório, enfim, todo o corpo e seus metabolismos.

A dança abre a mente para outras possibilidades, liberando toxinas e os hormônios da felicidade, dopamina, serotonina, oxitocina, endorfina que faz com que a pessoa se sinta bem consigo mesma, independentemente da idade, da criança ao adulto. Além da dança, o grupo teve acompanhamento psicológico por se tratar de um grupo de saúde mental. Isso colaborou para maior interação e melhor desenvolvimento corporal.

2.2 “Onde está o Eu Gênio?”: Origens

A Plural é um grupo muito heterogêneo, com diversidades de ordem socioeconômico, e parte de uma perspectiva multiculturalista, para entender os conflitos internos e externos dos participantes, colaboradores e usuários. A dança entra no grupo como uma forma de educação, imersão na cultura, desenvolvimento com a arte e sobretudo, terapêutica e profilática. Minha maior satisfação é saber de forma individual e coletiva o grupo evoluiu no sentido de consciência corporal, desenvoltura, coordenação motora, equilíbrio e harmonia do grupo que transborda em alegria, criatividade e hoje sei que o grupo leva dentro de si as memorias e vivencias experenciadas nas práticas em dança-teatro sobre o espetáculo “Onde está o Eu Gênio?”.

Essa foi uma experiência que vivi na Plural e que destaco, entre muitas outras, como a mais significativa. Trata-se da criação de um espetáculo que envolvia a dança, a dramaturgia, a história de vida e a ideia de ocupação do corpo e do espaço. Chamou-se: “Onde está o Eu Gênio?” e nasceu da necessidade de garantir uma reflexão no corpo através da dança e era sobre o que sentiam e viviam aqueles sujeitos.

O início se deu pela necessidade de composição de uma dramaturgia. Fizemos uso dos relatos de participantes, acerca de questões imediatas e de memórias que traziam e que emergiam quando falavam.

A criação se deu em encontros regulares que ocorriam a cada sexta-feira, no SEPA/UFRN e, aos sábados, nos encontrávamos no Departamento de Artes (UFRN). A matriz fundamental do trabalho eram as práticas de dança-teatro.

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A plural é composta por psicólogos, alunos de psicologia, de dança e de outras áreas do conhecimento, com muita frequência da comunidade universitária da UFRN. Além das pessoas portadoras de doença mental, dependentes do álcool e de outras drogas e ouvidores de vozes. Essa “galera” tem idade média entre os 20 e 60 anos, com corpo, na maioria das vezes, enrijecidos pela quantidade de remédios que usam, além de outros fatores, como falta de exercício, questões emocionais e psicológicas.

Não é fácil fazer trabalho em dança com pessoas em condições de saúde mental afetadas. Muitas sequelas aparecem no processo. A falta de concentração é um fator de grande frequência. A confusão cognitiva, também. A percepção e a sensibilidade são muito afetadas, devido à grande quantidade de distúrbios que ocorrem na clientela.

A percepção e a sensibilidade são condições identitárias de cada indivíduo. “[...] cada corpo é um corpo e, portanto, não podemos chegar a um conceito único a esse respeito”. (CLARO, 1988, p.199). Desde o início do trabalho (preparativo e nos ensaios), utilizamos algumas sequencias de exercícios fundamentados no Método Dança-Educação Física (MDEF), do professor Dr. Edson Claro 3, que nos foi apresentado em muitas disciplinas do Curso de Licenciatura em Dança da UFRN.

Repetidamente, o trabalho se iniciava com todos deitados no chão, de olhos fechados. A condução era dada pela obediência ao fluxo da minha voz. Comumente, conduzia-os a pensar nas partes do corpo deles que tocavam o chão e a tentar imaginar quais partes eram moles ou duras. Imaginar seu corpo tocando no chão, com partes moles ou duras era uma maneira de fazê-los despertar para o alto conhecimento do corpo.

No mesmo caminho, buscando educar os corpos pelo movimento, consideramos os trabalhos do coreógrafo e teórico da dança, Rudof Laban (1978; 1990) que, na perspectiva da professora Dr.ª Larissa Tibúrcio (2016),

Nas indicações de Laban é possível pensar esse imaginário propondo a exploração e pesquisa no corpo dançante, atentando para o modo como se dança, por que se dança, com quem se dança, o que danço e onde danço. Os componentes estruturais do movimento pesquisados por esse estudioso como as cinco pontas da estrela labaniana (o espaço, o corpo, as ações corporais, os relacionamentos e as dinâmicas) acionam

3 O professor Dr. Edson Claro organizou, como relevante parte de suas pesquisa em dança, educação e psicologia,

o que chamou de Método Dança-Educação Física (MDEF), em a dança aparece como conhecimento, desde os sujeitos ne envolvidos, mas ainda como corporeidade, campos de saberes do corpo em ação, na superação de limites, na construção de um condicionamento físico, como método de trabalho corporal.

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um universo imagético potente advindos do conhecimento coreológico para pesquisar a criação em dança. (TIBÚRCIO, 2016, p. 408).

Assim, aos poucos iam despertando, gradativamente, do nível baixo, passando pelo nível médio, até chegar ao alto. De pé, fazíamos reconhecimentos do espaço interno (imaginando o que se movia dentro) e do externo (andando e observando). Sempre, com a preocupação em respeitar o espaço do outro, pois, de vez em quando, eles se esbarravam.

Aos poucos, tudo foi fluindo. O trabalho era feito sem música e causava estranheza. Porém, como era ao ar livre, eu pedia para que eles se concentrassem no barulho da natureza, nos pássaros etc. Logo, eles já estavam apresentando corpos mais leves e mais fluidos. Esta experiencia durava cerca de 15 minutos.

Em seguida, começavam a desenvolver o exercício de relação (dramática) com a pergunta “Onde está o Eu Gênio?” O objetivo simbólico desse jogo teatral era encontrar o “Eu genial” que habita em cada um e quebrar as barreiras dos preconceitos que a baixa autoestima gera nas pessoas em geral, especialmente, em pessoas usuárias de saúde mental, que tiveram suas vidas ceifadas e/ou aniquiladas psicológico e socialmente.

Consideramos o jogo teatral como uma pedagogia do teatro aplicada à aprendizagem de indivíduos que se voltam para a criação e apresentação de cenas, não apenas como exercício latente de dramatização em jogo, na perspectiva de Viola Spolin, conforme nos apresenta FARIA NETO (2015).

Inspirados em Spolin (1985), apresento, a seguir, alguns pressupostos estratégicos da aplicação dos jogos teatrais:

• Conhecer as regras do jogo jogado;

• Compreender o tempo cronológico como um sistema de organização das sequências de ações teatrais;

• Criar personagens que, para além do uso da imaginação inerente ao jogo dramático, mobilizem estratégias racionais de motivação, objetividade e interesse;

• Detectar, precocemente, a função que seu personagem pode ocupar/representar no jogo;

• Estabelecer condutas de respeito à individualidade e ao coletivo;

• Explorar o espaço físico como o espaço narrativo, ou seja, dotado de tempo e de objetivo;

• Partilhar as estratégias de jogo com outros jogadores;

• Receber os estímulos sensoriais, emocionais e racionais e usá-los como impulsos criativos;

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A pergunta “Onde está o Eu Gênio?” era feita de diversas formas e em vários tons – alto, médio, baixo. E os movimentos do corpo também acompanhavam esses níveis. Em outra fase da composição, formulei a frase “Onde está o Eu Gênio?” utilizando uma leve demonstração de sentimentos (medo, espanto, tristeza, alegria etc.).

Coloquei, na fase seguinte, a turma para explorar o espaço físico, as texturas do chão, paredes, todas que pudessem alcançar. Ao final, nos sentávamos em um grande círculo e falávamos sobre a experiencia vivida. Era uma forma de exteriorizar algum reconhecimento do próprio corpo, vivido no espaço (individual e coletivo).

Na fictícia busca pelo “Eu gênio = Eugênio”, passavam a ter acesso a reflexões de como sentiram as texturas no espaço e o que essa experiencia provocou dentro de cada um. O resultado dos relatos era sempre satisfatório, como, por exemplo, a sensação de um dos pacientes, que descreve em seu relato, que nunca tinha pensado nas partes moles ou duras do corpo. Outro, que falou que relacionou as texturas do espaço exploradas com seu corpo. E um terceiro, gostou de experimentar os níveis do seu corpo na medida que subia o tom da voz, assim, como também achou prazeroso experimentar o movimento de regressão do nível alto para o baixo.

Para mim, foi gratificante que, mesmo com dificuldades dos movimentos, eles conseguiram fazer relatos importantíssimos e despertar o inconsciente para a pergunta “Onde está o Eu Gênio?”. E, assim, fui desenvolvendo o trabalho com diversidade de dinâmicas, singelas, mas importantes para eles e para mim, sempre utilizando os recursos da dança para montar o espetáculo.

O enredo da ação dramática nasceu da utilização dos relatos individuais, da história de vida de cada um e, também, de episódios inusitados por eles vividos. A parte do conflito central da dramaturgia se deveu às inquietações e queixas, por eles relatadas, com relação a questões pessoais e sociais. Como, p. ex., o uso contínuo da medicação, as questões de gênero, a misoginia, o preconceito, as estigmatizações, as segregações. O ponto de partida, para o desenvolvimento do trabalho, foram as discussões acerca das inquietações. De que maneira as pessoalidades poderiam tornar-se matéria expressiva? Era pelas possibilidades de extravasar as emoções e aspectos psicológicos, através de um imaginário, de cada um e de todos, dando voz ao corpo, permitindo ao corpo se fazer voz.

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2.3 “Onde está o Eu Gênio?”: Reflexões

Na segunda etapa de construção do espetáculo, fizemos um rodizio de lugares para os ensaios e novas inspirações e criatividades surgiram. Também surgiram as atuações e interpretações. Na dança, gradativamente as performances tornaram-se mais nítidas e concretas. Essa elevação do nível estético da cena se deu porque as relações entre os participantes estreitaram-se. À medida em que os relatos de vida foram compartilhados, compartilharam-se também os objetivos e anseios individuais. Muitos deles influenciaram (afetaram) na produção das coreografias e narrativas do texto.

Buscamos visitar e ensaiar em lugares distintos, como praias, bosques, praças, o que afetava os participantes e os fazia produzir outros movimentos e outras chaves para as suas narrativas. Diante de toda essa aventura social, houve criação, escuta, falas expressivas e o ambiente influenciou de forma positiva para criação de outras falas e movimentos dentro do contexto.

Minha intenção nunca foi, em momento algum, tratar de aspecto psicológico, psiquiátrico ou emocional, mas utilizar as ferramentas da arte, através da dança-teatro e das artes visuais, do corpo como linguagem, para possibilitar a livre expressão e uma reflexão do um pouco menos dolorosa do ser, do eu, do “Eu gênio” de cada um, que esteve esquecido, rotulado, inacabado, durante algum tempo.

As formas de ser da ludicidade eram formas que a dança nos oferecia de como se encontrar no mundo (nos mundos interno e o externo), de como se colocar na sociedade, com ética e cidadania. Nos dedicamos a compreender a experiência do “dançar” como uma revelação do corpo no mundo. Mas, precisávamos apreender o silêncio. São tantas vozes gritando na vida de uma pessoa com algum distúrbio psíquico, família, sociedade, medicina, médicos, práticas e terapias... que muitas vezes o silêncio é a cura. E o silêncio pode ser dançado.

O espaço que nos rodeia é um elemento vivo e pode converter-se em algo sensível se utilizarmos nosso corpo como instrumento. As músicas mais primitivas ou as contemporâneas podem ser reconhecidas nele, e seu conhecimento adquirido por diferenciação progressiva de elementos contrastantes leva à união da música com o movimento, enriquecendo nosso mundo interior. Mas existe também o mundo do silêncio. E o silêncio pode ser dançado. (FUX, 1983, p. 101).

Se podemos “dançar o silêncio”, podemos e devemos entender a dança como uma possibilidade de abstração da realidade. Se abstrairmos a realidade de sua forma mais potente

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em definir quem somos, certos ou errados, são e loucos, podemos, sim, ressignificar a ideia de “loucura”.

Assim, nosso trabalho começou pelo ponto final. Já com a ideia de fazer um espetáculo, através da dança, teatro, das artes, queríamos oferecer ludicidade àquelas pessoas. O desenvolvimento do trabalho, baseados na ação dialógica que construímos com os relatos individuais, as oficinas de dança, a construção das falas e das narrativas, foi costurado com o desenvolvimento das pessoas. Gosto de acreditar que com aquilo elas encontraram algum silêncio.

No transcurso da composição, várias questões perpassavam minha mente, como fazer um trabalho com possibilidades de relatar e refletir sobre os processos externos e internos em saúde mental. Imaginava como a dança poderia ser uma possibilidade significativa para a expressão de questões pessoais e coletivas. Tinha dúvidas se o trabalho faria sentido, dentro do contexto social e da luta antimanicomial. E foram essas as respostas que encontrei:

1) tentei trabalhar as particularidades de cada um e seus questionamentos pessoais, suas memorias, seus sentimentos e suas emoções;

2) utilizei a linguagem própria de cada um, suas particularidades, imaginações, percepções, sensações para criar as narrativas;

3) transformei em dança os movimentos externos e internos de cada um, fazendo com que externassem suas inclinações;

4) utilizei estímulo de outras linguagens artísticas, como as artes visuais, a música e o teatro, para colaborar na composição em dança;

5) através da narração de experiencias vividas por cada um, compomos enredos, para externalizar, através da arte, questões pessoais e sociais, para tratar de coisas que tanto inquietam;

6) compreendi que seres medicalizados e/ou manicomializados são uma parte fundamental de nossa sociedade e que, por suas próprias formas de viver, apontam reflexões para sociedade;

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A utilização de memorias e da própria história de vida de cada um foi a grande motivação para o aprendizado. Todo material que nos chegava, trazido por cada um, nas reuniões da sexta-feira ou do sábado, era utilizado na elaboração de “Onde está o Eu Gênio?”. Era surpreendente verificar a existência de uma pulsação configuradora de imagens sobrevivendo mesmo quando a personalidade estava desagregada. Apesar de nunca haverem pintado antes da doença, muitos dos frequentadores do atelier, todos os esquizofrênicos, manifestavam intensa exaltação da criatividade imaginaria, que resultava na produção de pinturas em número incrivelmente abundante, num contraste com a atividade reduzida de seus autores fora do atelier, quando não tinha mais nas mãos dos pinceis. (SILVEIRA, 1981, p. 13).

No processo, experimentamos uma sensação de abundância criativa, de nossos parceiros da Plural, numa pequena medida, similar ao que relata a professora Nise da Silveira, acerca da criatividade do imaginário de gente desagregada psicologicamente. Imagino que seja essa a grandeza da criação artística, para pessoas doentes e pessoas sãs, uma vez que nos faz acessar territórios pulsantes de dentro de nós.

É o fato de ter me defrontado com muita grandeza criativa, quando realizamos alguns exercícios e quando os ouvíamos. Cataloguei tudo, todos os relatos, abordagens, questionamentos, discussões, memorias afetivas: a infância deles (resgatando danças de roda e cantigas de infância), as próprias confusões mentais, as potencialidades de suas falas. E a dança que emergiu no corpo deles foi mais que expressão artística; foi pulsação imaginária criativa em forma de movimento.

Concretamente, do ponto de vista metodológico para a construção coreográfica, busquei utilizar princípios esparsos do trabalho de Rudolf Laban (1978; 1990). Deve admitir que não estávamos lidando com bailarinos, dançarinos, nem mesmo amadores da dança, de modo que os fatores do movimento, do espaço, do peso, do tempo, da fluência etc. (TIBÚRCIO, 2016), eram apenas sinais, pontos de reflexão para a criação.

A forma como o estudo de movimento, a partir de Laban, nos permitiu dançar através da expressão imaginativa daqueles corpos, é um ganho metodológico desse trabalho. Laban, diferentemente de outros conhecimentos ensinados na Licenciatura em Dança, estimula a criatividade, as expressões, a fluidez.

Da mesma forma, sua instigação pela dinâmica do movimento como uma conquista do ser dançante pode ser entendido como um ser critério político de afirmação do corpo que dança

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para além da visão de mundo que lhe oprime. A dança se torna uma nova “forma de pensar”. A dança nos corpos brincantes pulsa emoções e sentimentos, assim como indivíduos únicos, não integrados à sociedade, também podem se conectar ao mundo por ações de movimento e arte. A dança, assim, é mais pluralidade significativa do modo de ser do indivíduo.

Minha motivação foi explorar o lado criativo, não apenas o artístico, mas o jogo de ressignificação da loucura como um jogo de teatralização, isto é, o sujeito que o realiza está em seu mergulho criativo, mas também pode ser visto fora desse mergulho, como espetáculo. Para buscar esse equilíbrio delicado, norteávamos o pensamento de Paulo Freire (1996), sobretudo, sua crença de que somos seres inacabados. Então, sempre pensei que todos do grupo Plural ainda têm muito a aprender a vida e a nos ensinar a vida que só eles sabem viver.

A nossa encenação resultou em uma apresentação cômica, dramática e política, com direcionamentos sociais e integrativos para usuários de saúde mental, pois abordamos vários transtornos mentais como ouvidores de vozes. Falamos do abuso de medicamentos e outras drogas e redução de danos. Da procura pelo “Eugenio” dos gênios perdidos ou não despertados. Da linha tênue da loucura e lucidez. Dos vários preconceitos da sociedade e da necessidade da desconstrução do “louco”.

Através da dança, o grupo teve mais alegria, maior criatividade, alguma consciência do seu “eu” no espaço, mais segurança e integração do grupo entre si e na sociedade. Uma forma de externar as angustias e os medos, de extravasar as tensões, as agressividades.

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À GUISA DE CONCLUSÃO

No início foi muito difícil para que eu pudesse explicar com clareza o que eu gostaria de elaborar. E tudo estava dentro da minha cabeça. Tive dificuldades em transmitir as bases do processo (teórico e prático) do que estávamos fazendo. Por princípio, não estávamos fazendo um espetáculo, mas usando estratégias de dança para um aprendizado humano.

À guisa de Conclusão, quero destacar que a dificuldade em entender o processo não foi só dos pacientes participantes, mas que isso não reduz a importância do que fizeram, fizemos. Esse artigo é o trabalho de uma reflexão. E essa tentativa de sistematização do que foi vivido (por indivíduos e por nós mesmos) dentro do contexto de uma singela experiência de usar a dança para trazer felicidade a quem é tratado pela sociedade, muitas vezes, apenas como “sequelado”, “segregado, “noiado”, “pária”, enfim, vítimas dos padrões de estigmatização que a “pseudo” normalidade nos impõe.

O trabalho com esses sujeitos foi mais que um espetáculo. Havia uma ideia, claro, e todos, naturalmente, estavam inseridos no contexto de imaginar que estavam “fazendo” um espetáculo. Porém, não tínhamos e nem difundíamos a noção de que era para ser cênico. Obviamente, todos tinham seu papel na experiência de criação de um espetáculo de dança-teatro. No entanto, sabiam que a vontade de expressar suas vidas e angústias era maior que a motivação espetacular.

Fundamentamos o processo em leituras sobre o assunto “saúde mental”, sobre conduções didáticas da construção e elaboração de um espetáculo, sobre dança-teatro. Com o método construtivo de Paulo Freire, para quem “pensar certo” é ser “dialógico”.

[...] A grande tarefa do sujeito que pensa certo não é transferir, depositar, oferecer, doar ao outro, tomado como paciente de seu pensar, a intelegibilidade das coisas, dos fatos, dos conceitos. A tarefa coerente do educador que pensa certo é, exercendo como ser humano a irrecusável prática de inteligir, desafiar o educando com quem se comunica e a quem comunica, produzir sua compreensão do que vem sendo comunicado. Não há intelegibilidade que não seja comunicação e intercomunicação e que não se funde na dialogicidade. O pensar certo por isso é dialógico e não polêmico. (FREIRE, 1996, p. 179).

Todos os envolvidos trouxeram seus conhecimentos de mundo, suas histórias individuais, alguns conhecimentos teóricos e nós lhes oferecemos a oportunidade de uma prática em dança.

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A narrativa da peça construída através de uma leitura oral, transformada, reconstruída, na medida das críticas, comentários, sugestões, criatividades desenvolvidas nas expressões através da fala, da escrita, movimentos corporais que foram gradativamente construída com a colaboração de todos e a cada encontro um novo elemento era apresentado e acrescentado, retirado ou modificado, comentado e reorganizado.

Questões individuais migraram para o coletivo, em um movimento de expansão que foi do micro ao macro. Questões individuais do coletivo ampliaram-se em direção à sociedade. Refletimos sobre os efeitos da dança no corpo e fora dele. Dançar era mais que cumprir a composição coreográfica.

O trabalho nos deixou exauridos, pois ensaiamos incansavelmente. Mas, ao final da apresentação, a alegria e satisfação era nítida no brilho e olhar de cada um. Na expansividade na forma de expressar, contagiante, ao mesmo tempo, um encontro consigo mesmo. Esta é a certeza de que valeu a pena. Aqui, registro essa alegria como uma conquista do trabalho.

Há seres humanos que pensam, dentro de um contexto específico da saúde mental em que as diferenças de uns e outros se tornam mais nítidas, que são melhores que os outros. Alguns sujeitos da sociedade chegam a sentir um estranhamento, quando se deparam como um “diferente”.

Dançar na Plural, no espetáculo “Onde está o Eu Gênio?”, foi permitir àqueles dançarinos “diferentes” não se lerem como uma ameaça ao próprio coletivo. O princípio da saúde mental na sociedade não pode desconsiderar a história de vida de cada, pelo contrário, precisa-se que esses sujeitos possam externalizar suas angústias para que, visibilizadas, sejam resolvidas.

Os conflitos internos e externos do coletivo, em saúde mental, não geram seres em dualidade. Seres eficientes versus deficientes; funcionais versus não-funcionais, úteis versus inúteis, normais versus “anormais”, loucos versus não-loucos. Construamos uma sociedade mais humana, agregadora, livre de preconceitos e estigmas, para um mundo mais acolhedor, reflexivo e mais humanizado.

Não há momento mais acolhedor e humano do que quando alguém necessita, urgentemente, de respostas e encontra mecanismo que lhe respondem. Dancemos para podemos criar sensibilidade, singularidade, pluralidade, paz e educação, nesse “mundo doido”.

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REFERÊNCIAS

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drogas. Recolhido em:

https://catracalivre.com.br/cidadania/bolsonaro-sanciona-lei-para-internacao-forcada-de-usuarios-de-drogas/. Acesso em 21 de outubro de 2019, às 11h43min. CLARO, Edson. Método dança-educação física: uma reflexão sobre consciência corporal e profissional. São Paulo: Edição do Autor, 1988.

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____. História da loucura na idade clássica. Tradução Brasileira de José Teixeira Coelho Neto. 2ed. São Paulo: Perspectiva, 1987.

____. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

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____. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 35ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

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PIRES, Josadaque Albuquerque da Silva. (Lou) cure-se!!!: corpos vividos em instaurações cênicas no hospital Dr. João Machado. 2016. 122f. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas)

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- Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016.

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SILVEIRA, Nise da. Imagens do inconsciente – com 272 ilustrações. Rio de janeiro: Alhambra, 1981.

TIBURCIO, Larissa Kelly de Oliveira Marques. O imaginário criativo e a composição em

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VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas (3ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2003.

ZOSCHKE, Camila. A arte e a loucura: uma aproximação histórica. Disponível em: http://www.embap.pr.gov.br/arquivos/File/camila_zoschcke.pdf. Acesso em 24 de junho de 2019, às 15h12min.

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APÊNDICE

Apêndice 1 – ROTEIRO DO ESPETÁCULO 4

Onde está o “Eu Gênio”? Cena 1

Abre o palco, os atores se manifestam em busca do “Eu Gênio”, do “Eu Absurdo”, do “Eu Idealista”, do “Eu Castrado”, do “Eu Esquecido”, do “Eu Enganado” e fazem questionamentos múltiplos e plurais. A roda gira sem parar. Os corpos se batem, se tocam e as ideias são trocadas. Os encontros e desencontros levam ao questionamento de onde está o “Eu Gênio” de cada um.

Pergunta 1 – Onde está o “Eu Gênio”? (Demonstrando preocupação) Resposta 1a – “Eu Gênio”? (Com espanto)

Resposta 1b – Sim! O “Eu Gênio”. (Pensativo) Pergunta 2 – Onde está o “Eu Gênio”? (Confuso)

Resposta 2 – Aaah! “Eu Gênio”! “Eu Gênio”! (Parece despertar para a busca do “Eu Gênio”: um ser único e singular)

Pergunta 3 – Onde está “Eu Gênio”? (Com tristeza)

Resposta 3 – Ah.. “Eu Gênio”, “Eu Gênio”... Ele está doente (Com tristeza) Pergunta 4 – Onde está o “Eu Gênio”? (Com medo)

Reposta 4 – “Eu Gênio”?? “Eu gênio”?? Não! Eu não sei (Com medo) Pergunta 5 – Onde está o “Eu Gênio”? (Calmo)

Resposta 5 – “Eu Gênio”, sim, “Eu Gênio”. (Tranquilo) Pergunta 6 – Onde está o “Eu Gênio”? (Alegre)

Resposta 6 – “Eu Gênio”?! “Eu Gênio” está na praia! (Alegre) Todos – Praia? Que praia!?

Resposta 6 – Praia dos Artistas! Pergunta 7 – “Eu Gênio” é artista?

Cena 2

Marcelo levanta e começa a poesia. Durante o tempo em que Marcelo declama a poesia, os atores experimentam as várias formas de rodar através das articulações, por exemplo: um ator roda o pé; outro roda no

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